Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

O TRANSBORDO EM ESTAMIRA, DE MARCOS PRADO, Notas de estudo de Literatura

Prado, Marcos. – Estamira (Filme) – Crítica e interpretação – Teses. 2. Exclusão social – Teses. 3. Cinema e literatura – Teses ...

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

VictorCosta
VictorCosta 🇧🇷

4.7

(47)

226 documentos

1 / 165

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
Darlan Roberto dos Santos
O TRANSBORDO EM ESTAMIRA, DE MARCOS PRADO
Belo Horizonte
2010
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16
pf17
pf18
pf19
pf1a
pf1b
pf1c
pf1d
pf1e
pf1f
pf20
pf21
pf22
pf23
pf24
pf25
pf26
pf27
pf28
pf29
pf2a
pf2b
pf2c
pf2d
pf2e
pf2f
pf30
pf31
pf32
pf33
pf34
pf35
pf36
pf37
pf38
pf39
pf3a
pf3b
pf3c
pf3d
pf3e
pf3f
pf40
pf41
pf42
pf43
pf44
pf45
pf46
pf47
pf48
pf49
pf4a
pf4b
pf4c
pf4d
pf4e
pf4f
pf50
pf51
pf52
pf53
pf54
pf55
pf56
pf57
pf58
pf59
pf5a
pf5b
pf5c
pf5d
pf5e
pf5f
pf60
pf61
pf62
pf63
pf64

Documentos relacionados


Pré-visualização parcial do texto

Baixe O TRANSBORDO EM ESTAMIRA, DE MARCOS PRADO e outras Notas de estudo em PDF para Literatura, somente na Docsity!

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE LETRAS

Darlan Roberto dos Santos

O TRANSBORDO EM ESTAMIRA , DE MARCOS PRADO

Belo Horizonte 2010

Darlan Roberto dos Santos

O TRANSBORDO EM ESTAMIRA , DE MARCOS PRADO

Tese apresentada ao Curso de Pós- Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais_._

Área de Concentração: Literatura Comparada Linha de Pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural Orientadora: Profa. Dra. Eneida Maria de Souza

Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG 2010

Aos meus pais, Gessy e Roberto.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos os que contribuíram para a realização desta tese.

À Professora Eneida Maria de Souza, minha orientadora.

Aos membros da banca examinadora.

Ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras da UFMG.

À minha família e amigos, em especial: Juliana Monteiro de Castro, Cirley Henriques e Luiz Fernando de Andrade.

A Estamira, pela verdade revelada.

RESUMO

A partir de um contexto, sobretudo, simbólico – o lixo – pretende-se problematizar a (ausência de) enunciação de subjetividades refugadas (que adquirem várias denominações relacionadas à precariedade, à marginalidade e à subalternidade, como invisíveis sociais e refugos humanos). Neste processo, que envolve discussões acerca de aspectos da pós-modernidade e da mediação na literatura e no cinema, o documentário Estamira , de Marcos Prado, será o principal corpus da tese – um corpus dúbio, operando, ora como objeto de estudo, ora como manancial teórico. Através de Estamira – personagem fabular que se projeta no filme – será proposto o conceito de transbordo , alusivo ao espaço crítico ocupado por aqueles que se encontram em um estágio de exclusão posterior à fronteira ou à margem: o ―além dos além‖.

Palavras-chave

Documentário – Estamira – subjetividades refugadas – conceito crítico – Transbordo.

ABSTRACT

From a context, above all, symbolic – of the garbage – it is intend to discuss the (absence of) articulation of subjectivities refuses (which take on various denominations related to precariousness, to the marginality and the subalternity, as invisible social and human refuses). In this process, involving discussions on aspects of postmodernism and of the mediation in literature and the cinema, the documentary Marcos Prado‘s Estamira , will be the main corpus of the thesis – a dubious corpus, operating in the other hand as an object of study, sometimes as a theoretical source. Through Estamira - fable personage that is projected in the film - will be proposed the concept of transbordo , alluding to the critical space occupied by those who are at a stage after the border or exclusion on the margins: the "além dos além".

