Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever, Notas de estudo de Antropologia

O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir,. Escrever. Roberto Cardoso ele Oliveira. Uni caniJJ. RESUMO: O Olhar, o Ouvir e o Escrever são destacados pelo ...

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

usuário desconhecido
usuário desconhecido 🇧🇷

4.6

(84)

74 documentos

1 / 25

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir,
Escrever
Roberto Cardoso ele Oliveira
Uni caniJJ
RESUMO: O Olhar, o Ouvir e o Escrever são destacados pelo autor co1no
constituindo três n1on1cntos cspecialinente estratégicos do nzétier do an-
tropólogo. Através de exen1plos concretos fornecidos pela etnog rafia, pro-
cura-se mostrar como cada u1n desses mo1nentos pode au1ncntar a sua efi-
cácia no trabalho antropológico, desde que seja1n dcvida1ncntc te1natizados
pelo exercíc io da reflexão episte1nológica. Se o Olhar etnográfico, tanto
quanto o Ouvir, cun1pre sua função básica na pesquisa e1npírica , é o Escre-
ver, particulanncnte no gabinete , que surge con10 o 1non1ento 1nais f ccundo
ela
interpretação; e é por 1ncio dele - quando se textual íza ~l real idade socio-
cultural - que o pensa1nento se revela e1n sua plena criat ividade.
PALAVRAS-CHAVE: etnografia, interpretação, tcxtualização.
1 '1
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16
pf17
pf18
pf19

Pré-visualização parcial do texto

Baixe O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever e outras Notas de estudo em PDF para Antropologia, somente na Docsity!

O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir ,

Escrever

Roberto Cardoso ele Oliveira

Uni caniJJ

RESUMO: O Olhar, o Ouv ir e o Escrever são destacados pelo autor co1no constituind o três n1on1cntos cspecialin ente estratégicos do nzétier do an- tropó logo. Através de exen1plos concretos fornecidos pela etnog rafia, pro- cura-se mostrar como cada u1n desses mo1nentos pode au1ncntar a sua efi- cácia no trabalho antropológico, desde que seja1n dcvida1ncntc te1natizados pelo exercíc io da reflexão episte1nológica. Se o Olhar etnográfico, tanto qua nto o Ouvir , cun1pre sua função básica na pesqu isa e1npírica , é o Escre- ver, particulanncnte no gabinete , que surge con10 o 1non1ento1nais fccundo ela interpretação; e é por 1ncio dele - quando se textual íza ~ l real idade socio- cultural - que o pensa1nento se revela e1n sua plena criat ividade.

PALAVRAS-CHAVE: etnografia, interpretação, tcxtualização.

1 '

ROBER TO CARDOSO DE ÜLIV EIRA. 0 TR ABAL HO DO ANTROPÓLOGO

Introdução

Pareceu-me, na oportunidade desta conferência, que um antropólogo, dirigindo-sea uma platéia de cientistas sociais, poderia falar um pouco so- bre a especificidade de seu métier, particularmente quando, na realização de seu trabalho, articula a pesquisa empírica com a interpretação de seus resultados.^1 Nesse sentido, o subtítulo escolhido - é necessário esclarecer

  • nada te1na ver com o recente livro de Claude Lévi-Strauss, Re garder, Écoute r, Li re (Plon, 1993), ainda que nesse título eu possa ter me inspi-,, rado, ao substituir apenas o Lire pelo Ecrire, o Ler pelo Escrever. Po- ré1n,aqui, ao contrátio dos ensaios de antropologiaestéticade Lévi-Strauss, trato de questionar algumas daquelas que se poderiam cha1narde princi- pais "faculdades do entendimento" sociocultural que, acredito, sejam ine- rentes ao modo de conhecer das ciências sociais. Naturalmente que ao falar nesse contexto de faculdades do entendimento, é preciso dizer que não estou mais do que parafraseando, e com muita lib~rdade, o significa- do filosóficoda expressão "Faculdades da Ahna", como Leibniz assiln en- tendia a percepção e o pensa1nento. Pois, se1npercepção e pensamento, como então podemos conhecer? De meu lado, ou do ponto de vista de minha disciplina, a Antropologia, quero apenas enfatizar o caráter consti- tutivo do Olhar, do Ouvir e do Escrever na elaboração do conhecimento próprio das disciplinas sociais, i.e., daquelas que convergem para a ela- boração daquilo que um sociólogo como Anthony Giddens muito apro- priadamentechama de "teoria social" para sintetizarco1na associação des- ses dois termos o amplo espectro cognitivo que envolve as disciplinas que deno1ninamos Ciências Sociais (Giddens, 1984). Rapidamente, porquan- to no espaço de uma conferência não pretendo 1nais do que fazer aflorar alguns problemas que comumente passa1ndespercebidos não apenas para o jovem pesquisadorem CiênciasSociais, mas alguma~vezes també1npara o profissional maduro, quando este não se debruça para as questões epis- te1nológicasque condicionam a investigaçãoe1npírica91ntoquanto a cons-

