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O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir,. Escrever. Roberto Cardoso ele Oliveira. Uni caniJJ. RESUMO: O Olhar, o Ouvir e o Escrever são destacados pelo ...
Tipologia: Notas de estudo
Compartilhado em 07/11/2022
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Uni caniJJ
RESUMO: O Olhar, o Ouv ir e o Escrever são destacados pelo autor co1no constituind o três n1on1cntos cspecialin ente estratégicos do nzétier do an- tropó logo. Através de exen1plos concretos fornecidos pela etnog rafia, pro- cura-se mostrar como cada u1n desses mo1nentos pode au1ncntar a sua efi- cácia no trabalho antropológico, desde que seja1n dcvida1ncntc te1natizados pelo exercíc io da reflexão episte1nológica. Se o Olhar etnográfico, tanto qua nto o Ouvir , cun1pre sua função básica na pesqu isa e1npírica , é o Escre- ver, particulanncnte no gabinete , que surge con10 o 1non1ento1nais fccundo ela interpretação; e é por 1ncio dele - quando se textual íza ~ l real idade socio- cultural - que o pensa1nento se revela e1n sua plena criat ividade.
PALAVRAS-CHAVE: etnografia, interpretação, tcxtualização.
1 '
ROBER TO CARDOSO DE ÜLIV EIRA. 0 TR ABAL HO DO ANTROPÓLOGO
Introdução
Pareceu-me, na oportunidade desta conferência, que um antropólogo, dirigindo-sea uma platéia de cientistas sociais, poderia falar um pouco so- bre a especificidade de seu métier, particularmente quando, na realização de seu trabalho, articula a pesquisa empírica com a interpretação de seus resultados.^1 Nesse sentido, o subtítulo escolhido - é necessário esclarecer
R OBERTO CARDOSO DE ÜLIV EIRJ. Ü TR/\B 1 \ L HO DO ANTROPÓLO GO
exclusivo do Olhar, u1na vez que está presente e1ntodo proces so de co- nhecirnento,envolvendo, portanto, todos aqueles atos cognitivos, que men- cionei, en1seu conjunto. Mas é certa 1nente no Olha r que essa refração pode ser n1aisbe1n co1npreendida. A própria imagem óptica - refração - cha1na a atenção para isso. I1nagine1nos u1nantropólogo iniciando tuna pesquisa junto a u1ndeter- n1inado grupo indígena e entrando nu1na1naloca, tnna 1noradia de u1na ou n1aisdezenas de indivíduos, se1nainda conhecer uma palavra do idio1na nativo. Essa n1oradia de tão é.unplas proporções e de esti lo tão peculiar , corno, por exen1plo, as tradicionais casas coletivas dos antigos Tükúna do Alto Solilnões, no An1azonas,teria o seu interior imediatamente vasculha- do pelo "Olhar etnográfico", por 1neio do qual toda a tyoria que a discipli- na dispõe relativa1nente às residências indígenas passaria a ser instru- 1nental izada pelo pesquisado r, isto é, por ele refer ida. Nesse sentido, o interior da 1nalocanão seria visto com ingenuidade, co1no urna 1nera curi- osidade diante do exótico, poré1nco1n u1nolhar devida1nentesensibiliza- do pela teoria disponível. Tendo por base essa teoria, o observado r ben preparado, enquanto etnólogo, iria olhá-la co1no um objeto de investiga- ção previa1nente já constr uído por ele, pelo menos numa primeira pre- figuração: passaria, então, a contar os fogos (pequena s cozinhas pri1niti- vas), cujos resíduos de cinza e carvão indicariam que em torno de cada urn deles estivera1nreunidos não apenas indivíduos, porén1 "pessoas", por- tanto "seres sociais", 1nernbrosde u111único "grupo don1éstico"; o que lhe daria a infonna ção subsidiária que pelo 1n enos nessa n1aloca, de confor- 1nidade co111o número de fogos, estaria abrigada u1nacerta porção de gru- pos do1nésticos, fonnados por u1naou 1nais fa1nílias ele1nentares e, even- tuahnente, de indivíduos"agregados" (originários de utT)outro grupo tribal). Saberia, igual1nente, a totalidade dos n1oradores (ou quase) contando as redes dependuradas nos tnourões da n1aloca dos 1ne1nbros de cada gru- po do1néstico. Observa ria, ta1nbén1, as características arquitetô nicas da 1naloca, classificando-a segundo u1na tipologia de alcance planetário so- bre estilos de residências, ensinada pela literatura etnológica existente.
