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PAIDÉIA A Formação do Homem Grego AIMHN TEPYKE IIAZI TTAIAEIA BPOTOIL Werner Jaeger Tradução ARTUR M. PARREIRA Martins Fontes São Paulo 1995 Título original: PAIDEIA, DIE FORMUNG DES GRIECHISCHEN MENSCHEN Copyright O Walter de Gruyter & Co. Berlin 1936 Copyright O Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, 1986, para à presente edição H edição: maio de 1986 3º edição: abril de 1995 Tradução: Artur M. Parreira Adaptação do texto para a edição brasileira: Monica Stahel Revisão do texto grego: Gilson Cesar Cardoso de Souza Revisão gráfica: Flora Maria de Campos Fernandes, Renato da Rocha Carlos, Dirceu A. Scali Junior, Marise Simões Leal e Maurício Balthazar Leal Produção gráfica: Geraldo Alves Arte final: Moacir K. Matsusaki Capa — Projeto: Alexandre Martins Fontes Execução: Katia H. Terasaka Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Jaeger, Werner Wilhelm, 1888-1961. I Paidéia : a formação do homem grego / Werner Wilheim Jaeger ; [tradução Artur M. Parreira ; adaptação para a edição brasileira Monica Stahel ; revisão do texto grego Gilson Cesar Cardoso de Souza]. - 3º ed. - São Paulo : Martins Fontes, 1994. Bibliografia, ISBN 85-336-0328-2 1. Civilização grega 2. Educação grega 3. Filosofia antiga 4. | Literatura grega — História e crítica É. Título. IL. Título : A for- mação do homem grego. D4-3278 CDD.938 Índices para catálogo sistemático: 1. Civilização hefênica 938 2. Cultura helênica 938 3. Grécia antiga : Civilização 938 Todos os direitos para a língua portuguesa reservados à LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 — Tel.: 239-3677 01325-000 — São Paulo — SP — Brasit Agradecimento À Ex"*Sr*D.*MARIA HELENA ROCHA PE- REIRA, distinta Professora Catedrárica da Faculdade de Letras de Coimbra, e ao Reverendo Dr. P:MA- NUEL ANTUNES, ilustre Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa, deixo expresso o meu reconhecimento pela gentileza das suas sugestões é bom acolhimento dispensado aos problemas que se me depararam. O Tradutor Erga. A Teogonia. O mito. Direito, centro da vida. Arete em Hesíodo. O mundo de Hestodo. Educação estatal de Esparta A polis como forma de cultura e os seus tipos... A polis eo humano. O ideal espartano do séc. IV e a tradição............... Fontes para conhecer Esparta. Organização de Esparta. Evo- lução de Esparta. Tirtem, Apelo de Tirteu à are. Exhos pedagógico de Tire “Elegias de Tirteu: forma. Arete espartana. Bunomia (poema). Arte e música. O Estado jurídico e o seu ideal de cidadão Polis jênica na Níada. Polis jônica na Odisséia. O direito em Homero. Dike. Dikaiosyne. Continuidade da ética da velha polis. A dei escrita. A techne política. À autoformação do indivíduo na poesia jônico- eólica Descoberta do íntimo do Homem. Individualismo grego. Arquiloco. Sátira. Tyche em Arquíloco. Ritmo. Simônides «de Amorgos. Mimmermo. Alcen. Safo. Sólon: começo da formação política de Atenas ......... A polis jônica. A sociedade ática do tempo de Sólon. Sólon e a lei social imanente. Conceito de ate, Destino e esforço bu- mano. Conceito de medida. O pensamento filosófico e a descoberta do cosmos .. Logos e mito. Práxis do filísofo. Problema da physis. Anaximandro. Apeiron. Pitágoras. Matemática e edu- cação. Orfismo. Sophrosyne « hybris. Conceito órfico de al ma. Xenófanes. Arete em Xenófanes. Parmênides Heráclito. Luta e transformação da nobreza . A tradição do livro de Teógnis .. . Codificação da tradição pedagógica aristocrática ............. 106 106 108 n7 130 148 173 190 Eros e educação. Teóguis e a luta de classes. Crise do conceito de arete. A fé aristocrática de Píndaro Ideal agonítico. Essência da poesia pindárica. Avete em Simônides de Ceos. Arete em Píndaro. A política cultural dos tiranos ...... Importância e causas da tirania. Política dos tiranos. Tira- nos e mecenas. LIVRO SEGUNDO APOGEU E CRISE DO ESPÍRITO ÁTICO O drama de Ésquilo Fê de Ésquilo. Aparecimento da tragédia. Estudos sobre a origem da tragédia. Elementos influentes na tragédia. O coro. O que é o “trágico”? O mito na tragédia. Problema da tragédia de Ésquilo. Dor e hybris. Hybris e castigo. Ores- téia. Sere contra Tebas. Prometeu. Dor e conhecimento. O homem trágico de Sófocles Sófocles, Ésquilo, Eserípides. Caracteres em Sófocles. Forma. ção do Homem no tempo de Sófocles. Conceito de medida, Antígona. Tragédia e conhecimento. Os sofistas ... A sofística como fenômeno da história da educação Arete e educação. Ideal humano da polis. Estado e educa- ão. Arete política sofística. Os sofistas na filosofia e ciência gregas. Os sofistas fundamentam a paidéia. Origem da pedagogia e do ideal de cultura Os sofistas e a consciência cultural grega. Conceito de natureza humana. Protágoras. Sofistas e conceito de cultura. Trivium e quadrivium. Atitude social perante a ciência. A crise do Estado e a educação ... Oposição entre a natureza e a lei. A lei do mais forte (Cali- dies). Conceito de natureza humana e cosmopolitismo. Rela- 250 270 283 315 335 335 348 373 Eurípides e o seu tempo .... Guerra e transformação dos valores. “Raística” e “urbano”, Dessacralização do