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Referência para Interpretação de Relações Raciais no Brasil: Preconceito de Marca e Origem, Transcrições de História

Uma sugestão de um quadro de referência para a interpretação de estudos sobre relações raciais no brasil, com ênfase no preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. O autor discute as diferenças entre as manifestações do preconceito racial no brasil e nos estados unidos, além de apresentar características comuns em estudos sobre a situação racial brasileira.

Tipologia: Transcrições

2023

Compartilhado em 13/03/2024

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Preconceito racial de marca e preconceito
racial de origem
Sugestão de um quadro de referência para a interpretação
do material sobre relações raciais no Brasil
Oracy Nogueira
Os estudos que tratam da “situação racial” brasileira, no que se refere ao
negro (e ao mestiço de negro), podem ser divididos em três correntes: 1) a
corrente afro-brasileira, a que deram impulso Nina Rodrigues e Arthur
Ramos, e os estudiosos que mais diretamente foram influenciados por am-
bos; e que, sob a influência de Herskovits, prossegue, sob uma forma reno-
vada, com os trabalhos de René Ribeiro, Roger Bastide e outros, podendo
ser caracterizada como aquela corrente que dá ênfase ao estudo do processo
de aculturação, preocupada em determinar a contribuição das culturas afri-
canas à formação da cultura brasileira; 2) a dos estudos históricos, em que
se procura mostrar como ingressou o negro na sociedade brasileira, a recep-
tividade que encontrou e o destino que nela tem tido, corrente esta de que
Gilberto Freyre é o principal representante; e 3) a corrente sociológica que,
sem desconhecer a importância dos estudos feitos sob as duas perspectivas
já mencionadas, se orienta no sentido de desvendar o estado atual das rela-
ções entre os componentes brancos e de cor (seja qual for o grau de mesti-
çagem com o negro ou o índio) da população brasileira1.
Na presente comunicação, somente a terceira das mencionadas corren-
tes de estudos será considerada.
Com o caráter sistemático que vem assumindo, a perspectiva socioló-
gica, no estudo das relações sociais entre brancos e não-brancos, no Bra-
sil, foi inaugurada com o trabalho realizado na Bahia, de 1935 a 1937,
1. Dentre os discípulos
de Arthur Ramos, me-
rece destaque Edison
Carneiro. Na presente
comunicação, o autor
não tratará nem da bi-
bliografia afro-brasilei-
ra nem da corrente his-
tórica dos estudos refe-
rentes ao negro no Bra-
sil. Neste ponto, ape-
nas deve ser assinalado
que, não obstante a
tendência de cada estu-
dioso se interessar, es-
pecialmente, por um
ou outro dos três seto-
res de estudos, dificil-
mente se poderão si-
tuar todos os trabalhos
de um mesmo autor,
exclusivamente, numa
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Preconceito racial de marca e preconceito

racial de origem

Sugestão de um quadro de referência para a interpretação

do material sobre relações raciais no Brasil

Oracy Nogueira

Os estudos que tratam da “situação racial” brasileira, no que se refere ao negro (e ao mestiço de negro), podem ser divididos em três correntes: 1) a corrente afro-brasileira, a que deram impulso Nina Rodrigues e Arthur Ramos, e os estudiosos que mais diretamente foram influenciados por am- bos; e que, sob a influência de Herskovits, prossegue, sob uma forma reno- vada, com os trabalhos de René Ribeiro, Roger Bastide e outros, podendo ser caracterizada como aquela corrente que dá ênfase ao estudo do processo de aculturação, preocupada em determinar a contribuição das culturas afri- canas à formação da cultura brasileira; 2) a dos estudos históricos, em que se procura mostrar como ingressou o negro na sociedade brasileira, a recep- tividade que encontrou e o destino que nela tem tido, corrente esta de que Gilberto Freyre é o principal representante; e 3) a corrente sociológica que, sem desconhecer a importância dos estudos feitos sob as duas perspectivas já mencionadas, se orienta no sentido de desvendar o estado atual das rela- ções entre os componentes brancos e de cor (seja qual for o grau de mesti- çagem com o negro ou o índio) da população brasileira 1. Na presente comunicação, somente a terceira das mencionadas corren- tes de estudos será considerada. Com o caráter sistemático que vem assumindo, a perspectiva socioló- gica, no estudo das relações sociais entre brancos e não-brancos, no Bra- sil, foi inaugurada com o trabalho realizado na Bahia, de 1935 a 1937,

1.Dentre os discípulos de Arthur Ramos, me- rece destaque Edison Carneiro. Na presente comunicação, o autor não tratará nem da bi- bliografia afro-brasilei- ra nem da corrente his- tórica dos estudos refe- rentes ao negro no Bra- sil. Neste ponto, ape- nas deve ser assinalado que, não obstante a tendência de cada estu- dioso se interessar, es- pecialmente, por um ou outro dos três seto- res de estudos, dificil- mente se poderão si- tuar todos os trabalhos de um mesmo autor, exclusivamente, numa ou noutra corrente.

