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Guias e Dicas
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Paulo Freire - "Conscientização", Notas de estudo de Educação Física

Na primeira parte, Paulo Freire fala sobre sua origem camponesa e humilde para depois tratar de seu trabalho de alfabetização-conscientização. A segunda parte está centrada no método Paulo Freire e sua aplicação. Na terceira, é estudada a educação como prática de liberdade.

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 16/12/2010

najala-matos-4
najala-matos-4 🇧🇷

4.5

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CONSCIENTIZAÇÃO

Teoria e Prática da Libertação

Uma Introdução ao Pensamento de Paulo Freire

PAULO FREIRE

CONSCIENTIZAÇÃO

Teoria e Prática da Libertação

Uma Introdução ao Pensamento de

Paulo Freire

CORTEZ & MORAES

São Paulo

produção editorial de Alexandre Rudyard Benevides

tradução de Kátia de Mello e Silva

revisão técnica de Prof. Benedito Eliseu Leite Cintra

copy-desk de César Augusto Nogueira

capa de Marcel

Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor

© CORTEZ & MORAES LTDA

R. Ministro Godoy, 1002 – Fones: (011) 62-8987 e 864- 05015 – São Paulo – SP

Impresso no Brasil 1979

APRESENTAÇÃO

A Conferência de Ministros da Educação, reunida em Caracas de 6 a 15 de dezembro de 1971, apontava como “toma corpo a idéia de uma educação libertadora que contribua para formar a consciência crítica e estimular a participação responsável do indivíduo nos processos culturais, sociais, políticos e econômicos”.

Há uma notável continuidade entre esta proposta e a que, três anos antes, era oferecida pela Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Medellín: “A Educação em todos os seus níveis deve chegar a ser criadora, pois devemos antecipar o novo tipo de sociedade que buscamos na América Latina.”

Este despertar de nossa capacidade crítica e criadora e dos homens que comungam o mesmo momento histórico latino-americano está atravessado pelo processo de “conscientização”. O termo tem hoje uma densidade e especificidade bem precisas, exatas. Não pode ser manuseado frivolamente. Não se pode falar de “conscientizar” como se este fato fosse simplesmente descarregar sobre os demais o peso de um saber descomprometido, para induzir a novas formas de alienação.

O “conscientizar” não pode estar desvinculado de uma ação bem concreta e eficaz. Como se conhecer métodos de conscientização esgotasse – de forma enganosa – as exigências de compromisso dos educadores de hoje. Assim procedendo, estaríamos novamente caindo em dualismos perigosos, estéreis e esterelizantes.

Paulo Freire revela-nos de forma vivencial as exigências mais sutis do processo de conscientização. Penso que o grande mérito de Paulo, o mestre bondoso e estimulante, está precisamente em ser catalizador honesto de uma série de inquietudes que se agitam em nosso meio. Sem ser quem deu cunho ao termo, mostra – e vive – as últimas conseqüências que o processo da conscientização, sempre inacabado, traz consigo.

Como latino-americanos e cristãos, não podemos embarcar na leitura destas páginas sem uma firme decisão de vivê-las.

CECÍLIO DE LORA, S. M.

Diretor da Associação de Publicações Educativas

PRÓLOGO

Paulo Freire: um homem, uma presença, uma experiência.

Um homem situado no espaço e no tempo como todos que devem combater para chegar a ser “sujeitos da história”, mas, também, um homem enraizado em uma realidade brasileira que, para nós como para ele, suscita uma interrogação e um compromisso.

Uma presença que torna viva e expressiva a “cultura do silêncio”, à qual, sob pena de suicídio coletivo, é preciso darmos a palavra.

Uma experiência que ainda não deu sua última palavra. A conscientização, método pedagógico de libertação dos camponeses analfabetos, abriu caminho a numerosas e diversificadas linhas de investigação:

  • novas fórmulas de leitura das realidades quotidianas;
  • métodos de análise das relações de dependência e das situações conflitivas: líder – massa; dominador
  • dominado; homem – mulher; trabalho – descanso... ;
  • passagem de uma visão setorial para uma visão global;
  • estudo das relações entre uma teologia libertadora e uma educação libertadora;
  • elaboração de uma metodologia da mudança.

Como a obra de Paulo Freire ultrapassa em muito o homem e a experiência, pareceu-nos necessário elaborar este documento de trabalho para responder àqueles que, ocupados na transformação das estruturas e mentalidades, têm necessidade de instrumentos de análise, de elementos de trabalho para uma ação eficaz.