R EV ISTA DE ANTROP O LO G IA. Si\o P AULO, USP , 1996, v. 39 nº 1.
To1nando-se, ainda , os n1es1nos T'ükúna , 1nas en1 sua feição 1noderna, o etnólogo que visitasse suas malocas obse rvaria de pronto que elas se diferenciava1nradicaltne nte daquelas descritas por cronistas ou viajant es que. no passado, navegara1npelos igarapés por eles habitados. Verifica- ria que as a1nplas n1alocas, então dotadas de unia cobertura e1n fonn a de sen1i-arco desce ndo suas laterais até o so lo e fechando a casa a toda e qualquer entrada de ar (e do olhar exte rno), salvo por portas ren1ovíveis, achan1-se agora totaln1entc re,nodeladas. A ,nalocaj á se apresen ta am- pla1nentc aberta, co nstituída por unia cobert ura de duas águas, sen1pare- des (ou co1nelas precá rias); e, internan1ente, i1npondo-se ao olhar exte r- no vêc n1-sc redes penduradas nos tnour ões, co 1n seus res pec tivos n1osquiteiros - uni clc,nen to da cultura material indígena desconhec ido antes do co ntato intcrétn ico e des necessár io para as casas antigas. uma vez que seu fccha1nento i1npedia a entrada de qualquer tipo de inseto. Nesse sentido, para esse etnó logo n1oderno, já tendo ao seu alcance tuna docun1entação histórica, a pri1neira conc lusão será sobre a existência de unia n1udança cultur al de tal n1onta que, se de un1 lado veio a facilitar a
construção das casas indígenas. unia vez que a antiga residência exigia un esforço 1nuito grande de trabalho, dada a sua con1plcxidade arquitetônica. por outro lado veio afeta r as relaçõ es de trabalho (por não ser n1ais ne- cessá ria a n1obilização de todo o clã para a edificação da n1aloca), ao n1cs1notcn1poe,n que tornava o grupo residenc ial 1nais vulneráve l aos in- setos, posto que os n1osquiteiro s son1ente podcrian1 ser úteis nas redes, fica ndo a ra111ília a n1ercê deles durante todo o dia. Observava-se, assi111, litera ln1ente. o que o saudoso Herbert Baldus chan1ava de unia espécie de '·natureza -n1orta" da acultu ração. Con10 torná-la viva. senão pela pene- tração na natureza das relações ~ociais? Rcton1ando o nosso cxcn1plo, vcrían1os que para se dar conta da natu- rc;,a das relações sociais n1antidas entre as pessoas da unidade residencial (e delas entre si, cn1 se tratando de unia pluralidade de n1alocas de un1a rnc~n1aaldeia ou '·grupo local''). so1nc ntc o Olhar não ~cria suficiente. Co1no alcançar apenas pelo Olhar o signif icado dessas relações sociais
R EV ISTA DE A NTROPOLOG IA, SAo P t , ULq , l JSP, 1996 , v. 39 nº 1.