(^288) Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1

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por Donald Pierson, e publicado, pela primeira vez, sob forma completa, em 1942 (cf. Pierson, 1942), ainda que anteriormente já aparecessem al- guns estudos, de diferentes autores, sobre determinados aspectos do tema geral de “relações raciais”, em publicações periódicas e especialmente na Revista do Arquivo Municipal e em Sociologia , ambas de São Paulo. Tanto devido à repercussão do trabalho de Pierson como ao maior con- tato dos estudiosos nacionais com a literatura científica estrangeira e, em especial, com a norte-americana, passou o tema a ser objeto de estudos mais freqüentes, conforme o testemunham as páginas das revistas eruditas e, em particular, as dos periódicos mencionados. Em 1950, publicou Felte Bezerra seu livro Etnias sergipanas (cf. Noguei- ra, 1950, pp. 323-331), em que estuda o povoamento e a composição atual da população do estado de Sergipe e considera válidas, “em sua quase tota- lidade”, em relação a essa unidade política, as observações feitas por Pier- son, com referência às atitudes entre elementos brancos e não-brancos e, de um modo geral, com referência à “situação racial” da Bahia, em seus múlti- plos aspectos. Além de seus conhecidos trabalhos que se enquadram na corrente dos estudos “afro-brasileiros”, Roger Bastide tem dado uma valiosa contribui- ção ao conhecimento da “situação racial” brasileira e, em particular, ao da situação de São Paulo, sob o ponto de vista sociológico (cf. Bastide, 1951a; 1951b; 1953). Sob os auspícios da Unesco, várias investigações foram realizadas, recen- temente, em diferentes pontos do país, por estudiosos nacionais e estran- geiros, sendo que, em alguns casos, o estudo de “relações raciais” se entrosou com “estudos de comunidades” ou outros levantamentos sociológicos já em andamento: Charles Wagley (1951) estudou a “situação racial” de uma co- munidade rural da Amazônia (cf. também Wagley, 1953), enquanto discí- pulos seus se incumbiram de analisar o mesmo aspecto da vida social com relação a comunidades rurais situadas no “sertão” (cf. Zimmerman, 1951), na região montanhosa do Brasil central (cf. Harris, 1951) e no Recôncavo baiano (cf. Hutchinson, 1951); Thales de Azevedo (1953) tratou da mobi- lidade vertical (a ascensão social) de elementos de cor, na cidade do Salva- dor; René Ribeiro (1953, pp. 210-259) estudou a “situação racial” do Nor- deste; Costa Pinto (1953) procedeu a estudo análogo, com relação ao Distrito Federal; e, em São Paulo, Roger Bastide e Florestan Fernandes (1953) rea- lizaram uma pesquisa, com referência à capital do estado, onde Virgínia Bicudo (1953-1954) e Aniela Ginsberg (1954) também procederam ao es-

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na o fenótipo de índio, como a estudada por Wagley, na Amazônia, a co- munidades em que prevalecem numericamente os indivíduos com traços negróides (geralmente, mestiços), como em certos pontos da Bahia, ou a comunidades em que prevalecem os elementos brancos, como a capital do estado de São Paulo e o município de Itapetininga, ainda que sob esse ponto de vista, como sob os anteriormente indicados, seja desejável que se multipliquem os estudos, de modo a abranger as diferentes situações típicas. À medida que for aumentando o número de estudos e que se forem cobrindo situações as mais diversas, sob cada um dos aspectos indicados, maior será a probabilidade de se chegar a uma síntese satisfatória, que tanto abranja a “situação racial” do Brasil, em seu conjunto, com a determinação de suas constantes, como as variações típicas que se apresentem, cuja carac- terização terá de ser feita. Tendo por base tanto os referidos estudos como a literatura sociológica e antropológica referente à situação racial norte-americana, bem como o conhecimento direto de ambas as situações – a brasileira e a norte-america- na –, chegou o autor da presente comunicação à formulação de um “quadro de referência” que lhe parece útil tanto à caracterização das “situações ra- ciais” como ao levantamento de novos problemas que levem os estudiosos a considerar novos aspectos da questão. O quadro de referência que se vai apresentar se baseia em dois conceitos ideais – no sentido de exagerações lógicas, inferidas de casos concretos, sen- do que todo o caso particular propende para um ou outro dos dois pólos “ideais”, embora nenhum caso coincida, ponto por ponto, com qualquer destes –, um dos quais representa, aproximadamente, a situação brasileira e, o outro, a norte-americana^2. Embora certos estudiosos se recusem a aceitar que o “problema do pre- conceito racial” seja o problema central, nos estudos de relações raciais, e ainda que se admita que o preconceito, seja qual for a importância que se lhe dê, como problema de estudo, deva ser focalizado no contexto da “si- tuação racial” em que se manifesta, o fato é que a preocupação com o mes- mo está pelo menos implícita em toda a pesquisa que se faz nesse setor. Mesmo quando se estuda uma “situação racial” em que se supõe inexistente (ou quase inexistente) o preconceito, está pelo menos implícito o interesse em compará-la com situações em que sua ocorrência é insofismável. Os Estados Unidos e o Brasil constituem exemplos de dois tipos de “situações raciais”: um em que o preconceito racial é manifesto e insofismá-

2.Trata-se de “concei- tos ideais”, no mesmo sentido preconizado por Max Weber e ado- tado por Robert Red- field no esquema “cul- tura de folk – civiliza- ção”. O autor da pre- sente comunicação es- teve nos Estados Uni- dos, de 1945 a 1947, freqüentando o Depar- tamento de Sociologia da Universidade de Chicago.