mito. Medéia. Orestes. Retórica e poe sia em Eurípides. Eurípides racionalista. Euripides crítico. Eurípides Íívico. Eurípides psicólogo. À tyche em Eurípides. A comédia de Aristófanes Origens da comédia. Aristófanes e outros comeditgraos. Fum- ção censora da comédia. Sócrates em As Nuvens. À educação amiga é a nova, Crísica « Eurípides. Tucídides como pensador político Tucídides, criador da história política. A “histórica” da na- tureza é o mundo político. As leis do mundo político. Os dis- cursos em Tucídides. Teoria das causas da guerra do Pelopo- neso. A guerra e a política. Hybris e fracasso. Imagem de Péricles em Tucídides. Politéia ateniense. LIVRO TERCEIRO À PROCURA DO CENTRO DIVINO Prólogo Século IV ..... Época clássica da paidéia. A prosa na literatura. As es- colas superiores. Sócrates ..... Nietzsche e Sócrates. O problema socrático ... Scbleiermacher e o problema socrático. Posição de Aristóteles. Maior. Taylor e Burme. Sócrates, educador .... Sócrates e os filósofos da natureza, Sócrates e a análise. O gi- násio, Filosofia socrásica. A psyche. Alma e corpo. Eudai- monia. Paidéia. Educação política de Sócrates. Enkratéia. 386 414 440 47s 482 493 498 511 O educador como estadista Conceito de liberdade. Autarquia. Sócrates e o problema da paidéia. Tema do didlogo socrático. Método de Sócrates O conhecimento. A vontade e o bem. Sócrates, cidadão de Atenas. A imagem de Platão na história .. Ro Sebleiermacher e Platão, Campbell e a análise estilística de Platão. Teoria das idéias, Cartas de Plutão. Arete e pai- déia. Platão, herdeiro de Sócrates. Diálogos socráricos menores de Platão A arete como problema filosófic Ro Diclogos menores e intenção filosófica. O que é a virtude? um saber? Dois fatores na evolução de Platão. Critério evo- tutivo; conclusões. Conceito-base da divisão social. A educa- são na atete é política, Plasão e o Fstado. República é Carta VII: problema. A dialética nos diálogos menores. Im- tenção da teoria das idéias. O Protágoras ....... Paidéia sofística ou paidéia socrática?............. Tom e conteúdo, O epangelma. Essência da educação soft tica, À axete política pode ser ensinada ? Unidade e diversidade das virtudes, Felicidade e infelicidade. Arte da medida, Valen- sia, Sabes, fendeemento da paidéia. O Górgias Objetivo do Górgias. Será à resórica uma techne? A retóri- ca é mera rotina. Essência e valor do poder. Filosofia do po- der e filosofia da paidéia. Calicles. Bem por natureza e bem por dei, Beleza é limites da paidéia. Princípio da pedagogia blatônica, Alcançar a arete, propósito da vida. Perigos do Estado vigente. Duas paidéias. Os estadistas do passado. Valoração socrática da vida, Paidéia socrática e Estado. Cisão entre a ética pessoal e a política. O Menon O novo conceito do saber 581 592 592 620 620 sás 648 698 698 O Estado em nós... Eudaimonia. Três classes de prazer, três formas de vida. O prazer mais pleno. No Estado platônico descobrimos o Homem. A República - MI... O valor educativo da poesia Por que à iuta de Platão contra a poesia? Poesia e juventu- de. Objeção fundamental contra a poesia. Paidéia e escatologia .... A opção do bios. LIVRO QUARTO O CONFLITO DOS IDEAIS DE CULTURA NO SÉCULO IV É realmente possível a educação num sentido distin- to do técnico? ... A Medicina como paidéia Conceito de lei, de adequado, de isomoiria. Conceito de na- tureza, O Corpus Hippocraticum, Características da lite- ratura médica, Círculos interessados em temas médicos. Me- dicina e filosofia da natureza. Tendência ao empirismo, Conceito de eidos. O método de Hipócrates, segundo Platão. Conceito de natureza na medicina grega. Medida, mistura, simetria. Arte e natureza. Literatura dietética. A obra Da Dieta. Cronologia da obra Da Dieta. Conceito de alma na obra Da Dieta, Díbcles de Caristo. Mens sana in corpore sano. À retórica de Isócrates e o seu ideal de cultura .......... Irócrates, sofista. Perfil de Sócrates. Contesído e forma em Isó- crates. O eidos em retórica. Valor educativo da retórica. Dons naturais, estudo e prática. Isócrates e Platão. 964 978 978 989 999 1001 1060 Educação política e ideal pan-helênico ......o Tema da retórica: fotítica O Panegírico. Atenar, pai deusis da Grécia, Irradiação da cultura grega. A educação do príncipe Isócrates é Píndaro: modelo. Atece do príncipe. Retórica é poesia, Retórica e logos. A obra do Rei. Pode ensinar-se a virtude? O tirano transformado em governante. A experiên- cia e a idéia. História e retórica. Poder educativo da forma. Autoridade e liberdade na democracia radical......... O Areopagítico. Data do Areopagítico. Intenção do Areopagítico. Programa de minoria conservadora. O pas- sado, modelo do presente. Não importam as leis, mas 0 ethos. Defeitos da educação. Benefícios du democracia. A physis como norma. O indivíduo e o meio. Isócrates defende a sua paidéia Antídosis e Apologia de Sócrates, O Panegírico. À Nicocles. Valor da obra de Isócrates. Os discípulos de Isó- crates. Cultura e juventude. Por que « cultura? Contradições da Paidéia Isócrates e Platão. A verdadeira cultura. Orientar a pleonexia. Cultura e demagogia. Xenofonte: o cavaleiro e o soldado ideais