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uma análise mais densa da condição humana. ... Aponte um aspecto formal de Oficina irritada que ... 2) O poema em análise é um soneto, forma poemática.
Tipologia: Notas de estudo
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Não perca as partes importantes!
A paixão medida (1980) Nova reunião (1983) Corpo (1984) Amar se aprende amando (1985) Amor Natural (1988) Farewell (1996)
Prosa Confissões de Minas (1944) Contos de aprendiz (1951) Passeios na ilha (1952) Fala, amendoeira (1957) A bolsa & a vida (1962) Cadeira de balanço (1966) Caminhos de João Brandão (1970) O poder ultrajovem (1972) De notícias & não notícias faz-se a crônica (1974) Os dias lindos (1977) Contos plausíveis (1981) Boca de luar (1984) O observador no escritório (1986) Tempo, vida, poesia (1986) O avesso das coisas (1987) Moça deitada na grama (1987)
Literatura infantil O elefante (1987) História de dois amores (1985)
Antologias organizadas pelo autor 50 poemas escolhidos pelo autor (1956) Antologia poética (1962) Uma pedra no meio do caminho – Biografia de um poema (1967) Seleta em prosa e verso (1967) Reunião – 10 livros de poesia (1969) 70 historinhas (1978) Obra completa (1978) A lição do amigo (Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário – 1982)
Nova reunião – 10 livros de poesia (1983) Amor, sinal estranho (1985)
Charges O pipoqueiro da esquina (em colaboração com Ziraldo –1981)
(^1) SANT’ANNA, Affonso Romano de. Drummond: o gauche no tempo. 4.ª ed., Rio de Janeiro: Ed. Record, 1992. (^2) ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, p. 5.
3. Contexto Literário
O Modernismo brasileiro apresenta um caráter multifacetado. Inicialmente, no que se convencionou chamar de Primeiro Tempo Modernista (1922-30), marcou-se pela conjugação equilibrada entre a absorção das técnicas das vanguardas europeias e a investigação crítica da identidade nacional. É o momento da adoção do português coloquial do Brasil, da abordagem do cotidiano, da valorização do poema-piada e da paródia, o que culmina numa postura iconoclasta, irreverente diante da literatura academicista respeitadora dos padrões artísticos oriundos do já antiquado século XIX. A outra faceta desse movimento, chamada de Segundo Tempo Modernista (1930-45), apresentou tanto uma poesia espiritualista quanto uma prosa regionalista. Aliás, este último setor foi o que mais se destacou, apresentando principalmente o romance nordestino de Jorge Amado e Graciliano Ramos, exemplares da guinada à esquerda dada por nossas letras. Por fim, resta mencionar a última faceta, chamada de Terceiro Tempo Modernista (1945), que se marcou pela dispersão de tendências. Prova dessa característica é o fato de seus três maiores representantes, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector, trilharem seus próprios caminhos, não seguindo um clã literário nem sequer produzindo um. A breve recapitulação desses três períodos é muito válida, pois permite vislumbrar a maestria de Drummond, poeta que conseguiu passear por essas três fases, em um amadurecimento que o tornou um dos maiores nomes de nossa arte.
4. Drummond: poeta de múltiplas faces
Pode-se dizer que no decorrer do tempo manifes- taram-se mais de um Drummond. Em Alguma poesia , aparece o Drummond que assume os costumes estéticos dos primeiros anos modernistas. Encontram-se nessa obra poemas que seguem os ideais valorizados pelos ícones da Semana de Arte Moderna como Mário de Andrade e Oswald de Andrade. No entanto, o poeta mineiro, dono de uma dicção própria, já apresenta em embrião características que se manifestarão nas obras seguintes. Além disso, o seu eu poemático consagrou-se por assumir uma postura um tanto narcisista, colocando-se acima do seu meio. É o que o crítico Affonso Romano de Sant’anna denominou de “eu > mundo”: “Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é o meu coração”^2.