RoHLRTO CARDOSO DE ÜLI VE IR/. Ü TR A8A LHO DO ANTROPÓLOGO
entre "idio111asculturais", a saber , entre o inundo do pesquisador e o do nativo, esse n1undoestranho no qua l deseja1nos penetrar. De resto, há de se entender o nosso 1nundo, o do pesquisador, co111 0 se1Jdoocidental, cons- Lituídon1ini1na1nentepela sobreposição de duas subculturas: a brasileira , no caso de todos nós en1particular; e a antropológica, aquela na qual fo- n1ostreinados co1T10antropólogos e/ou cientistas sociais. E é o confronto entre esses dois rnundos que const itui o contexto no qual ocorre a entre- vista. É, portanto, nu111contexto essencialrnente problemático que te1n lu- gar o nosso Ouvir. Co1nopoderemos, então, questionar as possibilidades da entrevista nessas condições tão delicadas? Penso que esse questiona1nento começa cotn a pergunta sobre qual a natureza da relação entre entrevistador e entrevistado. Sabe1nos que há tnna longa e arraigada tradição na literatura etnológ ica sobre a relação. Se to- rnannos a clássica obra de Mali nowski como referência, vemos como essa tradiçãose consolida e, pratica1nente,trivializa-se na realização da entrevis- ta. No ato de ouvir o "infonnante", o etnólogo exerce u111"poder" extraor- dinário sobre o 1nes1no,ainda que ele pretenda se posicionar co1 110 sendo o observador1nais neutro possível, co1no quer o objetivisn10mais radical.Esse poder, subjace nte às reiações hu tTianas - que autores co1110Fouca u It j a- 1nais se cansara1T1de denunciar-, j á na relação pesquisador/informante vai dese111penhar u1nafunção profunda1n ente empobrecedora do ato cognitivo: as perguntas, feitas e1T1busca de respostas pontuais lado a lado da autoridade de quern as faz (co1n ou se1n autoritaris1no), cria1n un1campo ilusório de interação. A rigor, não há verdadeira interação entre nativo e pesquisador , porquanto na utilização daquele co1no infonnante o etnólogo não cria con- dições de efetivo "diálogo". A relação não é dialógica. Ao passo que, trans- fonnando esse infonnante e1n "interlocutor", uma nova 111oda1idade de rela- ciona1T1ento pode (e deve) ter Iugar.^3
Essa relação dialógica , cujas conseqüências episte1nológicas, todavia, não cabe1n aqui desenvolver, guarda pelo 1nenos u1na grande superiori- dade sobre os procedi1n entos tradic ionais de entrevista. Faz co111que os
ROBERTO CA RDOSO DE ÜLIVEIRA. Ü TRAB AL HO DO ANTROPÓLOGO
é subjacente capta aquiJoque u1n henneneuta chamaria de "excedente de sentido", i.e., aquelas significações (por conseguinte, dados) que escapam a quaisquer rnetodo]ogias de pretensão no1nológica.Voltarei ao tema da observação participante na conclusão desta exposição.
O Escrever
Mas se o Olhar e o Ouvir pode1n ser considerados como os atos cog- nitivos 1nais prelirninares no trabalho de campo (trabalho que os an- tropólogos se acostumara1na se valer da expressão inglesafieldwork para deno1niná-lo), é seguramente no ato de Escrever, portanto na configura- ção final do produto desse trabalho, que a questão do conhecimento se torna tanto ou 1nais crítica. Um livro relativamente recente de Clifford Geertz, Trabalhos e vidas : o antropólogo conio autdr, infelizmente, ao que eu saiba, ainda não traduzido para o português, oferece importante s pistas para desenvolvermos esse te1na.^4 Geertz parte da idéia de separar e, naturalmente,avaliar,duas etapas be1ndistintas na investigaçãoempírica: a primeira, que ele procura qualificar como a do antropólogo "estando lá" (being there), isto é, vivendo a situação de estar no ca1npo; e a segunda , que se seguiria àquela, corresponder ia à experiência de viver, 111elhordi- zendo, trabalhar "estando aqui" (being here), a saber, be111instalado e1n seu gabinete urbano, gozando o convívio com seus colegas e usufruindo tudo o que as instituições universitárias e de pesquisa pode111oferecer. Nesses te1mos,o Olhar e o Ouvir seriam pa1teda prilneira etapa, enquanto o Escrever seria parte inerente da segunda. Devernos entender, assim, por Escrever o ato exercitado por excelên- cia no gabinete, cujas características o singularizam de forma marcante , sobretudo quando o co111parannos co111o que se escreve no campo , seja ao fazermos nosso diário, seja nas anotações que rabiscan1os em nossas cadernetas. E se to1nannos ainda Geertz por referência ve111osque, na 111aneirapela qual ele encaminha suas reflexões, é o Esc rever "estando
R EV ISTA DE ANTROP OLOG IA, SAo PA ULO, USP, 1996, v. 39 nº 1.