Astvidade literária. Paidéia fora da Gráia. O made Ciro: as virtudes do soldado. Paidéia persa. Finalidade da Ciropedia, A Constituição dos Lacedemônios. A agoge espartana. O Sócrates das Memoráveis. Cultura e vida campestre. O Cinegético, Feição prática da paidéia O Fedro de Platão: filosofia e retórica Problema da composição do Fedro. Como compreender o Fedro. Problema fundamental da retórica. Integração da re- tórica na paidéia platônica. Platão e Dionísio: a tragédia da paídéia Evolução de Platão. A República e Dionísio H. Platão 1W11 1142 n97 1214 1253 1274 ea tyche divina. Obra escrita e doutrina. Processo da paidéia, As Lei: Missão educativa do legislador As Leis e a República Finalidade das Leis. Os preâmbu- Jos das Leis: introdução à paidéia. O espírito das leis e a verdadeira educação . 1295 1295 1302 Crítica de Esparta. Valor dos banquetes. Fenomenologia da paidéia. Deus guia a alma por meio do logos. For- mação inconsciente do ethos. Sentido e destino da arte. Causas da decadência do Estado Evolução do Estado e da cultura. Causas da decadência espartana. Axiomas do governo das Leis. Atenas: luz e sombras. Fundação de Estados e norma divina: os preâmbulos das leis Tyche, Kairos, techne. Deus, bedagogo e centro do Mundo. As leis sobre a educação do povo Educação infantil: o hábito. Valor educativo do jogo. Teo- centrismo. Modernidade das leis platônicas. Matemáticas e cultura elementar. Os theoroi e a cultura. 1324 1336 1348 A educação dos governantes e o conhecimento de Deus... Demóstenes: agonia e cransformação d da cidade-es- tado .. Controvérsias sobre Demóstenes. A juventude ateniense. Polf- tica de equilíbrio. Demástenes, logógrafo. Política externa. O problema Filipe. As Filípicas. A tyche. O serdadeiro pan- belenismo. O passado e o presente. A questão social e a sobre- vivência nacional. O fracasso da polis. 1370 1375 Prólogo Dou a público uma obra de investigação bistórica acerca de um pro- blema até agora inexplorado: paidéia, a formação do homem grego, como base para uma nova consideração de conjunto do fenômeno grego. Con- quanto se tenha descrito fregiientemente o desenvolvimento do Estado e da sociedade, da literatura e da religião e filosofia dos Gregos, ninguém até boje tentou evidenciar « ação recíproca entre o processo histórico pelo qual se chegou à formação do bomem grego e o processo espiritual através do qual os Gregos lograram elaborar o seu ideal de humanidade. Todavia, não foi por ela não ter sido cultores até agora que me devoiei a esta tarefa; ex o fix porque julguei ver que da solução deste profundo problema bis- tórico e espiritual estava pendente a inteligência daquela criação educa- tiva impar, da qual irradia a imorvedoura ação dos gregos sobre todos os séculos. Os dois primeiros livros compreendem a fundação, o crescimento e a crise da formação grega nos tempos do homem heróico e político, ou seja, durante o período primitivo e clássico. Findam com a ruína do Império ateniense. O terceiro trata da restauração espiritual do século de Platão, da sua iuta para alcançar o domínio do Estado e da educação, e da transformação da cultura grega num império universal, Esta exposição não se dirige apenas a um público especializado; di- rige-se a todos os que, nas lutas do norso tempo, buscam no contato com os Gregos a salvação e manutenção da nossa cultura milenária. Não foram pomcas as vezes em que me foi difícil manter o equilíbrio ensre o desejo de conseguir uma ampla visão histórica de conjunto e a necessidade impres- cindível de reelaborar profundamente o complexo material de cada uma Introdução Paidéia, « palavra que serve de título a esta obra, não é apenas um nome simbólico; é a única designação exata do tema histórico nela estuda- do. Este tema é, de fato, dificil de definir: como outros conceitos de grande amplitude (por exemplo os de filosofia ou cultura), resiste a deixar- se encerrar numa fórmula abstrata. O seu conteúdo e significado só se re- velam plenamente quando lemos a sua história e lhes seguimos o esforço para conseguirem plasmar-se na realidade. Ao empregar um termo grego para exprimir uma coisa grega, quero dar a entender que essa coisa se contempla, não com os olhos do homem mo- derno, mas sim com os do homem grego. Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civiliza- ção, cultura, tradição, literatura ox educação; nenhuma delas, po- rém, coincide realmente com o que os Gregos entendiam por paidéia Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele con- ceito global, é, para abranger o campo total do conceito grego, tertamos de empregá-los todos de uma só vez. E no entanto a verdadeira essência da aplicação ao estudo e das atividades do estudioso baseia-se na unidade originária de todos aqueles aspectos — unidade vincada na palavra prega -, e não na diversidade su- blinhada e consumada pelas locuções modernas. Os antigos estavam convencidos de que « educação e a cultura não constituem uma arte formal ou uma teoria abstrata, distintas da estrutu- va histórica objetiva da vida espiritual de uma nação; para eles, tais va- tores concretizavam-se na literatura, que é a expressão