Convidado por seu amigo Gustavo Capanema para ser chefe de gabinete no Ministério da Educação e Saúde, muda-se para o Rio de Janeiro. Encontrando-se em uma metrópole, forçosamente se enxerga como mais um entre outros. Abandona, pois, sua postura ensimesmada, passan- do a perceber o meio que o cerca. É a época de Sentimento do mundo (1940), em que se abre para o que o cerca. Impossível então não captar a crise da opressão da Era Vargas no Brasil e da ascensão do nazifascismo na Europa. É o momento, ainda de acordo com o referido estudioso, do eu < mundo (“Não, meu coração não é maior do que o mundo. / É muito menor. / Nele não cabem nem as minhas dores” 3 ), que atingirá seu ponto máximo no campo político-social em A rosa do povo (1945). Trata-se, portanto, de uma fase de poesia preocupada com a crítica social associada a uma visão pessimista sobre o mundo. É também o instante em que flerta com o socialismo. Na década de 1950, todo o contexto que havia gerado a conjuntura crítica poetizada na fase anterior mudara. A ditadura Vargas não está mais em vigor. Os regimes nazifascistas foram derrotados. Entretanto, Drummond não se sente em paz. O capitalismo continuava no seu feitio opressor. O socialismo mostrara-se decepcionante, conforme o próprio poeta confessara:
(...) desejo ver extirpada a iniquidade, e sou dos que todos os dias se sentem um pouco envergonhados com os relativos privilégios de que desfrutam no meio de tanta gente que vive abaixo do nível canino. Não posso acreditar, contudo, que, transformada a ordem social e econômica, a vida assuma aspectos idílicos de fácil intercompreensão, e o indivíduo sinta desvanecida a sua complexidade.^4 Abre-se caminho para uma nova postura poemática. Drummond deixa de ser o poeta público e político de Sentimento do mundo e A rosa do povo e se volta para questões metafísicas e existenciais, assumindo uma postura resignada. É o instante também em que adota formas poéticas tradicionais como o soneto. O maior exemplo dessa nova faceta é Claro enigma (1951). A partir de então o poeta encontra um pacificação de suas crises existenciais. Nos dizeres do já referido crítico, é a fase do eu = mundo. Passa a trabalhar, por exemplo, com poemas em que a tessitura da construção poética, assim como o experimentalismo linguístico são colocados em foco. Lição de coisas é o exemplo máximo dessa nova personalidade poemática.
(^3) ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 87.
(^4) ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra completa. 2.a (^) ed., Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1967, p. 644.
5. As nove áreas temáticas
Em 1962, Drummond lançou Antologia poética, em que, como o nome indica, selecionou aqueles que considerava os seus melhores poemas. Ao dividir seu livro em nove áreas temáticas, contribuiu para apresentar orientações para a interpretação de sua produção literária. A partição criada foi a seguinte:
1. o indivíduo: “um eu todo retorcido” – o enunciador mos tra-se como um eu em crise, complicado, defei- tuoso; 2. a terra natal: “uma província: esta” – Minas, lugar de origem do poeta, deixa marcas profundas e duras, provando que, mesmo que o indivíduo abandone a terra natal, ela não o abandona, acabando por constituir seu caráter; 3. a família: “a família que me dei” –fugindo do cha- vão que torna os poemas sobre família sentimentalis- tas, Drummond aborda o tema de maneira crítica, sem alegria, mostrando como a realidade da família atravessa o tempo e está presente no eu poemático. 4. amigos: “cantar de amigos” – homenagens a figu- ras por quem o poeta nutre admiração, sejam elas próximas ou distantes, muitas vezes em poemas que apresentam forte conteúdo crítico social ou existencial. 5. o choque social: “na praça de convites” – o espaço social é o lugar em que o indivíduo chama a atenção do outro, conseguindo sentir os dramas coletivos. 6. o conhecimento amoroso: “amar-amaro” – sem sentimentalismo ou romantismo, Drummond enfoca a amarga experiência amorosa, além de mostrar que as relações afetivas são forma de conhecimento do outro. 7. a própria poesia: “poesia contemplada”– exercícios de metalinguagem em que o poeta discorre sobre o valor e a função da poesia. 8. exercícios lúdicos: “uma, duas argolinhas” – jogos com palavras que, apesar da aparência de brincadeira infantil, revelam a essência do trabalho poético. 9. uma visão, ou tentativa de, da existência: “tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo” - questionamento sobre o que significa estar no mundo e sobre o que é o mundo.