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vel e outro em que o próprio reconhecimento do preconceito tem dado margem a uma controvérsia difícil de se superar. De um modo geral, tomando-se a literatura referente à “situação racial” brasileira, produzida por estudiosos ou simples observadores brasileiros e norte-americanos, nota-se que os primeiros, influenciados pela ideologia de relações raciais característica do Brasil, tendem a negar ou a subestimar o preconceito aqui existente, enquanto os últimos, afeitos ao preconceito, tal como se apresenta este em seu país, não o conseguem “ver”, na modalidade que aqui se encontra. Dir-se-ia que o preconceito, tal como existe no Brasil, cai abaixo do limiar de percepção de quem formou sua personalidade na atmosfera cultural dos Estados Unidos. A tendência do intelectual brasileiro – geralmente branco – a negar ou subestimar o preconceito, tal como ocorre no Brasil, e a incapacidade do observador norte-americano em percebê-lo estão em contradição com a impressão generalizada da própria população de cor do país. A principal tendência que chama a atenção, nos estudos patrocinados pela Unesco, acima mencionados, é a de reconhecerem seus autores a exis- tência de preconceito racial no Brasil. Assim, pela primeira vez o depoimen- to dos cientistas sociais vem, francamente, ao encontro e em reforço ao que, com base em sua própria experiência, já proclamavam, de um modo geral, os brasileiros de cor. Não basta, porém, a simples afirmação da existência do preconceito, uma vez que não é possível ignorar o flagrante contraste entre o clima de relações inter-raciais que predomina nos Estados Unidos e o que caracte- riza o Brasil. Ademais, o reconhecimento da existência do preconceito leva à questão seguinte de se saber se, num e noutros países, o preconcei- to apenas difere em intensidade ou se a diferença deve ser considerada qualitativa. Pelo menos um dos pesquisadores do grupo de trabalhos patrocinados pela Unesco admite explicitamente que, entre o Brasil e os Estados Unidos, o preconceito racial difere principalmente em intensidade (cf. Pinto, 1953, pp. 96-97). O ponto de vista defendido na presente comunicação, ao con- trário, é o de que, embora tanto nos Estados Unidos como no Brasil não se possa negar a existência de preconceito racial, as diferenças que ocorrem, nas respectivas manifestações, são tais que se impõe o reconhecimento de uma diversidade quanto à natureza. Na falta de expressões mais adequadas, o preconceito, tal como se apre- senta no Brasil, foi designado por preconceito de marca , reservando-se para

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  1. Quanto ao modo de atuar : o preconceito de marca determina uma preterição, o de origem, uma exclusão incondicional dos membros do gru- po atingido, em relação a situações ou recursos pelos quais venham a com- petir com os membros do grupo discriminador. Assim, um clube recreativo, no Brasil, pode opor maior resistência à admissão de um indivíduo de cor que à de um branco; porém, se o indiví- duo de cor contrabalançar a desvantagem da cor por uma superioridade inegável, em inteligência ou instrução, em educação, profissão e condição econômica, ou se for hábil, ambicioso e perseverante, poderá levar o clube a lhe dar acesso, “abrindo-lhe uma exceção”, sem se obrigar a proceder da mesma forma com outras pessoas com traços raciais equivalentes ou, mes- mo, mais leves. Nos Estados Unidos, ao contrário, as restrições impostas ao grupo negro, em geral, se mantêm, independentemente de condições pessoais como a ins- trução, a ocupação etc. Tanto a um negro portador de PhD (doutor em filosofia, título altamente respeitado naquele país) como a um operário, será vedado residir fora da área de segregação, recorrer a certos hospitais, fre- qüentar certas casas de diversões, permanecer em certas salas de espera, em estações, aeroportos etc., utilizar-se de certos aposentos sanitários, fontes de água etc., ainda que varie de uma região para outra e, mesmo, de uma locali- dade para outra, a amplitude de situações em que se impõem restrições.
  2. Quanto à definição de membro do grupo discriminador e do grupo discri- minado : onde o preconceito é de marca, serve de critério o fenótipo ou aparência racial; onde é de origem, presume-se que o mestiço, seja qual for sua aparência e qualquer que seja a proporção de ascendência do grupo discriminador ou do grupo discriminado, que se possa invocar, tenha as “potencialidades hereditárias” deste último grupo e, portanto, a ele se filie, “racialmente”. Onde o preconceito é de marca, como no Brasil, o limiar entre o tipo que se atribui ao grupo discriminador e o que se atribui ao grupo discriminado é indefinido, variando subjetivamente, tanto em função dos característicos de quem observa como dos de quem está sendo julgado, bem como, ainda, em função da atitude (relações de amizade, deferência etc.) de quem observa em relação a quem está sendo identificado, estando, porém, a amplitude de va- riação dos julgamentos, em qualquer caso, limitada pela impressão de ridí- culo ou de absurdo que implicará uma insofismável discrepância entre a aparência de um indivíduo e a identificação que ele próprio faz de si ou que outros lhe atribuem.

