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Guias e Dicas
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Família e Nome: Um Estudo Sobre a Perpetuação da Identidade Familiar no Brasil, Resumos de Construção

Uma análise antropológica sobre a literatura sobre a família no brasil, enfatizando a importância do nome de família e suas relações com o parentesco. O autor trabalhou predominantemente com famílias da classe média e marginalmente com famílias de proprietários de terra. Ele utiliza a noção de hipergamia e explora as relações de sangue, nome de família e raça para entender a perpetuação da identidade familiar. O texto também discute a transmissão do sobrenome e o papel da mulher no casamento.

O que você vai aprender

  • Como as categorias de sangue, nome de família e raça se relacionam com a consangüinidade e a afinidade?
  • Qual é o papel da mulher no casamento e na transmissão do nome de família?
  • Como o sobrenome é transmitido entre gerações?
  • Como as relações de sangue, nome de família e raça contribuem para a perpetuação da identidade familiar?
  • Qual é a perspectiva adotada no documento sobre a literatura sobre a família no Brasil?

Tipologia: Resumos

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Florentino88
Florentino88 🇧🇷

4.7

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Não perca as partes importantes!

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Parentesco e Identidade Social2
Ov id io d e A b r e u F i l h o
1. A literatura sobre família no Brasil tem se caracteri
zado por uma perspectiva substanciálista que não se preocupa
com uma investigação da família enquanto instituição con
tida num sistema de relações, num sistema de parentesco.
Desde Gilberto Freire (1977, 1977a) a família patriarcal tor
nou-se referência obrigaria seja enquanto realidade, seja
enquanto modelo a criticar-se. Conjuntamente com o modelo
da família patriarcal firmou-se uma tendência de estudos
sobre a família brasileira ou sobre os diferentes tipos de fa
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definição de um sistema de parentesco. Deste modo, a família,
ou as famílias, é definida substantivamente, isto é, por quali
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a pequena propriedade. Em outro plano: pela característica
patriarcal, isto é, pelo poder de páter-famílias percebido como
substância definidora da família ou pela ausência da carac
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da família, o número médio dos filhos, o tamanho da unidade
residencial etc. .. são tomadas como dados relevantes para a
caracterização da família. Esta tendência é marcante tanto
nos autores defensores da validade do modelo da família pa-
1 Este artigo apresenta resultados da pesquisa realizada para a ela boração
de minha dissertação de mestrado Raça, Sangue e Lut a: Identidad e e
paren tesco em uma cidade do interior apresentada em 16 de abril de 1980
ao Programa de P ós-G raduação e m An trop ologia Social do Muse u N a
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Parentesco e Identidade Social 2

O v i d i o d e A b r e u F i l h o

  1. A literatura sobre família no Brasil tem se caracteri zado por uma perspectiva substanciálista que não se preocupa com uma investigação da família enquanto instituição con tida num sistema de relações, num sistema de parentesco. Desde Gilberto Freire (1977, 1977a) a família patriarcal tor nou-se referência obrigatória seja enquanto realidade, seja enquanto modelo a criticar-se. Conjuntamente com o modelo da família patriarcal firmou-se uma tendência de estudos sobre a família brasileira ou sobre os diferentes tipos de fa mílias brasileiras que não coloca como questão relevante a definição de um sistema de parentesco. Deste modo, a família, ou as famílias, é definida substantivamente, isto é, por quali dades como a propriedade territorial, a propriedade industrial, a pequena propriedade. Em outro plano: pela característica patriarcal, isto é, pelo poder de páter-famílias percebido como substância definidora da família ou pela ausência da carac terística patriarcal. Outras características como o tamanho da família, o número médio dos filhos, o tamanho da unidade residencial etc. .. são tomadas como dados relevantes para a caracterização da família. Esta tendência é marcante tanto nos autores defensores da validade do modelo da família pa-

1 Este artigo apresenta resultados da pesquisa realizada para a elaboração de minha dissertação de mestrado “ Raça, Sangue e Luta: Identidade e parentesco em uma cidade do interior” apresentada em 16 de abril de 1980 ao Program a de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu N a cional, sob orientação do P rof. G ilberto Velho. D evo a ele e aos pro fessores Anthony Seeger e Eduardo Viveiros de Castro, assim com o a Ricardo Benzaquen de Araújo, sugestões e críticas importantes para a sua realização.