Na Primeira Parte, Paulo Freire fala sobre sua pessoa recordando sua origem camponesa e humilde. Depois o seguimos em suas duas áreas de ação – Brasil e Chile –, onde elaborou e aplicou seu método de alfabetização-conscientização, graças ao qual muitos homens e mulheres, aprendendo a ler, começaram a assumir sua própria existência como um compromisso na história.

O projeto educativo de Paulo Freire é um projeto libertador. Desde seu início, os “círculos de cultura” incluíram não somente uma denuncia – a das situações de dominação que impedem ao homem ser homem –, como também uma afirmação, que no contexto era uma descoberta: a afirmação da capacidade criadora de todo ser humano, até do mais alienado. Daí a necessidade de atuar sobre a realidade social para transformá-la, ação que é interação, comunicação, diálogo. Educador e educando, os dois seres criadores libertam-se mutuamente para chegarem a ser, ambos, criadores de novas realidades.

Isto é o que se explícita na Segunda e Terceira Partes; a segunda está centrada no método e a sua aplicação; a terceira, na educação como prática da liberdade.

Esta obra foi preparada pelo INODEP (Instituto Oecuménique au Service du Développement des Peuples).

O INODEP inclui-se, ce>m efeito, numa investigação de Paulo Freire, que, em julho de 1970, aceitou ser seu presidente por já considerar este órgão como um serviço, uma plataforma que permitia aos homens do “Terceiro e Primeiro Mundos” encontrarem-se, confrontarem-se, para que, aceitando a mediação das realidades concretas, descobrissem e juntos promovessem um desenvolvimento verdadeiramente libertador.

Em tendo, graças ao próprio Paulo Freire, e também a seus editores e numerosos amigos, acesso a todas as suas obras, escritos, artigos, conferências etc. e às suas apresentações e comentários publicados em inglês, alemão, espanhol, francês, italiano e português, tornamos ex-tratos verdadeiramente significativos para agrupá-los sob os temas mais importantes de seu pensamento, com o cuidado de respeitar sempre sua dialética própria: reflexão – ação.

Equipe INODEP

partir do casamento que comecei a me preocupar sistematicamente com problemas educacionais. Estudava mais Educação, Filosofia e Sociologia da Educação que Direito, curso de que fui um aluno médio.

Licenciado em Direito pela atual Universidade Federal de Pernambuco, tratei de trabalhar com dois colegas. Mas abandonei o direito depois da primeira causa: um assunto de dívida. Após falar com o jovem dentista, devedor tímido e vacilante, deixei-o ir em paz: que passe sem mim, que prescinda do advogado; sentia-me muito feliz por não o ser daí por diante.

Trabalhando num departamento de Serviço Social, se bem que do tipo assistencial – SESI –, repeti meu diálogo com o povo, sendo já um homem. Como diretor do Departamento de Educação e de Cultura do SESI, em Pernambuco, e depois na Superintendência, de 1946 a 1954, fiz as primeiras experiências que me conduziram mais tarde ao método que iniciei em 1961. Isto teve lugar no movimento de Cultura Popular do Recife, um de cujos fundadores fui, e que mais tarde teve continuidade no Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife; coube-me ser seu primeiro diretor.

O golpe de Estado (1964) não só deteve todo este esforço que fizemos no campo da educação de adultos e da cultura popular, mas também levou-me à prisão por cerca de cerca de 70 dias (com muitos outros, comprometidos no mesmo esforço). Fui submetido durante quatro dias a interrogatórios, que continuaram depois no IPM do Rio. Livrei-me, refugiando-me na Embaixada da Bolívia em setembro de

  1. Na maior parte dos interrogatórios a que fui submetido, o que se queria provar, além de minha “ignorância absoluta” (como se houvesse uma ignorância ou sabedoria absolutas; esta não existe senão em Deus), o que se queria provar, repito, era o perigo que eu representava.

Fui considerado como um “subversivo internacional”, um “traidor de Cristo e do povo brasileiro”, "Nega o senhor – perguntava um dos juízes – que seu método é semelhante ao de Stalin, Hitler, Perón e Mussolini? Nega o senhor que com seu pretendido método o que quer é tornar bolchevique o país?...”

O que aparecia muito claramente em toda esta experiência, de que saí sem ódio nem desesperação, era que uma onda ameaçadora de irracionalismo se estendia sobre nós: forma ou distorção patológica da consciência ingênua, perigosa ao extremo por causa da falta de amor que a alimenta, por causa da mística que a anima^1.