real de toda cultu- ra superior. E é deste modo que devemos interpretar a definição do bomem culto apresentados por Frínico (Cf. uAOXOYOS, p. 483 Rutherford): BAÓÃOVOÇ O Adv AÓyovç Kai cxoudá luv mepi mondeiov. Lugar dos Gregos na história da educação Todo povo que atinge um certo grau de desenvolvimento sente-se naturalmente inclinado à prática da educação. Ela é o princípio por meio do qual a comunidade humana conserva € transmite a sua peculiaridade física e espiritual. Com a mudança das coisas, mudam os indivíduos; o tipo permanece o mesmo. Homens e animais, na sua qualidade de seres físicos, consolidam a sua espécie pela procriação narural. Só o Homem, porém, con- segue conservar é propagar a sua forma de existência social e espi- ritual por meio das forças pelas quais a criou, quer dizer, por meio da vontade consciente e da razão. O seu desenvolvimento ganha por elas um certo jogo livre de que carece o resto dos seres vivos, se pusermos de parte a hipótese de transformações pré-históricas das espécies e nos ativermos ao mundo da expe- riência dada. Uma educação consciente pode aré mudar a natureza física do Homem e suas qualidades, elevando-lhe a capacidade a um nível superior. Mas o espírito humano conduz progressivamente à descoberta de si próptio + cria, pelo conhecimento do mundo ex- terior e interior, formas melhores de existência humana. A natu- reza do Homem, na sua dupla estrutura corpórea e espiritual, cria condições especiais para a manutenção e cransmissão da sua forma particular e exige organizações físicas e espirituais, ao conjunto das quais damos o nome de educação. Na educação, como o Ho- mem a pratica, atua à mesma força vital, criadora e plástica, que espontaneamente impele todas as espécies vivas à conservação € 6 INTRODUÇÃO estranho. Esta separação funda-se em parte no sangue é no senti- mento, em parte na estrutura do espírito e das instituições, e ain- da na diferença da respectiva situação histórica; mas entre esta se- paração e a que sentimos ante os povos orientais, distintos de nós pela raça e pelo espírito, a diferença é gigantesca. E é, sem dúvida, errôneo e falho de perspectiva histórica separar da Anti- guidade clássica os povos ocidentais, como alguns escritores fa- zem, por uma barreira comparável à que nos separa da China, da Índia ou do Egito. Não se trata só de um sentimento de parentesco racial, por maior que seja à importância deste fator para a compreensão ínei- ma de outro povo. Ao dizermos que a nossa história começa na Grécia, precisamos adquirir uma consciência clara do sentido que neste caso damos à palavra “história”. História significa, por exemplo, a exploração de mundos estranhos, singulares e miste- riosos. Assim a concebeu Heródoto. Também hoje, com aguda percepção da morfologia da vida humana em todas as suas for- mas, nós nos aproximamos dos povos mais remotos e procuramos penetrar no seu espírito próprio. Mas É preciso distinguir a histó- ria neste sentido quase antropológico da história que se funda- menta numa união espiritual viva e ativa e na comunidade de um destino, quer seja o do próprio povo, quer o de um grupo de po- vos estreitamente unidos. Só nesta espécie de história se tem uma íntima compreensão e contato criador entre uns e ontros. Só nela existe uma comunidade de ideais e de formas sociais e espirituais que se desenvolvem e crescem independentes das múltiplas incer- supções e mudanças acravés das quais varia, se cruza, choca, desa- parece e se renova uma família de povos diversos na raça e na gentalogia. Essa comunidade existe na totalidade dos povos oci- dentais e entre estes e a Antiguidade clássica. Se considerarmos a História neste sentido profundo, no sentido de uma comunidade radical, não poderemos supor-lhe como cenário o planeta inteiro e, por mais que alarguemos os nossos horizontes geográficos, as fronteiras da “nossa” história jamais poderão ultrapassar a anti- guidade daqueles que há vários milênios traçaram o nosso desti- no. Não é possível dizer até quando a Humanidade continuará à LUGAR DOS GREGOS NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO = crescer na unidade de sentido que tal destino lhe assinala, nem isso importa para o objeto do nosso estudo. . Não é possível descrever em poucas palavras a posição revolucionadora e solidária da Grécia na história da educação hu- mana. O objeto deste livro é apresentar a formação do homem grego, à paidéia, no seu caráter particular e no seu desenvolvi- mento histórico, Não se trata de um conjunto de idéias abstratas, mas da própria história da Grécia na realidade concreta do seu destino vital. Contudo, essa história vivida já teria desaparecido há longo tempo se o homem grego não a tivesse criado na sua for- ma perene. Criou-se como expressão da altíssima vontade com que talhou o seu destino. Nos estádios primitivos do seu cresci- mento, não teve a idéia clara dessa vontade; mas, à medida que avançava no seu caminho, ia-se gravando na sua consciência, com clareza cada vez maior, a finalidade sempre presente em que a sua vida assentava: a formação de um elevado tipo de Homem. A idéia de educação representava