Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Oddc coringa, Manuais, Projetos, Pesquisas de Informática

livros para ler

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2013

Compartilhado em 09/12/2013

carlos-eduardo-souza-pereira-6
carlos-eduardo-souza-pereira-6 🇧🇷

18 documentos

1 / 309

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
Jostein Gaarder
O Dia Do Curinga
Tradução: JOÃO AZENHA JR.
16ª reimpressão - COMPANHIA DAS LETRAS
Copyright C 1995 by Jostem Gaarder e H. Aschehoug & Co.
Título original: Kabaliizysteriet
Tradução autorizada pelo autor, a partir da versão alemã de Gabriele Haefs Capa:
Silvia Ribeiro Ilustração da capa: Maria Efigênia Preparação:
Marcia Collola
Revisão: Eliana Antonioli Tóliché Editorial
Gaarder, Jostein, 11)52
O dia do Curinga / Jostein Gaarder / tradução João Azenha jr. -
São Paulo :
Companhia das Letras, 1996
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16
pf17
pf18
pf19
pf1a
pf1b
pf1c
pf1d
pf1e
pf1f
pf20
pf21
pf22
pf23
pf24
pf25
pf26
pf27
pf28
pf29
pf2a
pf2b
pf2c
pf2d
pf2e
pf2f
pf30
pf31
pf32
pf33
pf34
pf35
pf36
pf37
pf38
pf39
pf3a
pf3b
pf3c
pf3d
pf3e
pf3f
pf40
pf41
pf42
pf43
pf44
pf45
pf46
pf47
pf48
pf49
pf4a
pf4b
pf4c
pf4d
pf4e
pf4f
pf50
pf51
pf52
pf53
pf54
pf55
pf56
pf57
pf58
pf59
pf5a
pf5b
pf5c
pf5d
pf5e
pf5f
pf60
pf61
pf62
pf63
pf64

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Oddc coringa e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Informática, somente na Docsity!

Jostein Gaarder

O Dia Do Curinga

Tradução: JOÃO AZENHA JR. 16ª reimpressão - COMPANHIA DAS LETRAS

Copyright C 1995 by Jostem Gaarder e H. Aschehoug & Co. Título original: Kabaliizysteriet Tradução autorizada pelo autor, a partir da versão alemã de Gabriele Haefs Capa:

Silvia Ribeiro Ilustração da capa: Maria Efigênia Preparação: Marcia Collola Revisão: Eliana Antonioli Tóliché Editorial

Gaarder, Jostein, 11)

O dia do Curinga / Jostein Gaarder / tradução João Azenha jr. -

São Paulo : Companhia das Letras, 1996

Índice

ESPADAS

Ás de espadas ... um soldado alemão passou pedalando pela estrada... 15 Dois de espadas ...Deusestá lá no céu e ri das pessoas que não acreditam nele....................................... 25 Três de espadas ... Um tanto estranho enfeitar o chão da floresta, tão longe do resto do mundo ... .............................. 31 Quatro de espadas ... o que eu tinha nas mãos era um livrinho.. Cinco de espadas ... ouvi o velho andando no sótão ... ...... Seis de espadas ... Uma bebida mil vezes melhor .. Sete de espadas ... Um planeta cheio de mistérios ... .................... Oito de espadas ... conto se eu tivesse sido arrebatado por um turbilhão vindo de uma terra distante ... ............................ 65 Nove de espadas Sempre acreditou ver coisas estranhas, que os olhos dos outros não viam ............................ Dez de espadas ... oito ilhas distantes, inascessíveis para aquele Pequeno barco......................................................... 79 Valete de espadas ... seus olhos castanhos brilhara ................. Dama de espadas ... o ruído das borboletas era como música ... ............. 95 Rei de espadas ... um contato imediato do quarto grau ... ............... 106 PAUS Ás de paus ... os Mesmos símbolos que a gente vê nas cartas de baralho.. Dois de paus ... agitando dois bilhetes de não ... .................... 124 Três de paus ... uma cruz de paus bem pesados ....................... 129 Quatro de paus ... Uma loteria gigante, da qual só se vê os ganhadores 137 Cinco de paus ... teria ficado maisdifícil jogar cartas ... ............... 145 Seis de paus ... como se precisasse ter a certeza de que eu era uma pessoa de carne e osso ... ................................. 150 Sete de paus ... Como era possível que metal e marfim pudessem crescer dentro da minha boca.... Oito de paus ... se nosso cérebro fosse tão simples a ponto de podermos

