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Este documento discute a importância do almanaque de lembranças luso-brasileiro na literatura oitocentista em áfrica e sua influência nas iniciações reflexivas e manifestações literárias dos escritores e jornalistas nascidos ou radicados nas ex-colônias portuguesas da áfrica. O texto explora a tensão existente entre a estética e o social nas manifestações literárias em língua portuguesa da áfrica do século xix, e como esses escritores assumiram atitudes que seriam retomadas para a impulsão de movimentos nacionalistas nas ex-colônias portuguesas na primeira metade do século xx.
Tipologia: Provas
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África, São Paulo. v. 33-34, p. 85-103, 2013/
Débora Leite David* Resumo: A partir da perspectiva das manifestações literárias africanas em língua portuguesa em periódicos do século XIX como o Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro , buscamos analisar os aspectos simbólicos relativos ao protonacionalismo e ao nativismo que ganharam relevância na construção identitária nacional dos países africanos de língua portuguesa durante a primeira metade do século XX, com o início da luta pela libertação contra as amarras coloniais. São aspectos que podem apontar indícios de uma posição consciente de alguns escritores em relação à necessidade da construção de uma literatura empenhada àquela altura, por meio de uma consciência histórica voltada para a ideia de formação de uma literatura pátria. Palavras-chave: Nativismo. Protonacionalismo. África. Imprensa. Periódicos. A geração dos novos intelectuais, escritores angolanos, também conhe- cidos como a “Geração de 50”, que organizou o movimento “Vamos descobrir
DAVID, D. L. Perspectivas nativistas e manifestações literárias africanas no Almanach... Angola!” a partir de 1948, intensificou os movimentos intelectuais anticolo- nialistas preocupados com a construção e a afirmação de um novo sujeito que espelhasse aquela realidade político/cultural que se afastava cada vez mais das amarras colonialistas impingidas pela metrópole portuguesa. A perspectiva modelar desse grupo formado por Viriato da Cruz, António Jacinto e Agosti- nho Neto, entre outros, buscava a base de um sentido estético próprio para “a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana”, segundo Mário Pinto de Andrade, afastando o exotismo colonialista. Muito embora esteja sempre em destaque a aproximação entre a litera- tura brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa em formação na primeira metade do século XX, notadamente com o Grupo Sul no Brasil,^1 esse trânsito atlântico já era notável no século XIX com as referências que podemos encontrar entre Costa Alegre e Castro Alves ou Maia Ferreira e Gonçalves Dias.^2 Este movimento indicava algum afastamento da metrópole na busca por uma representação própria com outros modelos. A identidade desse sujeito cujo locus de enunciação se encontra nos países africanos de língua portuguesa, am- plamente discutida no século XX, em meio à luta de libertação e à construção destas novas nações, pode ter a sua gênese considerada nas incipientes reflexões e manifestações dos escritores e jornalistas oitocentistas nascidos ou radicados nas ex-colônias portuguesas da África. Enquanto escritores que são, ainda que alguns extremamente amadores, buscam caminhos à produção de literatura utilizando-se da estética para modelar a sua criatividade e originalidade. E assim, podem ser responsáveis pela produção e transmissão de ideias, de símbolos, de visões do mundo e de ensinamentos práticos através do uso da palavra. A constatação da tensão existente entre a estética e o social presente em parte das manifestações literárias em língua por- tuguesa dessa África oitocentista, desvela a postura destes escritores em relação (^1) Durante a década de 1950 esse grupo de jovens catarinenses (Salim Miguel, Eglê Malheiros, Aníbal Nunes Pires, Ody Fraga e Silva, Antônio Paladino) edita a revista Sul , que representou um importante espaço de publicação de autores do outro lado do Atlântico como Luandino Vieira, Viriato da Cruz, entre outros, para além das remessas de obras da literatura brasileira e da intensa correspondência mantida no período. Cf. MIGUEL, Salim. Cartas D´África e alguma poesia. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005; e MACÊDO, Tania. Angola e Brasil : estudos comparados. São Paulo: Arte & Ciência, 2002. (^2) “O sonho dantesco”, poema de Costa Alegre (São Tomé), cuja epígrafe é um verso do poema “O navio negreiro”, de Castro Alves ( Era um sonho dantesco... o tombadilho ). E o poema “À minha terra”, de Maia Ferreira (Angola), em que temos a referência constante ao poema “Canção de Exílio”, de Gonçalves Dias.