Keywords

Documentary – Estamira – subjectivities refuses – critical concept – Transbordo.

  • PREÂMBULO
  • INTRODUÇÃO
    1. A TEMÁTICA DO LIXO
  • 1.1 Invisibilidade e repulsa
  • 1.2 Lixo e exclusão social: Interfaces
  • 1.3 O contexto pós-moderno
  • 1.4 O universo do lixão
  • 1.5 O chorume que nos ameaça
  • 1.6 “Podem os refugos humanos falar?”
    1. ESTAMIRA NA TELA
  • 2.1 O documentário e a realidade
  • 2.2 O “outro” no cinema documental
  • 2.3 O processo de criação de Estamira , o filme
  • 2.4 Um novo sentido de ficção
  • 2.5 Construindo a fabulação em Estamira
    1. A RIQUEZA EPISTEMOLÓGICA DE ESTAMIRA
  • 3.1 Perspectivas alternativas
  • 3.2 O discurso “estamiral”
  • 3.3 A arqueologia do transbordo
  • 3.4 Transbordo e fronteira
  • TRANSBORDO 4. A MEDIAÇÃO ESTAMIRAL: ENTRE O TROCADILO E O
  • 4.1 O discurso dos subalternos
  • 4.2 Reconfigurações do narrador
  • 4.3 O mediador em mutação
  • 4.4 A narrativa como cerne da discussão
  • 4.5 A escrita multimídia na contemporaneidade
  • 4.6 Estamira mediadora
  • CONSIDERAÇÕES FINAIS
  • REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PREÂMBULO

12

Eu nunca tive sorte. A única sorte que eu tive foi de conhecer o sr. Jardim Gramacho, o lixão, o sr. Cisco Monturo que eu amo, eu adoro, como eu quero bem aos meus filhos e como eu quero bem aos meus amigos. E eu não vivo por dinheiro, eu faço o dinheiro. Eu que faço.^3 Na cidade administrada por Estamira, os delírios são conselheiros. As relações não são mediadas pelo dinheiro, como em nossa sociedade capitalista, mas pelos detritos retirados das montanhas, alimentadas diariamente pelos caminhões da Prefeitura. Ao adentrar no lixão, logo no início do filme, tal como uma personagem – a imperatriz do lixo – , Estamira despe-se dos poucos indícios de uma vida convencional e rapidamente assume uma vestimenta mais condizente com o ambiente – para nós – hostil. Como num preâmbulo em preto e branco, a câmera aproxima-se de um pequeno barraco, feito de telhas assimétricas de zinco. Capta alguns detalhes: uma garrafa vazia jogada ao chão, uma lagartixa morta, o bule enferrujado, uma faca sem o cabo. Uma cachorra e sua ninhada ajudam a compor o cenário, misto de vida e morte, abrigo e lixeira. Não; ainda não estamos no lixão de Jardim Gramacho. Esta é a casa de Estamira. Antes de sermos apresentados a ela, uma rápida vistoria pelo local. Novamente os detalhes chamam a atenção: um velho crucifixo, o fogão obsoleto, um enfeite em formato de lua, muitos entulhos. A velha senhora deixa o barracão rumo ao seu verdadeiro lar. Passos ágeis, caminha em direção ao ponto de ônibus, e nele segue até Gramacho. No trajeto, vemos, pela primeira vez, seu rosto. Rugas, cabelos grisalhos e desgrenhados, olhar perdido. No percurso, uma placa sugestiva: ―Gramacho

  • última saída a 1 km‖. Já no aterro metropolitano, Estamira dirige-se rapidamente à ―rampa‖ (espécie de ―QG‖ dos catadores de lixo). Lá, troca suas roupas convencionais – saia e blusa – por uma calça mais larga e uma espécie de ―jaleco‖. Na cabeça, uma touca para prender os cabelos. Agora sim; nossa personagem está pronta. A imagem, até então monocromática, ganha cores e vemos os créditos iniciais: ―Estamira‖. Começa o relato de uma vida misturada ao lixo e imersa na loucura.