Contexto Histórico da Experiência

No Brasil

O movimento de Educação Popular foi uma das numerosas formas de mobilização de massas adotadas no Brasil. R possível registrar numerosos procedimentos de natureza política, social e cultural de mobilização e de conscientização de massas, a partir da crescente participação popular por meio do voto (participação geralmente dirigida pelos líderes populistas) até o movimento de cultura popular organizado pelos estudantes. É conveniente mencionar, a este propósito, o esforço de crescimento do sindicalismo rural e urbano, iniciado no momento em que Almino Afonso era Ministro do Trabalho, e que continuou depois. Em doze meses foram criados mais de 1.300 Sindicatos Rurais; as grandes greves dos trabalhadores agrícolas de Pernambuco, em 1951, – a primeira reuniu 85.000 grevistas e a segunda 230.000 –, podem dar uma idéia de sua importância.

Por outra parte, a SUPRA (Superintendência da Reforma Agrária) triunfou – apesar da brevidade de sua existência –, agrupando as classes campesinas para a defesa de seus interesses, provocando uma importante repercussão política. Este esforço de mobilização, realizado mais intensamente durante o fim do governo Goulart, apenas havia iniciado a realização de seu programa de atividades, quando ocorreu a queda do regime populista que havia tornado possível tais tentativas. Limitou-se, então, o programa, à criação de uma "atmosfera ideológica que não pôde proporcionar as condições necessárias para a constituição de uma verdadeira ideologia popular”.

As relações entre o trabalho de Paulo Freire e a ascensão popular são bem evidentes.

(^1) Cf. ALVES, Márcio Moreira, Cristo del Pueblo, Santiago, Ercilla, 1970.

Seu movimento começou em 1962 no Nordeste, a região mais pobre do Brasil – 15 milhões de analfabetos sobre 25 milhões de habitantes. Neste momento, a "Aliança para o Progresso”, que fazia da miséria do Nordeste seu “leitmotiv” no Brasil, interessou-se pela experiência realizada na cidade de Angicos, Rio Grande do Norte (interesse que teve seu fim pouco tempo depois da própria experiência).

Os resultados obtidos – 300 trabalhadores alfabetizados em 45 dias – impressionaram profundamente a opinião pública. Decidiu-se aplicar o método em todo o território nacional, mas desta vez com o apoio do Governo Federal. E foi assim que, entre junho de 1963 e março de 1964, foram realizados cursos de formação de coordenadores na maior parte das Capitais dos Estados brasileiros (no Estado da Guanabara se inscreveram mais de 6.000 pessoas; igualmente criaram-se cursos nos Estados do Rio Grande do Norte, São Paulo, Bahia, Sergipe e Rio Grande do Sul, que agrupavam vários milhares de pessoas). O plano de ação de 1964 previa a instalação de 20.000 círculos de cultura, capazes de formar, no mesmo ano, por volta de 2 milhões de alunos. (Cada círculo educava, em dois meses, 30 alunos.)

Assim começava, a nível nacional, uma campanha de alfabetização que haveria de alcançar primeiro as zonas urbanas, para estender-se imediatamente aos setores rurais.

Os grupos reacionários não podiam compreender que um educador católico se fizesse representante dos oprimidos; com maior razão lhes era impossível admitir que levar a cultura ao povo fosse conduzi-la a duvidar da validade de seus privilégios. Preferiram acusar Paulo Freire – o ódio pelo comunismo era muito forte – de idéias que não são as suas, e atacar o movimento de democratização da cultura, no qual percebiam o germe da rebelião, baseando-se em que uma pedagogia da liberdade é, por si, fonte de rebeldia.

Como era de se esperar, os grupos reacionários confundiram sistematicamente, em suas acusações, a política com o educador. A formação da consciência das massas viu-se dessa forma acusada de apresentar os sintomas de uma perigosa estratégia de subversão. E incrível comprovar, nas forças associadas à mobilização popular, uma incapacidade total para perceber e para assumir as conseqüências implicadas na formação das consciências com vistas à ação.