triarcal como nos críticos deste modelo. (Cf. Ramos, 1978; Cándido, 1951, Willems, 1954; Freire, 1977a, 1977b). No encanto, o substancialismo ciue parece caracterizar estes estudos não significa aue a família tenha sido percebida inteiramente como instituição atomizada. Ao contrário, nesta literatura, e em tomo dela, existiu sempre a preocupação de articular o domínio da família com o do politico e com o do econômico. A própria definição de Gilberto Freire de família patriarcal apresenta-a como instituição central da colonização e da vida social brasileira. Posteriormente, toda uma série de estudos conhecidos como estudos de poder local e/ou sobre coronelismo enfatiza a importância da família na vida po lítica brasileira (cf. Leal, Pereira de Queiroz, 1976; Costa Pinto, 1949). No entanto, mesmo assim, pouca atenção tem sido dada ao parentesco enquanto sistema e as relações inter- -famílias são pouco analisadas. Quando referidas o são de forma genérica através de noções como a de solidariedade ho rizontal e vertical, ou então, o que é mais freqüente, enfati zando o conflito entre famílias que disputam o poder local e/ou a hegemonia estadual. A grande exceção fica por conta das análises e referências ao compadrio enquanto mecanismo articulador de famílias e categorias sociais (cf. Pereira de Queiroz, 1976; Arantes, 1975; Monteiro, 197iS, entre outros).

II. Neste artigo pretendo sugerir a possibilidade de in vestigar o parentesco como sistema (Abreu 1980), não no sen tido de porpor a existência de um sistema de parentesco brasi leiro, ou reificações do gênero, mas enquanto expressão de um procedimento metodológico alternativo para os estudos de fa mília. Isto não significa nenhuma pretensão inovadora, ape nas a aplicação de procedimentos consagrados pela antropo logia nos estudos de sistemas de parentesco. O material que será aqui analisado provém de uma pes quisa de campo realizada em Araxá, cidade localizada no Triângulo Mineiro, cuja população é estimada em tomo de sessenta e cinco mil habitantes. Trabalhei, predominantemen te, com famílias de camada média e marginalmente com fa mílias de proprietários de terra. Tomei como ponto de partida um conjunto de famílias elementares articuladas por laços de fraternidade, isto é, um grupo de siblings já diferenciado pelos casamentos de seus membros femininos e masculinos. A partir deste conjunto, incorporei e obtive informações de outras famílias, sempre tendo como critério relações de afi nidade e/ou consangüinidade com as famílias que já investi gava. Reuni, assim, informações sobre doze famílias, isto é,

III. Neste sentido, partirei da análise de um conjunto de categorias que definem o parentesco, enquanto domínio cultural específico. Estas são, essencialmente, as de sangue, nome de família e raça. Estas categorias circunscrevem uma percepção do parentesco e esta percepção é marcada por uma ênfase na consangüinidade como relação definidora do pa rentesco. “Parente é todo aquele que possui o mesmo sangue que a gente”. Mas, apesar desta ênfase na consangüinidade, encontramos pistas, mesmo ao nível deste sistema de repre sentações, de como a afinidade é percebida e codificada. Como veremos, a categoria raça introduz a afinidade na discussão e de certo modo realiza uma mediação entre o plano da con sangüinidade e o da afinidade. Veremos, também, que estas categorias, além de demarcarem o domínio do parentesco, atuam constituindo uma percepção do que constitui a pessoa 4. Neste sentido, toma-se importante a discussão das catego rias nome e luta, uma vez que estas aparecem nos discursos dos informantes de maneira complementar às demais.

A. As relações consangüíneas são bilateralmente re conhecidas. Este reconhecimento está presente na formulação de que a pessoa é formada pela junção dos sangues de seu pai e de sua mãe. O sangue é pensado como substância transmissora de qualidades físicas e morais, formando o corpo e o caráter. Assim, se através do sangue qualidades morais são transmi tidas e perpetuadas e se ele dá conta da construção do corpo e seus instintos, o indivíduo — agente empírico — é represen tado, não como individualidade indivisível, mas como parte de uma totalidade que o transcende e o constrói5. Ele se ex plica por referência a seus consangüíneos de forma que, neste sistema, não se reconhece no indivíduo uma individualidade irredutível. Outro ponto importante é o fato de que o sangue aparece como categoria que dá conta, não simplesmente de uma or dem da Natureza, mas da articulação desta ordem com a da Cultura. Pelo sangue não se transmitem apenas genes: a pes soa não nasce apenas natureza, apenas corpo. A pessoa já nasce, de certo modo, moralmente constituída, representante