R OBERTO CARDOSO DE ÜLIV EIRJ. Ü TR/\B 1 \ L HO DO ANTROPÓLO GO

exclusivo do Olhar, u1na vez que está presente e1ntodo proces so de co- nhecirnento,envolvendo, portanto, todos aqueles atos cognitivos, que men- cionei, en1seu conjunto. Mas é certa 1nente no Olha r que essa refração pode ser n1aisbe1n co1npreendida. A própria imagem óptica - refração - cha1na a atenção para isso. I1nagine1nos u1nantropólogo iniciando tuna pesquisa junto a u1ndeter- n1inado grupo indígena e entrando nu1na1naloca, tnna 1noradia de u1na ou n1aisdezenas de indivíduos, se1nainda conhecer uma palavra do idio1na nativo. Essa n1oradia de tão é.unplas proporções e de esti lo tão peculiar , corno, por exen1plo, as tradicionais casas coletivas dos antigos Tükúna do Alto Solilnões, no An1azonas,teria o seu interior imediatamente vasculha- do pelo "Olhar etnográfico", por 1neio do qual toda a tyoria que a discipli- na dispõe relativa1nente às residências indígenas passaria a ser instru- 1nental izada pelo pesquisado r, isto é, por ele refer ida. Nesse sentido, o interior da 1nalocanão seria visto com ingenuidade, co1no urna 1nera curi- osidade diante do exótico, poré1nco1n u1nolhar devida1nentesensibiliza- do pela teoria disponível. Tendo por base essa teoria, o observado r ben preparado, enquanto etnólogo, iria olhá-la co1no um objeto de investiga- ção previa1nente já constr uído por ele, pelo menos numa primeira pre- figuração: passaria, então, a contar os fogos (pequena s cozinhas pri1niti- vas), cujos resíduos de cinza e carvão indicariam que em torno de cada urn deles estivera1nreunidos não apenas indivíduos, porén1 "pessoas", por- tanto "seres sociais", 1nernbrosde u111único "grupo don1éstico"; o que lhe daria a infonna ção subsidiária que pelo 1n enos nessa n1aloca, de confor- 1nidade co111o número de fogos, estaria abrigada u1nacerta porção de gru- pos do1nésticos, fonnados por u1naou 1nais fa1nílias ele1nentares e, even- tuahnente, de indivíduos"agregados" (originários de utT)outro grupo tribal). Saberia, igual1nente, a totalidade dos n1oradores (ou quase) contando as redes dependuradas nos tnourões da n1aloca dos 1ne1nbros de cada gru- po do1néstico. Observa ria, ta1nbén1, as características arquitetô nicas da 1naloca, classificando-a segundo u1na tipologia de alcance planetário so- bre estilos de residências, ensinada pela literatura etnológica existente.

R EV ISTA DE ANTROP O LO G IA. Si\o P AULO, USP , 1996, v. 39 nº 1.

To1nando-se, ainda , os n1es1nos T'ükúna , 1nas en1 sua feição 1noderna, o etnólogo que visitasse suas malocas obse rvaria de pronto que elas se diferenciava1nradicaltne nte daquelas descritas por cronistas ou viajant es que. no passado, navegara1npelos igarapés por eles habitados. Verifica- ria que as a1nplas n1alocas, então dotadas de unia cobertura e1n fonn a de sen1i-arco desce ndo suas laterais até o so lo e fechando a casa a toda e qualquer entrada de ar (e do olhar exte rno), salvo por portas ren1ovíveis, achan1-se agora totaln1entc re,nodeladas. A ,nalocaj á se apresen ta am- pla1nentc aberta, co nstituída por unia cobert ura de duas águas, sen1pare- des (ou co1nelas precá rias); e, internan1ente, i1npondo-se ao olhar exte r- no vêc n1-sc redes penduradas nos tnour ões, co 1n seus res pec tivos n1osquiteiros - uni clc,nen to da cultura material indígena desconhec ido antes do co ntato intcrétn ico e des necessár io para as casas antigas. uma vez que seu fccha1nento i1npedia a entrada de qualquer tipo de inseto. Nesse sentido, para esse etnó logo n1oderno, já tendo ao seu alcance tuna docun1entação histórica, a pri1neira conc lusão será sobre a existência de unia n1udança cultur al de tal n1onta que, se de un1 lado veio a facilitar a