É valido lembrar que essa classificação não é estanque, ou seja, radical, pois um poema pode naturalmente pertencer a mais de uma área temática.
a noite”. E por isso que confessa não se sentir seduzido a “tatear sequer uma lâmpada”. Daí também a sequência de expressões ligadas a negatividade: “braços cruzados”, “vazio”, “vácuo”, “hesitando”, “destroçada”, “extinguir-se”, “pobre”, “falsa”, “demente”, “sem alma”. O poeta avisa que se entregou a um estado próximo da inércia, abandonando seu espírito combativo e esperançoso de Sentimento do mundo e A rosa do povo , curiosamente livros em que a noite era mostrada como elemento temporário que seria sucedido pela manhã. Curiosamente também, não é à toa que o poeta faz aqui uma referência à rosa: “Esta rosa édefinitiva, ainda que pobre”. Trata-se de um eco não só da obra A rosa do povo , mas também de um dos poemas mais famosos desse livro, “A flor e a náusea”. Esse símbolo agora, reincorporado, ganha outra significação, abandonando o valor de expectativa positiva e assumindo o de desencanto. A segunda parte de Claro enigma ganhou o nome de “Notícias amorosas”. Nela, Drummond desenvolve a sua abordagem típica a respeito do amor, o que ele rotulou como “amar-amaro”, entendendo, portanto, o amor como um sentimento marcado por experiências amargas. É o que se vê em “Amar”:
Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso, sozinho, em rotação universal, senão rodar também, e amar? amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto, o que é entrega ou adoração expectante, e amar o inóspito, o áspero, um vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa, amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
A interrogação retórica que abre o poema (“Que pode uma criatura senão (...)?”) equivale a uma declaração: “A única coisa que uma criatura pode é (...)”. Esse procedimento linguístico revela o tom assumido pelo poema e que perpassa a obra: o de aceitação. Reforça essa consciência abatida o uso de verbos no infinitivo (“amar”, “malamar”, “desamar”, “rodar”, “esquecer”), que mostram que as amargas experiências amorosas fazem parte de um ciclo contínuo do qual não há escapatória. Conscientização bastante coerente com a frase “Este o nosso destino” – ou seja, não há outra coisa a fazer. Por isso que o vocabulário predominante no poema indica negatividade: “inóspito”, “áspero”, “vaso sem flor”, “peito inerte”, “ave de rapina”. A terceira parte do livro ganhou a denominação “O menino e os homens”. Nela, Drummond (o menino) faz homenagem a outros poetas (os homens). Valioso como exemplo é “O chamado”:
Na rua escura o velho poeta (lume de minha mocidade) já não criava, simples criatura exposta aos ventos da cidade.
Ao vê-lo curvo e desgarrado na caótica noite urbana, o que senti, não alegria, era, talvez, carência humana.
E pergunto ao poeta, pergunto-lhe (numa esperança que não digo) para onde vai — a que angra serena, a que Pasárgada, a que abrigo?
A palavra oscila no espaço um momento. Eis que, sibilino, entre as aparências sem rumo, responde o poeta: Ao meu destino.
E foi-se para onde a intuição, o amor, o risco desejado o chamavam, sem que ninguém pressentisse, em torno, o Chamado.