para ele o sentido de todo o esfor- ço humano. Era a justificação última da comunidade e individua- lidade humanas. O conhecimento próprio, a inteligência clara do Grego encontravam-se no topo do seu desenvolvimento. Não há qualquer razão para pensarmos que os entenderíamos melhor por algum gênero de consideração psicológica, histórica ou social. Mesmo os imponentes monumentos da Grécia arcaica são perfei- tamente inteligíveis a esta luz, pois foram criados no mesmo es- pírito. E foi sob a forma de paidéia, de “cultura”, que os Gregos consideraram a totalidade da sua obra criadora em relação aos ou- tros povos da Antiguidade de que foram herdeiros. Augusto con- cebeu a missão do Império Romano em função da idéia da cultu- ra grega. Sem a concepção grega da cultura não teria existido a “Antiguidade” como unidade histórica, nem o “mundo da cultu- ra” ocidental. Hoje estamos habituados a usar a palavra cultura não no sentido de um ideal próprio da humanidade herdeira da Grécia, mas antes numa acepção bem mais comum, que a estende a to- dos os povos da Terra, incluindo os primitivos. Entendemos as- sim por cultura a totalidade das manifestações e formas de vida 8 INTRODUÇÃO que caracterizam um povo? A palavra converteu-se num simples conceito antropológico descritivo. Já não significa um alto con- ceito de valor, um ideal consciente. Com este vago sentimento analógico, nos é permitido falar de uma cultura chinesa, hindu, babilônica, hebraica ou egípcia, embora nenhum destes povos te- nha uma palavra ou conceito que a designe de modo consciente. É evidente que qualquer povo altamente organizado tem um sis- tema educativo. Mas a “Lei e os Profetas” dos Hebreus, o sistema confucionista dos Chineses, o “dharma” hindu são, na sua essên- cia e na sua estrutura espiritual, algo fundamentalmente distinto do ideal grego de formação humana. O costume de falar de uma multiplicidade de culturas pré-helênicas tem a sua origem, em última análise, no afã igualitário do positivismo, que trata as coi- sas alheias mediante conceitos de raiz européia, sem levar em consideração que o simples fato de submeter os mundos alheios a um sistema de conceitos que lhes é essencialmente inadequado é já uma falsificação histórica. Nela radica o círculo vicioso em que se debate a quase totalidade do pensamento histórico. Não é pos- sível evitá-lo completamente, porque não é possível sair da nossa própria pele. Mas é necessário fazê-lo, pelo menos no problema fundamental da divisão da História, começando pela distinção primacial entre o mundo pré-helênico e o que se inicia com os Gregos, o qual estabelece pela primeira vez de modo consciente um ideal de cultura como princípio formativo. Talvez não tenhamos ganhado grande coisa em afirmar que os Gregos foram os criadores da idéia de cultura, num tempo cansado de cultura e em que se pode considerar como sobrecarga essa paternidade. Mas o que hoje denominamos cultura não passa de um produto deteriorado, derradeira mecamorfose do conceito grego originário. A paidéia não é, para os Gregos, um “aspecto exterior da vida”, KaTaokevt) tod Blow, incompreensível, flui- do e anárquico. Tanto mais conveniente se torna, por isso, ilumi- nar a sua verdadeira forma a fim de nos assegurarmos do seu au- 2. Para 0 que se segue, ver o meu crabalho Platos Srelhung is Aufhau der Griechischen Bildang (Berlim, 1928), especialmente a peimeira parte: Kuliuridee und Griechentum, pp. 7 ss. (Die Antike, vol. 4, p. 1). LUGAR DOS GREGOS NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO 9 têntico sentido e do seu valor originário. O conhecimento do fe- nômeno original pressupõe uma estrutura espiritual análoga à dos Gregos, atitude semelhante à que Goethe adota na consideração da natureza — ainda que provavelmente sem se vincular a uma tradição histórica direta. Precisamente num momento histórico em que, pela própria razão do seu caráter epigonal, a vida huma- na se encolheu na rigidez da sua carapaça, em que o complicado mecanismo da cultura se tornou hostil às virtudes heróicas do Homem, é preciso, por profunda necessidade histórica, voltar os olhos para as fontes de onde brota o impulso criador do nosso povo, penetrar nas camadas profundas do ser histórico em que o espírito grego, estreitamente vinculado ao nosso, deu forma à vida palpitante que ainda em nossos dias se mantém, e eternizou o instante criador da sua irrupção. O mundo grego não é só o es- pelho onde se reflete o mundo moderno na sua dimensão cultural e histórica ou um símbolo da sua autoconsciência racional. O mistério e deslumbramento originário cerca a primeira criação de seduções e estímulos em eterna renovação. Quanto maior é o pe- rigo de até o mais elevado bem se degradar no uso diário, com tanto maior vigor sobressai o profundo valor das forças conscien- tes do espírito que se destacaram na obscuridade do coração hu- mano e estruturaram, no frescor matinal e com o gênio criador dos povos jovens, as mais altas formas de cultura. Dissemos que a importância universal dos Gregos como educadores deriva da sua nova concepção do lugar do indivíduo na sociedade. E, com efeito, se