DAVID, D. L. Perspectivas nativistas e manifestações literárias africanas no Almanach... Estas colaborações encontradas em jornais e outros periódicos são ca- pazes de demonstrar como estes escritores e jornalistas oitocentistas assumem atitudes que serão retomadas para a impulsão dos movimentos nacionalistas nas ex-colônias portuguesas na primeira metade do século XX. Assim, os “velhos intelectuais” – como é designada essa geração do final do século XIX em Angola (Cf. CHAVES, 1999, p. 38-39), esboçam a tentativa de alterar as regras impostas pelo poder colonial ao valorizarem o patrimônio cultural da terra, inclusive com o uso das línguas das etnias locais, chamadas de nacionais, bem como a natureza, a tradição oral, e também a redignificação dos filhos do país, sobretudo o negro. Em muitos poemas encontramos a exaltação da beleza da mulher negra, o elogio aos ofícios dos filhos da terra, assim como a descrição embevecida da natureza africana com os seus rios, savanas e fauna caracterís- tica. A releitura da produção oitocentista pelas gerações seguintes de escritores e intelectuais, notadamente em Angola, é indicada por alguns estudiosos das literaturas africanas de língua portuguesa, com especial destaque para o poeta Viriato da Cruz, que foi um dos principais incentivadores dessa retomada. Nesse passo, ao estudarmos os parâmetros idealizadores do movimento da geração de 50 em Angola, torna-se imperiosa a necessidade de uma leitura desse ideal combativista propagado inicialmente na segunda metade do século XIX. A imprensa é desse modo um veículo privilegiado à disseminação de um ideário combativista e também de manifestações literárias que se apresentam àquela altura, carregadas de nativismo e de sentimentos de coletividade e de um novo pertencimento. Muito embora, a designação dessa geração como “velhos intelectuais” seja uma denominação própria da realidade de Angola no final do século XIX, colocamos a hipótese, por analogia, dessa experiência às outras províncias ultramarinas portuguesas no mesmo período em razão da circulação que havia nestes espaços daqueles que participavam ativamente da imprensa como José de Fontes Pereira, Cordeiro da Matta, Maia Ferreira, Ernesto Marecos, Alfredo de Aguiar, entre outros. Ainda que por sua natureza de calendário ilustrado o Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro representasse uma publicação de gênero popular e de lazer, a sua seção de “Variedades” dedicada à matéria literária cresceu de tal forma que nas edições de 1886 a 1890, juntou-se um suplemento somente de “Variedades” para acolher as numerosas colaborações. E é nessa seção do periódico português em que podemos encontrar indícios do esboço destas
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literaturas que viriam a se consolidar somente em meados do século XX. Os poemas e pequenos textos enviados pelos colaboradores da África de língua por- tuguesa apresentam marcas de um sentimento de pertencimento à terra africana, afastando assim a ligação e a imagem da metrópole nas manifestações literárias publicadas durante o século XIX. Não existe ainda a comunidade imaginada, na acepção de Benedict Anderson, mas é possível apontar um declínio da imagem da metrópole como polo agregador das relações e das comunidades nas colônias africanas. Concomitantemente, surge uma mobilização nestas manifestações literárias, que se apresentam como instrumentos da expressão de um sentimento de vínculo coletivo e de laços protonacionais (HOBSBAWM, 2002, p. 63). Para além da imprensa oficial e da imprensa livre^4 nas ex-colônias portu- guesas em território africano, temos o Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro , que servirá de instrumento propagador dessas iniciativas com uma circulação e distribuição em todo o território português, nas suas colônias e no Brasil. Ainda que a sua diretriz editorial restringisse a publicação de textos contestatários, esse periódico significou a possibilidade de estender a circulação de textos e poemas oriundos de Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Guiné- Bissau, assim como a leitura entre pares, durante oito décadas (1851-1932), atravessando relevantes momentos históricos à realidade colonial das províncias no ultramar português.^5 Observando mais atentamente o período histórico do recorte temporal escolhido para o corpus desta pesquisa, ou seja, as décadas de 1880 e 1890, percebemos o ápice de uma fase em que a imprensa livre (não oficial) teve sua expansão, algumas vezes apoiada por funcionários da administração colonial portuguesa, e outras tantas insistentemente conduzida por filhos do país. Com a chegada do prelo oficial às províncias ultramarinas, constatamos que rapida- mente são estabelecidas também tipografias particulares, sobretudo em Angola. É a partir desse momento que surgem os periódicos que seriam fundamentais para a expressão de uma elite local. Mesmo os boletins oficiais, além da missão de divulgação dos atos administrativos, serviriam seus espaços e tipos à vida (^4) A imprensa livre remete às tipografias particulares. No entanto, algumas vezes a expressão é usada para indicar a imprensa durante os períodos de ausência da censura prévia. (^5) Por quase todo o século XIX as expressões colônia e província ultramarina foram utilizadas concomitan- temente com o mesmo significado. Destacamos que nesse período estes territórios eram considerados extensões da metrópole portuguesa, a “mãe-pátria”.
