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O neoliberalismo está se fragmentando, mas o que surgirá entre seus cacos? A principal teórica política feminista do século XXI, Nancy Fraser, disseca a atual crise do neoliberalismo e argumenta como poderíamos arrancar novos futuros de suas ruínas. O colapso político, ecológico, econômico e social global – simbolizado pela eleição de Trump, Bolsonaro e outros governantes de extrema-direita que dizem ser antiestablishment, embora façam parte dele – destruiu a fé de que o capitalismo neoliberal pode beneficiar a maioria do povo dentro da democracia. Fraser explora como essa fé foi construída no final do século XX, equilibrando dois princípios centrais: reconhecimento (quem merece direitos) e distribuição (quem merece renda). Quando eles começam a se desgastar com as sucessivas crises nas primeiras décadas do século, novas formas de populismo surgem à esquerda, para os 99%, e à direita, para o 1%. Fraser argumenta que esses são sintomas da maior crise de hegemonia do neoliberalismo, um m
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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© Autonomia Literária, para a presente edição. © Nancy Fraser 2019. Publicado originalmente sob o título de The old is dying and the new cannot be born. First published by Verso 2019 Coordenação editorial Cauê Seignemartin Ameni, Hugo Albuquerque & Manuela Beloni Tradução Gabriel Landi Fazzio Revisão Lilian Aquino Capa Rodrigo Corrêa Ebook Rodrigo Corrêa
Esse pequeno livro é composto de duas partes: a primeira delas, um texto de Nancy Fraser originalmente publicado em 2019 na revista American Affairs, sob o título “Do neoliberalismo progressista a Trump – e além”, a segunda, uma entrevista conduzida com Fraser pelo fundador e editor da revista Jacobin, Bhaskar Sunkara. A combinação revela um interessante encontro entre gerações. Fraser tem feito questão de se referir a si mesma em suas intervenções públicas recentes como uma “sixty-eighter” – isso é, da geração de 68, marcada pela experiência de um período histórico específico e peculiar. Sua postura política e produção teórica carregam traços dessa experiência. Nascida em 1947, passou a infância nos subúrbios afluentes da classe média branca de Baltimore, uma cidade legalmente segregada, e politizou-se por meio do movimento pelos direitos civis. Engajou-se ainda adolescente na luta contra a segregação racial e a partir daí se somou às mobilizações contra a guerra do Vietnã, ao movimento estudantil que ocupava os campi universitários, à agitação anti- imperialista e à nova onda do feminismo. Foi pelo contato com as lutas que, nos anos 70, no contexto dos debates da Nova Esquerda, Fraser se aproximou da tradição intelectual marxista, em busca de ferramentas teóricas capazes de alimentar e potencializar o enfrentamento prático contra as estruturas de poder e dominação. Conforme os anos 70 avançavam e a temperatura das ruas diminuía, culminando na vitória do projeto neoliberal no começo dos anos 80, a militante foi aos poucos se convertendo em acadêmica. Dedicando-se ao trabalho teórico, no mais das vezes técnico e especializado, Fraser construiu uma bem sucedida carreira universitária em filosofia, ao conjugar a teoria