construção das casas indígenas. unia vez que a antiga residência exigia un esforço 1nuito grande de trabalho, dada a sua con1plcxidade arquitetônica. por outro lado veio afeta r as relaçõ es de trabalho (por não ser n1ais ne- cessá ria a n1obilização de todo o clã para a edificação da n1aloca), ao n1cs1notcn1poe,n que tornava o grupo residenc ial 1nais vulneráve l aos in- setos, posto que os n1osquiteiro s son1ente podcrian1 ser úteis nas redes, fica ndo a ra111ília a n1ercê deles durante todo o dia. Observava-se, assi111, litera ln1ente. o que o saudoso Herbert Baldus chan1ava de unia espécie de '·natureza -n1orta" da acultu ração. Con10 torná-la viva. senão pela pene- tração na natureza das relações ~ociais? Rcton1ando o nosso cxcn1plo, vcrían1os que para se dar conta da natu- rc;,a das relações sociais n1antidas entre as pessoas da unidade residencial (e delas entre si, cn1 se tratando de unia pluralidade de n1alocas de un1a rnc~n1aaldeia ou '·grupo local''). so1nc ntc o Olhar não ~cria suficiente. Co1no alcançar apenas pelo Olhar o signif icado dessas relações sociais

R EV ISTA DE A NTROPOLOG IA, SAo P t , ULq , l JSP, 1996 , v. 39 nº 1.

1nes1nas precondições deste último, na medida en1que está preparado para

elin1inar todos os ruídos que lhe pareçam insignificantes, i.e., que não f a-

çan1 nenhu111sentido no co rpu s teórico de sua disciplina ou para o para-

dig1na no interior do qual o pesquisador foi treinado. Não quero discutir

aqui a questão dos paradigrnas; pude fazê-lo e111n1eu livro Sob re o p en-

sa111ent o ant ropo lóg ico ( I988b), e não te1nos te1npo aqui de abordá-la.

Bastaria entendenn os que as disciplinas e seus paradigmas são co ndi-

cionantes tanto de nosso Olhar qua nto de nosso Ouvir.

Irnagine,nos tIJna entrevista por n1eio da qual o pesquisador se111pre pode

obter inforn1ações não alcançáve is pela estrita observação. Sabernos que

autores co1n o Radcliffe-Brown se1npre recon1endaram a observação de

rituais par a estuda rn1os siste1na s religioso s. Para ele, "no en1penho de

co1nprcender un1a religião devemos pri1neiro concentrar atenção 1nais nos

ritos que nas crenças"(Radcliffe-Brown, 1973). O que significa dizer que

a religião podia ser n1ais rigorosa1nente observáve l na conduta ritual por

ser ela "o e]e1nento 1nais estável e durad ouro', se a compararmos con1 as

crenças. Poré,n isso não quer dizer que 1nesn10 essa conduta , sen1as idéias

que a sustenta1n, j an1ais poderia ser inteira1nente cornpreend ida. Descrito

o ritual, por 111eio do Olhar e do Ouvir (suas n1úsicas e seus cantos), falta-

va-lhe a plena co1npr eensão de seu "sentido" para o povo que o realizava

e a sua "s ignificação" par a o antropólogo que o obse rvava en1toda sua

exte rioridade. 2 Por isso, a obtenção de explicações, dada pelo s próprios

n1e1nbros da con1uniclade investigada, pennit iria se chegar àquilo que os

antropólogos chan1an1de "n1oclelo nativo',, 11 1atéria-prin1apara o entendi-

111 ento antropológico. Tais explicações nativas só poderia1n ser obtidas por

1 n eio da "entrevista''. portanto, de un1Ouvir todo especial. Mas, para isso,

há de se saber Ouv ir.

