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Este texto discute a importância da ilustração em obras literárias, analisando a relação entre a literatura e as artes plásticas. O documento aborda a questão de quem cria o que e a importância da presença de ilustrações em obras literárias, especificamente na narrativa adulta. Além disso, o texto faz um estudo comparativo entre as ilustrações e as imagens mentais dos leitores. O papel do ilustrador e a importância de uma imagem fiel e autorizada também são discutidos.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de aula
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J. Afonso de S. Camboim
Introdução
A ilustração de obras literárias, recurso uso quase que obrigatório na chamada literatura infanto-juvenil e bastante freqüente na literatura adulta, pelo
menos de certo período, especialmente nas obras de cunho narrativo, constitui um aspecto de interesse, quando se pretende analisar a relação entre a literatura e
as artes plásticas. Neste trabalho, sem que sejamos especialista em desenho ou pintura, aventuramo-nos a analisar o fenômeno da ilustração, mesmo sem recorrência a
uma ampla bibliografia, como era de se esperar - esta, infelizmente, não foi encontrada nas livrarias brasilienses. Como tudo tem seu lado positivo, tentamos tirar proveito desses
evidentes percalços, permitindo-nos escrever mais intuitivamente e formulando, de observação própria, alguns rudimentos do que se poderia chamar de teoria do
desenho ilustrativo. Em seguida, analisamos casos concretos de obras ilustradas, dando especial atenção a O coronel e o lobisomem, de José Cândido de
Carvalho. O desenho ilustrativo é aqui concebido como criação do que já existe
sem existir. Essa aparente contradição resolve-se pela verificação de que estão em análise dois universos —o das coisas imaginadas e o das coisas vistas -, de
modo que o que existe em um não necessariamente existe no outro, podendo, portanto, ser criado no segundo. Ou seja, entendemos que o emprego de dois
códigos, no caso o pictórico e o verbal, por duas diferentes esferas da arte, resulta em dois tipos de criação, ainda que o conteúdo já tenha sido expresso em
uma dessas esferas. Além dessa questão de quem cria o quê onde, discutimos a importância,
ou não, da presença de ilustrações em uma obra literária - e aqui pensamos
especificamente na narrativa adulta, já que na literatura infanto-juvenil a importância dos desenhos ilustrativos parece inquestionável, sendo quase
inconcebível a publicação de um conto que seja, sem que dele haja ilustrações.
Finalmente, já na rápida análise das ilustrações de O coronel e o lobisomem, aproveitamos a presença de um prefácio gráfico à obra, para fazermos um estudo comparativo entre os desenhos do prefácio e os das ilustrações. Com este trabalho, objetivamos ensejar alguma reflexão sobre uma área aparentemente pouco discutida no meio literário, o desenho ilustrativo, e que, no entanto, relaciona-se muito intimamente com a literatura.
A criação visual do verbal
O papel do ilustrador, embora aparentemente irrelevante, já que é opcional e, grosso modo, derivado da obra que se ilustra, torna-se de suma importância, no momento em que o autor opta pelo acompanhamento de desenhos ilustrativos para o seu texto. É que a imagem pictórica plasma-se com muito mais vigor na mente do receptor, já que tem natureza distinta da existente na imagem verbal: enquanto esta é extremamente volátil e multívoca, aquela é fixa, permanente e unívoca; uma é linear, sintagmática, desenvolve-se no tempo, a outra é pontual, paradigmática, cristaliza-se no espaço; enfim, uma é dinâmica, a outra é estática. Disso resulta que, do ponto de vista do receptor, uma função e um dado são simultaneamente acrescidos: se perante o texto havia apenas um leitor, com a inclusão do desenho tem-se um leitor-observador, que associa a visão gerada pela palavra com a visão gerada pela ilustração. Assim, um romance, por exemplo, que contenha ilustrações, tem vários de seus componentes determinados ou relativamente fechados, o que não ocorreria na ausência dos desenhos. Certas situações ou personagens que, sem os desenhos, seriam apenas visualizados passam a ser vistos. Essa é a diferença fundamental existente entre a ilustração pictórica e a narrativa literária. Na visualização, os fatores subjetivos da recepção são, é óbvio, mais significativos que na visão, porquanto se desenvolvem a partir de uma imagem bem menos concreta que a forma gráfica do desenho, a imagem da imaginação. Embora seja o desenho ilustrativo mimese da mimese, esse caráter de imitação em segundo grau não diminui o teor de concreção da imagem pictórica, se comparada à imagem verbal. O fato de um personagem ser pictoricamente representado em uma obra, como o coronel em Ninguém escreve ao coronel, de Gabriel Garcia Márquez, ou como o capitão Vitorino, em Fogo morto, de José Lins do Rego, é tão importante para a imagem do personagem que se formará na mente do leitor quanto o fato de determinado personagem não ser representado pictoricamente na obra, como é o caso do caboclo Capiroba, em Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, ou do major Quaresma, em Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.