nova audiência ampla de jovens que mostravam curiosidade por seu trabalho e por discussões sobre marxismo, feminismo e ecossocialismo, Fraser escreve em 2019, em coautoria com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya, o que chama de sua “primeira peça de agitação em 4 décadas”: o manifesto do Feminismo para os 99%, publicado no Brasil pela editora Boitempo. Em um debate com Bhaskar Sunkara, Fraser comenta que “são tempos emocionantes para se estar viva”. Bhaskar gosta de dizer que é de um tempo menos interessante, mas há poucas coisas desinteressantes na sua trajetória de vida. Filho mais novo de uma família de imigrantes de Trindade e Tobago, de origem étnica indiana, Bhaskar foi o único dos irmãos a nascer nos Estados Unidos – em 1989, poucos meses antes da queda do muro de Berlim. Se politizou durante a adolescência quase ao caso, por curiosidade intelectual, lendo sozinho na biblioteca pública do seu bairro literatura marxista. Em 2003 participou das massivas marchas contra a Guerra do Iraque e alguns anos depois se filiou aos Socialistas Democráticos da América ( ), na época uma pequena organização de uns poucos milhares de membros, cuja idade média passava dos 60 anos. Bhaskar tinha apenas 21 anos e nenhuma ideia de como editar uma revista, quando, de seu dormitório universitário, concebeu e lançou ao mundo a Jacobin, como uma pequena publicação socialista on-line. Era o fatídico, e longínquo, ano de 2010: o Occupy Wall Street ainda não havia acontecido, Bernie Sanders era um senador um tanto folclórico, mas basicamente desconhecido, do pequeno estado de Vermont, e Donald Trump só um apresentador de reality show com uma pigmentação peculiarmente laranja que havia se envolvido no movimento que questionava a certidão de nascimento do presidente Barack Obama. O movimento socialista era, para todos os efeitos, irrelevante nos Estados Unidos, e a maioria dos comentaristas políticos tidos como respeitáveis estavam tranquilos na convicção de que a história havia mesmo acabado. Em 2011 – no mesmo ano que estourava as ocupações de praças denunciando a desigualdade econômica, o sistema financeiro e o 1% – como um gesto desesperado para se destacar no campo das
publicações de esquerda, a Jacobin passava a se tornar uma revista impressa. A obsessão missionária de Sunkara era fazer com que as ideias socialistas se tornassem novamente relevantes para um público de massas. Tal aventura voluntarista tinha tudo para dar errado. Mas o imponderável aconteceu: a Jacobin não só se tornou um sucesso editorial como ajudou a dar forma ao novo discurso do socialismo democrático que hoje mobiliza uma parcela considerável da juventude da classe trabalhadora norte-americana. De uma origem improvisada e precária, a publicação conseguiu se transformar em uma máquina de guerra profissionalizada a serviço da luta de classes dos de baixo, formando militantes e furando a bolha esquerdista para se tornar uma força política real. E, cada vez mais, internacional. Recentemente, a publicação se espalhou pelo mundo, produzindo novos rebentos: a Tribune Magazine ( ), Jacobin Alemanha, Jacobin Itália, e agora Jacobin Brasil. Muito desse sucesso deve-se à dedicação do próprio Sunkara, e de sua capacidade de articular ideias radicais em uma linguagem acessível, precisa e convincente. O que chama a atenção na Jacobin é como ela foi capaz de se conectar com uma nova geração política: uma geração que não tendo testemunhado a Guerra Fria, e muito jovem para ter experimentado a queda do muro de Berlim como um evento político relevante, de repente se viu vivendo no fim do “fim da história”. Uma geração que frente ao colapso espetacular do consenso neoliberal, e ascensão mórbida do populismo reacionário, se vê empurrada a tomar posição política, a se organizar – forçada a não apenas dizer não, mas formular o que afinal de contas quer como alternativa positiva para o futuro. É a geração que enfrentou as políticas de austeridade, que voltou a tomar as ruas, que acampou nas praças, que viu estruturas burocráticas aparentemente sólidas se desmancharem no ar, que em alguns lugares criou novos partidos, e em outros ocupou e tomou para si partidos já existentes.