Se apa rcnten1cntc a entrev ista tende a ser enca rada con10 algo sen

n1aiores dificuldades, salvo, naturaln1ente, a Iin1itação lingüística- i.e.. o

fraco dornínio do idio1na nativo pelo etnólogo -, ela torna--sen1uito n1ais

co1nplexa quando considera1nos que a n1aior dificuldade está na diferença

  • I 9 -

RoHLRTO CARDOSO DE ÜLI VE IR/. Ü TR A8A LHO DO ANTROPÓLOGO

entre "idio111asculturais", a saber , entre o inundo do pesquisador e o do nativo, esse n1undoestranho no qua l deseja1nos penetrar. De resto, há de se entender o nosso 1nundo, o do pesquisador, co111 0 se1Jdoocidental, cons- Lituídon1ini1na1nentepela sobreposição de duas subculturas: a brasileira , no caso de todos nós en1particular; e a antropológica, aquela na qual fo- n1ostreinados co1T10antropólogos e/ou cientistas sociais. E é o confronto entre esses dois rnundos que const itui o contexto no qual ocorre a entre- vista. É, portanto, nu111contexto essencialrnente problemático que te1n lu- gar o nosso Ouvir. Co1nopoderemos, então, questionar as possibilidades da entrevista nessas condições tão delicadas? Penso que esse questiona1nento começa cotn a pergunta sobre qual a natureza da relação entre entrevistador e entrevistado. Sabe1nos que há tnna longa e arraigada tradição na literatura etnológ ica sobre a relação. Se to- rnannos a clássica obra de Mali nowski como referência, vemos como essa tradiçãose consolida e, pratica1nente,trivializa-se na realização da entrevis- ta. No ato de ouvir o "infonnante", o etnólogo exerce u111"poder" extraor- dinário sobre o 1nes1no,ainda que ele pretenda se posicionar co1 110 sendo o observador1nais neutro possível, co1no quer o objetivisn10mais radical.Esse poder, subjace nte às reiações hu tTianas - que autores co1110Fouca u It j a- 1nais se cansara1T1de denunciar-, j á na relação pesquisador/informante vai dese111penhar u1nafunção profunda1n ente empobrecedora do ato cognitivo: as perguntas, feitas e1T1busca de respostas pontuais lado a lado da autoridade de quern as faz (co1n ou se1n autoritaris1no), cria1n un1campo ilusório de interação. A rigor, não há verdadeira interação entre nativo e pesquisador , porquanto na utilização daquele co1no infonnante o etnólogo não cria con- dições de efetivo "diálogo". A relação não é dialógica. Ao passo que, trans- fonnando esse infonnante e1n "interlocutor", uma nova 111oda1idade de rela- ciona1T1ento pode (e deve) ter Iugar.^3

Essa relação dialógica , cujas conseqüências episte1nológicas, todavia, não cabe1n aqui desenvolver, guarda pelo 1nenos u1na grande superiori- dade sobre os procedi1n entos tradic ionais de entrevista. Faz co111que os

ROBERTO CA RDOSO DE ÜLIVEIRA. Ü TRAB AL HO DO ANTROPÓLOGO

é subjacente capta aquiJoque u1n henneneuta chamaria de "excedente de sentido", i.e., aquelas significações (por conseguinte, dados) que escapam a quaisquer rnetodo]ogias de pretensão no1nológica.Voltarei ao tema da observação participante na conclusão desta exposição.

O Escrever

Mas se o Olhar e o Ouvir pode1n ser considerados como os atos cog- nitivos 1nais prelirninares no trabalho de campo (trabalho que os an- tropólogos se acostumara1na se valer da expressão inglesafieldwork para deno1niná-lo), é seguramente no ato de Escrever, portanto na configura- ção final do produto desse trabalho, que a questão do conhecimento se torna tanto ou 1nais crítica. Um livro relativamente recente de Clifford Geertz, Trabalhos e vidas : o antropólogo conio autdr, infelizmente, ao que eu saiba, ainda não traduzido para o português, oferece importante s pistas para desenvolvermos esse te1na.^4 Geertz parte da idéia de separar e, naturalmente,avaliar,duas etapas be1ndistintas na investigaçãoempírica: a primeira, que ele procura qualificar como a do antropólogo "estando lá" (being there), isto é, vivendo a situação de estar no ca1npo; e a segunda , que se seguiria àquela, corresponder ia à experiência de viver, 111elhordi- zendo, trabalhar "estando aqui" (being here), a saber, be111instalado e1n seu gabinete urbano, gozando o convívio com seus colegas e usufruindo tudo o que as instituições universitárias e de pesquisa pode111oferecer. Nesses te1mos,o Olhar e o Ouvir seriam pa1teda prilneira etapa, enquanto o Escrever seria parte inerente da segunda. Devernos entender, assim, por Escrever o ato exercitado por excelên- cia no gabinete, cujas características o singularizam de forma marcante , sobretudo quando o co111parannos co111o que se escreve no campo , seja ao fazermos nosso diário, seja nas anotações que rabiscan1os em nossas cadernetas. E se to1nannos ainda Geertz por referência ve111osque, na 111aneirapela qual ele encaminha suas reflexões, é o Esc rever "estando

R EV ISTA DE ANTROP OLOG IA, SAo PA ULO, USP, 1996, v. 39 nº 1.