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com a metrópole portuguesa (independência). Nesse sentido, encontramos al- gumas referências entre as colaborações africanas do Almanach de lembranças luso-brasileiro , entre estas, uma de direta e explícita relação com uma postura independentista angolana, em que Joaquim Cordeiro da Matta faz uma home- nagem póstuma a José de Fontes Pereira: Está de luto o jornalismo angolense! José de Fontes Pereira, o denotado pro- pugnador dos interesses da sua pátria, o estrenuo separatista, já não existe! [...] Contristou-me immenso a morte d´este prestante angolense. Lamentei-a como se fosse a d´uma pessoa de minha família. (Mas o que são os nativos d´uma terra, senão uma só família?) (Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro, 1894, p. 419-422) Nas páginas do Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro , Cordeiro da Matta ainda descreve extensamente as qualidades jornalísticas do homenageado, chamando-o de “fiel depositário das tradições da terra”: Foi durante muitos annos um funcionario incansável, e como jornalista, no período de vinte e sete annos, foi correspondente d´alguns jornaes da metropole e collaborou em quase todos os jornaes que se publicaram na capital d´esta província. (Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro, 1894, p. 419-422) Os jornais que tiveram a sua colaboração foram A Voz do Minho (Valen- ça), O Campeão das Províncias (Aveiro), O Século (Lisboa), todos da metrópole portuguesa, além dos jornais da região de Luanda como Mercantil , Cruzeiro do Sul , Jornal de Loanda , Echo de Angola , O Futuro de Angola , Ultramar , Pharol do Povo , Imparcial , Arauto Africano e Desastre. Apesar de José de Fontes Pereira não aparecer entre os colaboradores do Almanach de Lembran- ças Luso-Brasileiro , trata-se de um jornalista extremamente ativo, cuja atuação questiona e problematiza a máquina colonialista portuguesa, destacando-se na imprensa em Angola, como também em Portugal. Notável, sem dúvida, é a atuação de Cordeiro da Matta que, como cola- borador do Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro , esteve presente em vários números desse periódico, entre os anos de 1879 e 1897. Com uma participação incansável, buscava reproduzir os caminhos necessários à construção de uma literatura pátria angolense. Destacamos, nesse sentido, um trecho da resenha
DAVID, D. L. Perspectivas nativistas e manifestações literárias africanas no Almanach... ao seu livro Delírios , publicada no jornal O Araujo Africano , em que Mamede de Sant´Anna e Palma elogia o compatriota: [...] O mancebo a que me refiro é o meu dedicado amigo Joaquim Dias Cordeiro da Matta. Não cursou universidades, nunca esteve em collegio nenhum da Europa, nem em escola nenhuma de Loanda; e é por isso mesmo que tem jus ao elogio universal, á consideração dos seus contemporâneos, á estima dos seus patrícios e ao respeito dos homens illustrados; porque á força de muita [?] tem querido honrar o seu paiz, legando á posteridade o fructo da sua dedicação – uma obra primorosa, em fim. [...] E oxalá Deus vos torne mais feliz, para que um dia vosso nome figure nos lastros patrios. (O Arauto Africano, Loanda, 19 maio 1889, n. 9, p. 3-4) A chegada da imprensa oficial em meados do século XIX às províncias ultramarinas portuguesas foi, assim, o elemento propulsor não apenas de uma imprensa local, cada vez mais voltada às questões locais, ao próprio, mas tam- bém o elemento divulgador de um novo sujeito, de um pertencimento e de uma língua comuns, que pouco a pouco seriam concepções construídas e fixadas pelo caráter perene, ainda que ilusório, da impressão. Espaço que rapidamente seria ocupado pela elite intelectual local, ainda que de uma forma tímida em razão da sua minoria em relação à população em geral e do pequeno número de jornais, que eram fechados, na medida da sua combatividade, em razão da censura do governo colonial. Com essa perspectiva da importância da imprensa nesse período, trazemos à nossa reflexão o Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro , que foi notável em