Embora o Movimento de Educação Popular não tenha podido, por causa do golpe de Estado, realizar o conjunto de seu primeiro plano nacional, os protestos de certos grupos oligarcas, do Nordeste em particular, assim como a evolução do processo político, deixam entrever claramente que o desenvolvimento dos planos estabelecidos teria tido por resultado quase imediato um violento choque eleitoral em certos setores tradicionais; e isto na medida em que desaparecia o desconhecimento legal da cidadania política de uma grande parte da população brasileira adulta. (Em 19ó0, para uma população de 34,5milhões de habitantes com mais de 18 anos, constavam inscritos amenas 15, milhões de eleitores.) Partidários da exclusão dos analfabetos – a maior parte dos membros das classes populares –, os grupos de direita nunca ocultaram sua hostilidade contra todas as tentativas para aumentar o número de eleitores.

O projeto de Getúlio Vargas, que considerava como eleitores todas as pessoas inscritas nos organismos de Previdência Social, foi objeto das críticas mais severas por parte dos setores reacionários. Se naquela ocasião era impossível restabelecer a “república oligárquica” de antes de 1930, ao menos era indispensável conter o processo de extensão da participação popular, limitá-la por todos os meios e com todos os argumentos imagináveis, essencialmente opondo-se à extensão do direito de voto para o conglomerado dos analfabetos. Com efeito, se a participação das massas alfabetizadas modificava já notavelmente o esquema das relações de poder, que ocorreria se se permitisse a participação de todas as classes populares? Que significaria vara os ouves de direita a perda de seus privilégios e para o povo o começo de uma verdadeira democracia?

A importância política da exclusão dos analfabetos é particularmente sensível nas localidades mais pobres do país. A vitória de Miguel Arraes como governador de Pernambuco nas eleições de 1962 é um exemplo eloqüente. Líder popular de primeiro plano, Arraes, apoiado pelas massas urbanas triunfou no Recife, a capital do Estado, mas foi derrotado no interior do Estado, onde o eleitorado era composto pela pequena burguesia dos grandes proprietários e das famílias notáveis. Por isso um líder político agrário, tal como Francisco Julião, criador das Ligas Camponesas e que gozava de um prestígio nacional, tinha poucas probabilidades de ser eleito: por isso também os líderes populistas, que podiam eventualmente

Criou-se um Escritório de Planejamento para a Educação de Adultos no ano de 1965. Seu responsável era Waldoms Cortês, jovem militante democrata-cristão que havia trabalhado na educação de adultos durante alguns anos e que dirigia, então, uma escola noturna em Santiago. Cortês, como Paulo Freire, havia pensado que os métodos e o material existentes deviam ser revistos, uma vez que freqüentemente nos contentamos em passar aos adultos os métodos aplicados às crianças. “Por acaso” alguém falou-lhes de um brasileiro chamado Freire, que se encontrava no Chile “e tinha algumas idéias sobre a educação de adultos”. Embora Cortês nunca tivesse ouvido falar das experiências brasileiras de alfabetização, descobriu que Freire tinha precisamente, e havia posto em prática, tudo o que ele pressentia a este propósito.

O problema converteu-se, naquele momento, em tornar aceito no Chile um método considerado subversivo no Brasil.

Alguns membros do Partido Democrata-Cristão pensavam que o método era “radical” ou mesmo comunista.

Outros queriam utilizar os programas de alfabetização para servir aos interesses do partido. Não obstante, Cortês triunfou, conseguindo que aceitassem o programa. Como o reprovavam por seu espírito partidarista, escolheu para sua equipe técnica dois especialistas, representantes de diferentes posições políticas.

O Escritório de Planejamento para a Educação dos Adultos desempenha o papel de coordenador dos programas colocados em prática por outras instâncias. Um grande número de instituições chilenas, especialmente públicas, mas também privadas, fazem da promoção seu objetivo principal: assim, as que se ocupam da reforma agrária, a Corporação da Reforma Agrária (CORA), e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agropecuário (INEP).

A CORA faz expropriações e forma comunidades agrícolas (colônias), de modo a permitir a posse individual, enquanto o INDAP proporciona ajuda técnica e econômica aos pequenos fazendeiros. Uma vez que o analfabetismo se encontra sobretudo nas zonas rurais, estas instâncias são os meios naturais que permitem às pessoas agruparem-se. Além disso, a reforma agrária chilena não procura somente aumentar a produção, mas também "promover” uma maior eficácia e melhor integração dos grupos na sociedade. Entre as demais instâncias em estreito contato com os analfabetos, encontra-se o Serviço de Saúde Nacional, que combina a alfabetização com uma ação sanitária; o Serviço das Prisões e a Seção de Promoção Popular, que estimulam a formação de organizações comunitárias. Conforme a visão social ou a “ideologia” da Democracia-Cristã, estas instituições não têm uma finalidade técnica apenas, mas tratam igualmente de diminuir o abismo que separa aqueles que participam efetivamente na vida da sociedade daqueles que não participam.