(^3) PRADO. Jardim Gramacho, p. 116.

13

Às vezes imperatriz, em outras, guerreira ou operária, Estamira transita pelos entulhos com a desenvoltura de quem está em seu próprio ambiente: ―Tem 20 anos que eu trabalho aqui. Eu adoro isso aqui, a coisa que eu mais adoro é trabalhar‖^4. Um ambiente inóspito para nós, mas familiar para os que dali retiram não só o alimento material, como também o que sustenta sua própria identidade. Há uma simbiose entre o lixo e Estamira. Não é por acaso que, além do Jardim Gramacho, ela só se sinta à vontade no barracão construído a duras penas, graças ao lixão. Estamira não faz rodeios e, já em sua primeira fala, diz a que vem: A minha missão, além d‘eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes... não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário que tem, mas inocente não tem não. Vocês é comum, eu não sou comum. Só o formato que é comum. Vou explicar pra vocês tudinho agora, pro mundo inteiro...^5

A partir daí, tem-se um truncado jogo de palavras, neologismos, divagações – nem sempre inteligíveis, mas, em alguns momentos, sintomáticos de um contexto de segregação, preconceito, violência social e ideológica. Estamira reage a tudo isso – a sua maneira. Através de sua própria filosofia, ela tem posições muito contundentes sobre a existência de Deus, a luta de classes, o desperdício em nossa sociedade. Aquela senhora, considerada psicótica, cumpre o que promete: ao longo do filme, revela as respostas para os dilemas, sofridos especialmente por aqueles, que, como ela, compõem o contingente de excluídos sociais. Entender ou não a sua mensagem é problema nosso.

(^4) PRADO. Jardim Gramacho, p. 116. (^5) PRADO. Jardim Gramacho, p. 116.

15

Metodologicamente, a elaboração de uma tese de doutoramento começa pela apresentação de um projeto, que deve contemplar questões como tema, objeto de estudo, referencial teórico e hipótese, entre outros. Posteriormente, esses quesitos serão devidamente burilados, para que, mediante a figura do orientador, o texto possa, finalmente, ―ganhar vida‖. Ganhar vida. Talvez seja esse o ponto essencial. Ao alimentar seus questionamentos, munindo-os de leituras, percepções de mundo e experiências, o pesquisador, de certa maneira, perde o controle sobre o embrião de sua tese – aquele, expresso no projeto inicial –, ficando ―à mercê‖ de outras possibilidades investigativas, que se mostrem mais atraentes, ou mais urgentes. Assim, a vida que emana desse empreendimento não só adquire forma, como também órgãos e membros, percorrendo caminhos, até então, inimaginados. Esse percurso improvável tem seu lado bom: ao desestabilizar um roteiro prévio, lança seu autor em uma dimensão genuinamente nova. Tão original que surpreende aquele que, a priori, imaginava-se o protagonista de todo o processo; o condutor do saber, o responsável pela fixação de anos de estudos em páginas e páginas, que, em seu conjunto, vêm a ser chamadas de tese. Mas, não é mesmo esse o intuito da pesquisa? Buscar novas searas, direções, perspectivas, vertentes? E, para isso, nada melhor que perder o controle absoluto; deixar-se guiar, pelo menos por alguns momentos, atingindo, desta maneira, dimensões imprevistas – que não poderiam ser tangidas, caso um projeto fosse milimetricamente seguido. Essa foi a senda percorrida na elaboração de minha tese. Se comparados ao projeto inicial, os capítulos que se seguem apresentam certo afastamento – de hipótese, roteiro e até mesmo de temática. A intenção primeira, de se elucidar uma ―nova‖ escrita^6 memorialística na contemporaneidade, permeada por implicações próprias (como o advento de novas mídias, a emergência de grupos subalternos e a espetacularização) não

(^6) A escrita é entendida, neste trabalho, em sentido amplo, tal como registro, em suas mais variadas formas.