Até mesmo obras cinematográficas em que um papel vivido originariamente por um ator passa a ser representado por outro (como o Agente 007, Tarzan, etc.) costumam gerar esse tipo de frustração no público. Tal fenômeno, aliás, evidencia a importância da imagem 2 e do peso que ela passa a ter, uma vez utilizada. Carlitos, por exemplo, dificilmente seria o mesmo, representado por outro ator que não Charlie Chaplin, ou um sósia perfeito. Ainda no âmbito cinematográfico, há personagens que se popularizam com a imagem 2, desenho, como Pinócchio e Peter Pan, e que, quando representados por atores humanos, tornam-se irreconhecíveis, por melhores que sejam os atores e os diretores. Não queremos com esses exemplos, apenas ilustrativos, enveredar pela análise da imagem no cinema, muito menos dando a mesma dimensão à questão cinematográfica e à questão pictórico-literária que estamos a tratar. Eles estão citados aqui não só ratificando o dito de que a primeira imagem é a que fica, mas reafirmando, em uma espécie de analogia, a importância da imagem 2, não verbal, não literária, mas de emprego opcional na literatura, na qualidade de ilustração. Também não pretendemos expandir ou subdividir esse conceito de imagem 2, que, neste trabalho, relacionado ao conceito de imagem 1, em uma oposição circunstancial entre visão e imaginação, deve circunscrever-se aos desenhos ilustrativos das obras literárias. As imagens da narração, portanto, fazem-se na cabeça do leitor, quer haja quer não desenhos ilustrativos na obra. Havendo desenhos, estes tendem a ser concebidos pelo leitor como representação fiel, autorizada, das imagens verbais que se propõem representar, e geralmente não se questiona sua autenticidade. Os traços físicos de um personagem não devem diferir, em uma concepção normal, ou seja, salvo leitura especial, daqueles do desenho que o representa na obra. Essa tendência confirma-se em filmagens ou encenações de muitas obras, inclusive na adaptação para a televisão de O coronel e o lobisomem, obra que mais adiante estudaremos com maior destaque. Não havendo desenhos, as imagens que se produzem na mente do leitor são diretamente originadas da palavra e por isso dependem mais da subjetividade e da imaginação do leitor. Na formalização dessas imagens mediante a adaptação do texto literário para outro veículo como a televisão ou o teatro, a reprodução das imagens do narrado e do descrito dependerá fundamentalmente do diretor e dos atores. O diretor terá menos vantagem que o desenhista, no aspecto de as imagens convencerem ou não, já que as reproduz a posteriori, em separado e no todo, não se restringindo às partes selecionadas.