razão da sua distribuição, possibilitando uma circulação que alcançava, inclusive, localidades distantes e fora dos centros letrados como al- gumas cidades das províncias ultramarinas no território africano, como Ambriz e Benguela, em Angola, ou Inhambane e Quelimane, em Moçambique. Ainda que houvesse uma quantidade expressiva desse tipo de periódico em território português, o Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro destaca-se por sua inovação editorial, como nos explana Jean-Michel Massa: Outros almanaques houve no mundo lusófono, outras revistas, outros periódicos, mas só o nosso almanaque se define por um neologismo geográfico, político e
DAVID, D. L. Perspectivas nativistas e manifestações literárias africanas no Almanach... apresenta-se como uma consolidação de um contato anterior e profícuo propor- cionado pelo periódico português como relata Tania Macêdo: Já no século XIX forjam-se mecanismos de maior aproximação literária entre os países africanos e a literatura brasileira, como se pode inferir, por exemplo, da publicação Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro (1851-1900 – primeira fase) que se constitui em importante veículo de diálogo literário, já que, em função de sua longevidade e do elevado número de colaboradores (e assinantes) estabelece um espaço de conhecimento de várias realidades e textos. Dessa forma, vemos cruzarem-se nas páginas dos pequeninos livros cheios de informações úteis, jovens escritores como os brasileiros Casimiro de Abreu e Machado de Assis, os angolanos Cordeiro da Matta e José da Silva Maia Ferreira, assim como os cabo-verdianos José Lopes da Silva e Maria Luísa de Sena Barcelos, ou ainda o moçambicano Campos de Oliveira, para citarmos alguns nomes mais importantes. (MACÊDO, 2008, p. 130) Compiladas as colaborações desse período (1878-1898), pudemos verificar que as mesmas podem ser indicadas a partir de cinco categorias que seriam a poesia, o fait-divers , a prosa etnográfica, a micronarrativa e a adivinha (charadas, enigmas e logogrifos). É de notar, no entanto, igual importância das citações e das interlocuções que encontramos nas palavras dos editores nas seções de Prólogo e de Correspondência. Nestas últimas notamos a revelação de uma diretriz editorial, e, principalmente, de um cuidado com a sua manutenção, como podemos ver no excerto a seguir destacado: “A.S. (Angola). – Ainda que a sua indicação seja a benefício d´essa parte da Africa, tão digna de uma boa sorte, parece ella envolver censura a uma authoridade, e como tal foge do nosso programa.” ( Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro , 1864, p. 32) Além disso, notamos, outrossim, indícios de uma postura que não se distancia da postura colonial, que se poderia esperar de um periódico metropolitano, ainda que aberto a todas as comunidades de língua portuguesa, publicando, inclusive, textos em línguas de algumas “etnias africanas” ou em crioulo. Destacamos, nesse sentido, a resposta dos editores ao colaborador “Reparador africano”, em que se aponta “a índole que imprime nos corpos o calor africano”: “Ao leitor, que dominado pela índole que imprime nos corpos o calor africano, só mezes depois de lá chegar o Almanach de 1884, se lembrou de debicar n´uma das suas paginas, respondemos: – Escapou, sim senhor.” (1885, p. 57)
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Nesta categorização das colaborações africanas, interessa-nos, sobretu- do, a poesia para refletir acerca da problematização da gênese das literaturas africanas de língua portuguesa. Partindo da acepção de manifestações literá- rias de Antonio Candido, em que estas se apresentam como descontínuas e dispersas, buscamos identificar pistas que levassem a uma possível tradição literária no âmbito de um campo literário construído sob o colonialismo. Apesar da manifestação literária se caracterizar inicialmente pela impossibilidade de uma tradição em virtude da sua descontinuidade e dispersão, é de notar que, ao compulsarmos algumas obras literárias das literaturas africanas de língua portuguesa, consolidadas em meados do século