O Escritório de Planejamento para a Educação assinou recentemente dois acordos para a alfabetização com algumas igrejas protestantes, que em certas comunidades isoladas são as únicas instituições disponíveis.

O Escritório de Planejamento para a Educação dos Adultos desenvolve o material pedagógico e dd formação aos coordenadores que trabalham nos programas de outras instituições. Estas instâncias assinaram um acordo com o Escritório e depositam uma soma em dinheiro, que é utilizada para pagar os coordenadores. No início, o programa dependia principalmente de voluntários, mas, para garantir a estabilidade, a qualidade e a consciência profissionais, a norma, no momento, é o trabalho remunerado. Os coordenadores, que geralmente são professores da escola primária, são escolhidos na comunidade local, conforme a recomendação da agência interessada. O Escritório de Planejamento forma-os no diálogo e no método de Paulo Freire, através de um curso que dura mais ou menos 30 horas.

Em dois anos o programa chileno atraiu a atenção internacional, e o Chile recebeu da UNESCO uma distinção que o aponta como uma das cinco nações que melhor superaram o problema do analfabetismo. Em 1968, o Escritório calcula que terá aproximadamente 100.000 alunos e 2.0OO coordenadores. Não obstante, a continuidade do programa se encontra ameaçada pela existência de um estatuto temporário, ligado ao governo atual. Cortês desejaria ter um Escritório permanente para a Educação de Adultos, que sobrevivesse a toda mudança política.

O Escritório de Planejamento para a Educação de Adultos, como o seu próprio nome indica, não se ocupa somente da alfabetização, mas também do conjunto de programas que tem por finalidade permitir àqueles que não receberam educação superar esta inferioridade. Recentemente o Escritório incentivou os analfabetos, graças ao método de Paulo Freire, a continuar seus estudos em um curso superior.^3

(^3) SANDERS, Thomas R., The Paulo Freire Method. Literacy Training and Conscientization. Junho, 1968.

possa ser tocado representa uma atitude tão ingênua e reacionária como afirmar que a antiga realidade é intocável.

A conscientização, como atitude crítica dos homens na história, não terminará jamais. Se os homens, como seres que atuam, continuam aderindo a um mundo “feito”, ver-se-ão submersos numa nova obscuridade.

A conscientização, que se apresenta como um processo num determinado momento, deve continuar sendo processo no momento seguinte, durante o qual a realidade transformada mostra um novo perfil.

Desta maneira, o processo de alfabetização política – como o processo lingüístico – pode ser uma prática para a “domesticação dos homens”, ou uma prática para sua libertação. No primeiro caso, a prática da conscientização não é possível em absoluto, enquanto no segundo caso o processo é, em si mesmo, conscientização. Daí uma ação desumanizante, de um lado, e um esforço de humanização, de outro.^5

A conscientização nos convida a assumir uma posição utópica frente ao mundo, posição esta que converte o conscientizado em “fator utópico”.

Para mim o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e de anunciar a estrutura humanizante. Por esta razão a utopia é também um compromisso histórico.

A utopia exige o conhecimento crítico. É um ato de conhecimento. Eu não posso denunciar a estrutura desumanizante se não a penetro para conhecê-la. Não posso anunciar sp não conheço, mas entre o momento do anúncio e a realização do mesmo existe algo que deve ser destacado: é que o anúncio não é anúncio de um ante-projeto, porque é na práxis histórica que o anteprojeto se torna projeto. É atuando que posso transformar meu anteprojeto em projeto; na minha biblioteca tenho um anteprojeto que se faz projeto por meio da práxis e não por meio do blábláblá.

Além disso, entre o anteprojeto e o momento da realização ou da concretização, há um tempo que se denomina tempo histórico; é precisamente a história que devemos criar com nossas mãos e que devemos fazer; é o tempo das transformações que devemos realizar; é o tempo do meu compromisso histórico.

Por isso mesmo, somente os utópicos – quem foi Marx se não um utópico? Quem foi Guevara senão um utópico? – podem ser proféticos e portadores de esperança.

Somente podem ser proféticos os que anunciam e denunciam, comprometidos permanentemente num processo radical de transformação do mundo, para que os homens possam ser mais. Os homens reacionários, os homens opressores não podem ser utópicos. Não podem ser proféticos e, portanto, não podem ter esperança.