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Assim, a concepção de branco e não-branco varia, no Brasil, em função do grau de mestiçagem, de indivíduo para indivíduo, de classe para classe, de região para região. Nos Estados Unidos, ao contrário, o branqueamento, pela miscigena- ção, por mais completo que seja, não implica incorporação do mestiço ao grupo branco. Mesmo de cabelos sedosos e loiros, pele alva, nariz afilado, lábios finos, olhos verdes, sem nenhum característico que se possa conside- rar como negróide e, mesmo, lhe sendo impossível, biologicamente, produ- zir uma descendência negróide, “por mais esforço que faça” (Warner et al ., 1941, pp. 7-8) para todos os efeitos sociais, o mestiço continuará sendo um “negro”. É assim que, naquele país, o negro é definido oficialmente como “todo o indivíduo que, na sua comunidade, é conhecido como tal”, sem qualquer referência a traços físicos. No Brasil, não teria sentido o fenômeno do passing , pois que o indiví- duo, sendo portador de traços “caucasóides”, será considerado branco, ainda que se conheça sua ascendência negra ou o seu parentesco com indivíduos negróides. Nos Estados Unidos, a fuga do passing somente é possível a negros de tal modo brancos que sua filiação racial apenas pode ser conhecida através de documentos de identidade e provas circunstan- ciais 3. Indivíduos em tais condições podem deslocar-se para um meio estranho, mudar de nome e passar a viver como brancos, expediente que ora é usado em caráter temporário 4 , ora como mudança definitiva de destino (cf. Burna, 1946; Eckard, 1947) 5 , não obstante os conflitos men- tais que isto acarreta 6 e as sanções a que estão sujeitos os que se decidem por tal orientação, no caso de se lhes descobrir a origem. O autor desta comunicação conheceu, nos Estados Unidos, entre outros “negros-bran- cos”, uma senhora que “passou”, durante seis meses, aceitando, como branca, um emprego de secretária, oferecido através dum anúncio. De- pois de seis meses, não se conteve e resolveu revelar sua identidade racial ao chefe, raciocinando que, uma vez que este a considerava como uma empregada eficiente, sua confissão poderia contribuir para que o mesmo redefinisse, favoravelmente, sua atitude em relação ao grupo negro. Foi, porém, sumariamente despedida 7. Da parte do grupo branco, as sanções podem ir desde a simples perda de emprego e o rompimento das relações que, como branco, o indivíduo teve ensejo de estabelecer, até a depreda- ção de bens, a agressão física e o linchamento; da parte do grupo negro, o indivíduo estará exposto à censura moral, por falta de lealdade, ao ridí- culo e ao boicote 8.

3.Paradoxalmente, o negro-branco, deslo- cando-se para um meio desconhecido, pode ter de provar sua filiação racial aos próprios ne- gros com quem entra em contato.

4.Nas biografias de ne- gros-brancos famosos, muitas vezes, há perío- dos de dois, três, cinco anos para os quais não se encontram informa- ções, supondo-se que a estas “páginas perdi- das” correspondam fa- ses de passing – para a freqüência a bibliote- cas, centros recreati- vos, para viagens etc.

  1. As revistas sensacio- nalistas freqüentemente exploram o tema, procu- rando mostrar que mi- lhões de norte-america- nos brancos descendem de “negros” que passa- ram a “linha de cor”.

6.Sobre o drama do negro que ousa passar, ver Stonequist (1937).

7.Os relatos de situa- ções cotidianas viven- ciadas pelo autor duran- te sua estadia nos Esta- dos Unidos faziam par- te, na primeira apresen- tação impressa deste ar- tigo, das notas de roda- pé; nesta edição, eles foram incorporados ao texto (N. E.).

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Assim, no Brasil, a intensidade do preconceito varia em proporção direta aos traços negróides; e tal preconceito não é incompatível com os mais fortes laços de amizade ou com manifestações incontestáveis de solidariedade e simpatia. Os traços negróides, especialmente numa pessoa por quem se tem amizade, simpatia ou deferência, causam pesar, do mesmo modo por que o causaria um “defeito” físico. Desde cedo se incute, no espírito da criança branca, a noção de que os característicos negróides enfeiam e tornam o seu portador indesejável para o casamento. Assim, é comum pessoas adultas brincarem com um menino branco, dizendo-lhe que, quando crescer, ele irá casar com uma mulher preta. Geralmente, insiste-se na brincadeira, até que a criança se irrite e proteste. Numa cidade do interior, tendo um menino colocado uma vassoura junto à parede, com a parte de varrer voltada para cima, o autor ouviu uma senhora caçoar com o mesmo que, desse modo, ao crescer, ele haveria de se casar com uma preta. Meninos pretos são jocosa- mente chamados de “negrinho”, “urubu”, “anu” etc., quer por seus próprios companheiros de brinquedos, quer por outras crianças e adultos. Ouvem, freqüentemente, o gracejo de que “negro não é gente” e outros comparáveis. Em todas essas situações, sob o poder de sugestão da hilaridade, incute-se, sub-repticiamente, no espírito tanto das crianças brancas como das de cor, a noção de “inferioridade” do negro ou de indesejabilidade dos traços negrói- des, embora a própria pessoa que faça a brincadeira não tenha consciência do efeito para o qual esteja contribuindo e, portanto, seja, neste sentido, inconsciente, sua atuação. Nos Estados Unidos, o preconceito tende a ser antes emocional e irra- cional que intelectivo e estético, assumindo o caráter de antagonismo ou ódio intergrupal. Por isso mesmo, suas manifestações são mais conscientes, tomando a forma de exclusão ou segregação intencional da população ne- gra, em relação aos mais diversos aspectos da vida social – segregação ocupacional, residencial, escolar, em instituições religiosas, culturais, re- creativas e de assistência social e sanitária , em logradouros públicos, veícu- los e outros recintos de acesso público. Desse modo, o preconceito perturba profundamente o raciocínio, comprometendo o julgamento de pessoas de cor ou de atos atribuídos a pessoas de cor, por parte dos brancos^9. É conhe- cida a parcialidade do júri popular nos Estados Unidos, quando se trata de julgar um negro. Em diferentes situações, sofismas grosseiros são apresen- tados e encontram aceitação, quando se trata de justificar a discriminação. Assim, em 1947, numa das cidades dos Estados Unidos, tendo-se posto na rifa um automóvel de alta classe e verificando-se ser um negro o portador