Da validade das ilustrações
Surge uma questão: Até que ponto a presença da imagem 2 em uma
obra tenderia a diminuir-lhe a expressividade, uma vez que constitui, pelo menos
em tese, um fator de estreitamento da imaginação? Constituiria a ilustração um recurso efetivo, em face do caráter literário da obra que se quer ilustrar? Em Literatura infanto-juvenil — um gênero polêmico, a ilustradora Regina Yolanda Werneck afirma que vários estudiosos, escritores e leitores defendem a tese de que os livros nunca deveriam ser ilustrados. Entretanto, ela mesma não compartilha tal pensamento: Temos a impressão de que o caminho não será o de lutar contra os livros ilustrados e sim a favor de livros bem ilustrados nos aspectos técnico, estético e estimulador do pensamento (1986: 149). A autora defende a ilustração simbólica e não a realista, fiel ao texto, não só como estímulo ao público infantil ou semi-analfabeto, mas sobretudo como contribuição para o desenvolvimento da^maginação do leitor. A defesa de uma ilustração criteriosa é feita também por Fanny Abramovich, em Literatura infantil - gostosuras e bobices, que faz uma crítica à presença dos estereótipos estéticos europeus , freqüentes em ilustrações de obras brasileiras. A preocupação da autora concerne à transmissão de preconceitos que se faz tanto por palavras quanto — e muito!! — por imagens. Embora as obras acima citadas restrinjam-se à literatura infanto-juvenil,
julgamos válido a elas referir-nos, já que ressaltam o fator qualidade como condicionante à defesa da ilustração, o que julgamos valer igualmente para a literatura adulta. Como já se disse, muitos escritores têm exercido essa espécie de parceria com desenhistas, e aquele fator de estreitamento da imaginação parece não se ter verificado, pelo menos como um problema. De fato, um componente que entra para ilustrar, como diria o Aurélio, para esclarecer, elucidar, comentar, explicar ou ornar (um trabalho impresso) com gravura, a princípio não deveria ser bem-vindo em um tipo de arte cuja linguagem se qualifica mais
pelo sugerir que pelo dizer, mais pela conotação que pela denotação, e que, ademais, deveria estar completa em si, dispensando qualquer espécie de adendo. O que ocorre, porém, é que o caráter de ornamento da ilustração parece em nada comprometer o literário da obra, e o caráter de explicação, conforme a
significação dada ao verbete, parece inexistir, quando se trata de ilustração de obras literárias. O que há de fato é o apelo a um outro sentido, o sentido visual, transmitindo em outra linguagem, também artística, o já expresso em uma linguagem primeira. Da mesma forma que a expressão facial ou corporal do ator
em cena não indica uma deficiência do texto, e da mesma forma que uma música de fundo não indica a deficiência de um poema que se declama, nem o completa,
mas apenas o acompanha, em um casamento de duas espécies de estímulo para produzir o mesmo sentimento, o desenho, se bem produzido, não elucida a narrativa - talvez a enfatize -, nem muito menos a completa.
O livro começa e termina falando de imagens pictóricas. Na primeira dessas imagens, a de uma jibóia engolindo um animal, fica subentendida a questão da arbitrariedade necessária (pelo menos do ponto de vista do mundo adulto) da representação pictórica, com os seus artifícios, em face da realidade. O adulto desenha o animal ao ser engolido, julgando que o desenho da jibóia já com a fera engolida seria totalmente inverossímil, ou façanha algo desafiadora, mesmo para um bom cubista:
Mas, nessa primeira página do livro, a questão da imagem suscitada pelo que se lê é o que merece nosso destaque. O trecho de Histoires vécues, a obra lida pelo narrador (As jibóias engolem, sem mastigar, a presa inteira...), suscitou no ilustrador do livro uma imagem determinada, e no leitor - o narrador de O pequeno príncipe - outra bem diferente: uma jibóia transparente com um elefante vivo no seu interior. A imagem do narrador é bem mais coerente com o conteúdo do texto lido, porém bem menos verossímil:
Esse exemplo deixa claro, portanto, que a imagem que um texto pode suscitar, mesmo um texto referencial ou objetivo, nem sempre é tão óbvia ou universal. A penúltima página do livro de Saint-Exupéry contém um desenho, uma paisagem, também comentado, no epílogo, pelo narrador. Pela íntima relação que se dá entre os desenhos e o texto em O pequeno príncipe, seria difícil considerar essa obra como um livro ilustrado, apenas. Os seus desenhos não são apenas ilustrativos, fazem parte da obra, que na verdade se classificaria melhor como pictórico-literária. Outro bom exemplo de obra literária ilustrada pelo próprio autor - esta realmente só literária - é o Papáverum Millôr, de Millôr Fernandes. Dentre seus poeminhas — muitos sem qualquer pretensão, alguns com alguma pretensão e poucos extremamente pretensiosos (cf. a apresentação do autor) há os que são ilustrados e os que não são, de modo que, na mesma obra, pode-se ter a noção do valor da imagem pictórica junto à imagem verbal. Sendo o autor um desenhista, sendo a obra um livro de poemas e tendo o autor ilustrado alguns desses textos, pode-se perguntar por que ilustrar apenas alguns. A razão provavelmente seria um critério, que de resto deve acompanhar qualquer ilustrador: assim como nem todas as cenas - nem mesmo todas as mais importantes cenas - de um romance devem ser retratadas pictoricamente, nem todos os poemas de Millôr o são. É preciso saber onde uma imagem visual - e qual imagem - vai coadunar-se com o efeito que o autor quer produzir. No caso de Millôr, o efeito é essencialmente o riso. Então a imagem tem de constituir um reforço ao cômico. Abaixo, citamos dois curtos poemas de Millôr, um que apresenta a imagem 2 e outro que não a apresenta:
POESIA D E AGRADECIMENTO AO SENHOR PUNTILA (O BO M PATRÃO)
“O que vale, meu filho, é a intenção" Diz ao dar a gratificação anual. Aceito a oferta e verifico que o patrão está cada vez mais intencional.