4 U tilizo neste momento a noção de pessoa com o categoria heurística tal com o Geertz o propõe no seu artigo “ F rom the N ative’s Point o f V iew ” (1 9 77 ). 5 Trata-se aqui da oposição trabalhada por Dumont entre indivíduo, en quanto sujeito moral, unidade da ideologia individualista moderna. (C f. Dumont, 1970, 1977).

de uma família, de uma tradição. Assim, é claro que não exis te um procedimento neutro na delimitação de um conjunto de parentes. As relações de sangue, que definem quem é pa rente de quem, que diferencia famílias, constituem “a natu reza” das famílias. Observa-se, assim, uma classificação que distingue famílias por atributos específicos: “ A família x é de gente brava, a y de gente brincalhona, outra de gente sis temática”. Além disto, no interior de cada família, a referên cia ao sangue possibilita uma série de tipificações que visam dar conta das individualidades: “Fulano puxou o jeito do avô, o gênio do tio, a paciência da mãe... ” Encontramos, também, uma articulação desses dois procedimentos: “ Eu sou muito mais parecida com o povo da minha mãe que com o do meu pai. Eu puxei mais o lado Matos que o Castro”. É importante frisar que a noção de puxar não tem o sentido de um ato consciente ou de um produto da educação, mas de determina ções incontroláveis da ordem do sangue. Esta exposição mostra que o sangue, enquanto categoria de pensamento, atua como um operador de relações de iden tidade, de relações diferenciadoras e de relações hierarquiza- doras. O sangue dá conta de identidades familiares, de tipifi cações individuais e da demarcação e diferenciação de famí lias. Esta análise mostra também a possibilidade de se pensar a hierarquia social através de uma hierarquização via famí lias. Assim, não só se conhece uma pessoa pelo seu sangue, isto é, referindo-a a seus consangüíneos, como também é pos sível pensar a cidade como constituída por famílias hierarqui camente ordenadas. Digo isto, porque fica evidente a exis tência de um plano onde não é o indivíduo nem a classe a unidade básica de avaliação, mas a família. Como já foi dito, as relações consangüíneas são reconhe cidas bilateralmente. Mas, por si só, este fato não basta para caracterizar um sistema bilateral. A discussão das demais ca tegorias mostrará a existência de uma tensão entre um reco nhecimento da bilateralidade e uma afirmação de uma “pa trilinearidade”. Esta tensão já se mostra na discussão do nome da família.

B. Perguntado sobre a importância do nome de família, um informante disse: “ uma vez que você sabe de que família é uma pessoa, você fica sabendo a situação social, a situação moral e muitas vezes até a vida íntima de uma pessoa”. Outra consideração significativa: “o nome de família protege o in divíduo contra o meio, contra as más influências. Como? Eu sou de tal família, não devo fazer isto!”

tradição familiar, o sobrenome aponta para a construção de famílias elementares cujo tempo está limitado à vida de seus membros. Este só permite totalizações ao remeter o indivíduo e/ou famílias elementares a nome de famílias, isto é, à con sangüinidade. Neste contexto é a consangüinidade e não a afinidade que aparece como capaz de estabelecer relações per manentes e de circunscrever unidades significativas. Deste modo, no interior de um universo bilateral, perce- be-se uma ênfase patrilinear no que se refere à construção das identidades familiares. Pois, por mais significativos que sejam os contatos com as famílias de ambos os pais, um indivíduo é vetor de continuidade apenas do nome de família de seu pai. No caso da mulher, esta aparece como elemento incapaz de assegurar a permanência do nome de família de seu pai. Ela é capaz de articular seus descendentes com sua família de origem, apenas na dimensão do presente, do cotidiano. Ela é vista como ser sempre englobado, seja pelo pai, seja pelo ma rido. Este fato se expressa no modo como o nome de família é transmitido e pela forma como o sobrenome da mulher é alterado com o casamento. Evidentemente, existem casos que contrariam esta tendência geral. Tenho exemplos principal mente ligados a casamentos hipogâmicos7, onde o nome de família é transmitido pela mulher. Assim, o sistema suporta variações e manipulações ocasionais. Mas, estas manipulações seguem uma lógica, princípios que devem ser posteriormente discutidos. Finalmente, cabe assinalar que o nome de família é uma categoria que articula indivíduos a famílias, e que deste modo transforma o indivíduo em pessoa e demarca posições so ciais. É necessário dizer que isto é possível porque existe a representação já discutida do sangue, sendo a família pen sada como um todo definido por qualidades perpetuadas he reditariamente. Através do nome de família, constrói-se um mapa de famílias que se hierarquizam através de diferentes eixos classificatórios8. Assim, podemos dizer que o nome de família funciona como um emblema e que sua existência, de certo modo, correlaciona as virtudes do sangue com a posição na hierarquia social. Temos, então, uma visão mais complexa, a de uma tensão