A conscientização está evidentemente ligada à utopia, implica em utopia. Quanto mais conscientizados nos tornamos, mais capacitados estamos para ser anunciadores e denunciadores, graças ao compromisso de transformação que assumimos. Mas esta posição deve ser permanente: a partir do momento em que denunciamos uma estrutura desumanizante sem nos comprometermos com a realidade, a partir do momento em que chegamos à conscientização do projeto, se deixarmos de ser utópicos nos burocratizamos; é o perigo das revoluções quando deixam de ser permanentes. Uma das respostas geniais é a da renovação cultural, esta dialetização que, propriamente falando, não é de ontem, nem de hoje, nem de amanhã, mas uma tarefa permanente de transformação.

A conscientização é isto: tomar posse da realidade; por esta razão, e por causa da radicação utópica que a informa, é um afastamento da realidade. A conscientização produz a desmitologização. É evidente e impressionante, mas os opressores jamais poderão provocar a conscientização para a libertação: como desmitologizar, se eu oprimo? Ao contrário, porque sou opressor, tenho a tendência a mistificar a realidade que se dá à captação dos oprimidos, para os quais a captação é feita de maneira mística e não crítica. O trabalho humanizante não poderá ser outro senão o trabalho da desmitificação. Por isso

(^5) O Processo de Alfabetização Política. Genebra, outubro, 1970.

mesmo a conscientização é o olhar mais critico possível da realidade, que a “desvela” para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante.^6

Diante de um “universo de temas" em contradição dialética, os homens tornam posições contraditórias; alguns trabalham na manutenção das estruturas, e outros, em sua mudança. Na medida em que cresce o antagonismo entre os temas que são a expressão da realidade, os temas da realidade mesma possuem tendências a serem mitificados, ao mesmo tempo que se estabelece um clima de irracionalidade e de sectarismo. Este clima ameaça arrancar dos temas sua significação profunda e privá-los do aspecto dinâmico que os caracteriza. Numa tal situação, a irracionalidade criadora de mitos converte-se, ela própria, em tema fundamental. O tema que se lhe opõe, a visão crítica e dinâmica do mundo, permite “desvelar” a realidade, desmascarar sua mitificação e chegar à plena realização do trabalho humano: a transformação permanente da realidade para a libertação dos homens.

Em última instância, os temas estão contidos nas situações-limite e as contêm; as tarefas que eles implicam exigem atos-limite. Quando os temas estão ocultos pelas situações-limite, e não percebidos claramente, as tarefas correspondentes – as respostas dos homens sob a forma de uma ação histórica – não podem ser cumpridas, nem de maneira autêntica, nem de maneira crítica. Nesta situação, os homens são incapazes de transcender as situações-limite para descobrir que além destas situações e em contradição com elas encontra-se algo não experimentado.

Em resumo, as situações-limite implicam na existência de pessoas que são servidas direta ou indiretamente por estas situações, e outras para as quais elas possuem um caráter negativo e domesticado. Quando estas últimas percebem tais situações como a fronteira entre ser e ser mais humano, melhor que a fronteira entre ser e não ser, começam a atuar de maneira mais e mais crítica para alcançar o “possível não experimentado” contido nesta percepção. Por outra parte, aqueles que são servidos pela situação-limite atual vêem o possível não experimentado como uma situação-limite ameaçadora, que deve ser impedida de realizar-se, e atuam para manter o “status quo”. Conseqüentemente, as ações libertadoras, num certo meio histórico, devem corresponder não somente aos temas geradores como ao modo de se perceber estes temas. Esta exigência implica em outra: a procura de temáticas significativas.

Os temas geradores podem situar-se em círculos concêntricos que vão do geral ao particular. A unidade histórica mais ampla compreende um conjunto diversificado de unidades e subunidades (continentais. regionais, nacionais etc.) e comporta temas de tipo universal. Eu considero que o tema fundamental de nossa época é o da dominação, que supõe seu reverso, o tema da libertação, como objetivo que deve ser alcançado.

É este tema que preocupa, e é ele que dá à nossa época a característica antropológica que mencionei anteriormente. Para realizar a humanização que supõe a eliminação da opressão desumanizante, é absolutamente necessário transcender as situações-limite nas quais ps homens são reduzidos ao estado de coisas.

Sem dúvida, quando os homens percebem a realidade como densa, impenetrável e envolvente, é indispensável proceder a esta procura por meio da abstração. Este método não implica que se deva reduzir o concreto ao abstrato (o que significaria que o método não é de tipo dialético), mas que se mantenham os dois elementos, como contrários, em inter-relação dialética no ato da reflexão.