9.Sobre racionalizações relacionadas com a si- tuação racial, nos Esta- dos Unidos, ver Myrdal (1944). Sobre as drásti- cas restrições, os estra- nhos costumes e a trági- ca violência que o pre- conceito tem inspirado, em relação aos negros, nos Estados Unidos, ver Embree (1942), espe- cialmente o capítulo “Half nazi, Half demo- crat”. Para uma biblio- grafia classificada mais recente, para o estudo dinâmico e comparati- vo da “situação racial” norte-americana, ver Frazier (1949).

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do bilhete premiado, não se procedeu à entrega do prêmio, alegando-se que “os negros não estavam autorizados a comprar os bilhetes”. Em qualquer querela entre um indivíduo de cor e um branco, o público tende a se dividir em dois grupos, cujas atitudes e comportamento são largamente determi- nados pela filiação racial.

  1. Quanto ao efeito sobre as relações interpessoais : onde o preconceito é de marca, as relações pessoais, de amizade e admiração cruzam facilmente as fronteiras de marca (ou cor); onde o preconceito é de origem, as relações entre indivíduos do grupo discriminador e do grupo discriminado são seve- ramente restringidas por tabus e sanções de caráter negativo. Assim, no Brasil, um indivíduo pode ter preconceito contra as pessoas de cor, em geral, e, ao mesmo tempo, ser amigo particular, cliente ou admira- dor de determinada pessoa de cor, sem que isso cause espécie ou implique uma mudança de atitude ou de conceito das demais pessoas em relação a ele, pois que não envolve uma redefinição de atitude ou de ponto de vista de sua parte. Nos Estados Unidos, o branco que mantém relações de amizade com pessoas de cor é pejorativamente chamado de negro-lover ou de “negro vo- luntário”, além de estar sujeito a sanções mais drásticas. A pessoa branca que se casa ou se une com uma de cor, socialmente, passa a ser negra, tornando- se objeto de discriminação e sendo relegada ao mundo social dos negros.
  2. Quanto à ideologia : onde o preconceito é de marca, a ideologia é, ao mesmo tempo, assimilacionista e miscigenacionista; onde é de origem, ela é segregacionista e racista. Assim, no Brasil, há uma expectativa geral de que o negro e o índio desapareçam, como tipos raciais, pelo sucessivo cruzamento com o branco; e a noção geral é de que o processo de branqueamento constituirá a melhor solução possível para a heterogeneidade étnica do povo brasileiro. Diante de um casamento entre uma pessoa branca e uma de cor, a impressão geral é a de que esta última foi “de sorte” enquanto aquela ou foi “de mau gosto” ou se rebaixou, deixando-se influenciar por motivos menos confessáveis. Quando o filho do casal misto nasce branco, também se diz que o casal “teve sorte”; quando nasce escuro, a impressão é de pesar. Portanto, ainda que implique uma condenação ostensiva do preconceito, a ideologia miscigenacionista não é senão uma manifestação deste, uma vez que, em geral, o indivíduo branco espera que o branqueamento resulte do concurso dos demais brancos, e não do seu, principalmente, quando se trata de união legítima. Por sua vez, a pessoa de cor que se preocupa em se unir

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Oracy Nogueira

sil, é o da desmacarronização, assim como o do sírio é o da desquibização e, o do alemão, o da desbifização. O do preto é o do branqueamento”. Ainda em São Paulo, um jovem profissional liberal, filho de japoneses, que exerce sua ocupação entre brasileiros, ou seja, fora do grupo de japo- neses e seus descendentes, e que, em suas viagens por outros estados e por outros países sul-americanos, tem sido identificado como mestiço ou descendente de índios, declarou: “Para mim, no Brasil, não há preconcei- to de raça: o preconceito que existe é estético. O japonês que mais se as- semelha aos indivíduos de raça branca – japonês de olhos menos amen- doados, por exemplo – tem mais aceitação”. Nos Estados Unidos, ao contrário, quando se comparam duas ou mais minorias, freqüentemente se aponta como atenuante o “estar ela satisfeita consigo mesma” e, portanto, o “não estarem os seus membros procurando impor-se aos outros grupos”. De um modo geral, nos Estados Unidos, há maior tolerância (que no Brasil) para com imigrantes que falam, mesmo em público, sua própria língua, que conservam sua própria música etc.