Há décadas em que nada acontece
A frase “há décadas em que nada acontece, há semanas em que décadas acontecem” é comumente atribuída ao revolucionário e
de ação global do mal chamado “movimento anti-globalização”), e na América Latina países inteiros passaram por intensas convulsões e mobilizações de massa, que resultaram em verdadeiras mudanças de regime, como foi o caso na Venezuela, na Bolívia e no Equador. Mas mesmo na América Latina do “ciclo de governos progressistas”, em muitos países que chegaram a eleger governos de centro- esquerda, a tendência geral era mais de continuidade do que de descontinuidade – como no caso do Brasil, do Chile e do Uruguai. Impulsionado pelo que parecia ser a derrota definitiva do movimento socialista, pelo enfraquecimento crônico do trabalho organizado, e, por fim, pela própria adoção dos antigos partidos social-democratas, de origem operária, de políticas econômicas monetaristas e a substituição de programas universais por políticas públicas focadas, formou-se um poderoso consenso em torno da inevitabilidade de adoção das reformas pró-mercado, que envolviam a flexibilização dos direitos trabalhistas, maior liberdade de circulação para os fluxos de capitais, expansão do comércio global e privatização das indústrias e serviços públicos. Daí em diante, os governos seriam julgados e avaliados pelos mercados, adaptando seu próprio funcionamento à lógica da competição, e aceitando que a tarefa fundamental da política é manter “o mercado” contente. O mantra recorrente, imortalizado pela dama de ferro britânica, Margareth Thatcher, era de que simplesmente “não há alternativa”. A expansão das relações capitalistas, seja extensivamente, por uma outra rodada de acumulação por despossessão, seja colonizando novas esferas da vida, incluindo aquelas que haviam sido antes parcialmente desmercantilizadas pelas conquistas das lutas proletárias, foi acompanhada por uma propaganda triunfalista que anunciava que a empresa privada e a democracia representativa parlamentar eram as formas finais de socialização humana enfim encontradas. Não havia nada melhor disponível, e nunca haverá. Esse é o período histórico dominado por aquilo que o filósofo Mark Fisher irá caracterizar como “realismo capitalista”: é mais fácil agora imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Para Fisher, o realismo capitalista é uma espécie de “constelação ideológica” marcada pelo esgotamento da imaginação política, por um
sentimento dominante de resignação fatalista, e de maneira geral por uma espécie de encurtamento do horizonte temporal e rebaixamento das expectativas políticas. O fim da história significa também o fim da política propriamente dita. Como Tony Blair e o “novo trabalhismo” vão afirmar orgulhosamente, já não há mais política de direita ou de esquerda, apenas políticas que funcionam e políticas que não funcionam. Resta a essa pós-política esvaziada de conteúdo apenas administrar, tecnocraticamente, o novo consenso. O deserto do fim da história é um eterno presente onde as coisas podem até se mover cada vez mais rápido, mas onde nada realmente muda.
Do neo-liberalismo progressista ao momento populista
As vitórias eleitorais da direita neoliberal na década de 1980, aliadas ao aprofundamento da globalização econômica (em particular dos fluxos internacionais de capital financeiro) e o enfraquecimento secular do movimento operário e das organizações sindicais, abriram uma disputa sobre os rumos dos partidos social- democratas, isso é, da esquerda governante, que acabou sendo vencido pelo que se convencionou chamar de “terceira via”, expressão cunhada pelo sociólogo Anthony Giddens, então ideólogo do “novo trabalhismo” de Blair. Os antigos partidos criados pelo movimento operário se apressam em tomar distância de suas origens classistas e abraçam parcelas significativas do programa econômico de seus adversários políticos. Identificados cada vez mais com as classes médias progressistas urbanas, esses partidos aceitam se “modernizar” levando a frente as reformas liberalizantes que os novos tempos supostamente exigem. Nos Estados Unidos, o equivalente do “Novo Trabalhismo” de Blair foram os “Novos Democratas”, do casal Clinton e seus aliados, bem sucedidos em realinhar o Partido Democrata, afastando-o da coalizão montada com o New Deal de Franklin Delano Roosevelt em direção ao que Nancy Fraser chama de “neoliberalismo progressista”. Trata-se do conceito mais inovador que Nancy Fraser introduz no ensaio, e que, a primeira vista, como logo admite a