A referência a Pasárgada (“para onde vai — / (...) a que Pasárgada (...) ?”) permite entender que “O Chamado” é uma homenagem a Manuel Bandeira, autor de “Vou me embora pra Pasárgarda”. É o mais velho dos modernistas e considerado por eles o grande e afetivo mestre. Drummond já havia reconhecido em outro poema (“O de no cinquentenário do poeta brasileiro”, de Sentimento do mundo ) uma oposição entre o seu jeito negativo de ser mais um dos que se sentem “pequenos à espera dos
maiores acontecimentos” 8 e a postura positiva do seu amigo, capaz de se manter “sem uma queixa no rosto entretanto experiente” 9. É essa qualidade que torna Bandeira, de acordo com o mesmo poema de Sentimento do mund o, o “poeta acima da guerra e do ódio entre os homens”^10. Essa mesma superioridade pode ser vista em “O Chamado”. Basta notar que Bandeira é chamado de “lume” e qualificado como “desgarrado / na caótica noite urbana”. Em outras palavras: capaz de se manter à parte dessa escuridão que se abateu não só sobre Claro enigma , mas sobre o mundo que esse livro aborda. A grandiosidade está em atender ao seu destino, em ir para a sua Pasárgada. Mais ainda: em conseguir captar esse chamado, habilidade que os demais, inclusive o próprio Drummond, não possuem. E tal invocação a que Bandeira responde está
ligada à aceitação calma do destino, que pode ser também entendida como a aceitação serena da morte. Se se lembrar que muitas vezes o que se elogia em alguém é o que no fundo se deseja para si, torna-se plausível entender que Drummond acaba implicitamente expressando o desejo de possuir a mesma disposição de Bandeira em aceitar o destino, mesmo sendo a morte. Já na quarta parte, “Selo de Minas”, Drummond desenvolve um tema que já se lhe tornou clássico: a terra natal. No entanto, ele nunca abordou esse assunto com paixão bairrista. Em Claro enigma o abordará de forma coerente com o conjunto da obra: de forma crítica e desencantada. É o que se pode perceber nos trechos a seguir de “Os bens e o sangue”:
Às duas horas da tarde deste nove de agosto de 1847 nesta fazenda do Tanque e em dez outras casas de rei, q não de valete, em Itabira Ferros Guanhães Cocais Joanésia Capão diante do estrume em q se movem nossos escravos, e da viração perfumada dos cafezais q trança na palma dos coqueiros fiéis servidores de nossa paisagem e de nossos fins primeiros, deliberamos vender, como de fato vendemos, cedendo posse jus e domínio e abrangendo desde os engenhos de secar areia até o ouro mais fino, nossas lavras mto nossas por herança de nossos pais e sogros bem-amados q dormem a paz de Deus entre santas e santos martirizados. Por isso neste papel azul Bath escrevemos com a nossa melhor letra estes nomes q em qualquer tempo desafiarão tramoia trapaça e treta:
ESMERIL PISSARRÃO CANDONGA CONCEIÇÃO
E tudo damos por vendido ao compadre e nosso amigo o snr Raimundo Procópio e a d. Maria Narcisa sua mulher, e o q não for vendido, por alborque de nossa mão passará, e trocaremos lavras por matas, lavras por títulos, lavras por mulas, lavras por mulatas e arriatas, q trocar é nosso fraco e lucrar é nosso forte. Mas fique esclarecido: somos levados menos por gosto do sempre negócio que no sentido de nossa remota descendência ainda mal debuxada no longe dos serros. De nossa mente lavamos o ouro como de nossa alma um dia os erros se lavarão na pia da penitência. E filhos netos bisnetos tataranetos despojados dos bens mais sólidos e rutilantes portanto os mais completos irão tomando a pouco e pouco desapego de toda fortuna e concentrando seu fervor numa riqueza só, abstrata e una.
(^8) ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, p. 79.
(^9) Ibid., p. 78.