  1. Quanto à etiqueta : onde o preconceito é de marca, a etiqueta de rela- ções inter-raciais põe ênfase no controle do comportamento de indivíduos do grupo discriminador, de modo a evitar a susceptibilização ou humilha- ção de indivíduos do grupo discriminado; onde é de origem, a ênfase está no controle do comportamento de membros do grupo discriminado, de modo a conter a agressividade dos elementos do grupo discriminador. Assim, no Brasil, não é de bom tom “puxar o assunto da cor”, diante de uma pessoa preta ou parda. Evita-se a referência à cor , do mesmo modo como se evitaria a referência a qualquer outro assunto capaz de ferir a sus- ceptibilidade do interlocutor – em geral, diz-se que “em casa de enforcado, não se fala em corda”. Em contraposição, em qualquer contenda com uma pessoa de cor, a primeira ofensa que se lhe assaca é a referência a sua origem étnica 10. Nos Estados Unidos, a ênfase da etiqueta está em expressar a assime- tria das relações entre brancos e negros. Assim, o branco exige que o ne- gro o chame de mister e a ele se dirija mencionando-lhe o sobrenome; porém, o negro tem de se conformar em ser chamado pelo branco pelo primeiro nome, sem o uso daquela expressão. No sul do país, o negro se dirige ao branco, especialmente à mulher branca, de chapéu na mão, po- dendo a transgressão desta regra levar a graves conflitos. Em certas casas comerciais, o negro somente é atendido, de pé, junto ao balcão, quando já nenhuma pessoa branca estiver à espera dos serviços dos balconistas.

10.Numa situação de deferência, qualquer in- divíduo, por mais escu- ro que seja, pode ser chamado eufemistica- mente de “moreno”. De outro lado, qualquer in- divíduo, por leves que sejam seus traços ne- gróides, está sujeito a ser chamado de “negro” ou de “bode” por um con- tendor. Nas situações de acomodação, há manei- ras indiretas mesmo para se indicar que um indivíduo tem ascen- dência negra. Pode-se dizer, por exemplo, que ele tem um pé ou uma orelha “na cozinha”...

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Nos logradouros públicos, veículos coletivos, salas de espera e outros pon- tos de reunião, o comportamento de brancos e negros, uns para com os outros, é estritamente regulamentado, de modo a salientar a desfavorável posição dos últimos 11.

  1. Quanto ao efeito sobre o grupo discriminado : onde o preconceito é de marca, a consciência da discriminação tende a ser intermitente; onde é de origem, tende a ser contínua, obsedante. Em geral, o homem de cor, no Brasil, toma consciência aguda da própria cor nos momentos de conflito, quando o adversário procura humilhá-lo, lembrando-lhe a aparência racial, ou por ocasião do contato com pessoas estranhas, podendo passar longos períodos sem se envolver em qualquer situação humilhante, relacionada com a identificação racial. Isto é verdade, principalmente, para o homem de cor que vive numa pequena comunidade, onde predominam os contatos primários e onde, portanto, os indivíduos se conhecem pessoalmente uns aos outros. À medida que aumenta a freqüên- cia dos contatos secundários, se torna mais constante, para o indivíduo de cor, o risco de ser tratado em função dos traços raciais – e, portanto, de um estereótipo – pelo menos nas situações de contato categórico. Nos Estados Unidos, a consciência da própria identificação racial, por parte do negro, é contínua, permanente, obsedante; e envolve três tendên- cias que se interpenetram: 1) uma preocupação permanente de auto-afir- mação; 2) uma constante atitude defensiva; e 3) uma aguda e peculiar sen- sibilidade a toda a referência, explícita ou implícita, à questão racial. A preocupação de auto-afirmação do negro norte-americano manifesta- se no esforço de revalorização estética da raça, através das fotografias que ilustram as páginas dos jornais e revistas que o próprio grupo mantém (cf. Murray, 1947, pp. 237ss.)^12 ; no esforço de valorização intelectual da gente de cor, seja pela elevação de seu nível de instrução, seja pelo exercício de atividades intelectuais, seja pela glorificação de indivíduos de cor que, nos Estados Unidos ou no estrangeiro, se distinguiram, nas letras, ciências e artes; no esforço de valorização moral e cívica, pela glorificação de indiví- duos com ascendência negra que se tenham distinguido pelas qualidades de caráter ou pelo papel desempenhado em movimentos sociais e políticos, em qualquer parte que seja do mundo^13 ; enfim, em todo o esforço destinado a destruir os estereótipos correntes, que implicam inferioridade inata ou situacional do negro. A atitude defensiva manifesta-se, por exemplo, na preocupação obsessi- va de banir da linguagem e de todo o comportamento simbólico toda a

11.Para uma noção so- bre os padrões de tra- tamento entre brancos e negros, nos Estados Unidos, além dos li- vros já citados, ver Doyle (1937), com in- trodução de Robert E. Park.

12.Em 1943, a im- prensa negra norte- americana abrangia 273 publicações, in- cluindo 164 jornais, em atividade.

13.O brasileiro se sur- preenderá, por exem- plo, ao verificar que o negro norte-americano glorifica Castro Alves, Floriano Peixoto, Nilo Peçanha e outras perso- nalidades brasileiras, como “negros”. Mesmo uma rainha inglesa já chegou a ser incluída numa lista de “pessoas ilustres” de “sangue africano” e, portanto, negras, segundo a defi- nição norte-americana.