Rei de ouros ... a gente deveria usar um sino amarrado no pescoço... 301 COPAS Ás de copas ... virei-a, e era As de Copas ... ............... ........ 307 Dois de copas ... ela deve estar numa praia, olhando para o mar ... ....... 317 Três de copas ... uma mulher de roupas extravagantes, com um chapéu de aba larga......................... 322 Quatro de copas ... e também nós não sabemos quem dá as cartas ........ 328 Cinco de copas ... o importante agora era ficar frio e não cantar vitória antes da hora ... ........................................ 334 Seis de copas ... tão Verdadeira quanto o sol e a Lua... ................. 340 Sete de copas ... homem do pãozinho fála no tubo mágico ... ............. 348 Oito de copas ...Um milagre tão fantástico que, diante dele, a gente não sabe se ri ou se chora ... ................................. 353 Nove de copas ... até esse dia o mundo não estará maduro para ouvir a história das cartas da paciência de Frode e da ilha mágica... 360 Dez de copas ... um bobo da corte, que a engrenagem do tempo é incapaz de engolir, perambula pelo mundo ... ..................... 364 Valete de copas ... um homenzinho em atitude suspeita no banco de trás... 367 Dama de copas ... vimos, então, uma senhora de idade saindo da estalagem ... 371 Rei de copas ... as lembranças se afastando imais e mais daquilo que um dia as criou ... ................................ 375

Há seis anos, em frente às ruínas do antigo templo de Posêidon, no cabo Stinio, eu olhava para o mar Egeu. Há cento e cinqüenta anos o padeiro Hans chegava à misteriosa ilha no Atlântico. E há exatos duzentos anos o navio de Frode naufragava na viagem entre o México e a Espanha. Tenho de voltar tantos anos no tempo para entender por que mamãe nos deixou e fugiu para Atenas... Gostaria muito de pensar em outra coisa. Mas sei que preciso tentar escrever tudo enquanto restar em mim um pouco da criança que fui. Sentado à janela da sala em Hisoy, observo as folhas caindo das árvores. Elas planam no ar e pousam na rua formando um acolchoado macio. Uma garotinha brinca lá fora, amassando com os pés as folhas e as castanhas que caem das árvores por entre as cercas dos jardins. Nada parece ter sentido. Quando penso nas cartas da paciência de Frode, tenho a impressão de que o equilíbrio da natureza desapareceu por completo.

ESPADAS

AS DE ESPADAS ... um soldado alemão passou pedalando pela estrada...

Nossa longa viagem para a pátria dos filósofos começou em Arendal, uma antiga cidade portuária no Sul da Noruega. Atravessamos a distância de Kristiansand até HirtshaIs a bordo do Bolero, e não há muito a contar sobre a viagem pela Dinamarca e pela Alemanha. Tirando Legoland e o gigantesco porto de Hamburgo, tudo o que vimos foram rodovias e pequenas propriedades rurais. Somente quando chegamos aos Alpes é que as coisas realmente começaram a acontecer. Tínhamos um trato, meu pai e eu. Eu não ficaria irritado quando tivéssemos de viajar compridos trechos antes de pararmos em algum lugar para dormir, e ele não fumaria no carro. Para agradar a ambos, decidimos que faríamos muitas pausas para ele fumar um cigarro. Essas pausas são o que tenho de mais vivo na