(^10) Idem.
uma lonjura de léguas, e na lonjura uma rês perdida no azul azul, entrava-nos alma adentro e via essa lama podre e com pesar nos fitava e com ira amaldiçoava e com doçura perdoava (perdoar é rito de pais, quando não seja de amantes). E, pois, tudo nos perdoando, por dentro te regalavas de ter filhos assim... Puxa, grandessíssimos safados, me saíram bem melhor que as encomendas. De resto, filho de peixe... Calavas, com agudo sobrecenho interrogavas em ti uma lembrança saudosa e não de todo remota e rindo por dentro e vendo que lançaras uma ponte dos passos loucos do avô à incontinência dos netos, sabendo que toda carne aspira à degradação, mas numa via de fogo e sob um arco sexual, tossias. Hem, nem, meninos, não sejam bobos. Meninos? Uns marmanjos cinquentões , calvos, vívidos, usados, mas resguardando no peito essa alvura de garoto, essa fuga para o mato, essa gula defendida e o desejo muito simples de pedir à mãe que cosa, mais do que nossa camisa, nossa alma frouxa, rasgada...
Em redondilhos maiores brancos, o poeta cria uma reunião familiar imaginária com a presença do austero pai. Há o aproveitamento de uma forma poemática tradicional, de andamento mais popular, para recriação de uma cena doméstica. Compatível com essa característica é o emprego de marcas de oralidade ("Puxa"), além de clichês (“grandessíssimos safados, / me saíram bem melhor / que as encomendas. De resto, / filho de peixe...”), que acabam revitalizados nas mãos do poeta. Não é à toa que com maestria o eu poemático brinca com o campo de significa- dos, como na visão capaz de enxergar na lonjura ser capaz de detectar o interior das pessoas ou como o coser roupa
também se referir às almas rasgadas. Todos esses processos linguísticos servem para que finalmente, depois de anos de convivência difícil, Drummond se reconci- liasse, ainda que em memória, com a figura de seu pai. A última parte de Claro enigma é “A máquina do mundo”, em que o poeta se arremessa com fôlego surpreendente para o mais alto das questões metafísicas. Esse bloco é constituído apenas de dois poemas, um deles considerado por alguns estudiosos como o melhor da literatura brasileira – “A máquina do mundo”:
E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção contínua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuições restavam a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los, se em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte, a se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma ou sopro ou eco ou simples percussão atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável, em colóquio se estava dirigindo: "O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou se rendendo, e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza sobrante a toda pérola, essa ciência sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular, que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste... vê, contempla, abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios, o que nas oficinas se elabora, o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento, os recursos da terra dominados, e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre ou se prolonga até nos animais e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios, dá volta ao mundo e torna a se engolfar, na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas, suas verdades altas mais que todos monumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solene sentimento de morte, que floresce no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance e me chamou para seu reino augusto, afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas presto e fremente não se produzissem a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando, e como se outro ser, não mais aquele habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade que, já de si volúvel, se cerrava semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas; como se um dom tardio já não fora apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas.
O tom grandioso do poema é garantido pelo emprego do decassílabo, métrica consagrada às abordagens nobres e filosóficas. O emprego de tercetos é outro aspecto solene que faz lembrar A divina comédia , do século XIV. A diferença é que a obra de Dante Alighieri possui esquema de rimas (terza rima), enquanto o poema de Drummond possui versos brancos. Outro ponto que indica contato com a tradição literária é o fato de "máquina do mundo" ser o nome do evento que encerra o episódio de A Ilha dos Amores, de Os lusíadas (1572), em que Tétis apresenta um conjunto de esferas mecânicas que explicam a ordem do universo. Já em Drummond, ela perde o aspecto de engenho, passando a alegorizar os mistérios superiores de tudo e de todos e que se desabrocham no meio do caminho do fatigado poeta. O irônico é que essa abertura proporcionaria a revelação do conhecimento pelo qual o poeta há anos procurava, mas que agora, desencantado, já não lhe interessa mais. É por isso que despreza a oferta, continuando sua pálida caminhada. Há os que enxergam neste ato uma defesa da tese da independência do pensamento humano, que deve aceitar apenas o que é con- quistado por esforço próprio e não o que é simplesmente dado. Outros entendem que se manifesta um ideal antropocêntrico de reconhecimento somente da sabedoria limitada ao que a mente humana é capaz de captar.