Fraser chama de uma nova “aliança governante”. O jogo dessa centro-esquerda integrada a nova ordem das coisas passou cada vez mais a apresentar-se como cosmopolita, multicultural, politicamente correta, inovadora, conectada à franja mais dinâmica e avançada da sociedade – em contraste com a antiga classe operária fabril e os trabalhadores manuais das regiões pós-industriais (deixadas para trás na marcha da modernização globalizante), vistos como paroquiais, atrasados e incultos. Sob o domínio do realismo capitalista o próprio eixo esquerda- direita foi reinterpretado: a disputa capital-trabalho passa a ser lida como obsoleta, fora de moda, e a distinção ideológica fundamental passa a girar em torno das disputas por reconhecimento – a política é relida não mais pela ótica do antagonismo de classe, mas pelo antagonismo entre identidades culturais. Essa divergência em termo de “guerra culturais” não impede um acordo comum fundamental quanto à economia política: um programa econômico que pode ser emendado aqui e ali ao sabor das sensibilidades sociais do partido governante da vez, mas que é, em suas linhas gerais, aceito como estabelecido de uma vez por todas. A consequência é que os partidos se aproximam do centro, e as eleições se tornam em boa medida irrelevantes. Afinal, se a história acabou, já não se deve mais esperar muito mesmo da política. O jornalista Thomas Friedman afirmava entusiasmadamente no final da década de 90 que a globalização era uma “camisa de força de ouro”, e duas coisas acontecem quando você a aceita: sua economia cresce, e sua política encolhe. A economia pode não ter crescido muito, mas a política, ou no mínimo o horizonte de expectativas político, de fato encolheu: os partidos perderam filiados, e se tornaram cascas tecnocráticas vazias, atraindo carreiristas e afastando militantes, a abstenção aumentou, e boa parte dos setores mais pobres da classe trabalhadora chegou a conclusão que votar não valia a pena – no fim da história, os partidos e os políticos são todos iguais. E, no entanto, esse pacto abrangente encontra-se agora em contestação, ou ao menos não goza mais da confiança instintiva que podia exibir há pouco tempo. As raízes desse desgaste podem
ser rastreadas até a crise financeira do final dos anos 2000, mas se expressa nas urnas como um realinhamento político em escala internacional apenas a partir de 2015. É a crise de 2007/2008 que marca o início do fim do consenso neoliberal e a abertura para a época de sua contestação, ou que poderíamos chamar, seguindo a filósofa Chantal Mouffe, de um “momento populista”.2 Para Mouffe, estaríamos testemunhando, ao menos em algumas regiões geográficas do globo, uma crise da “formação hegemônica neoliberal”, o que poderia abrir a possibilidade para a construção de uma ordem democrática. A crise financeira global de 2008 trouxe à superfície todas as contradições do modelo neoliberal, e abriu espaço para que a formação hegemônica neoliberal fosse abertamente contestada – por movimentos anti-establishment tanto à esquerda (o Occupy Wall Street e os Indignados espanhóis, por exemplo) quanto à direita (o Tea Party nos Estados Unidos, as manifestações da extrema-direita na Europa continental). Em um livro abertamente militante, e recentemente publicado no Brasil pela editora Autonomia Literária, Mouffe nos convida a intervir na “crise hegemônica”, e propõe o “populismo de esquerda” como uma estratégia discursiva para estabelecer uma fronteira política contrapondo o povo (construído por meio de uma cadeia de equivalência articulando uma pluralidade de demandas contra diferentes formas de opressão) e a oligarquia (definido como o 1% da pirâmide econômica, que abocanharam desproporcionalmente os ganhos da financeirização e da globalização neoliberal). O nosso atual momento populista seria, portanto, uma expressão da crise hegemônica da formação neoliberal. Remetendo à conhecida passagem de Antonio Gramsci, o diagnóstico de Mouffe é o de que crise econômica levou à condensação de uma série de contradições, dando origem a um interregno: o consenso anterior é contestado, mas uma solução a crise ainda não é visivel. O título do livro de Nancy Fraser remete precisamente a essa mesma passagem: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”. Escrita originalmente em algum momento do final da década de 20 e