R i:v 1STA DI·: A NTRoro1,oc 1A , SAo P A ULO , US P, 199 6 , v. 39 n º l.
bib]ioteca ou lihrar yf ield~vork (como joco samente se cos tu111achamá- la) etc, etc, enfin1pelo a1nbiente acadê1 11 ico. Exa1nine111os uni pouco 1nais de peito esse processo de textualização, tão diferente do trabalho de ca111po.No dizer de Gee1tz ( 1988b), seria pergun- tar o que acontece co1n a realidad e observada no campo quand o ela é e1nbarcada para fora? (" Wlzo t happ ens to realit y vvh en it is shipp ed ah road '/ '). Essa pergunta ten1sido constante na chan1adaantropologia pós- n1ode111a- un1rnovi1nento que ve1ntendo lugar na disciplina a pa1tirdos anos 60 e que, n1algrado seus n1uitos equívocos (sendo, talvez, o principal a iden- tificação que faz da objetividade co1 11 a sua 111odalidade perversa, o "objeti- vis1no" ), conta a seu favor o fato de trazer a questão do texto etnográfico corno te1na de reflexão siste1ná tica, co111 0 algo que não pode ser tomado tac itan1ente co1n o tende a ocorrer e1 11 nossa co111unidade profissional (cf. Cardoso de Ol iveira, 1988a). Apesar de Geertz poder ser considerado o
verdadeiro inspirador desse 1 nov i1nento, que reúne u111extenso grupo de an- tropólogos, seus 1ne111brosnão participarn de u111aposição unívoca eventu-
aln1ente ditada pelo n1estre.^6 A rigor, a grande idéia que os une, adernais de possuíren1unia orientação de base henn enêutica, inspiradas e1 11 pensado-
res con10 D ilthey, Heidegger, Gadan1er ou Ricoeur, é se colocare111contra o que considera1 11 ser o n1odo tradicional de se fazer antropologia, e isso. ao
que parece, co1 11 o intuito de reju venescer a antropologia cultural norte-an1e-
Que pontos podería 1 11 os assinalar, ainda nesta opo rtunidade. nos con- duzen1à questão central do texto etnográfico? Tex to, aliás. que be1n po-
deria ser sociográfico, se puderinos estender, por analog ia, pa ra aqueles 111 es111os resultados a que chcga111os cientistas sociais, não i111portando sua vinculação disciplinar. Talvez o que torne o texto etnográfico 111aissingu-
lar, quando o co n1paran1os con1 outros devo tados à teoria social. seja a articulação que ele busca fazer entre o trabalho de can1po e a cons trução do texto. Geo rge Marcus e Dick Cush111an chegan1 a co nsiderar que a etnog rafia poderia ser clc Cinida co tno "a rep resen tação do traba lho de
car11ooe1ntextos"(Marcus & Cush1nan, 1982 ). Mas isso tem vários com- plic;dores, con10eles rnesmos reconhece1n. Vou tentar indicar alguns, seguindoesses n1es1nosautores, alé1nde outros que, como e]es (e, de certo n1odo,muitos de nós atuahnente), buscam refletir sobre a peculiaridade do Escrever um texto que seja controlável pelo leitor, e isso na medida cn1 que distingui1nos tal texto da narrativa tneramente literária. Já mencio- nei~1no1nentosatrás, o diário e a caderneta de ca1npo con10 1nodos de escrever que se diferencia1nclara1nente do texto etnográfico final. Poderia acrescentar,seguindo os 1nes1nosautores, que ta1nbé1nos a1tigose as teses acadên1icas deve1nser considerados"versões escritas intennediárias ", uma vez que na elaboração da monografia (esta sim, o texto final) exigências específicas deve1nou deveria1nser feitas. Vou silnplesmente 111encionaral- gun1as, preocupado e1nnão 1nealongar muito nesta conferência. Desde logo uma distinção cabe ser feita entre as monografias clássicas e as 1nodernas. Enquanto as pri1neirasforam concebidas de conformida- de coin u1na"estrutura narrativa nonnativa " que se pode aferir a partir de uma disposição de capítu]os quase canônica (Território , Econo1nia, Or- ganização Social e Parentesco, Religião, Mitologia, Cultura e Personal i- dade etc), as segundas, as n1onografias que pode1nos cha1nar de 1noder- na<;, priorizam u1nte1na, através do qual toda a sociedade ou cultura passa1n a ser descritas, analisadas e interpretadas. Gosto de dar como u1n bom exen1plo de n1onografias deste segundo tipo a de Victor Turner , sobre o processo de seg1nentação política e a continuidade observáveis em uma sociedade africana (cf. Turner, 1957), urna vez que ela expressa co1111nuita felicidade as possibilidades de u1na apreensão holística, porém concen- trada nu1núnico grande te1na,capaz de nos dar Lnnaidéia dessa socieda- de co1nou1naentidade extraordinariamente viva. Essa visão holística, to- davia, não significa retratar a totalidade de u1na cultura, 1nas so1ne nte ter ern conta que a cultura, sendo totalizadora, 1nes1no que parciahnente des- crita, se1npre deve ser ton1ada por referência. Um terceiro tipo seria o da~ chamadas "1no nografias experi1nentais" ou pós-1nodernas (defend idas por M arcus & Cushman), 1 nas que , nes te