7 H ipogam ia é empregada no sentido de casamentos onde se observa uma desigualdade de status entre os cônjuges, onde o marido é de status inferior ao da mulher. 8 Eixos que podem privilegiar a cor, a riqueza, a moral, regras de higiene, religião, prestígio político, etc. Sobre esta questão ver Abreu (1980: 136 , 137, 138).

entre a bilateralidade operando ao nível do sangue e dos so brenomes e a patrilinearidade da transmissão do nome de fa milia. Esta tensão reaparecerá na discussão da categoria raga.

C. Raça é uma categoria polissêmica. Seus significados articulam-se, no entanto, em tomo da idéia de hereditarie dade. Além do seu emprego designando “diferenças raciais” , a partir do pólo branco-superior x preto-inferior, raça designa, também, famílias. As famílias são pensadas enquanto raças, isto é, como um todo de ascendentes e descendentes que se diferencia de outros por qualidades próprias perpetuadas pela hereditariedade9. Raça-família é outra categoria referente à consangüini dade e é utilizada para demarcar as qualidades e fronteiras de um universo consangüíneo. Congruentemente com a lógica da categoria sangue, as características de uma raça-família po dem ser observadas no plano do físico, na moral e nos com portamentos. Um tipo de olho, um andar, uma disposição de vida — alegre, honesta, brava, descontraída, desconfiada, sis temática etc. — podem ser elementos utilizados para a carac terização de uma raça-família. No sentido da perpetuação da raça-família encontra-se uma ênfase patrilinear como a que vimos atuando na perpe tuação do nome de família'. “É como entre os animais. Se você põe um boi ruim para cruzar com um vaca boa, a cria não vai sair boa. Mas, se você põe um boi bom para cruzar com uma vaca ruim a cria já vai sair melhor”. “Imprimir a raça” tem um sentido similar ao existente na transmissão do nome de família. O homem “imprime a raça” no sentido em que ele é a referência ou mediador de seus descendentes com relação a uma raça-família cujo emblema é um nome de família. Esta visão da família, enquanto raça, abre caminho para considerações sobre a questão da relação entre diferentes raças-famílias. Pois, de fato, estas só podem se reproduzir através de casamentos. O fato de o homem ser pensado como elemento que imprime a raça não significa que a mulher não tenha papel relevante neste plano. Ao contrário, se levarmos em consideração um outro sentido da categoria raça (raça- -moral), perceberemos uma dimensão complementar à que até agora levamos em consideração.

9 Flandrin (1976) mostra que este emprego de raça fo i comum na Europa medieval. N o século X IX , no Brasil, raça aparece no discurso médico de maneira a enfatizar a descendência, particularmente a saúde desta. (F reire Costa, 1979).

1Q 2

posa. A mulher, assim definida, surge como símbolo do lar, da moral doméstica. O homem aparece referido ao domínio público, aos “negócios”. Nesta medida, é associado ao mundo exterior, e surge como elemento que realiza a mediação entre o plano doméstico e o público. Engloba a mulher e a casa e deve controlar a relação da mulher com o mundo externo. Deste modo, as avaliações dos comportamentos se dão diferentemente. A raça do homem e da mulher é avaliada em função de diferentes critérios. O plano crucial no caso femi nino é o da moral sexual e no caso masculino a conduta nos “negócios”. Chamo atenção aqui, em primeiro lugar, para a dimensão de confirmações existentes nestas avaliações. O in divíduo (homem ou mulher) deve no mundo infirmar ou con firmar seu sangue, seu nome de família, sua raça. Em segun do lugar, deve-se sublinhar a complementariedade existente nesta distinção entre o masculino e o feminino. É esta comple mentariedade que funda as famílias elementares. É esta ins tituição que está sendo avaliada e, através dela, estão em questão dois nomes de família. Neste sentido, a categoria raça introduz, novamente, de forma crucial, o casamento, a afini dade. Como vimos, a pessoa é um produto familiar perspectiva contida na lógica de confirmação para a qual aponta a cate goria raça. A escolha do cônjuge — pois a representação do minante é a da escolha e não da prescrição — passa, neces sariamente, por uma avaliação da raça. Está sempre em ques tão um indivíduo e sua família-raça. Porém, a complementa riedade para a qual apontamos é agora central. Do ponto de vista de uma família recebedora, o elemento crucial é a moral da mulher, o seu comportamento, isto é, sua conduta moral. Como foi dito, o homem não casa com a mulher, mas com o seu comportamento, isto é, com sua conduta moral. A mu lher aparece como fundamental para a perpetuação de uma raça-família em termos negativos: seu papel é o de não poluir moralmente um nome de família. Do ponto de vista de uma família doadora o crucial é a conduta nos negócios e a posição social, o nome de família. Esta discussão indica três pontos importantes:

  1. A mediação que a noção de raça realiza entre a or dem do sangue e a do nome da família. Ela impõe a necessi dade da confirmação da qualidade do sangue (a virtude) e da posição social que o nome de família demarca. Ou seja, no plano da prescrição, da atribuição de status é introduzida uma lógica da confirmação.
  1. Ela permite, também, outras hierarquizações: um ‘trabalhador humilde’ pode mostrar melhor raça que um ‘fa zendeiro’, ou seja, introduz-se a dimensão da moralidade.
  2. Ela aponta, também, para uma complementariedade existente na bilateralidade da transmissão do sangue: o mas culino transmite o nome de família, o feminino assegura a continuidade moral.

D. A discussão das categorias vinculadas à construção do domínio do parentesco mostrou, não apenas como são construídos conjuntos consanguíneos, mas, também, reme teu-nos a um sistema de valores mais abrangente que abre a possibilidade da investigação de uma das dimensões da cons trução cultural da noção de pessoa. Para mostrar como as categorias que dfscuti se interrelacionam com um conjunto categorial mais abrangente, é que passarei a analisar as ca tegorias de nome e luta. Estas categorias aparecem com solidárias e complemen tares às demais. Nome demarca a construção pessoal do status e luta aponta para os mecanismos desta construção. Ambas reforçam a necessidade de confirmação da posição sócio-mo- ral no mundo. Fazer um nome, pessoa de bom nome, são con- sideraçõões recorrentes. Não pretendo discutir exaustivamen te estas categorias, apenas mostrar que elas direcionam o pen samento para uma dimensão biográfica, onde a trajetória pessoal é o foco das reflexões e onde projetos são avaliados em termos mais individualizadosii. Em termos de trajetórias, observa-se uma diferença en tre trajetórias masculinas e femininas. A biografia feminina se polariza em tomo do casamento, este é o centro organizador da percepção biográfica feminina. A biografia masculina sa lienta a dimensão do trabalho, dos “ negócios” , a luta pela vida, por um nome, ou por respeito a um nome de família. Em geral, as biografias masculinas estão marcadas por saídas da cidade, isto é, por um período de “ sacrifício” no qual é viven- ciada uma situação de anonimato e a realização de trabalhos que na cidade seriam considerados não condizentes com o nome de família, com a posição social. É marcada, também, pelo retorno à cidade, momento de reincorporação à ordem, a uma posição na qual se confirma uma origem. Toda esta luta pode se dar em função da feitura de um nome ou da con firmação de um _nome_ “existem nomes que fecham e nomes que abrem portas. Eu lutei toda a minha vida para honrar o

11 Sobre a noção de projeto ver V elh o (1979).

tual e se expressa, principalmente, em grandes acontecimen tos, em rituais familiares como o casamento, enterros, e fes- tas de família. No cotidiano, as unidades significativas são os grupos de siblings e as famílias elementares. A maior rede de parentes significativa no cotidiano não é aquela constituída pelo nome de família, mas aquela composta por famílias ele mentares articuladas por laços de irmandade e cujo centro tende a ser a casa paterna. Vejamos este ponto em detalhe na análise das tendências à realização de casamentos hiper- gâmicos e à residência uxorilocal. Tomarei, para fins de exposição, as transformações por que passou uma família elementar e, mais especificamente, um grupo de siblings, a partir do momento em que seus mem bros começam a se casar. Os casamentos impõem uma série de redefinições que pretendo investigar. A uxorilocalidade marca a fase inicial de constituição de uma nova família elementar. Isto significa que, após o casa mento, o homem pode ir morar na casa de seu sogro (“ dividir a casa”) ou, o que, atualmente, é mais freqíiente, estabelecer relações de vizinhança com a família de sua esposa. Uma observação das relações de vizinhança demonstra a existên cia de famílias elementares reunidas em torno de uma rede feminina, isto é, de irmãs, em tomo de um centro paterno e/ou materno. É claro, então, que o casamento implica uma aproximação intensa e cotidiana do homem com seus afins bem expressa no ditado: “ casou um filho perdeu um filho, casou uma filha ganhou um filho”. Esta tendência à uxorilocalidade é racionalizada através de duas formulações principais. Uma é de natureza econômi ca: “ quando a pessoa casa necessita de auxílios, não tem con dições de comprar logo uma casa”. Outra, de natureza psicos- -sociológica: “ a mulher atrai o marido para a sua casa para evitar conflitos com sua sogra e porque tem mais intimidade com a mãe”. Ou: “A casa é da mulher, é ela quem decide so bre a casa. A mulher indo morar com a sogra cria conflitos porque a casa não é dela, é da sograi2. Acrescento a estas ex plicações nativas o fato de que a uxorilocalidade é funcional com o projeto de individualização de uma nova família ele mentar, na medida em que ela implica um afastamento rela tivo do homem de seu grupo de siblings. Este fato facilita o desenvolvimento de projetos sócio-econômicos relativamente