XX, constatamos algumas pistas que nos levam a temas e experimentações formais realizadas na segunda metade do século XIX, e que parecem ter sido retomadas sob outra perspectiva em razão dos movimentos nacionalistas. Nesse sentido, verificamos a ambiguidade própria do período em questão – o final do século XIX, em razão da tênue iniciativa nacionalista, que ainda hesita no completo repúdio ao domínio colonial. Retomando as palavras de Tania Macêdo: Ocorre que sob o sistema colonial a tradição é fraturada, na medida em que na lógica colonial a existência de um sistema literário autônomo, do coloni- zado, significaria não apenas uma maneira própria de representação de e do outro, a negação dos modelos tecno-formais da literatura da metrópole mas, principalmente, a negação do domínio colonial. (MACÊDO, 2008, p. 126) Desta forma, temos nessa geração oitocentista, um tímido começo, mas la- tente, de uma tomada de consciência, em que os escritores estudados procuravam uma maneira própria de representação, ainda que nem sempre obtivessem êxito na produção de uma literatura própria. E assim, ressaltamos uma vez mais, a importância do Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro , especialmente na sua primeira fase (1851-1900) como um veículo da imprensa, extremamente relevante à aproximação literária entre os países de língua portuguesa no século XIX. Portanto, como já referimos, na leitura do conjunto das colaborações afri- canas ao Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro nas duas últimas décadas do século XIX, é possível perceber uma tendência que se mantém de certa maneira no século XX. Estas participações estão carregadas de elementos próprios da cultura local e de outras línguas, além da portuguesa, notadamente quando se
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José da Silva Maia Ferreira, editado em 1849. Condicionado pela conturbada história de Angola, o trajeto desse escritor deixa transparecer os sintomas da assimilação cultural, fenômeno a que estavam sujeitos os filhos da elite angolana das primeiras décadas do século XIX. No entanto, mesmo nos poemas que po- demos ler no Almanach de Lembranças editado em Portugal, já se vislumbram os sinais do sentimento nacionalista que, de resto, pontuavam o Romantismo em vários países do mundo. Se não resultavam de um procedimento propriamente original, tais marcas favoreciam a manifestação de elementos propícios à criação de um sistema literário nacional. (CHAVES, 1999, p. 44-45) No caso de Angola, apontamos alguns poemas que foram escritos em torno do tema da mulher africana por autores como João Cândido Furtado de Mendonça d´Antas, Alvares Paes, Joaquim Dias Cordeiro da Matta e Eduardo Neves, e que foram publicados no Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro , formando um conjunto de relevante interesse à questão da tradição literária. Furtado d´Antas, português de Viana do Castelo, viveu muito anos em Angola exercendo cargos públicos como Juiz de Direito, Auditor do Exército e Delegado da Fazenda. Foi também colaborador do Almanach de Lembranças Luso-Bra- sileiro. Segundo a crítica trata-se de um poeta português ultrarromântico sem marcas de enraizamento em Angola, muito embora, seja relevante historicamente a sua pequena produção literária que se aproxima, em certa medida, dos pro- jetos de desenvolvimento de uma atividade cultural autônoma de outros autores como Maia Ferreira e Cordeiro da Matta. É dele o poema “No álbum de uma africana”, que estreia a iniciativa no tocante ao tema da mulher africana, que foi publicado no Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro para o ano de 1864 à página 116, década em que havia ainda poucas colaborações africanas neste periódico. Deste poema, destacamos as duas primeiras estrofes: Qu´importa a côr, se as graças, se a candura, Se as fórmas divinaes do corpo teu Se escondem, se adivinhão, se apercebem Sob esse tão subtil, ligeiro véu? Que importa a côr, se o sceptro da belleza Co´o mesmo enleio e brilho nos seduz? E se o facho d´amor reflecte e esparge Ou no jaspe, ou no ébano, egual luz? [...]