que ela voltaria conosco para a Noruega. Mas precisávamos tentar, dizia meu pai, pois nem ele e nem eu podíamos suportar a idéia de ter de passar o resto de nossas vidas sem ela. Mamãe tinha nos deixado, meu pai e eu, quando eu tinha quatro anos. É por isso que continuo a chamá-la de "mamãe". Quanto a meu pai, aos poucos o fui conhecendo melhor, e um dia não me pareceu mais adequado chamá-lo de "papai". Mamãe quis sair pelo mundo para se encontrar. Meu pai e eu podíamos até entender que a mãe de um garoto de quatro anos se sinta perdida algum dia. E demos a ela todo o nosso apoio nesse projeto de se encontrar. Só que eu nunca consegui entender por que ela teve de ir embora para realizar seu desejo. Não consegui entender por que ela não pôde fazer isso dentro de casa mesmo, em Arendal, ou então por que não se contentou com uma viagem até Kristiansand. Meu conselho para todos os que querem se encontrar é continuarem bem onde estão. Do contrário, é grande o risco de se perderem para sempre. já fazia tanto tempo que mamãe tinha ido embora que eu já nem me lembrava muito bem como ela era. Só sabia que era muito mais bonita do que todas as outras mulheres. Pelo menos era o que dizia o meu pai. Ele também dizia que quanto mais bonita uma mulher, tanto mais difícil era para ela se encontrar. Desde que mamãe desaparecera, eu a procurava por toda a parte. Toda vez que passava pela praça do mercado de Arendal achava que de repente ela ia aparecer bem na minha frente; e quando visitava minha avó em Oslo, meus

17

olhos não se cansavam de procurá-la. Mas nunca a encontrei. Só a revi quando meu pai trouxe para casa aquela revista grega de moda. Lá estava mamãe: na capa da revista e também na matéria de dentro. As fotos mostravam muito bem que ela ainda não tinha se encontrado. Isso porque não era minha mãe que estava retratada ali:

as fotos mostravam claramente que ela tentava parecer outra pessoa. Meu pai e eu tivemos muita pena dela. Minha tia-avó tinha trazido de Creta a revista de moda. Na Grécia, segundo ela disse, a revista com as fotos de mamãe estava exposta em todas as bancas de jornal. Era preciso apenas atirar alguns dracmas sobre o balcão para levá-la para casa. Achei essa idéia um tanto estranha. Aqui na Noruega a gente vinha procurando mamãe por todos esses anos e lá na Grécia ela sorria para todo mundo na capa de uma revista. Diabos... como é que ela foi entrar nessa? - perguntou meu pai, coçando a cabeça. E embora tivesse ficado irritado, recortou todas as fotos e as pregou na parede do quarto. Lindas fotos de alguém que se parecia com mamãe mais do que qualquer outra pessoa, achava ele. E foi então que meu pai decidiu que tínhamos de viajar à Grécia para procurá-la. Precisamos tentar trazê-la de volta para casa, HansThomas - disse ele. - Se não fizermos isso, o meu medo é que ela naufrague nessa aventura de moda. Não entendi muito bem o que ele quis dizer. Já ouvira falar de barcos e navios que tinham naufragado, mas não sabia que as pessoas também podiam naufragar em aventuras. Hoje sei que todo mundo deve ter muito cuidado com elas. Quando paramos num posto de estrada perto de Hamburgo, meu pai começou a falar sobre o pai dele. Eu já