Texto para as questões de 6 a 8.
ANIVERSÁRIO
Os cinco anos de tua morte esculpiram já uma criança. Moldada em éter, de tal sorte, ela é fulva e no dia avança.
Este menino malasártico, Macunaíma de novo porte, escreve cartas no ar fantástico para compensar tua morte.
(...)
Se de nosso nada possuímos salvo o apaixonado transporte
- vida é paixão –, contigo rimos, expectantes, em frente à Porta.
Estão corretas as afirmações a) I e III. b) II e IV. c) I e II. d) III e IV. e) I e IV.
Texto para as questões 9 e 10.
TARDE DE MAIO
(...) Eu nada te peço a ti, tarde de maio, senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível, sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém que, precisamente, volve o rosto, e passa… Outono é a estação em que ocorrem tais crises, e em maio, tantas vezes, morremos.
1) “Oficina irritada” é um soneto de versos decas- sílabos com esquema de rimas em ABAB ABAB ABA AAB. Trata-se de uma constituição poemá- tica que remonta ao Classicismo, o que impõe ao texto um rigor formal que se afasta da liberdade poética pregada pelo Modernismo.
2) O poema em análise é um soneto, forma poemática associada a temas e imagens elevados. No entanto, "Oficina irritada" apresenta elementos estranhos, que desagradam o senso comum, como a ideia de se produzir uma poesia que não produza prazer, mas que seja antipática. Reforça essa intenção a utilização de expressões de gosto duvidoso, ainda mais para um soneto, como “tendão de vênus sob o pedicuro”, “tiro no muro”, “cão mijando no caos”.
3) “Oficina” indica trabalho paciente, ligado metafo- ricamente ao artesanato poético, e "irritada" indica a revolta em relação a esse trabalho.
4) O sintagma “claro enigma”, presente no último verso, também assume valor paradoxal, pois o que é claro não pode ser enigmático.
5) “Claro enigma” é expressão que se refere a Arcturo, uma das estrelas mais brilhantes do céu noturno. No contexto do poema, é a luz que se dá em meio à escuridão. No contexto do livro, é a revelação, é o encontro de significado, de sentido em meio aos momentos sombrios da vida. Resposta: C
6) A maiúscula utilizada na palavra “porta” consiste no processo poético chamado maiúscula alegori- zante, expediente que serve para engrandecer o sentido do termo a que se refere. Dessa forma, o poeta deixa a entender que não se trata de uma porta comum, mas de uma de valor universal.
7) O poema em análise é uma referência ao aniversário da morte de Mário de Andrade, autor de Macunaíma****. Dentro desse contexto fúnebre, “Porta” tem o sentido de passagem para a morte.
8) Em “Aniversário”, a intertextualidade, prática comum em Claro enigma, está na referência a Macunaíma , obra de Mário de Andrade. Além disso, o poema é dedicado ao poeta paulistano e integra a parte “O menino e os homens”, em que Drummond homenageia literatos que admira. Erro das demais afirmações: I. Não há elementos no trecho em análise que permitam detectar uma postura irreverente em relação à tradição literária. III. O poema não foi composto em redondilha, mas em versos que variam entre oito e nove sílabas. Resposta: B
9) A tarde de maio, mês do outono no Brasil, funciona como metáfora consagrada da senectude, do envelhecimento.
10) A tarde de maio é metáfora do envelhecimento, fenômeno que orienta a visão desencantada e resig- nada de Claro enigma e que se encontra presente no próprio poema em análise.