12 É interessante comparar com Bourdieu (1980: 262, 2 63), onde a existência de uma regra de residência virilocal leva a mãe a evitar casamentos de seus filhos “ para cima”. Está em questão, tanto aqui quanto para o grupo analisado por Bourdieu, a autoridade feminina no espaço doméstico.

independentes da família de origem do marido. Por outro lado, uma tendência à virilocalidade poderia atuar como me canismo de reforço de projetos familiares que englobassem completamente os projetos masculinos e, ao mesmo tempo, poderia produzir conflitos entre pais e filhos, pois estes últi mos estariam acumulando os papéis de maridos/chefes de fa mílias elementares e de filhos. Como já indiquei, a uxorilocalidade tende a enfraquecer e a redefinir a solidariedade de um grupo de siblings. No sen tido em que permite e/ou facilita a construção e implemen tação de projetos centrados em famílias elementares que se constituem neste processo, podemos dizer que a relação com os fins possui uma dimensão individualizante. Evidentemente, a relação com os afins e o distanciamento dos consangüíneos não constituem movimentos absolutos. O homem não deve ser totalmente absorvido pelos interesses da família de sua esposa, nem desvincular-se totalmente de seus consangüíneos. Como vimos, as identidades são pensadas através do sangue, do nome de família e da raça. A uxoriloca lidade não impõe uma ruptura com os consangüíneos, mas uma redefinição de relações e de identidades. Por outro lado, a uxorilocalidade pode corresponder a um período bem defi nido. Ela tende a se romper, na medida em que a nova famí lia elementar se constitui, integralmente, com os nascimen tos dos primeiros filhos e, na medida em que desenvolva pro jetos económico-familiares relativamente autônomos. A ten dência neste momento é uma mudança residencial que ex presse uma equidistância entre afins e consangüíneos funda mental para que o novo casal possa pretender se constituir em centro de um novo grupo de siblings. No entanto, a uxorilocalidade acarreta a constituição de uma teia de relações femininas crucial para a ordenação do universo das relações familiares. Pois, se os homens são “ atraí dos” pela família de sua esposa, são as mulheres, irmãs, que permanecem “costurando” as relações que se reordenam. As mulheres atuam, seja na “atração” de seus maridos para o circuito de comunicação de sua família, seja na manutenção e reorganização das relações do seu grupo de siblings já rede finido por casamentos. Em geral, é com base nas relações mãe/filhas/sobrinhas e netas que se mantem toda uma série de encontros, contatos e trocas de informações característicos da sociabilidade familiar. Esta rede propiciadora de contatos é mais eficaz quando existe uma figura central, isto é, o pai e/ou a mãe deste grupo de siblings. Estas figuras possuem um peso simbólico importante, são as referências mais claras

Mas, de fato, observa-se a definição de um universo endoçâ- mico. Este não é baseado no parentesco, mas em avaliações econômicas, morais, raciais e religiosas. A di-scussão da cate goria raça mostrou como é através de uma linguagem de mo ralidade que as escolhas são feitas. Mas, se não existem regras explícitas, como falar em hipergamia? Parto, basicamente, dos discursos de meus informantes, onde se repete a constatação: “Lá em casa as mulheres se casaram muito melhor que os homens” , ou considerações do tipo:

A família de fulana era uma família de genti nha. A mãe nunca teve empregada, e a família do pai, que X acha que é grande co’sa, tem mulato no meio. Depois do casamento X se civilizou muito. No tempo de namoro de X com meu irmão, o papai apro vava, achava X engraçadinha, mas todas as irmãs achavam o fim. Com a ascensão social dela toda a sua família melhorou, uma de suas sobrinhas até já casou melhor.