contemplamos o povo grego sobre o fundo histórico do antigo Oriente, a diferença é tão profunda que os Gregos parecem fundir-se numa unidade com o mundo europeu dos tempos modernos. E isto chega ao ponto de poder- mos sem dificuldade interpretá-los na linha da liberdade do indi- vidualismo moderno. Efetivamente, não pode haver contraste mais agudo que o existente entre a consciência individual do ho- mem de hoje e o estilo de vida do Oriente pré-helênico, tal como ele se manifesta na sombria majestade das Pirâmides, nos túmu- los dos reis e na monumentalidade das construções orientais. Em contraste com a exaltação oriental dos homens-deuses, solitários, acima de toda a medida natural, onde se expressa uma concepção 12 INTRODUÇÃO qual conduz finalmente à criação abstrata e técnica da lógica, da gramática, da retórica. A este respeito, aprendemos muito dos Gregos: aprendemos a estabilidade férrea das formas do pensamento, da oratória e do estilo, que ainda hoje para nós são válidas. Isto aplica-se ainda à criação mais bela do espírito grego, ao mais eloquente testemunho da sua estrutura ímpar: a filosofia. Nela se manifesta da maneira mais evidente a força que se encon- tra na raiz do pensamento € da arte grega, a percepção clara da ordem permanente que está no fundo de todos os acontecimentos e mudanças da natureza e da vida humanas. Todos os povos cria- ram o seu código de leis; mas os Gregos buscaram a “lei” que age nas próprias coisas, e procuraram reger por ela a vida e o pensa- mento do homem. O povo grego é o povo filosófico por excelên- cia. A “teoria” da filosofia grega está intimamente ligada à sua arte e à sua poesia. Não contém só o elemento racional em que pensamos em primeiro lugar, mas também, como o indica a etimologia da palavra, um elemento intuitivo que apreende o ob- jeto como um todo na sua “idéia”, isto é, como uma forma vista. Embora estejamos cônscios do perigo da generalização e da inter- pretação do anterior pelo posterior, não podemos fugir à convic- ção de que a idéia platônica, produto único e específico do espíri- to grego, nos dá a chave para interpretar a mentalidade grega em muitas outras esferas. A conexão entre as idéias platônicas e a ten- dência da arte para a forma foi posta em relevo desde a Antigui- dade?. Mas é também válida para a oratória e para a essência do espírito grego em geral. Mesmo as concepções cosmogônicas dos mais antigos filósofos da natureza estão orientadas por uma intui- ção deste gênero, ao contrário da física atual, regida pela experi- mentação e pelo cálculo. Não é uma simples soma de observações particulares e abstrações metódicas, mas algo que chega mais lon- ge, uma interpretação dos fatos particulares a partir de uma ima- gem que lhes dá uma posição e um sentido como partes de um todo. A matemática e a música gregas, na medida em que as co- 3. Para isco a fonre clássica é CÍCERO, Or. 7-10, que, por sua vez, baseia-se em fontes gregas. LUGAR DOS GREGOS NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO 13 nhecemnos, distinguem-se igualmente, por esta forma ideal, da- quelas dos povos anteriores. A posição específica do Helenismo na história da educação humana depende da mesma particularidade da sua organização íntima — a aspiração à forma que domina tanto os empreendi- mentos artísticos como todas as coisas da vida — e, além disso, do seu sentido filosófico do universal, da percepção das leis profun- das que governam a natureza humana e das quais derivam as nor- mas que regem a vida individual e a estrutura da sociedade, Na profunda intuição de Heráclito, o universal, o Jogos, é o comum na essência do espírito, como a lei é o comum na cidade. No que se refere ao problema da educação, a consciência clara dos princí- pios naturais da vida humana e das leis imanentes que regem as suas forças corporais e espirituais tinha de adquirir a mais alta importância”. Colocar estes conhecimentos como força formativa a serviço da educação e formar por meio deles verdadeiros homens, como o oleiro modela a sua argila e o escultor as suas pedras, é uma idéia ousada e criadora que só podia amadurecer no espírito daquele povo artista e pensador. A mais alta obra de arte que o seu anelo se propôs foi a criação do Homem vivo. Os Gregos viram pela primeira vez que a educação tem de ser também um processo de construção consciente. “Constituído de modo correto e sem falha, nas mãos, nos pés e no espírito”, tais são as palavras pelas quais um poeta grego dos tempos de Maratona e Salamina descreve a essência da virtu- de humana mais difícil de adquirir. Só a este tipo de educação se pode aplicar com propriedade a palavra formação, tal como a usou Platão pela primeira vez em sentido metafórico, aplicando-a dação educador”. A palavra alemã Bildung (formação, configura- ção) é a que designa do modo mais intuitivo a essência da educa- ção no sentido grego e platônico. Contém ao mesmo tempo a configuração artística e plástica, e a imagem, “idéia”, ou “tipo” normativo que se descobre na intimidade do artista. Em todo lu- 4. Vero meu Antike sd Humanismas, p. 13 (Leipzig, 1925). 