18

conhecia a história toda, mas aqui, com todos aqueles carros a lemães passando por nós em alta velocidade, era outra coisa. É que o pai do meu pai era alemão. Hoje não há nada de excepcional nisso, pois os filhos de alemães são gente como qualquer outra. Mas para mim é fácil falar. Não tive que sentir na própria pele o que é crescer sem pai numa cidadezinha do Sul da Noruega. Acho que o fato de estarmos na Alemanha motivou meu pai a falar sobre os pais

em apuros. E acabou também sendo o culpado pela maior infelicidade dela. Mas isso só alguns anos depois. Quando chega neste ponto da história, meu pai sempre acende um cigarro. É que minha avó também se interessou pelo soldado alemão. O nó da questão está aí. Ela não apenas agradeceu ao meu avô por ter consertado o pneu da bicicleta, como também aceitou voltar junto com ele para Arendal. Uma coisa é certa: minha avó era uma mulher desobediente e tola. O pior de tudo é que ela se dispôs a continuar se encontrando com o suboficial Ludwig Messner. E foi assim que minha avó se apaixonou por um soldado alemão. Infelizmente, nem sempre a gente pode escolher a pessoa por quem se apaixona. Se bem que ela poderia ter tomado a decisão de não se encontrar mais com ele enquanto ainda não estivesse apaixonada. É claro que ela não fez isso. E o resultado foi que depois teve de arcar com as consequências. Meus avós se encontravam às escondidas. Se as pessoas de Arendal tivessem desconfiado que minha avó tinha encontros secretos com um alemão, ela teria sido enxotada da "boa" sociedade local. Naquela época, as pessoas normais só tinham uma alternativa: combater os alemães e não manter nenhum tipo de relação com eles.

20

No verão de 1944, Ludwig Messner foi mandado de volta para a Alemanha, a fim de defender o Terceiro Reich alemão no front oriental. Quando o trem que o levava partiu de Arendal, ele desapareceu para sempre da vida da minha avó. Nunca mais ela ouviu falar dele, nem mesmo quando, muitos anos depois de terminada a guerra, resolveu procurá-lo. Afinal, não tinha certeza absoluta de que ele tombara na luta contra os russos. O passeio de bicicleta até Froland e tudo o que se seguiu a ele poderia ter caído no esquecimento se minha avó não tivesse ficado grávida. Isso deve ter acontecido pouco antes da partida do meu avô para o front oriental, mas ela só

descobriu que estava grávida algumas semanas depois. A partir daí começou a comer o pão que o diabo amassou, como diz o meu pai. E nesse ponto da história ele sempre acende outro cigarro. Meu pai nasceu pouco antes da libertação, em maio de 1945. Logo que os alemães capitularam, minha avó foi presa pelos noruegueses que odiavam as norueguesas que tinham se envolvido com soldados alemães. Infelizmente não eram poucas e as que mais sofreram foram as que tiveram um filho com um alemão. A verdade é que minha avó se envolvera com meu avô porque o amava, e não porque ele era nazista. Aliás, ele também não era o estereótipo do nazista. Antes que eles o pegassem pelo colarinho e o mandassem para a Alemanha, ele e minha avó tinham feito planos de fugir para a Suécia. O que os demoveu dessa idéia foram os boatos de que os guardas de fronteira suecos abatiam a tiros os desertores alemães que tentavam atravessar a fronteira. O povo de Arendal caiu de pau em cima da minha avó. Rasparam-lhe a cabeça, espancaram-na, pisotearam-na, e tudo isso embora ela tivesse acabado de ter um filho. Na certa, Ludwig Messner teria se comportado bem melhor. E digo isso sem o menor peso na consciência.

21

Sem um fio de cabelo na cabeça, minha avó teve de viajar para a casa do tio Trygve e da tia Ingrid em Oslo. Arendal deixara de ser um lugar seguro para ela. Como não tinha cabelos, precisou usar um boné mesmo com as temperaturas aumentando na primavera. Sua mãe continuou morando em Arendal, e cinco anos depois do fim da guerra minha avó e meu pai voltaram para lá. Nem minha avó nem meu pai quiseram perdoar o que tinha acontecido em Froland. Não os julgo por isso, A única coisa que podemos criticar é a medida e a extensão do castigo pelo que aconteceu. Uma questão interessante, por exemplo, é saber por quantas gerações se estende a pena por um delito. É claro que minha avó teve a sua parcela de culpa na gravidez, coisa que, aliás, nunca contestou.