16

foi de todo abandonada. Mas ganhou novos contornos, tomou atalhos, deparando-se com uma pedra, bem ao estilo drummoniano, grandiosa o suficiente para mudar o curso das coisas: Estamira. No meio do caminho havia um documentário, um livro e um site, que arrebataram de tal maneira o pesquisador que aqui escreve, a ponto de fazê-lo enveredar por um rumo distinto daquele assinalado no início desta jornada. Evidentemente, algumas diretrizes permanecem, com importantes ajustes. O lócus de enunciação que analiso não é mais exclusivamente o da subalternidade. Ousou-se ir além – ―além dos além‖, para ser mais exato. A evidenciação deste local distante manteve-se mediante a investigação da biografia (ou cinebiografia – uma das variantes dessa vertente literária). Mas, antes de prosseguir nessa introdução, que também tem a concepção de um ―roteiro de leitura‖, convém esclarecer que, nos últimos quatro anos, entre a fruição de muitas obras, ensinamentos adquiridos e compartilhados na PosLit e a lapidação de minha orientadora, Eneida Maria de Souza, ocorreu-me algo, que foi decisivo na mudança de perspectivas do trabalho em curso, que ora apresento: as escritas de vidas que me propus mobilizar em minha tese (livros, documentários, sites e programas de TV^7 ) não deveriam ser o ponto de partida, mas, o meio , através do qual poderia lançar luz sobre algumas questões referentes à sociedade e à própria literatura (enquanto representação e/ou inquiridora da realidade). Isto porque, por mais pertinentes que sejam à pesquisa, tais obras, dadas as suas idiossincrasias, poderiam, se utilizadas conjuntamente, levar-me a múltiplos destinos, descaracterizando a intenção de produzir um discurso coeso. O papel desta bibliografia (ou de parte dela) seria, então, o de ilustrar determinadas

(^7) Conforme meu plano de tese, o corpus de estudo abrangeria as autobiografias Por que não dancei , da ex-menina de rua Esmeralda do Carmo Ortiz e O doce veneno do escorpião , da ex- garota de programa Bruna Surfistinha, e os documentários Estamira , de Marcos Prado, e Santiago , de João Moreira Salles, além de experiências televisivas, como o programa Central da Periferia , idealizado pela atriz Regina Casé, o antropólogo Hermano Vianna e o diretor Luiz Villaça. Durante o desenvolvimento da tese, algumas obras foram definitivamente descartadas do processo – como Por que não dancei , O doce veneno do escorpião e Santiago. Em contrapartida, Quarto de Despejo , de Carolina Maria de Jesus, e No país das últimas coisas , de Paul Auster, entre outras obras, foram acrescentadas.