Ralph Milliband, intelectual marxista associado à Nova Esquerda, escrevendo em outro período de crise de hegemonia, às vésperas da ascensão do populismo autoritário de Margareth Thatcher, observava que embora a luta de classes seja uma característica permanente de toda a sociedade de classes, ela pode assumir uma grande variedade de formas a depender do período histórico e das condições nacionais específicas. A luta de classes deve ser vista no contexto mais amplo da hegemonia. Em períodos normais, de hegemonia assegurada, a luta de classes será uma parte normal da política, administrada pelas vias institucionais estabelecidas, e mediada pelo partidos da ordem será facilmente absorvida como parte da operação cotidiana do arranjo social. Nesse caso, as classes dominantes não precisarão de “salvadores da pátria”. Mas é justamente nos momentos em que a hegemonia não está tão solidamente assegurada – em momentos como diz Gramsci “que massas antes passivas entram em movimento”, que “se destacam das ideologias tradicionais” e “não acreditam mais no que antes acreditavam” – que a ação política e a intervenção acidental de grupos ou indivíduos ganham mais importância. Quando grandes parcelas da população se deslocam de suas fidelidades tradicionais e se convencem que alguma coisa precisa mudar o papel do acaso e da contingência adquirem considerável impacto histórico. Nas palavras de Milliband, há uma relação inversa entre hegemonia e contingência – quanto menos efetiva é a primeira, mais significativa é a segunda. As crises de hegemonia abrem “oportunidades estruturais” nas quais a agência e a contingência exercem impacto significativo no curso dos eventos. Tal conceitualização nos ajuda a entender porque períodos históricos marcados por crises de hegemonia, podendo dar origem ao que Mouffe chama de “momento populista”, são também caracterizados pela agudização das disputas, aumento da imprevisibilidade e instabilidade política, polarizações e incertezas. No interregno a histórica parece se acelerar e ganhar traços mais dramáticos: velhas fidelidades são rompidas, novas alianças feitas, eventos aleatórios podem alterar a dinâmica dos acontecimentos, novos atores aparecem enquanto outros saem de cena
repentinamente, reviravoltas se tornam frequentes, com vitórias certas se transformando rapidamente em derrotas.
Brecha hegemônica e realinhamento político
Compreender a natureza da crise nos oferece um mapa cognitivo de um terreno em mutação. E aqui a metáfora do mapa é relevante: se há um movimento subterrâneo da tectônica social, quem se apegar aos velhos mapas errará sistematicamente o alvo. Os sinais de que as placas tectônicas estão se movendo são claros. Em todo mundo o sistema partidário está sendo refeito, em uma intensidade e extensão que não se via desde a década de 80. Novos partidos, criados há poucos anos, chegam ao poder, e antigos partidos estabelecidos vêem sua votação declinar, ou são radicalmente refeitos por dentro. O realinhamento político adquire variadas expressões: o Podemos, criado em 2014, chega à vice-presidência espanhola em 2020 após 4 eleições gerais em 4 anos; o grego vira pó em 2015, dando origem ao termo “pasokização” para se referir ao colapso do partido social-democrata que aplica políticas de austeridade, dando lugar à ascensão meteórica da Frente da Esquerda Radical ( ), que por sua vez logo entra em declínio no governo; o Partido Trabalhista inglês é realinhado a esquerda, tem seu maior incremento eleitoral desde 1945, para dois anos depois sofrer uma derrota histórica frente a um Partido Conservador também realinhado para abraçar o Brexit; na Itália, em 2018, o Movimento 5 Estrelas se torna o maior partido, e forma governo com a antiga Liga Norte, convertida por Salvini de um partido regional e separatista a populista de direita, enquanto o Partido Democrático perde metade do seu eleitorado em uma década. Os exemplos se multiplicam no mundo, e cada semana parece trazer uma nova reviravolta. Talvez o principal realinhamento seja justamente o caso no qual Nancy Fraser se debruça: os conflitos internos que vêm transformando por dentro os dois grandes partidos dos Estados Unidos. Em 2016, o Partido Republicano foi vítima do que se poderia caracterizar, sem exageros, de uma “aquisição corporativa hostil”: o candidato que era um corpo estranho, literalmente um