Encontra-se um excelente exemplo deste movimento de pensamento dialético na análise de uma situação concreta, existencial, “codificada”. Sua “descodificação” exige que passe do abstrato ao concreto; ou melhor, da parte ao todo, para voltar depois às partes; isto implica que o sujeito se reconheça no objeto como uma situação na qual se encontra com outras pessoas. Se a descodificação for bem feita, este movimento de fluxo e refluxo, do abstrato ao concreto, que se produz na análise de uma situação codificada, conduz a substituir a abstração pela percepção crítica do concreto, que deixou já de ser uma realidade densa impenetrável.

(^6) Seminário de Paulo Freire sobre a “Conscientização e a Alfabetização de Adultos”. Roma, 17-19 de abril

de 1970.

Os homens enquanto “seres-em-situação” encontram--se submersos em condições espaço-temporais que influem neles e nas quais eles igualmente influem.

Refletirão sobre seu caráter de seres situados, na medida em que sejam desafiados a atuar. Os homens são porque estão situados. Quanto mais refletirem de maneira crítica sobre sua existência, e mais atuarem sobre ela, serão mais homens.

A educação e a investigação temática numa concepção crítica de educação constituem somente diferentes momentos do mesmo processo^9.

Idéias-Força

  1. Para ser válida, toda educação, toda ação educativa deve necessariamente estar precedida de uma reflexão sobre o homem e de uma análise do meio de vida concreto do homem concreto a quem queremos educar (ou melhor dito: a quem queremos ajudar a educar-se).

Faltando uma tal reflexão sobre o homem, corre-se o risco de adorar métodos educativos e maneiras de atuar que reduzem o homem à condição de objeto.

Assim, a vocação do homem é a de ser sujeito e não objeto. Pela ausência de uma análise do meio cultural, corre-se o perigo de realizar uma educação pré-fabricada, portanto, inoperante, que não es' adaptada ao homem concreto a que se destina.

Por outra parte, não existem senão homens concretos (“não existe homem no vazio”). Cada homem está situado no espaço e no tempo, no sentido em que vive numa época precisa, num lugar preciso, num contexto social e cultural preciso. O homem é um ser de raízes espaço-temporais.

Para ser válida, a educação deve considerar a vocação ontológica do homem – vocação de ser sujeito – e as condições em que ele vive: em tal lugar exato, em tal momento, em tal contexto.

Mais exatamente, para ser instrumento válido, a educação deve ajudar o homem, a partir de tudo o que constitui sua vida, a chegar a ser sujeito. E isto o que expressam frases como: “A educação não é um instrumento válido se não estabelece uma relação dialética com o contexto da sociedade aa qual o homem está radicado.”

“A instrumentação da educação – e Paulo Freire afirma que com estas palavras quer dizer ‘algo mais que a simples preparação de quadros técnicos em função da vocação de desenvolvimento de uma região’ – depende da harmonia obtida entre a vocação ontológica deste ser situado e localizado no tempo, que é o homem, e as condições particulares desta situação.”

Todas as concepções de Paulo Freire em matéria de educação e toda a sua ação educativa – tal como se pode observar no Nordeste brasileiro – estão orientadas por esta convicção, por esta primeira idéia- força.

  1. O homem chega a ser sujeito por uma reflexão sobre sua situação, sobre seu ambiente concreto.

Quanto mais refletir sobre a realidade, sobre sua situação concreta, mais emerge, plenamente consciente, comprometido, pronto a intervir na realidade para mudá-la.

Uma educação que procura desenvolver a tomada de consciência e a atitude crítica, graças à qual o homem escolhe e decide, liberta-o em lugar de submetê-lo, de domesticá-lo, de adaptá-lo, como faz com muita freqüência a educação em vigor num grande número de países do mundo, educação que tende a ajustar o indivíduo à sociedade, em lugar de promove-lo em sua própria linha.