A obra O coronel e o lobisomem (CL), de José Cândido de Carvalho, tem como principal personagem o coronel Ponciano de Azeredo Furtado. Poty, o ilustrador da obra, criou pela primeira vez a imagem pictográfica do coronel. Posteriormente, a imagem do personagem foi recriada no desenho por Appe, que teve o seu prefácio gráfico Como meu lápis vê o coronel incluído na obra a partir da oitava edição.
Prefácio gráfico x ilustrações: um breve estudo comparativo
O prefácio gráfico de Appe parte da seleção de pequenos trechos da obra, transcritos como legendas dos desenhos, de modo que a ligação entre o literário e o pictórico faz-se de forma ainda mais direta que a ligação que existente entre as ilustrações e a obra. Na ilustração, o desenhista busca elementos disseminados pelo texto e os concentra em um quadro-, assim o leitor nem sempre identifica o(s) trecho(s) da obra que inspiraram o artista na elaboração daquele desenho (A necessidade de busca dessa identificação geralmente nem é despertada.). Já nesse prefácio gráfico, são indicados exatamente os trechos que o desenhista quer reproduzir, em uma espécie de tradução de uma linguagem verbal para uma linguagem visual. Se em uma tradução comum, entre códigos verbais, ocorrem traições, em uma tradução entre dois tipos de códigos diferentes pode-se supor que os riscos do tradutore traditore sejam ainda maiores. Mas essa analogia não pode ir muito longe: é que a tradução comum se aproxima mais da reprodução, ao passo que a tradução pictórica se aproxima mais da recriação; aliás, constitui necessariamente uma recriação. Um personagem literário simplesmente não existe para o universo da visão. Ele tem nome, personalidade e até traços físicos, mas, como se fosse um deus, não é visível. Aí, onde o caráter de imobilidade das obras de arte pictóricas constitui uma deficiência, do ponto de vista da narração, nesse mesmo ponto, esse caráter constitui uma vantagem, pois enseja a possibilidade de ser visto até mesmo o que, por natureza, é invisível. Na análise desse prefácio gráfico, o primeiro aspecto que cabe ser considerado é o fato de haver dois coronéis desenhados: o coronel da ilustração e o coronel do prefácio. Nascidos em épocas diferentes e de autores diferentes, cada um reflete um estilo e uma concepção próprios. Por exemplo, em Poty os traços são grossos e densos, ao passo que em Appe são finos e claros. No primeiro, ressaltam-se os aspectos do imaginário, da solidão espiritual e da melancolia interior que envolvem o personagem; no segundo, ressalta-se especialmente o aspecto humorístico despertado pela figura do personagem, em face das suas expressões de valentia (?), de galanteria (?) e de fantasiosidade. Os desenhos de Poty e de Appe refletem, pode-se dizer, duas grandes perspectivas pelas quais é possível realmente ser interpretada a obra de José
Cândido de Carvalho e, particularmente, a figura do coronel. É que o sentimento, não propriamente do trágico, mas pelo menos do triste e do melancólico, encontra-se entretecido na obra com o sentimento do humor: o primeiro é mais patente quando se adota a visão interna do personagem-narrador, o segundo quando se adota a visão do mero observador. Os sentimentos que o coronel inspira oscilam entre a piedade e o riso. Os desenhos de Poty, pelo seu caráter sombrio e pelo tom taciturno de suas manchas, denotam uma leitura do coronel predominantemente pela perspectiva do triste. Já os desenhos de Appe, pela sua limpidez e em particular pelo seu tom hiperbólico, indicam uma leitura predominantemente humorística da figura do coronel. Pode-se dizer até que Appe pretendeu, em seu prefácio, enfatizar visualmente o aspecto humorístico da obra, que fora tocado apenas de leve pela ilustração de Poty - um aspecto que, entretanto, é realmente fundamental na obra. Ao produzir Como meu lápis vê o coronel , Appe reacendeu, portanto, em termos/visuais, um aspecto que nunca estivera apagado na narrativa do coronel, como comprovam as legendas em que cada desenho se inspira. Vale citar aqui a adaptação da obra para a televisão, feita por Jorge Furtado, Guel Arraes e João Falcão, exibida pela rede Globo, em que a dimensão humorística da obra e do seu principal personagem foi devidamente observada, inclusive na interpretação do ator Marco Nanini. Enfim, pode-se supor que as ilustrações de Appe tenham sofrido influência das de Poty, na concepção geral da figura do coronel, já que os desenho deste antecedem os daquele. O certo é que ambos os desenhistas pretenderam a criação pictórica do personagem de José Cândido de Carvalho, recorrendo, portanto, à obra literária.