de Trump aparecer como um fenômeno político eleitoral, Bannon já argumentava em favor de ideias semelhantes. Lançando mão de um enquadramento que coloca em oposição os de cima e os de baixo, Bannon argumenta que a crise financeira de 2008, da qual, segundo ele, a economia norte-americana ainda não havia se recuperado, desencadeia uma “revolta populista”, da qual o Tea Party seria a mais importante expressão. Mas a revolta populista embrionária nos não seria um evento isolado, e sim parte do que Bannon chama de um “Tea Party global”, um movimento planetário das classes médias insatisfeitas do qual fariam parte o movimento pró-Brexit no Reino Unido, a Frente Nacional na França e mesmo o governo de Narendra Modi na Índia. O que é certo é que a crise econômica de 2008 escancarou as contradições do período neoliberal. Em um primeiro momento, a insatisfação difusa se expressa como protesto social na forma de movimentos de contestação de rua (tanto a esquerda quanto a direita) que, embora muitas vezes efêmeros e de curta duração, começam a preparar o terreno para um momento populista. Eventualmente, a crise econômica se converte em crise política, quando a insatisfação atinge um ponto crítico que força o realinhamento político, e abre espaço para que campanhas insurgentes deem formas a novos atores. É nesse ponto que é possível reconhecer um momento de verdade no diagnóstico de Steve Bannon: quando o establishment político entra em crise de autoridade, abre-se um momento populista. Nessas condições, a grande questão é de fato saber que tipo de populismo será vitorioso: o populismo reacionário, pró-capitalista (de Trump e do próprio Bannon) ou um populismo progressista, como o socialismo democrático defendido por Bernie Sanders. A recomendação de Fraser é que tentar salvar o centro é inútil, e só serviria para jogar mais água no moinho da direita populista. O que deveríamos fazer, ao contrário, é recusar a escolha infernal: nem neoliberalismo (supostamente) progressista, nem populismo reacionário. Fraser vê a campanha de Sanders de 2015/2016, que acontecia simultaneamente ao realinhamento do Partido Republicano impulsionado por Trump, como um processo paralelo à
revolta populista das bases conservadores. O programa de Sanders articulava reformas no sistema penal, a fim de enfrentar o racismo institucional, com acesso universal aos serviços de saúde; justiça reprodutiva para as mulheres com gratuidade universal do ensino superior; avanço nos direitos + com ataque aos privilégios do sistema financeiro. Como herdeiro da retórica do Occupy Wall Street e prometendo guerra de classe contra o 1%, ao mesmo tempo abraçando uma concepção inclusiva de classe trabalhadora, que contemplava não apenas o estereótipo do homem branco empregado nas fábricas e construções, mas buscava conectar justiça econômica com justiça racial, justiça ambiental e justiça de gênero, Sanders foi bem sucedido em avançar um campanha insurgente que ameaçou a direção do Partido Democrata e angariou apoio de massas. Em 2016, a cúpula do Partido Democrata foi capaz de fazer o que a cúpula do Partido Republicano não foi, e bloqueou sua revolta populista interna e as tentativas insurgentes de realinhamento. Mas em 2020 a história pode ser diferente: tendo ganho o voto popular nas primárias de Iowa, contando com um exército de 2 milhões doadores individuais para sua campanha, e uma equipe profissional coordenando uma multidão de voluntários em todos os Estados, Bernie Sanders e sua proposta de “revolução política” pode triunfar dessa vez, para se medir diretamente com Trump nas eleições gerais. Por improvável que essa vitória possa parecer, é justamente a crise de hegemonia que a torna possível. Caso se concretize, o abalo sísmico político será considerável e amplo, afetando também o Brasil. Haveria, portanto, uma janela de oportunidade ainda aberta para que um populismo de esquerda possa tentar criar um novo bloco hegemônico, construindo uma maioria social pela articulação de vários segmentos das classes populares – seja aqueles que se sentiram em algum momento atraídos pelo populismo reacionário, ou pelo neoliberalismo progressista, ou que simplesmente deixaram de participar ativamente do jogo político eleitoral. Apenas essa coalizão seria capaz de dar conta da crise de cuidado, da crise econômica e da crise ambiental que estão na raiz da crise política. Mas isso exigiria um realinhamento dos instrumentos políticos da