Ou ainda:

Mulher tem de ser mandada senão não dá certo não. Mulher tem de sentir durante todo o tempo que ela depende de você. Eu dou tudo para a Clarice, mas não dou dinheiro. Ela tem de pedir, quando ela pede e eu posso, eu dou. Ela tem que sentir que precisa de mim porque senão esquece da gente. Mulher é um b;cho danado mesmo. É um perigo, tem de ser controlada... então um homem não deve casar com uma mulher mais rica. Entre outras coisas porque quando você negar alguma coisa para ela, ela vai te jogar na cara: — quando eu era solteira o papai me dava, eu tinha o que queria, etc...

Por outro lado, falar em hipergamia é falar em grupos de status hierarquicamente ordenados. Mas, se não é fácil dis tinguir grupos com a devida precisão, fica claro, através da análise dos discursos dos informantes, que existem diversos eixos classificatórios hierarquizando e diferenciando pessoas e famíliasie. Categorias como pessoas e famílias civilizadas e não civilizadas, gente e gentinha, atrasadas e evoluídas per-

16 Ver nota (7).

mitem avaliações em múltiplos planos. Critérios de renda e ocupação articulam-se com avaliações morais, higiênicas, ra ciais e religiosas. Mas, o que é mais significativo aqui, é que o alvo destas avaliações é a família, sua história e comporta mento. Assim é que as categorias fundamentais para a defi nição do parentesco como sangue, raça e nome de família per mitem a incorporação das diferenças acima apontadas no plano do hereditário, do supra-individual, do familiar, num plano onde a natureza é culturalizada e a cultura naturali zada. Levando em conta a representação destas diferenças e o equacionamento destas com a família, é que falo em hiper- gamiai7. A tendência à hipergamia aparece congruente, por um lado, com a representação da necessidade da autoridade masculina e, por outro, com o equacionamento da mulher com o eixo da moralidade. Não é contraditório com a transmissão do nome de família por linha masculina, o que minimiza o papel da mulher na determinação da posição social dos des cendentes. A mulher atua mais no plano da moral, é neste plano que ela interfere no status dos descendentes. Assim, a hipergamia é congruente com todos os valores até aqui ex postos. A hipergamia se faz sentir, também, fora do plano dos discursos. A análise das biografias masculinas revela o papel significativo desempenhado pelos cunhados — maridos das irmãs — em termos de ajudas para a carreira dos irmãos de sua esposa. Em geral, são ajudas complementares, isto é, contribuições de bens simbólicos e materiais escassos para a família da esposa. Essas “ ajudas” podem ser econômicas: arrumar um emprego fora da cidade, importante para per-

17 É interessante notar que, em termos raciais, já fo i observada no Brasil uma hipergamia de cor. V er, por exemplo, Ramos (1978: 269). A o con trário, Azevedo acredita que a hipergamia funciona no eixo da riqueza, da classe, mas não no eixo da cor. C om o diz este autor “ o branco que se casa com escura “ desce” de classificação, porque, de acordo com um refrão muito conhecido, “ quando uma moça se casa, sua fam ília ganha um filh o ” : este passa para o mundo de cor que origina sua esposa. A o passo que o homem escuro “ sobe” ao integrar-se na fam ília da esposa clara ou alva (1966a, pp. 9-10). Segundo o autor, há, então, a possibilidade de um jogo de compensações, se o rapaz de cor é mais rico que a fam ília da mulher branca. Azevedo (1966b) argumenta que raramente se rompe a endogamia de classe, mas que quando isto ocorre, o mais requente é o casamento hipogâm ico. Isto em função da uxorilocalidade (v e r p. 4 0 ). Trata-se do mesmo raciocínio empregado para os casamentos inter-raciais. Mas, o autor nada diz com respeito aos “ casamentos intraclasses”. N o caso estudado por mim, é a hipergamia que aparece com o princípio orde nador das uniões matrimoniais.