Análise dos quadros em face da obra e das legendas
Dentre os treze trechos escolhidos por Appe como legendas, destacaremos quatro, sobre os quais concentraremos a nossa análise:
a. Muito sujeitinho de banco, com alma de 10 por cento ao mês, eu suspendi pelo colarinho. b. Homem que é homem duas coisas de principal deve ter: barba grande e voz grossa. O charuto é para espantar o povinho dos empréstimos, que é a pior raça já existida no mundo. c. Para lidar com onça pintada o patriota tem de ter muito tirocínio de armas. O que mais onça aprecia é um tiro firme, bem no central da testa, de modo a não danificar a pele. d. Sou maluco por um cafuné de barba feito por mão perita. Sou coronel de ficar um mês de cabo a rabo nesse serviço mimoso.
Legenda c:
Na legenda a, o desenho retrata fielmente o que está dito. A figura em feitio de palmeira do coronel suspende pelo colarinho o sujeitinho do banco. O fielmente do desenho, entretanto, não vai tão longe a ponto de restringir a ilustração aos elementos explícitos no texto. Há lugar no desenho, como houve na cabeça do leitor, para alguns elementos visualizáveis. Assim, o puxão cometido pelo coronel, de tão firme, faz voarem os papéis de sobre a mesa e ficarem, por inércia, a caneta e os óculos do sujeitinho ; assim, a curvatura do tronco e a baforada intimidativa do coronel, bem como a curvatura da mão em feitio de segurar um rato , diminuem ainda mais o sujeitinho, que é trazido por sobre a mesa. Enfim, há lugar no desenho até para percepções hermenêuticas mais sutis, como o entendimento de que é a própria alma de 10 por cento ao mês que está sendo suspensa pelo colarinho. Isso sugere a leveza e a maleabilidade da figura do (^) sujeitinho. Na legenda c, o desenho retrata mais o que a narrativa sugere que os dizeres da legenda. O texto da legenda é, supostamente, assim como o da narrativa, de autoria de um perito em caçada de onça. O desenho, no entanto, mostra um coronel amedrontado e acuado a se esconder entre os ramos de uma
árvore. É que, nesse trecho da obra, o autor implícito aponta, de algum modo, a falta de correspondência entre o que conta o narrador e o que efetivamente ocorre. E o fato de o desenhista basear-se no que sugere o autor implícito, e não no que diz o narrador, deixa claro que o desenho implica necessariamente uma leitura, ou seja, uma interpretação, tese que já defendemos anteriormente. Em suma, nesse caso, um desenho fiel ao narrador, que mostrasse sua propalada habilidade no trato com onças, seria infiel à obra, uma visão deturpada do personagem. Certamente por isso, não só Áppe como Poty, que também ilustrou esse episódio (CL: 61), produziram um desenho que constitui uma espécie de ironia ao texto do narrador:
No desenho c, a imagem que o coronel quer passar, de sujeito corajoso e entendido em onça, se desmascara. Sem qualquer tirocínio de armas, ele encontra-se simplesmente tomado pelo medo, que o leva a esconder-se nos galhos da árvore. O desenho, mais instantaneamente que o texto (Esta é uma vantagem do desenho: a visão panorâmica, global, do quadro.) mostra a situação irônica em que se coloca o coronel. Dessa ironia e desse revés, vem a comicidade. O riso suscitado pelo quadro b, acima, advém essencialmente do seu caráter hiperbólico. O exngcro, não só da barba grande como da voz grossa, além da estranheza - pelo menos em face dos dias de hoje e do meio urbano - da idéia em si mesma são elementos realmente hilários. O traço curioso desse desenho é que, embora a ".rte pictográfica não possua meios físicos de reproduzir o elemento sonoro, mediante a visão do desenho, ouve-se perfeitamente o vozeirão do coronel. A ênfase no cômico que verificamos nos traços de Appe pode ser demonstrada, enfim, pela análise do desenho abaixo (legenda d). Baseado no componente feminino, que, juntamente com o componente financeiro, constituiria um dos vieses trágicos ou tristes da obra, o desenho, entretanto, não exprime esse viés. Aqui não se retrata o insucesso amoroso real do coronel, mas o seu sucesso imaginário, e, assim, exprime-se o cômico.