R OBE RTO C/\ROOSO DE ÜLI VEIRA. Ü TRABALHO DO AN T ROPÓLOGO
grafia traz uma inegável contribu ição para a teoria soc ial. Marcus & Cushn1an observa1n,relativamente à influência de Geertz na antropologia, que, com ele, a "etnografia tornou-se u1 11 meio de falar sobre teoria, filo- sofia e episten1ologiasirnultaneamente ao cu1npri1nento de sua tarefa tra- dicional de interpretar diferentes rnodos de vida"( l 982 :37). Evidentemente que no elevar a produção do texto ao nível de reflexão sobre o Esc rever, a disciplina está orientando sua ca1ninhada para aquelas instâncias meta- teóricas que poucos alcançara1n realizar. Talvez o exe1np lo 1nais conheci- do dentre os antropólogos vivos sej a o de Lév i-Strauss e no â111bito de seu n1étodo estruturalista , ainda que de reduzida eficác ia na pesqu isa etnográfica. Con1 Geertz e sua antropologia interpretativa, verifica-se o surgi1nentode un1aprática 1n etateórica e1nprocesso de padronização, em que pesem alguns esco1Tegõesde seus adeptos para o inti1n is1no, há pou- co 1nencionado. Entendo que o bo1n texto etnográfico, para ser elabora- do, deve ter pensadas as condições de sua produção, a partir das etapas iniciais da obtenção dos dados (o Olhar e o Ouvir), tal não quer dizer que ele deva se en1aranhar na subjet ividade do autor/pesquisador. Antes, o que está em jogo é a "intersubje tividade" - esta de caráter epistêm ico -, graças à qual se a1i icula1n nun11nes1n o "horizonte teórico" os rne1nbros de sua co1n unidade profissional. E é o reconhecirnento dessa intersubjetividade que torna o antropólogo 1no derno u1ncientista social menos ingênuo. Te- nho para 1ni111que talvez seja essa un1a das mais fortes contribuições do paradig1na henn enêutico para a disciplina.
Conclusão
Exa n1inados o O]har , o Ouvir e o Esc reve r, a que co nclusões pod e- 1nos chegar? Como procurei 1nostrar desde o início, essas "facu ldades" do espírito tê1 11 características be1n precisas quando exercitadas na órbita das ciências sociais e, de urn 1nodo todo especial, na da antropolo gia. Se o Olhar e o Ouvir constituem a nossa "percepção" da realidade focaliza-
R1~v1ST/\ l)L ANTROPOLOGJ 1 , SAo P ,\ ULO , US P, 1996, v. 39 n º 1.
da na pesquisa e1np írica, o Escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso "pensan1ento'', u1na vez que o ato de escreve r é sirnultâneo ao alo de pensar. Quero charnar a atenção sobre isso, de 1nodo a tornar cla- ro que - pelo n1enos no n1cu n1odo de ver - é no processo de redação de u1n texto que nosso pensa1nento can1inha, encontrando soluções que difi - ciln1entc aparecerão ''a ntes" da textualização dos dados prov enientes da observação sistc1nática. Sendo assi1n, seria u1n equí voco i1na ginar que, prin1eiro, chcga n1os a conclusões relativas a esses 1ncs1nos dados, para, en1 seg uida , podc nno s insc reve r essas concl usões no texto. Port anto, dissociando-se o "pe nsar" do ''esc rever". Pelo rnenos 1ninha experiência indica que o ato de escrever e o de pensar são de tal fonna solidários entre si que, junt os, forn1an1pratican1ente u1n 1nesrno ato cognitivo. lsso signifi- ca que nesse caso o texto não espera que o seu autor tenha pri1neiro to- das as respostas para, só então , pod er ser inici ado. Entendo que ocorra na elaboração de urna boa narrati va que o pesquisador, de posse de suas observações dev idan1ente organiza das, j á inicie o processo de textuali-
sição (un1a vez que há tan1bén1 a forn1aoral), porérn é a produção do tex-
to tan1bén1 produção de co nhecin 1ento. Não obstante. sendo o ato de escrever un1ato igualn1entccognitivo, esse ato tende a ser repetido quantas
apenas para aperfeiçoar o texto do ponto de vista forn1al, n1as tan1bé1n para 1nclhorar a veraci dade da~ descrições e da narrativa, aprofundar a análise e consolida r argu111entos.