pois justo quando bebia é que começava a falar sobre meus avós e sobre sua vida como filho de alemão. Acho que a bebida só o ajudava a se lembrar melhor das coisas. Depois de ter me contado novamente a história da sua vida numa estrada perto de Hambugo, ele disse:

  • E foi então que sua mãe desapareceu. Quando você foi para o jardimde-infância, ela conseguiu seu primeiro emprego como professora de dança. Mais tarde começou a trabalhar como modelo. Por causa da profissão, ela precisava viajar constantemente para Oslo. Chegou mesmo a ir duas vezes para Estocolmo. E um belo dia não voltou mais para casa. Tudo o que recebemos foi uma carta, em que ela dizia que tinha arranjado um emprego no exterior e não sabia quando ía voltar. Sabe, fala assim quem vai ficar uma ou duas semanas fora. E já se passaram mais de oito anos desde que ela se foi... Tudo isso eu também já tinha ouvido muitas vezes, só que dessa vez meu pai acrescentou um dado novo:

23

  • Na minha família sempre faltou alguém, HansThomas. Sempre houve alguém que se perdeu. Acho que deve ser uma espécie de maldição. Uma maldição de família. Quando ele disse "maldição", senti pela primeira vez um friozinho na espinha. E continuei pensando no assunto quando voltamos para o carro. Cheguei à conclusão de que meu pai estava certo. Juntando tudo, faltavam a ele e a mim um pai e um avô, uma esposa e uma mãe. E acho que meu pai ainda estava pensando numa outra coisa quando falou em maldição. E que o pai da minha avó tinha morrido quando ela era pequena, atingido por uma tora enquanto trabalhava no corte de árvores. Portanto, minha avó também tinha crescido sem um pai de verdade. Talvez por isso ela tivesse tido um filho com um soldado alemão, que foi mandado para morrer no front. E talvez por isso esse seu

filho tivesse se casado com uma mulher que decidiu ir a Atenas para se encontrar.

24

DOIS DE ESPADAS ... Deus esta lá no céu e ri das pessoas que não acreditam nele...

Na fronteira com a Suíça, paramos num posto muito esquisito, que tinha apenas uma bomba de gasolina. De dentro de uma casinha verde saiu um homem tão baixinho que na certa devia ser um anão ou coisa parecida. Meu pai abriu um enorme mapa viário e perguntou ao homem sobre o melhor caminho para se atravessar os Alpes até Veneza. com uma vozinha fraca e de timbre agudo, o anão explicou o caminho ao meu pai e indicou uma estrada no mapa. Ele só sabia falar alemão, mas meu pai traduziu para mim o que ele tinha dito: ele nos aconselhou a pernoitar num pequeno povoado chamado Dorf. Enquanto falava, ele não tirava os olhos de mim. Era como se em toda a sua vida nunca tivesse visto uma criança. Acho que gostou de mim porque tínhamos exatamente a mesma altura. Quando quisemos prosseguir nossa viagem, ele me deu uma pequena lupa dentro de um estojinho verde.

  • Leve-a - disse ele, com sua vozinha característica. (Meu pai traduziu para mim.) - Eu mesmo poli esta lente há muitos anos. Ela foi feita de um velho pedaço de vidro que encontrei no estômago de um cervo ferido por um caçador. Em Dorf você vai achar utilidade para ela, ah, se

25

vai... isso eu te garanto, meu jovem. Pois uma coisa é certa: logo que eu te vi, tive certeza de que você vai precisar dessa pequena lupa em sua viagem. Eu me perguntei se o povoado chamado Dorf seria tão pequeno que a gente só conseguiria encontrá-lo com uma lupa. Antes de entrar novamente no carro,

acima. Era uma região deserta; lá em cima, perto dos picos, só havia algumas poucas casas de madeira espalhadas entre as árvores. Logo escureceu, e já estava quase pegando no sono quando despertei ao ouvir meu pai dizer:

  • Pausa para um cigarrinho. Descemos do carro e respiramos o ar puro dos Alpes. Era noite. Lá no alto, o céu estrelado parecia um cobertor elétrico com milhares de pequenas lâmpadas, cada uma com um milésimo de watt. Meu pai foi fazer xixi no acostamento. Quando voltou, acendeu um cigarro, apontou para o céu e disse:
  • Somos uns caras danados mesmo, meu filho. Veja você... não passamos de figurinhas de Lego tentando ir de Arendal até Atenas num pequeno Fiat! Que coisa, hein? E dentro de um grãozinho de ervilha! Sim, porque lá fora, quer dizer, fora dessa vagem em que vivemos no nosso grão de ervilha, Hans-Thomas, existem muitos bilhões de galáxias. Cada uma delas possui algumas centenas de bilhões de estrelas. E só Deus sabe quantos planetas existem!
  • Bateu a cinza do cigarro e continuou: - Não acredito que estejamos sozinhos, meu filho. Não acredito mesmo. O universo está fervilhante de vida. Só que nunca saberemos se estamos ou não sozinhos. As galáxias são como ilhas solitárias, sem qualquer ligação entre si.

27

É verdade que se podia criticar muita coisa no meu pai, mas nunca achei chato conversar com ele. Ele é o tipo de pessoa que nunca iria se contentar com uma vida de mecânico. Se dependesse de mim, ele teria direito a um salário do governo como filósofo. Certa vez ele mesmo disse algo nesse sentido: "Temos ministérios para tudo, mas não para a filosofia. E até os países grandes acham que podem dar conta de suas tarefas sem ela". com o peso daquela herança que eu tinha sobre os ombros, tentava participar das conversas filosóficas que meu pai sempre começava quando não estava falando

de mamãe. Naquele momento, eu disse:

  • o fato de o universo ser tão vasto não significa necessariamente que a nossa Terra seja um grão de ervilha. Meu pai sacudiu os ombros e acendeu outro cigarro. No fundo não estava particulamente interessado na opinião dos outros quando falava sobre a vida e sobre os astros. Nesse ponto era um homem seguro demais quanto à sua própria opinião. Em vez de comentar minha afirmação, disse:
  • com mil diabos, Hans-Thomas, de onde vêm as pessoas como nós? Você já pensou a respeito disso? É claro que já tinha pensado muitas vezes; mas como sabia que minha resposta não ia adiantar muita coisa, deixei que ele continuasse falando. Nós nos conhecíamos fazia tanto tempo, meu pai e eu, que eu sabia que aquilo era o melhor.
  • Você sabe o que a sua avó me disse um dia? Ela disse ter lido na Bíblia que Deus está lá no céu e ri das pessoas que não acreditam nele.
  • E por quê? - perguntei. Perguntar era sempre mais fácil do que responder.
  • Muito bem... - começou meu pai. - Se há um Deus, que nos criou, então de uma certa forma somos "artificiais" aos seus olhos. Falamos besteiras, discutimos e brigamos entre nós. Depois nos separamos e morremos, compreende? 28

Somos superinteligentes: sabemos construir bombas atômicas e foguetes para ir à Lua. Mas nenhum de nós se pergunta de onde veio. A gente simplesmente se contenta em estar por aqui, dividindo com os outros este espaço.

  • E é nessa hora que Deus ri de nós?
  • Exatamente. Se nós fôssemos capazes de criar um ser artificial, Hans-Thomas, nós também iríamos rachar o bico de rir se esse ser artificial saísse por aí falando um monte de bobagens sobre os índices da bolsa de valores ou sobre corridas de cavalos, por exemplo, sem se perguntar a coisa mais simples e mais importante de todas:

um simples mecânico. Isso com toda a certeza. Deveria estar conversando com os anjos do céu sobre os mistérios da vida. Os anjos são mais inteligentes do que os homens. Isso também aprendi com o meu pai. Eles não são tão inteligentes quanto Deus, mas entendem tudo o que nós, humanos, somos capazes de entender, só que sem terem de ficar pensando sobre as coisas.