aqui", portanto fora da situação de carnpo, que cumpre sua mais alta fun-

ção cognitiva. Por quê? Devido ao fato de iniciannos propria1nente no ga-

binete o processo de textualização dos fenôrnenos socioculturai s obser-

vados "estando lá". Já as condições de textualização, i.e., de trazer os fatos

observados (vistos e ouvidos) para o plano do discurso , não deixam de

ser niuito particulares e exercen1, por sua vez, um papel definitivo tanto no

processo de con1unicação interpares (i.e., no seio da comunidade profis-

sional), quanto no de conhecin1entoproprianiente dito. Mesmo porque há

un1a relação dialética entre o comunicar e o conhecer, u1na vez que a1n-

bos partilha1n de u1na rnes1na co ndição: a que é dada pela linguagem.

E1nbora essa linguage1nseja i1nportante e1n si 1nesnia, co111 0 tema de re-

flexão, haja vista aquilo que podería111os cha111arele"guinada lingüística"

(ou linguistics turn ), que perpassa atualmente tanto a filosofia como as

ciência sociais, o aspecto que desejo tratar aqui, se betn que de modo muito

sucinto, é unicamente o da disciplina e de seu próprio idio1na,por n1eio do

qual os que exercita1n a antropolo gia (ou~n1es1no , qualquer outra ciência

social) pensan1 e se con1unica1n. Alg uérn já escreveu que o ho1ne111não

pensa sozinho, nu1n111onólogosolitário, 1naso faz sociahnente , no interior

de Lnna"co1nunidadede co1nunicação" e "de argurnentação"(ApeL 1 985).

Ele está, portanto. contido no espaço interno de u1n horizonte socialmente

construído (no caso o da sua própria sociedade e/ou de sua co1nunidade

profissional). Desculpando- 111cpela itnprecisão da analogia. diria que ele

se pensa no interior de unia "representação coletiva'': expressão essa. afi-

nal, be1n fan1iliar ao cientista social e que. de cer~o 111odo, dá t11naidé1a

aproxi1nada daqu ilo que entendo por "idio1na'' de u1na disciplina. Co1no

pode111osinterpretar isso en1 conexão con1 os exen1plos etnográficos?

Diria inicial1nente que a textualização da cultura, ou de nossas observa-

ções sobre ela, é uni en1preendin1cnto bastante con1plexo. Exige que nos

dcspojcn1os de alguns hábitos de escrever, válidos para diversos gêneros

de escrita, n1asque para a construção de un1 discurso que esteja discipli-

nado por aqui lo que se poderia chaniar de"( nicta)tcoria social'' nen1scn1-

R i:v 1STA DI·: A NTRoro1,oc 1A , SAo P A ULO , US P, 199 6 , v. 39 n º l.

bib]ioteca ou lihrar yf ield~vork (como joco samente se cos tu111achamá- la) etc, etc, enfin1pelo a1nbiente acadê1 11 ico. Exa1nine111os uni pouco 1nais de peito esse processo de textualização, tão diferente do trabalho de ca111po.No dizer de Gee1tz ( 1988b), seria pergun- tar o que acontece co1n a realidad e observada no campo quand o ela é e1nbarcada para fora? (" Wlzo t happ ens to realit y vvh en it is shipp ed ah road '/ '). Essa pergunta ten1sido constante na chan1adaantropologia pós- n1ode111a- un1rnovi1nento que ve1ntendo lugar na disciplina a pa1tirdos anos 60 e que, n1algrado seus n1uitos equívocos (sendo, talvez, o principal a iden- tificação que faz da objetividade co1 11 a sua 111odalidade perversa, o "objeti- vis1no" ), conta a seu favor o fato de trazer a questão do texto etnográfico corno te1na de reflexão siste1ná tica, co111 0 algo que não pode ser tomado tac itan1ente co1n o tende a ocorrer e1 11 nossa co111unidade profissional (cf. Cardoso de Ol iveira, 1988a). Apesar de Geertz poder ser considerado o

verdadeiro inspirador desse 1 nov i1nento, que reúne u111extenso grupo de an- tropólogos, seus 1ne111brosnão participarn de u111aposição unívoca eventu-

aln1ente ditada pelo n1estre.^6 A rigor, a grande idéia que os une, adernais de possuíren1unia orientação de base henn enêutica, inspiradas e1 11 pensado-

res con10 D ilthey, Heidegger, Gadan1er ou Ricoeur, é se colocare111contra o que considera1 11 ser o n1odo tradicional de se fazer antropologia, e isso. ao

que parece, co1 11 o intuito de reju venescer a antropologia cultural norte-an1e-

ricana. ó1fã de un1 grande teórico desde Franz Boas.