Mas isso. por si n1esn10. não carateriza o Olhar, o Ouvir e o Escre- ver antropológicos. po is supo nho que ele está presente cn1 toda e qual- quer escrita no interior das ciências sociais. Mas no que tange à Antropo- logia. con10 procurei n1ostrar.esses atos estão prcvian1cnteco1npron1etidos con1 o próprio hori;,onte da disciplina. onde Olhar, Ouv1r e Escreveres- t:to desde scn1pre :-iintonizados con1 o '·s1stcn1a de idéias e valores" que são próprios dela. O quadro conceit uai da antropologia abriga. ncs\c scn-
R EV ISTA DE A NTROPO LOG IA, SÃOPAULO,USP, 1996, v. 39 nº 1.
ROBERTO CARDOSO OE ÜLIV~IRA. Ü TR ABALHO DO ANTROPÓLOGO
an1plíar a indispensável interação entre nossos diferentes (poré111aparenta- dos) offcios, redundando, assim, a proporcionar (quero crer) um certo estí- 111uloà interdisciplinaridade, que entendo necessária no âmbito de um de- partamento devotado ao estudo dos Trópicos. Ao mesmo tempo, ficarei 111uitofeliz se houver conseguido transfonnar atos aparentemente tão trivi- ais, co1110os aqui exa111inados, e111temas de reflexão e de questiona111ento.
Notas
A prin1eira versão desla co nferênc ia f oi desti nada à Aula Inaugura l do ano acadêmico de 1994, re lat iva ao s cursos do In stitu to de F ilosofia e Ciências Hu1nanas (IFCH) da Un ivers idad e Estad ual de Cam pin as (Unicai np ). Ap re- se nte versão, que agora se publica, foi ela borad a para un1a co nfe rência n1i- nistrada a u1na platéia n1ultidisciplinar na Funda ção Joaq ui1n Nabuco , en Recife, e1n 24 de n1aio do mes1no ano, e1n se u Institut o de Tropicologia.
2 Aqui fa ço u1na disti nção entre "se ntid o" e "s ignifica ção": o prilneiro termo destinado a dar conta do horizo nte se mânti co do "nativ o" (co 1no no exem - plo de que estou n1e va lend o), enquant o o segu ndo tenn o serve para desig- nar o horizo nte do antr opó logo (qu e é co nst ituíd o por sua discip lina). Essa distinção se apóia em E.D. Hir sc h Jr. ( 1967:21 l), que, por sua vez, apóia-se na lóg ica fregeana.
3 Esse é u1n te1na que tenh o exp lora do seg uidmn ente em dife rentes pubh ca- ções, poré1n indi ca ria apenas a mai s rece nte: UJna co nferência mini strada na U niversidade Fede ral do Paraná, no ân1bito do Seminá rio "C iência e Socie- dade: A Crise dos M ode los", rea lizado na cidad e de Cu riti ba, e1n 9 de no- ve 1nbro de l993 (cf. Cardoso de Ol iveira, 1994).
4 O tít ulo da ed ição or ig inal é Works and tives: th e anthr opolog ist as autho r (cf. G ee rtz, 1988). Há unia tradução espanho la, publi ca da em Ba rce lo na.
5 M eye r Fo rtes já nos anos 50 chan1ava esse pr ocesso quase primitiv o de in vestigação et nog ráfi ca reali zada no âin hito da antr opo log ia soc ial de