DAVID, D. L. Perspectivas nativistas e manifestações literárias africanas no Almanach... Nos versos de Furtado d´Antas temos a reiterada justificativa dos motivos que enaltecem a beleza negra da mulher africana, cujas “formas se escondem” sob o sutil e ligeiro véu da cor da sua pele. O insistente apelo “Qu´importa a côr”, expressão presente na primeira, segunda e última estrofe, demonstra uma postura de vênia à figura tradicional da mulher amada. A beleza feminina que ora se apresenta em verso é outra, mas não menos bela, e está todo o tempo à sombra do modelo de beleza que o eu-lírico persiste manter em perspectiva, ou seja, a mulher branca. No mesmo apelo em relação à beleza da mulher africana, temos o poema “A uma africana”, de Alvares Paes, publicado no Jornal de Loanda em 1878. Do mesmo modo que Furtado d´Antas, Alvares Paes enaltece a beleza femi- nina, apesar de sua cor. Novamente a mesma expressão: “que importa a cor?”, perpetuando a imagem da mulher negra que tem a sua beleza contraposta ao modelo europeu. Destacamos a presença no mesmo Jornal de Loanda em 1878, do poeta João Toulson, com os versos intitulados singelamente como “Poesia”:^7 «Lá na ilha pequenina Encontrei certa deidade, Tão formosa na verdade, Que a julguei obra divina,
DAVID, D. L. Perspectivas nativistas e manifestações literárias africanas no Almanach... Ainda temos exemplos de Cordeiro da Mata (“A Ingombota e o bródio”, prosa), Eduardo Neves (“N´um batuque”) e Viriato da Cruz (“Namoro”), nesse sen- tido. De todo modo, o poema de João Toulson apresenta de modo indubitável uma nova representação da realidade luandense, por meio da perspectiva crioula anunciada com a despretensiosa convivência entre as duas línguas, a do coloni- zador e a do colonizado. Essa atitude estética coloca em causa o antagonismo próprio da relação colonial e representa outra realidade misturada, ressalvadas as questões de prejuízo da dinâmica colonial. Entretanto, surge na imprensa desse momento, um novo discurso coloquial e literário em quimbundo, e, por isso, fixado nesse momento, muito embora essa mudança seja abafada cada vez mais e represada na periferia (musseques). A “iniciativa nacionalista” de Toulson com a criação do referido poema não se limita às inovações por ele adotadas. Verificamos que este poema acaba por ser o estopim da criação de uma sequência de poemas que são publicados em jornais angolanos e no Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro. Essa preocu- pação na reprodução da postura estética proposta por Toulson está presente na poesia de Cordeiro da Matta e Eduardo Neves, principalmente, e relativamente na de Jorge de Lucena e Alfredo de Aguiar. Estes quatro autores aparecem nas edições do Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro durante o período de 1880 a 1898, colaborando não apenas com a criação poética. Mas, entre seus poemas publicados no referido período, há uma presença constante dos elementos temático e estético de Toulson. Inicialmente, os indícios dessa recorrência esté- tica apontavam para uma sequência determinada pelos poemas “Canã´ngana” (como é chamado o poema de Toulson por alguns críticos), “N´um batuque!”, de Eduardo Neves e “Kicôla”, de Joaquim Cordeiro da Matta, estes dois últimos publicados no Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro dos anos de 1880 e 1888, respectivamente. Essa recorrência, que indicaria a primeira fase do percur- so na construção de uma tradição literária, teria como características a presença do bilinguismo, da conquista amorosa, do sujeito poético interculturalizado que fala a língua portuguesa e também o quimbundo, e da mulher africana que fala somente o quimbundo e compreende a língua portuguesa. No tocante à beleza da mulher africana é de notar que temos também a sugestão da comunidade crioula luandense com a figura da morena ao lado da negra, além da sugestão ultrarromântica com o uso do termo donzela, a partir de então.
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No entanto, percebemos a existência de outros poemas que dialogaram com essa temática e estética. Curioso notar o contraponto da imitação proposta primeiramente entre Cordeiro da Matta em relação a Toulson, que dá ensejo a outra entre Alfredo de Aguiar em relação a Eduardo Neves, para além das dedicatórias entre estes quatro poetas e outros de suas relações, aparentemente participantes ou pelo menos sabedores dessa nova proposta de afirmação cultural angolana, incentivadora dessa interlocução. Essa hipótese poderia ser creditada ao fato de que alguns dos poemas encontrados no Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro , foram publicados anteriormente em jornais locais da região de seus autores. Essa circularidade da criação poética, com algumas diferenças, girava sempre em torno da questão do bilinguismo e do amor da mulher africana e sua negativa, variando sutilmente as tentativas estéticas formais. Résume : Du point de vue des expressions littéraires africaines en portugais dans les revues du XIXe siècle comme l´ Almanach de souvenirs luso-brésilienne , nous analysons les aspects symboliques liés à protonationalism et nativisme, qui ont pris de l’importance dans la construc- tion de l’identité nationale des pays lusophones d’Afrique pendant la première moitié du XXe siècle, avec le début de la lutte de libération contre la domination colonial. Sont des aspects qui peuvent pointer indications de position consciente de certains auteurs sur la nécessité de construire une littérature engagée dans cette époque, par une conscience historique vers l’idée de former une littérature nationale. Mots-clés : Nativisme. Protonationalisme. Afrique. Presse. Périodiques.
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