(^302) Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1

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Assim, no Brasil, a experiência decorrente do “problema da cor” varia com a intensidade das marcas e com a maior ou menor facilidade que tenha o indivíduo de contrabalançá-las pela exibição de outras características ou condições – beleza, elegância, talento, polidez etc. No dia 18 de dezembro de 1951, o seguinte caso foi presenciado, em São Paulo, pelo autor desta comunicação: num restaurante, encontravam-se, em diferentes mesas, além de outros fregueses, dois mulatos, bem-vestidos, e um branco, de classe ope- rária, em traje de trabalho, sendo que a todos o garçom servia com a mesma atenção. Os dois mulatos eram tratados com familiaridade, tanto pelo ge- rente do estabelecimento como pelo empregado; e, de fato, já haviam sido vistos, ali, em ocasiões anteriores, sendo, portanto, fregueses habituais da casa. Pouco depois, entrou um rapaz preto que, pelo traje e pelo aspecto físico, estava em condições idênticas às do freguês branco, já referido. O garçom não lhe permitiu que ocupasse um lugar, à mesa, o que fez com que o rapaz, ofendido, lhe perguntasse: “Aqui é o Esplanada?!”. A situação mos- tra, pois, o seguinte: um indivíduo de cor, em igualdade de condições com um branco, foi preterido; porém, dois outros indivíduos de cor, de classe superior à do mesmo branco, foram admitidos. Entre os próprios indivíduos de cor, há uma impressão generalizada de que é difícil levar a população de cor a manifestações de solidariedade ou coesão e de que, em geral, quando um preto ou mulato “sobe” socialmente, ele se desinteressa pela sorte de seus companheiros de cor, chegando, mes- mo, com freqüência, a negar a existência de preconceito. O estado mais ou menos crônico de crise das associações recreativas e culturais da gente de cor, decorrente das rivalidades e conflitos internos, parece ser uma expres- são desta dificuldade de integração social (cf. Bicudo, 1947, pp. 195-219). As expressões “grupo preto” ou “negro”, “grupo branco” ou “grupo par- do”, empregadas em relação ao Brasil, têm antes o sentido de conjunto de indivíduos com esta ou aquela aparência física, do que de “grupos sociais”, já que estes implicam uma organização específica, não correspondendo à mera soma estatística dos indivíduos. Nos Estados Unidos, a luta do negro, como negro, seja qual for sua apa- rência, é, sobretudo, uma luta coletiva. As próprias conquistas individuais são vistas como verdadeiras tomadas de novas posições em nome do grupo todo^15. Em todo o contato com pessoas brancas, mesmo nas organizações destinadas a combater as restrições raciais e a melhorar as relações das dife- rentes minorias entre si e com a maioria, o indivíduo de cor assume o papel de representante – vanguardeiro ou diplomata – de seu próprio grupo.

15.O ingresso de um negro, pela primeira vez, numa escola, clube ou outra instituição, ou numa área residencial, até então exclusivista, é, na maior parte das ve- zes, uma perigosa aven- tura. Mesmo pondo-se de lado o perigo do lin- chamento ou da agres- são física, há a humi- lhação ostensiva, pela indicação do local onde o negro deverá sentar- se ou permanecer, pela separação de aposentos sanitários etc. Na área residencial até então exclusivista e que, por pressão do próprio ne- gro ou de movimentos democráticos, passa a admitir pessoas de cor, há o risco do boicote destas pelos fornecedo- res de gêneros alimentí- cios, além de outros re- cursos destinados a de- sencorajar a sua pene- tração. Não obstante tudo isto, nunca faltam negros dispostos a de- sempenhar o papel de vanguardeiros, cônscios de que estarão abrindo precedentes que torna- rão mais fácil o gozo do mesmo direito pelos que vierem depois deles.

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Oracy Nogueira

  1. Quanto ao efeito da variação proporcional do contingente minoritário : onde o preconceito é de marca, a tendência é se atenuar nos pontos em que há maior proporção de indivíduos do grupo discriminado; onde é de ori- gem, ao contrário, a tendência é se apresentar sob forma agravada, nos pon- tos em que o grupo discriminado se torna mais conspicuous pelo número. Com efeito, no Brasil, a impressão generalizada é a de que os indiví- duos de cor esbarram com manifestações mais freqüentes e ostensivas de preconceito em São Paulo, onde constituem uma cota mais reduzida so- bre o conjunto da população, do que, por exemplo, na Bahia ou no Rio de Janeiro 16. Nos Estados Unidos, ao contrário, o negro está muito mais sujeito a restrições nos pontos em que representa uma cota mais numerosa da popu- lação. Em certos pontos do Norte, ao aumento na proporção de negros tem correspondido um agravamento da “questão racial”.
  2. Quanto à estrutura social : onde o preconceito é de marca, a probabi- lidade de ascensão social está na razão inversa da intensidade das marcas de que o indivíduo é portador, ficando o preconceito de raça disfarçado sob o de classe, com o qual tende a coincidir; onde o preconceito é de origem, o grupo discriminador e o discriminado permanecem rigidamente separados um do outro, em status , como se fossem duas sociedades paralelas, em simbiose, porém irredutíveis uma à outra. No Brasil, os próprios sociólogos que têm estudado o problema se vêem em dificuldade quanto à distinção entre os efeitos do preconceito de classe e do preconceito de cor em relação aos pretos e pardos (cf. Pierson, 1942; Bezerra, 1950). Nos Estados Unidos, é tal a impermeabilidade que se observa entre os grupos branco e negro que alguns dos mais destacados sociólogos não têm considerado impropriedade o emprego do termo “casta” com relação a tais grupos e, portanto, com referência à organização social norte-americana (cf. Warner et al ., 1941; Dollard, 1937) 17.
  3. Quanto ao tipo de movimento político a que inspira : onde o preconcei- to é de marca, a luta do grupo discriminado tende a se confundir com a luta de classes; onde é de origem, o grupo discriminado atua como uma “mino- ria nacional” coesa e, portanto, capaz e propensa à ação conjugada. Com efeito, no Brasil, os movimentos sociais e políticos que têm apela- do para a consciência de grupo da população de cor, como fonte de motiva- ção para o proselitismo, têm resultado num fracasso. Do mesmo modo, o movimento político de inspiração nazifascista não deixou de fazer adeptos