Que pontos podería 1 11 os assinalar, ainda nesta opo rtunidade. nos con- duzen1à questão central do texto etnográfico? Tex to, aliás. que be1n po-

deria ser sociográfico, se puderinos estender, por analog ia, pa ra aqueles 111 es111os resultados a que chcga111os cientistas sociais, não i111portando sua vinculação disciplinar. Talvez o que torne o texto etnográfico 111aissingu-

lar, quando o co n1paran1os con1 outros devo tados à teoria social. seja a articulação que ele busca fazer entre o trabalho de can1po e a cons trução do texto. Geo rge Marcus e Dick Cush111an chegan1 a co nsiderar que a etnog rafia poderia ser clc Cinida co tno "a rep resen tação do traba lho de

RouERTO CARDOSO DE OLIVEIRA. o TRABALHO DO ANTROPÓLOGO

car11ooe1ntextos"(Marcus & Cush1nan, 1982 ). Mas isso tem vários com- plic;dores, con10eles rnesmos reconhece1n. Vou tentar indicar alguns, seguindoesses n1es1nosautores, alé1nde outros que, como e]es (e, de certo n1odo,muitos de nós atuahnente), buscam refletir sobre a peculiaridade do Escrever um texto que seja controlável pelo leitor, e isso na medida cn1 que distingui1nos tal texto da narrativa tneramente literária. Já mencio- nei~1no1nentosatrás, o diário e a caderneta de ca1npo con10 1nodos de escrever que se diferencia1nclara1nente do texto etnográfico final. Poderia acrescentar,seguindo os 1nes1nosautores, que ta1nbé1nos a1tigose as teses acadên1icas deve1nser considerados"versões escritas intennediárias ", uma vez que na elaboração da monografia (esta sim, o texto final) exigências específicas deve1nou deveria1nser feitas. Vou silnplesmente 111encionaral- gun1as, preocupado e1nnão 1nealongar muito nesta conferência. Desde logo uma distinção cabe ser feita entre as monografias clássicas e as 1nodernas. Enquanto as pri1neirasforam concebidas de conformida- de coin u1na"estrutura narrativa nonnativa " que se pode aferir a partir de uma disposição de capítu]os quase canônica (Território , Econo1nia, Or- ganização Social e Parentesco, Religião, Mitologia, Cultura e Personal i- dade etc), as segundas, as n1onografias que pode1nos cha1nar de 1noder- na<;, priorizam u1nte1na, através do qual toda a sociedade ou cultura passa1n a ser descritas, analisadas e interpretadas. Gosto de dar como u1n bom exen1plo de n1onografias deste segundo tipo a de Victor Turner , sobre o processo de seg1nentação política e a continuidade observáveis em uma sociedade africana (cf. Turner, 1957), urna vez que ela expressa co1111nuita felicidade as possibilidades de u1na apreensão holística, porém concen- trada nu1núnico grande te1na,capaz de nos dar Lnnaidéia dessa socieda- de co1nou1naentidade extraordinariamente viva. Essa visão holística, to- davia, não significa retratar a totalidade de u1na cultura, 1nas so1ne nte ter ern conta que a cultura, sendo totalizadora, 1nes1no que parciahnente des- crita, se1npre deve ser ton1ada por referência. Um terceiro tipo seria o da~ chamadas "1no nografias experi1nentais" ou pós-1nodernas (defend idas por M arcus & Cushman), 1 nas que , nes te

R OBE RTO C/\ROOSO DE ÜLI VEIRA. Ü TRABALHO DO AN T ROPÓLOGO

grafia traz uma inegável contribu ição para a teoria soc ial. Marcus & Cushn1an observa1n,relativamente à influência de Geertz na antropologia, que, com ele, a "etnografia tornou-se u1 11 meio de falar sobre teoria, filo- sofia e episten1ologiasirnultaneamente ao cu1npri1nento de sua tarefa tra- dicional de interpretar diferentes rnodos de vida"( l 982 :37). Evidentemente que no elevar a produção do texto ao nível de reflexão sobre o Esc rever, a disciplina está orientando sua ca1ninhada para aquelas instâncias meta- teóricas que poucos alcançara1n realizar. Talvez o exe1np lo 1nais conheci- do dentre os antropólogos vivos sej a o de Lév i-Strauss e no â111bito de seu n1étodo estruturalista , ainda que de reduzida eficác ia na pesqu isa etnográfica. Con1 Geertz e sua antropologia interpretativa, verifica-se o surgi1nentode un1aprática 1n etateórica e1nprocesso de padronização, em que pesem alguns esco1Tegõesde seus adeptos para o inti1n is1no, há pou- co 1nencionado. Entendo que o bo1n texto etnográfico, para ser elabora- do, deve ter pensadas as condições de sua produção, a partir das etapas iniciais da obtenção dos dados (o Olhar e o Ouvir), tal não quer dizer que ele deva se en1aranhar na subjet ividade do autor/pesquisador. Antes, o que está em jogo é a "intersubje tividade" - esta de caráter epistêm ico -, graças à qual se a1i icula1n nun11nes1n o "horizonte teórico" os rne1nbros de sua co1n unidade profissional. E é o reconhecirnento dessa intersubjetividade que torna o antropólogo 1no derno u1ncientista social menos ingênuo. Te- nho para 1ni111que talvez seja essa un1a das mais fortes contribuições do paradig1na henn enêutico para a disciplina.