  • Por que será que ele nos mandou para Dorf? - continuou meu pai. - Você vai ver que no fim ele acabou nos indicando um povoado de anões. Aquela foi a última coisa que ele disse antes de eu adormecer. Sonhei com um povoado cheio de anões, todos muito simpáticos. Eles conversavam animadamente sobre todos os assuntos, mas ninguém era capaz de dizer nem de onde tinha vindo e nem para quê. Acho que ainda me lembro de que meu pai me tirou do carro e me carregou no colo para a cama. Havia no ar um aroma de mel. E uma voz de mulher dizia: "Sim, sim. Naturalmente, sir". 30

TRÊS DE ESPADAS um tanto estranho enfeitar o chão da floresta, tão longe do resto do mundo...

Quando acordei na manhã seguinte, vi que realmente tínhamos chegado a Dorf. Meu pai estava ao meu lado na cama e dormia. Já passava das oito, mas percebi que ele precisava dormir um pouco mais. Fosse a que horas fosse, ele nunca dispensava um copinho antes de dormir. Aliás, só ele mesmo falava em "copinho". Eu sabia que esse copinho de fato podia ser bem grande. E não apenas um, mas vários. Pela janela, avistei um grande lago. Vesti as roupas depressa e desci para o andar térreo. Lá me encontrei com uma senhora gorda e simpática, que tentou conversar comigo, embora não falasse uma única palavra de norueguês.

  • "HansThomas", repetiu várias vezes. Ficou claro, portanto, que meu pai tinha me apresentado a ela enquanto eu dormia e depois tinha me carregado no colo para o quarto.

Fui até o gramado que se estendia ao redor do lago e resolvi experimentar um balanço que havia ali. Ele era tão grande, que eu podia ir mais alto do que os telhados das casas. Lá de cima eu olhava aquele povoado incrustado nos Alpes. E quanto mais alto eu balançava, tanto mais via da paisagem local. Estava ansioso para observar a expressão de meu pai quando ele visse Dorf à luz do dia. Na certa ia ficar muito

31

irritado. É que Dorf parecia uma cidade de bonecas, dessas que a gente encontra nos livros infantis ilustrados. Entre montanhas elevadas, cobertas de neve, havia duas ou três ruelas com algumas poucas lojas. Quando o balanço ia bem alto, eu tinha a impressão de estar vendo uma daquelas cidades de Legoland. A pensão em que estávamos hospedados era uma casa branca, de três andares, com marquises cor-de-rosa e minúsculas janelas de vidraças coloridas. Quando eu já estava ficando cansado de balançar, meu pai saiu da pensão e me chamou para o café da manhã. Entramos numa sala de refeições que talvez fosse a menor do mundo. Dentro dela só havia espaço para quatro mesas; e como se isso não bastasse, meu pai e eu éramos os únicos hóspedes. Ao lado da sala de refeições havia um grande restaurante, mas estava fechado. Era óbvio que meu pai tinha a consciência pesada por ter dormido mais do que eu. Resolvi me aproveitar disso e pedi um refresco, em vez de experimentar o leite dos Alpes. Ele concordou imediatamente; em compensação, pediu “um quarto" para ele. Aquele pedido soou misterioso aos meus ouvidos; e pelo que colocaram no seu copo, pude suspeitar que se tratava de vinho tinto. Entendi, então, que só prosseguiríamos viagem na manhã seguinte. Meu pai me disse que estávamos hospedados numa estalagem; mas tirando as janelas de vidro colorido, aquele lugar era como qualquer outra pensão que eu conhecia na Noruega. Em alemão, o nome da estalagem era Zum Schõnen Waldemar, que quer dizer "Ao Belo Waldemar". Isso porque o lago que ficava ali perto se chamava Waldemar.