5. mAúrrerv. Plação, Rep, 377 By Leis, 671, E. 14 INTRODUÇÃO gar onde esta idéia reaparece mais tarde na História, ela é uma herança dos Gregos, e aparece sempre que o espírito humano abandona a idéia de um adestramento em função de fins exterio- res e reflete na essência própria da educação. O fato de os Gregos terem sentido esta tarefa como algo grandioso e difícil e se terem consagrado a ela com ímpeto sem igual não se explica nem pela sua visão artística nem pelo seu espírito “teórico”. Desde as pri- meiras notícias que temos deles, encontramos o homem no centro do seu pensamento. A forma humana dos seus deuses, o predo- mínio evidente do problema da forma humana na sua escultura e na sua pintura, o movimento consegilente da filosofia desde o problema do cosmos até o problema do homem, que culmina em Sócrates, Plarão e Aristóteles; a sua poesia, cujo tema inesgotável desde Homero até os últimos séculos é o homem € o seu duro destino no sentido pleno da palavra; e, finalmente, o Estado gre- go, cuja essência só pode ser compreendida salf o ponto de vista da formação do homem e da sua vida inteira: tudo são raios de uma única e mesma luz, expressões de um sentimento vital antropocêntrico que não pode ser explicado nem derivado de ne- nhuma outra coisa e que penetra todas as formas do espírito gre- go. Assim, entre os povos, o grego é o antropoplástico. Podemos agora determinar com maior precisão a particula- ridade do povo grego frente aos povos orientais. A sua descoberta do Homem não é a do eu subjetivo, mas a consciência gradual das leis gerais que determinam a essência humana. O princípio espi- ritual dos Gregos não é o individualismo, mas o “humanismo”, para usar a palavra no seu sentido clássico e originário. Huma- nismo vem de humanitas. Pelo menos desde o tempo de Varrão e de Cicero, esta palavra teve, ao lado da acepção vulgar e primitiva de humanitário, que não nos interessa aqui, um segundo sentido mais nobre e rigoroso. Significou a educação do Homem de acor- do com a verdadeira forma humana, com o seu autêntico ser”. Tal é a genuína paidéia grega, considerada modelo por um ho- mem de Estado romano. Não brota do individual, mas da idéia. Acima do Homem como ser gregário ou como suposto eu autôno- 6. Cf. Auto Gélio, Noct. Ass. XE. 17. LUGAR DOS GREGOS NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO 15 mo, ergue-se o Homem como idéia. A ela aspiram os educadores gregos, bem como os poetas, artistas e filósofos. Ora, o Homem, considerado na sua idéia, significa a imagem do Homem genéri- co na sua validade universal e normativa. Como vimos, a essência da educação consiste na modelagem dos indivíduos pela norma da comunidade. Os Gregos foram adquirindo gradualmente consciência clara do significado deste processo mediante aquela imagem do Homem, e chegaram por fim, através de um esforço continuado, a uma fundamentação, mais segura e mais profunda que a de nenhum povo da Terra, do problema da educação. Este ideal de Homem, segundo o qual se devia formar o in- divíduo, não é um esquema vazio, independente do espaço e do tempo. É uma forma viva que se desenvolve no solo de um povo e persiste através das mudanças históricas. Recolhe e aceita todas as transformações do seu destino e todas as fases do seu desenvol- vimento histórico. O humanismo e o classicismo de outros tem- pos ignoraram este fato, ao falarem da “humanidade”, da “cultu- ra”, do “espírito” dos Gregos ou dos antigos, como expressão de uma humanidade intemporal e absoluta. O povo grego transmi- tiu, sem dúvida, à posteridade, de forma imorredoura, um tesou- ro de conhecimentos imperecíveis. Mas seria um erro fatal ver na ânsia de forma dos Gregos uma norma rígida e definitiva. À geo- merria euclidiana e a lógica aristotélica são, sem dúvida, funda- mentos permanentes do espírito humano, válidos ainda em nos- sos dias, e dos quais não é possível prescindir. Mas até estas for- mas universalmente válidas, independentes do conteúdo concreto da vida histórica, são, se as consideramos com um olhar impreg- nado de sentido histórico, inteiramente gregas e não excluem a coexistência de outras formas de intuição e de pensamento lógico e matemático. Com muito maior razão é isto verdade para outras criações do gênio grego mais fortemente moldadas pelo ambiente histórico e mais diretamente ligadas à situação do tempo. Os Gregos posteriores, do início do Império, foram os pri- meiros a considerar como clássicas, naquele sentido intemporal, as obras da grande época do seu povo, quer como modelos for- mais da arte quer como protótipos éticos. Nesse tempo em que a história grega desembocou no Império Romano e deixou de cons- 18 INTRODUÇÃO individualista. Assim se eleva a “literatura” grega clássica acima da esfera do puramente estético, onde a quiseram em vão encer- rar, e exerce um influxo incomensurável através dos séculos. Por esta ação, a arte grega, nas suas melhores épocas e nas suas obras mais representativas, atuou sobre nós do modo mais vigoroso. Seria necessário escrever uma história da arte grega como espelho dos ideais que dominaram a sua vida. Também se deve dizer que até o séc. IV a arte grega é fundamentalmente