Conclusão

Exa n1inados o O]har , o Ouvir e o Esc reve r, a que co nclusões pod e- 1nos chegar? Como procurei 1nostrar desde o início, essas "facu ldades" do espírito tê1 11 características be1n precisas quando exercitadas na órbita das ciências sociais e, de urn 1nodo todo especial, na da antropolo gia. Se o Olhar e o Ouvir constituem a nossa "percepção" da realidade focaliza-

R1~v1ST/\ l)L ANTROPOLOGJ 1 , SAo P ,\ ULO , US P, 1996, v. 39 n º 1.

da na pesquisa e1np írica, o Escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso "pensan1ento'', u1na vez que o ato de escreve r é sirnultâneo ao alo de pensar. Quero charnar a atenção sobre isso, de 1nodo a tornar cla- ro que - pelo n1enos no n1cu n1odo de ver - é no processo de redação de u1n texto que nosso pensa1nento can1inha, encontrando soluções que difi - ciln1entc aparecerão ''a ntes" da textualização dos dados prov enientes da observação sistc1nática. Sendo assi1n, seria u1n equí voco i1na ginar que, prin1eiro, chcga n1os a conclusões relativas a esses 1ncs1nos dados, para, en1 seg uida , podc nno s insc reve r essas concl usões no texto. Port anto, dissociando-se o "pe nsar" do ''esc rever". Pelo rnenos 1ninha experiência indica que o ato de escrever e o de pensar são de tal fonna solidários entre si que, junt os, forn1an1pratican1ente u1n 1nesrno ato cognitivo. lsso signifi- ca que nesse caso o texto não espera que o seu autor tenha pri1neiro to- das as respostas para, só então , pod er ser inici ado. Entendo que ocorra na elaboração de urna boa narrati va que o pesquisador, de posse de suas observações dev idan1ente organiza das, j á inicie o processo de textuali-

zação. u1na vez que esta não é apenas unia f orn1a escr ita de sin1plcs expo-

sição (un1a vez que há tan1bén1 a forn1aoral), porérn é a produção do tex-

to tan1bén1 produção de co nhecin 1ento. Não obstante. sendo o ato de escrever un1ato igualn1entccognitivo, esse ato tende a ser repetido quantas

vezes ror necessário~ porta nto, ele é escrito e reescrito rcpetidan1ente, não

apenas para aperfeiçoar o texto do ponto de vista forn1al, n1as tan1bé1n para 1nclhorar a veraci dade da~ descrições e da narrativa, aprofundar a análise e consolida r argu111entos.

Mas isso. por si n1esn10. não carateriza o Olhar, o Ouvir e o Escre- ver antropológicos. po is supo nho que ele está presente cn1 toda e qual- quer escrita no interior das ciências sociais. Mas no que tange à Antropo- logia. con10 procurei n1ostrar.esses atos estão prcvian1cnteco1npron1etidos con1 o próprio hori;,onte da disciplina. onde Olhar, Ouv1r e Escreveres- t:to desde scn1pre :-iintonizados con1 o '·s1stcn1a de idéias e valores" que são próprios dela. O quadro conceit uai da antropologia abriga. ncs\c scn-

R EV ISTA DE A NTROPO LOG IA, SÃOPAULO,USP, 1996, v. 39 nº 1.