Legenda d:
Em seu ensaio “Romance definitivo”, M. Cavalcanti Proença refere-se ao coronel como meninão: PONCIANO FURTADO, por extenso Coronel Ponciano de Azeredo Furtado, entra na literatura arrastando esporas de roseta graúda, suas tintas de rábula e um vasto coração de menino. Meninão (Apud CARVALHO, 1973: xii). E esse meninão, que se alimenta de devaneios mais ou menos eróticos, e do qual as mulheres parecem escapar irremediavelmente - mas isso só na realidade ficcional, felizmente (ufa!), não na sua imaginação - que o desenho
mostra. E uma imaginação tão vívida do que não passa de fantasia não deixa de ser engraçada.
Ainda um pouco de Appe x Poty
Observamos que o prefácio gráfico de Appe contém treze desenhos e que as ilustrações de Poty são em número de vinte e seis. Afora as diferenças de técnicas e de estilos, ressaltamos uma maior tendência para o cômico em Appe - não que ela inexista em Poty. Um instante de comicidade, talvez até mais intensa, presente em Poty, encontra-se exatamente no desenho da caçada à onça, em que o largar a própria arma e correr brejo adentro por entre os sapos, segurando o chapéu (desenho de Poty) parece mais hilário que o esconder-se assustado entre os galhos da árvore (desenho de Appe). f O fato curioso que aqui queremos destacar advém não de uma diferença, mas de uma semelhança entre os dois artistas. É que, dentre os treze desenhos de Appe, seis (o da onça, o do coronel na cama, o da sereia, o do galinho, o do lobisomem e o do sabiá na gaiola) repetem temas e até elementos visuais já tratados por Poty (CARVALHO, 1973: 61, 81, 107, 131, 180 e 284/292, respectivamente). Essa reiteração que, em uma análise superficial, poderia ser tomada como uma simples indicação de que o segundo desenhista está apenas a copiar o primeiro constitui, na verdade, uma semelhança de critérios entre os dois artistas para produzir suas ilustrações. Com efeito, ante uma obra literária a ser ilustrada, uma pergunta inalienável emerge: O que ilustrar? Ou seja, surge a necessidade de saber que personagens, que cenas, que episódios, que objetos, que cenários, etc. devem ir para o desenho e qual o status de cada um desses elementos dentro da obra. Enfim, a repetição que pudemos verificar em Appe com relação a Poty não pode ser considerada como aleatória, nem muito menos como um plágio. No momento em que a ilustração destaca necessariamente elementos funda-mentais da obra, torna-se obrigatória a repetição deles nos dois artistas. O que se pode inferir é que os recursos à disposição do código pictórico para representar uma mesma situação não são tão diversos como os de que dispõe o código verbal, por exemplo. Para quem vê, as imagens de alguém segurando uma gaiola, parado ou andando, parecem não apresentar grandes diferenças, uma com relação à outra.
Conclusão
O texto literário que, em princípio, dispensa absolutamente ilustrações, pode manter diversos níveis de relação com um projeto gráfico que a ele se associe: desde a relação de independência, em que figuras espalhadas ao longo
PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. Tradução de Aurora Fortoni Bernardini e Homero Freitas Andrade. São Paulo: Ática, 1992. SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. Tradução de Dom Marcos Barbosa. 26. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1983. WERNECK, Regina Yolanda. Literatura infanto-juvenil - um gênero polêmico. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.
J. AFONSO DE S. CAMBOIM é Mestre em Literatura pela UnB e professor da Fundação Educacional do Distrito Federal.
CERRADOS, Brasilia, N° 7, 1998 23