a expressão do espírito da comunidade. Não é possível compreen- der o ideal agônico, revelado nos cantos pindáricos aos vencedores, sem conhecer as estátuas que nos mostram os vencedores olímpi- cos na sua encarnação corporal, ou as dos deuses, como encarnação das idéias gregas sobre a dignidade da alma e do corpo humanos. O templo dórico é, sem dúvida, o mais grandioso monumento que deixou à posteridade o gênio dórico e o seu ideal de estrita subordinação do individual à totalidade. Habita nele a força po- derosa que torna historicamente atual a vida de outrora que ele eterniza, e a fé religiosa que o inspirou. Sem dúvida, os verdadei- ros representantes da paidéia grega não são os artistas mudos — escultores, pintores, arquitetos —, mas os poetas e os músicos, os filósofos, os retóricos e os oradores, quer dizer, os homens de Estado. No pensamento grego, o legislador encontra-se, em certo aspecto, muito mais próximo do poeta que o artista plástico: é que ambos têm uma missão educadora, e só o escultor que forma o Homem vivo tem direito a este título, Comparou-se com fre- qiiência a ação educadora dos Gregos à dos artistas plásticos; os Gregos, porém, nunca falam da ação educadora da contemplação e da intuição das obras de arte, no sentido de Winckelmaan. A palavra e o som, o ritmo e a harmonia, na medida em que atuam pela palavra, pelo som ou por ambos, são as únicas forças forma- doras da alma, pois o fator decisivo em roda a paidéia é a energia, mais importante ainda para a formação do espírito que para a aquisição das aptidões corporais no «go. Segundo a concepção grega, as artes pertencem a outra esfera. Durante todo o período clássico, mantiveram o seu lugar no mundo sagrado do culto, no qual tiveram origem. Esam essencialmente agaíma, ornamento. Não sucede o mesmo com o epos heróico, do qual dimana a força LUGAR DOS GREGOS NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO 19 educadora para o resto da poesia, Mesmo quando está ligado ao culto, lança as raízes no mais profundo do solo social e político; com muito maior razão, quando se encontra liberto daquele laço. Assim, a história da educação grega coincide substancialmente com a da literatura. Esta é, no sentido originário que lhe deram os seus criadores, a expressão do processo de autoformação do ho- mem grego. Independentemente disto, não possuímos nenhuma tradição escrita dos séculos anteriores à idade clássica além do que nos resta dos seus poemas, Assim, mesmo tomando a História no seu mais amplo sentido, uma só coisa nos torna acessível a com- preensão daquele período: a evolução e a formação do Homem na poesia e na arte. A História determinou que só isto ficasse da existência inteira do Homem. Não podemos traçar o processo de formação dos Gregos daquele tempo senão a partir do ideal de Homem que forjaram. Isto aponta o caminho e delimita a tarefa desta exposição. A sua escolha e a maneira de considerá-la não necessitam de justifi- cação especial. A si próprias devem justificar-se no seu conjunto, ainda que no particular se possam, acaso, lamentar algumas omissões. Será colocado de forma nova um problema velho: o fato de o processo educativo ter sido vinculado desde sempre ao estu- do da Antiguidade. Os séculos posteriores consideraram sempre a Antiguidade clássica como um tesouro inesgotável de saber e de cultura, quer no sentido de uma dependência material e exterior, quer no de um mundo de protótipos ideais. O nascimento da moderna história da Antiguidade, considerada como disciplina científica, trouxe consigo uma mudança fundamental da nossa atitude para com ela. O novo pensamento histórico aspira antes de rudo ao conhecimento do que realmente foi e como foi. No seu apaixonado intento de ver claramente o passado, considerou os clássicos como um simples fragmento da História — embora um fragmento da maior importância —, sem colocar e nem pres- tar atenção ao problema da sua influência direta sobre o mundo atual, Considerou-se isto um problema pessoal e o juízo sobre o seu valor foi deixado ao critério de cada um. Mas, ao lado desta história enciclopédica e objetiva da Antiguidade, menos livre de valorações do que imaginam os seus mais eminentes promotores, 20 INTRODUÇÃO permanece o perene influxo da “cultura clássica”, por mais que procuremos ignorá-lo. A concepção clássica da história que o sus- tentava foi eliminada pela investigação, e a ciência não se preo- cupou com dar-lhe novo fundamento. Pois bem: quando a nossa cultura toda, abalada por uma experiência histórica monstruosa, se vê forçada a um novo exame dos seus próprios fundamentos, propõe-se outra vez à investigação da Antiguidade o problema, último e decisivo para o nosso próprio destino, da forma e do va- lor da educação clássica. Este problema só pode ser resolvido pela ciência histórica e à luz do conhecimento histórico. Não se trata de apresentar artisticamente o assunto, sob uma luz idealizante, mas de compreender o fenômeno imperecível da educação antiga eo impulso que a orientou, a partir da sua própria essência espiri- tual e do movimento histórico a que deu lugar. Livro Primeiro A Primeira Grécia