e1nblematican1ente. Nesse sentido, os atos de Olhar e de Ouvir são, a ri-

gor, funções de um gênero de observação muito peculiar (i.e., peculiar à

antropologia), por 1neio da qual o pesquisador busca interpretar (melhor

dizendo: co1npreender) a sociedade e a cultura do Outro "de dentro", em

sua verdadeira interioridade. Tentando penetrar nas forn1as de vida que

lhe são estranhas, a vivência que delas passa a ter cumpre uma função es-

tratégica no ato de elaboração do texto , uma vez que essa vivência- só

assegurada pela obse rvação participante "estando Já" - passa a ser evo-

cada durante toda a interpretação do mate rial etnográfico no processo de

sua inscrição no discurso da disciplina. Costu1no dizer aos meus alunos

que os dados cont idos no diário e nas cadernetas de campo ganham ern

inteligibilidade sempre que re1nernorado s pelo pesquisador; o que equi-

vale dizer que a n1e1nóriaconstitui provave hnente o elemento 1nais rico na

redação de u111texto, contendo ela 111es111au111an1assa de dados cuj a sig-

nificação é 111ais be1n alcançável quando o pesqu isador a traz de volta

do passado , tornando -a presen te no ato de escrever. Seria uma espécie

de presentificação do passado, com tudo que isso possa implicar do pon-

to de vista hermenê utico, ou, e1n outras palavras , com toda a influência

que o "esta ndo aqui" pode trazer para a co 111preensão (Verstehen) e a

interpretação dos dados en tão obtidos no ca1npo.

Paremos por aqui. Etn resu1110, vi111os, através da experiência antropo-

lógica, co1110 a disciplina condiciona as possibilidades de observação e de

textua lização se1npre de confon nid ade com u111horizonte que lhe é pró-

prio. E, por analog ia, poder-se-ia dizer que isso oco rre ta111bé1n en1 ou-

tras ciências sociais, e111maior ou e1111nenorgrau. Isso significa que o Olhar,

o Ouv ir e o Escrever devem ser sempre te1natizados, ou, em outras pala-

vras, questionados enquanto etapas de constituição do conhecimento pela

pesqu isa e1npírica- esta últirna sendo vista como o programa prioritário

das ciências sociais. Trazer esse te1napara tuna conferência nesta casa me

pareceu, enfi1n, apropriado pelo fato de estar 111e dirigindo a colegas oriun-

dos de outras disciplinas, o que 1ne ]eva a imaginar estar contribuindo para

  • 3 l -

ROBERTO CARDOSO OE ÜLIV~IRA. Ü TR ABALHO DO ANTROPÓLOGO

an1plíar a indispensável interação entre nossos diferentes (poré111aparenta- dos) offcios, redundando, assim, a proporcionar (quero crer) um certo estí- 111uloà interdisciplinaridade, que entendo necessária no âmbito de um de- partamento devotado ao estudo dos Trópicos. Ao mesmo tempo, ficarei 111uitofeliz se houver conseguido transfonnar atos aparentemente tão trivi- ais, co1110os aqui exa111inados, e111temas de reflexão e de questiona111ento.

Notas

A prin1eira versão desla co nferênc ia f oi desti nada à Aula Inaugura l do ano acadêmico de 1994, re lat iva ao s cursos do In stitu to de F ilosofia e Ciências Hu1nanas (IFCH) da Un ivers idad e Estad ual de Cam pin as (Unicai np ). Ap re- se nte versão, que agora se publica, foi ela borad a para un1a co nfe rência n1i- nistrada a u1na platéia n1ultidisciplinar na Funda ção Joaq ui1n Nabuco , en Recife, e1n 24 de n1aio do mes1no ano, e1n se u Institut o de Tropicologia.

2 Aqui fa ço u1na disti nção entre "se ntid o" e "s ignifica ção": o prilneiro termo destinado a dar conta do horizo nte se mânti co do "nativ o" (co 1no no exem - plo de que estou n1e va lend o), enquant o o segu ndo tenn o serve para desig- nar o horizo nte do antr opó logo (qu e é co nst ituíd o por sua discip lina). Essa distinção se apóia em E.D. Hir sc h Jr. ( 1967:21 l), que, por sua vez, apóia-se na lóg ica fregeana.

3 Esse é u1n te1na que tenh o exp lora do seg uidmn ente em dife rentes pubh ca- ções, poré1n indi ca ria apenas a mai s rece nte: UJna co nferência mini strada na U niversidade Fede ral do Paraná, no ân1bito do Seminá rio "C iência e Socie- dade: A Crise dos M ode los", rea lizado na cidad e de Cu riti ba, e1n 9 de no- ve 1nbro de l993 (cf. Cardoso de Ol iveira, 1994).

4 O tít ulo da ed ição or ig inal é Works and tives: th e anthr opolog ist as autho r (cf. G ee rtz, 1988). Há unia tradução espanho la, publi ca da em Ba rce lo na.

5 M eye r Fo rtes já nos anos 50 chan1ava esse pr ocesso quase primitiv o de in vestigação et nog ráfi ca reali zada no âin hito da antr opo log ia soc ial de