Aqui encontramos uma idéia que não é nova. Já no começo do século um amigo de Péguy, dirigindo-se aos educadores escrevia: “Dar consciência aos camponeses de sua situação, a fim de que eles mesmos se esforcem por mudá-la, não consiste em falar-lhes da agricultura em geral, recomendar-lhes o

(^9) Pedagogia do Oprimido, capítulo III.

emprego de adubos químicos, de máquinas agrícolas nem da formação de sindicatos. Consiste em fazê- los compreender o mecanismo da produção agrícola, à qual se submetem por simples tradição; fazê-los examinar e criticar os atos diários que cumprem por rotina. O que mais custa a um homem saber, de maneira clara, é sua própria vida, tal como está feita por tradição e rotina de atos inconscientes. Para vencer a tradição e a rotina, o melhor procedimento prático não se encontra nas idéias e conhecimentos exteriores e distantes, mas no questionamento da tradição por aqueles que se conformam com ela, no questionamento da rotina em que vivem...” Por caminhos diferentes e muito fecundos – mais fecundos pelo fato de se integrarem numa preocupação de promoção global da pessoa – Paulo Freire encontra este ensinamento de C. Guyesse, do qual até agora se havia feito tão pouco caso.

“Se – escreve – a vocação ontológica do homem é a de ser sujeito e não objeto, esta não pode realizar- se senão na medida em que... refletindo sobre as condições espaço-temporais, nos submergimos nelas e as medimos com espírito crítico.”

  1. Na medida em que o homem, integrado em seu contexto, reflete sobre este contexto e se compromete, constrói a si mesmo e chega a ser sujeito. Esta idéia-força pode ser separada em duas afirmações:

a) O homem, precisamente porque é homem, é capaz de reconhecer que existem realidades que lhe são exteriores. Sua reflexão sobre a realidade o faz descobrir que não está somente na realidade, mas com ela. Descobre que existe seu eu e o dos outros, embora existam órbitas existenciais diferentes: o mundo das coisas inanimadas, o mundo vegetal, o animal, outros homens... Esta capacidade de discernir o que não é próprio do homem permite-lhe, também, descobrir a existência de um Deus e estabelecer relações com ele. O homem, porque é homem, é capaz igualmente de reconhecer que não vive num eterno presente, e sim uma tempo feito de ontem, de hoje, de amanhã. Esta tomada de consciência de sua temporalidade (que lhe vem de sua capacidade de discernir) permite-lhe tomar consciência de sua historicidade, coisa que não pode fazer um animal porque não possui esta mesma capacidade de discernimento.

Enfim, o homem – porque é homem – é, portanto, capaz de discernir, pode entrar em relação com outros seres. Isto também lhe é específico. O animal não pode estar senão “em contato” com a realidade. O homem, ao contrário, estabelece relações com a realidade (as relações que implicam a diferença de contato e aplicação de uma inteligência, de um espírito crítico, de um saber fazer... Em resumo, todo um comportamento, que não é somente reflexo e que não se encontra senão no homem, ser inteligente e livre).

b) Através destas relações é que o homem chega a ser sujeito. O homem, pondo em prática sua capacidade de discernir, descobre-se frente a esta realidade que não lhe é somente exterior (... não pode, por outro lado, ter relações mais que com algo ou alguém exterior a si mesmo, nunca consigo mesmo), mas que o desafia, o provoca. As relações do homem com a realidade, com seu contexto de vida – trata-se da realidade social ou do mundo das coisas da natureza – são relações de afrontamento: a natureza se opõe ao homem; ele se defronta continuamente com ela; as relações do homem com os outros homens, com as estruturas sociais são também de choque, na medida em que, continuamente, o homem nas suas relações humanas se sente tentado a reduzir os outros homens à condição de objeto, coisas que são utilizadas para o proveito próprio.

Cada relação de um homem com a realidade é, deste modo, um desafio ao qual deve responder de maneira original. Não há modelo típico de resposta, senão tantas respostas diferentes quantos são os desafios... E ainda é possível encontrar-se respostas bem diversas a um mesmo desafio. Por exemplo, frente ao desafio permanente que encontra o agricultor com a vegetação parasita nos cultivos, o camponês pode responder de muitas maneiras: trabalho invernal, limpeza, herbicidas, práticas mágicas, resignação etc. Frente ao desafio que constitui para o operário alguma tentativa de utilização, que faz dele um objeto, pode responder pela passividade resignada, por um trabalho malfeito, pela greve, pela obediência ou rebeldia, uma organização sindical, um diálogo com os patrões etc. E, por outra parte, cada um destes tipos de respostas é susceptível de traduzir-se em múltiplas formas concretas.

O importante é advertir que a resposta que o homem dd a um desafio não muda só a realidade com a qual se confronta: a resposta muda o próprio homem, cada vez um pouco mais, e sempre de modo diferente. “Pelo jogo constante destas respostas o homem se transforma no ato mesmo de responder”,