tante de um sangue, de um nome de família, é afim de uma outra família. Suas relações com o sogro e/ou sogra e com os cunhados impl5cam em redefinições de suas relações com seus irmãos e pais. Assim, as definições substancialistas de um sangue, de uma raça ou de um nome de família coexistem e se redimenc;onam através das relações de afinidade. Deste modo, uma família pode ganhar ou perder prestígio, de acor do com os casamentos que realiza e sua imagem pública será sempre redefinida por eles. Por outro lado, o destino dos mem bros masculinos de um grupo de siblings tende a ser marcado pela relevância — sempre relativa — das relações com os cunhados, maridos e suas irmãs. Temos, então, dois planos que se articulam como funções da hipergamia e da uxorilocalidade. Um é o da redefinição simbólica da posição de uma família, a partir dos casamen tos que realiza. Outro, intimamente ligado a este, é o das “ajudas”, das reciprocidades que se desenvolvem entre cunha dos e entre genro e sogros. Em troca de esposa e da continui dade moral de sua raça e de apoio político-social, os cunhados — recebedores de mulheres — “ajudam” e se tomam rele vantes para seus afins. Como disse um informante já citado, “ a mulher é a moral e o homem o negócio”. Principalmente ao nível do segmento de camadas médias que pesquisei, é evidente que a reprodução da posição social em cada nova geração está dependente, em parte, de circuitos familiares de reciprocidade essencialmente, com os afins. Outro fator relevante para a reprodução social é o da saída e retomo à localidade, já referido anteriormente. A existência de reciprocidades assimétricas é acompanha da de dois reconhecimentos conflitantes: o reconhecimento de uma dependência simbólica e de uma relevância prática entre cunhados, o reconhecimento do papel fundamental do outro na constituicão de sua personalidade social e, ao mesmo tempo, uma reação “individualista” a este reconhecimento. Neste último caso, o que é valorizado é a luta, o sacrifício in dividual de forma que as ‘ajudas’ são redimensionadas, pas sando a ser vistas, não como dados naturais, mas como função da luta, do esforço individual. Por outro lado, trata-se de uma cadeia onde quem foi ‘ajudado’ também ajuda. Não só são criadas diferenças complementares entre irmãos que se ‘aju dam’ mutuamente, ou que, em momentos diferentes, apare cem como credores e devedores, como os que recebem ajuda de cunhados (maridos das irmãs) também podem ajudar ou ter ajudado outra categoria de cunhados (os irmãos de sua

esposa). Deste modo, cada pessoa articula múltiplos papéis que definem sua personalidade social. Existe, também, um outro plano importante. Trata-se dos contatos que se estabelecem entre os afins de um grupo de siblings, ou melhor, entre os maridos de um grupo de irmãs. O casamento envolve, igualmente um “cálculo” no qual são relevantes os casamentos já realizados pelas irmãs da futura esposa. Como vimos, os casamentos redefinem a posição, o “prestígio” de uma família. Neste sentido, pode-se falar em casamentos mais e menos significativos. De um certo ponto de vista, os mais significativos são os com pessoas de pres tígio e influência extralocal. Este tipo de casamento abre canais de comunicação para fora, estabelece contatos fami liares que transcendem a cidade e se mostra significativo para a família e, dependendo da importância do afim, pode ser pen sado como relevante para todo um segmento da localidade. Do que foi exposto, fica evidente que a rede de parentesco mais significativa no cotidiano é a construída tendo por base um grupo de siblings. Ou seja, uma rede constituída por um conjunto de famílias elementares articuladas por laços de fraternidade que atua como pólo incorporador de relações de afinidade significativas. As fronteiras desta rede são contex- tualmente definidas. De acordo com a situação, determinadas relações são levadas, ou não, em conta, são, ou não são reco nhecidas. De qualquer modo, observa-se que cada centro fa miliar — o que funciona como pólo da rede acima referida — busca incorporar o maior número possível de relações signi ficativas. O movimento de incorporação de afins, maridos/ genros/cunhados, implica, evidentemente, num processo de compensação. A atração de filhos/irmãos para a família dos seus afins é contrabalançada pela “ atração” dos maridos/gen ros/cunhados. Claro que esta compensação não significa um jogo de perdas e ganhos absolutos, mas um processo de rede finição de relações. Pode-se dizer que cada movimento tem em si sua própria compensação: são os que são atraídos para contatos com os afins, isto é, os homens, os que perpetuam o nome de família e a raça-família. Por outro lado, as mulhe res que “atraem” seus maridos para contatos com sua própria família, na dimensão da reprodução das raças-famílias, atuam comò asseguradoras da continuidade moral da raça-família de seu marido. Existe, assim, uma oposição complementar entre a dimensão das relações concretas, cotidianas, presen tes e a dimensão das definições permanentes, transcendentes. Ou seja, existe uma oposição complementar entre a dimen são da afinidade e a da consangüinidade.