18

Com seu discurso desconexo (se analisado sob uma ótica cartesiana), Estamira, dada à sua forte presença, funcionou como elemento catalisador do projeto do fotógrafo e cineasta Marcos Prado. Da mesma forma, foi escolhida (ou escolheu, como, talvez, ela mesma diria) como corpus principal de minha pesquisa – um corpus dúbio, operando, ora como objeto de estudo, ora como manancial teórico. Cabem ressaltar as principais razões dessa escolha, que não são meramente de ordem sentimental ou estética. Obviamente, a história de vida dessa senhora esquizofrênica, vítima de estupros, abandonada pelo marido e catadora de lixo, comove, assim como a extrema plasticidade de todo o universo que a cerca, captado pelas lentes de Prado. Mas a força de Estamira e as possibilidades investigativas suscitadas vão muito além de sua carga memorialística. Estamira agrega múltiplas nuances da precariedade, da subalternidade e da segregação, que podem ser resumidas em uma única palavra: lixo. Ela é, ao mesmo tempo, metáfora e metonímia dos dejetos expurgados pela sociedade. Metáfora, porque é comparável a tudo aquilo que o establishment descarta e faz questão de manter longe – como os loucos nos manicômios, os miseráveis debaixo das pontes ou os ―refugos humanos‖ – para usar uma expressão de Zygmunt Bauman, crucial nesta tese – nos lixões. Metonímia, porque Estamira, assim como outros habitantes dos depósitos de restos, é parte desse material excedente, que ―nós‖ negligenciamos. Ocorre que Estamira não é só resto. Como ela própria lembra, no lixão, há também descuido – que escapa às nossas mãos, às operações seletivas, e vai parar ―do outro lado‖, onde sobrevivem os marginalizados. Pedaços de nós, que, de alguma maneira, deixaram de ser aproveitados, valorizados. Resíduos que, sob uma perspectiva benjaminiana, merecem ser explorados, escarafunchados, até mesmo para que nos auxiliem na compreensão de nós mesmos, de nossa época. Construir minha tese evidenciando a visão de Estamira pareceu-me a melhor estratégia, para a elucidação de várias indagações, que procuro desenvolver ao longo da pesquisa: De que modo a escrita memorialística, explorada por diversas mídias, pode, na contemporaneidade, servir aos grupos

19

subjugados? O que existe além da subalternidade? É possível delinear um novo lócus, entremeado pela sujeira e pela loucura? O discurso que emerge desse além dos além pode ser teorizado? Não se trata de questões absolutamente originais – até porque, nossa constante busca por respostas, comumente, gira em torno das mesmas perguntas, instigantes o suficiente para manter nossa inquietação aguçada. A novidade reside na adoção de um ponto de vista peculiar, demarcado por uma mulher louca, dotada de incoerências, esquecida pela sociedade, mas vigilante do mundo ao seu redor; semi-analfabeta e detentora de uma filosofia particular; alguém que desistiu de uma vida convencional, mas quer revelar-nos a verdade. Nesta empreitada, começamos pela abordagem do lixo e de algumas de suas implicações, como o desconforto e a segregação – não só do detrito propriamente, mas, também, de quem dele depende para sobreviver. E não é por acaso que enfocamos os dejetos, para chegar aos grupos subalternos. Assim como o antropólogo Hermano Vianna aponta a obra de arte como objeto mediador^9 , elegemos o lixo como matéria de mediação, entre ―nós‖ e ―os outros‖. Afinal, nossos descartes – sociais, culturais e econômicos – , em grande parte, são absorvidos pelos marginalizados, que utilizam múltiplas estratégias, como a reciclagem, o reaproveitamento, a apropriação e a bricolagem, alcançando, assim, uma parte de nós, ao mesmo tempo em que nos apresentam contundentes lições de resistência e sustentabilidade. A problematização das escritas de vidas aparece em seguida, quando, parafraseando Gayatri Spivak (1985), perguntamos: ―Podem os refugos humanos falar?‖. Quem os dará voz? Quem os escutará?‖. A resposta a essas indagações passa pelo memorialismo, e leva em conta uma obra paradigmática: Quarto de despejo , de Carolina Maria de Jesus. Em um breve subcapítulo, pretende-se contextualizar o diário desta mãe solteira, favelada,

(^9) Hermano Vianna faz considerações sobre a obra de arte, como elemento mediador, no artigo “Não quero que a vida me faça de Otário!”: Hélio Oiticica como mediador cultural entre o asfalto e o morro , publicado na obra Mediação, Cultura e Política (2001), organizada por Gilberto Velho e Karina Kuschnir. Segundo o autor, a obra de arte passa a exercer o papel de mediação quando o artista de vanguarda decide buscar inspiração para seu trabalho ―misturando-se‖ à cultura popular e aos moradores da favela.