16.Segundo o censo de 1940, no estado de São Paulo, os brancos constituíam 84,92% da população e os par- dos e pretos, 12,01%. Na Bahia, os brancos constituíam 28,74% e os pardos e pretos, 71,20%. No Distrito Federal, as porcenta- gens eram de 71,10% para os brancos e 28,62% para os pardos e pretos. A proporção de brancos variou do máximo de 94,44%, no estado de Santa Ca- tarina, ao mínimo de 28,74%, no da Bahia; a de pardos e pretos, do mínimo de 5,54%, no estado de Santa Ca- tarina, para o máximo de 71,20%, no da Bahia. Ver IBGE (1950). 17.Considera Park (1937) a etiqueta de re- lações inter-raciais do Sul dos Estados Unidos como um mecanismo do sistema de castas.

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Oracy Nogueira

Então, diz-se, de um jato, tudo aquilo que se vinha evitando dizer, “tudo aquilo que se vinha segurando”. No campo das relações inter-raciais, como já foi visto, a regra é o branco evitar a susceptibilização do homem de cor. A própria palavra “negro”, ge- ralmente, se reserva para os momentos de conflito, preferindo-se, nas fases de acomodação, expressões como “pardo”, “mulato” e “preto”, quando não eufemismos como “moreno”, “caboclo” (em relação a indivíduos negróides) etc. Mesmo quando ocorrem situações em que a presença do indivíduo de cor seria considerada indesejável ou incômoda, o mais comum é se lhe “dar a entender” o problema que está pendendo ou que ele “está causando”, sem se chegar “ao extremo” de lhe chamar franca e abertamente a atenção. Uma das conseqüências diretas da orientação aqui assinalada é o caráter intermitente que tende a assumir a consciência de raça, no brasileiro de cor. Outra conseqüência, não menos importante, é que o processo de acomoda- ção é facilitado pelo “desarmamento afetivo” do negro. O traço do ethos norte-americano que se opõe diretamente ao do ethos brasileiro, aqui descrito, é a franqueza sem subterfúgios. Também este tra- ço, tal como o da sociedade brasileira, tanto se manifesta nas relações inter- raciais como nas situações de relações interindividuais, em geral. No campo das relações inter-raciais, o referido traço contribui para a continuidade obsessiva da consciência de raça do negro norte-americano, bem como para o estado quase permanente de conflito que caracteriza a situação racial dos Estados Unidos. Em conclusão, deve ser lembrado que além de cada proposição que inte- gra o quadro de referência aqui apresentado constituir uma hipótese que poderá servir de ponto de partida para uma multiplicidade de pesquisas, a serem realizadas tanto no Brasil como em outros países, outros problemas de igual relevância poderão ser formulados tendo-se em vista o mesmo es- quema. Será importante, por exemplo, verificar, sistematicamente, qual a influência quer da industrialização, quer da urbanização, em cada um dos dois tipos de situações raciais descritos. No que se refere particularmente ao Brasil, está, igualmente, a demandar pesquisa a questão da relação entre a imigração estrangeira e a freqüência e intensidade das manifestações de pre- conceito 19.

  1. Embora as áreas em que os elementos de cor, no Brasil, mais freqüen- temente esbarram com manifestações ostensivas de preconceito sejam as mesmas de maior con- centração de imigração européia, não se pode considerar a intensifica- ção do mesmo como um simples efeito de trans- plantação cultural. Em certos casos, pelo menos, como no do italiano, em São Paulo, parece que o imigrante não tinha, no início, uma atitude pre- concebida e rígida em relação aos elementos de cor. Os casamentos de imigrantes ou descen- dentes de imigrantes ita- lianos com pessoas de cor não parecem mais raros que os de brasileiros brancos de origem por- tuguesa. Ademais, o pró- prio apreço do brasileiro pela cor branca há de ter lisonjeado o imigrante dessa cor que, com a in- teriorização dos demais valores da cultura luso- brasileira, terá, também, interiorizado o próprio preconceito. De qual- quer modo, será uma hi- pótese a se examinar.Um homem de cor, sargento

(^306) Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1

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reformado da Força Pú- blica que, em seu tempo de moço, esteve sediado numa cidade do interior do estado de São Paulo, atribui ao fato de terem vindo para a mesma lo- calidade vários “sargen- tos pretos casados com fi- lhas de italianos e, al- guns, com italianas mes- mo”, uma tendência a se encarar com maior natu- ralidade as uniões matri- moniais entre indiví- duos brancos e de cor.