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Monteiro Lobato: A Transição da Agroindústria do Vale do Paraíba para o Oeste Paulista, Notas de estudo de Economia

Este documento discute a transição histórica da economia agrária do vale do paraíba para o oeste paulista, como descrita por monteiro lobato em suas obras 'cidades mortas' e 'obras completas'. O autor critica a mentalidade tacanha e obsessiva dos fazendeiros valparaibanos, incapazes de adaptar-se às novas exigências da exploração capitalista agrária. Em contraposição, ele elogia o progresso da região do oeste paulista, onde se encontra a prospera indústria cafeeira. O texto também aborda as influências intelectuais dos literatos decadentistas do final do século xx no pensamento de monteiro lobato.

O que você vai aprender

  • Como Monteiro Lobato descreve a região do Oeste Paulista?
  • Qual é a região que Monteiro Lobato considera o símbolo do progresso?
  • Como Monteiro Lobato descreve a mentalidade dos fazendeiros valparaibanos?
  • Qual é a transição histórica descrita por Monteiro Lobato na economia agrária do Vale do Paraíba?
  • Quais influências intelectuais podemos identificar no pensamento de Monteiro Lobato?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Rafael86
Rafael86 🇧🇷

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2012
PLURAL, Revista do Programa de Pós ‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.19.2, 2012, pp.69‑82
Recebido para public ação em 26/06/2012
Aceito para publicação em 18/12/2012
* Bacharel em Ciências S ociais pela Unesp de Maríl ia, mestre em Sociologia pela Unesp de Arara-
quara e doutoranda em Ciência s Sociais pela Unesp de Marília. Estuda o Brasi l rural nas obras
de Monteiro Lobato das décadas de 1910 a 1930, com bolsa de estudos da Fapesp. É orientanda
da professora doutora Célia Aparecida Ferreira Tolentino.
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idades
mortas
:
o rural como sinônimo de atraso e decadência
Luciana Meire da Silva*
Resumo Em Cidades mortas, livro publicado pela primeira vez em 1919, é reunida
uma série de contos escritos entre 1900 e 1910. Monteiro Lobato (1882-1948) critica
as especificidades do rural brasileiro. Ele o vê como decadente e sem perspectivas de
ser reabilitado, porque, segundo entende, caíra em profunda exaustão. Nos contos
ambientados na região valparaibana, as imagens elaboradas para falar da decadência
são trágicas e mórbidas. A ideia de rural aparece em oposição ao urbano. A construção
do urbano, feita por Lobato, é vinculada ao progresso, entendido como modernização
ligada ao dinamismo das cidades. O modelo é São Paulo e também a rica Ribeirão
Preto, na região do Oeste Paulista. Monteiro Lobato critica a velha elite cafeicultora
valparaibana decadentista por seus desperdícios, pelo absenteísmo, pela falta de
racionalidade no trato com as lavouras e por suas reclamações de protecionismo
governamental. Para o autor, a mentalidade desses perdedores ficou presa ao passado
colonial; um obstáculo para o progresso da nação.
Palavras-chave Pensamento social brasileiro; Monteiro Lobato; Cidades mortas;
Brasil rural.
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: the rural as a synonym for baCkwarDness anD DeCaDenCe
Abstract In Dead cities, a book first published in 1919, is collected a series of short stories
written between 1900 and 1910. Monteiro Lobato (1882-1948) criticizes the specificities
of Brazilian rural. He sees it as decadent and no prospects of being rehabilitated, because
as he understands it fell into deep depletion. In the tales acclimatized in the valparaibana
region, the images prepared to talk about the decadence are tragic and morbid. The rural
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PLURAL, Revista do Programa de Pós ‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.19.2, 2012, pp.69‑ 82

Recebido para publicação em 26/06/ Aceito para publicação em 18/12/

  • Bacharel em Ciências Sociais pela Unesp de Marília, mestre em Sociologia pela Unesp de Arara- quara e doutoranda em Ciências Sociais pela Unesp de Marília. Estuda o Brasil rural nas obras de Monteiro Lobato das décadas de 1910 a 1930, com bolsa de estudos da Fapesp. É orientanda da professora doutora Célia Aparecida Ferreira Tolentino.

Cidades mortas:

o rural como sinônimo de atraso e decadência

Luciana Meire da Silva*

Resumo Em Cidades mortas, livro publicado pela primeira vez em 1919, é reunida uma série de contos escritos entre 1900 e 1910. Monteiro Lobato (1882-1948) critica as especificidades do rural brasileiro. Ele o vê como decadente e sem perspectivas de ser reabilitado, porque, segundo entende, caíra em profunda exaustão. Nos contos ambientados na região valparaibana, as imagens elaboradas para falar da decadência são trágicas e mórbidas. A ideia de rural aparece em oposição ao urbano. A construção do urbano, feita por Lobato, é vinculada ao progresso, entendido como modernização ligada ao dinamismo das cidades. O modelo é São Paulo e também a rica Ribeirão Preto, na região do Oeste Paulista. Monteiro Lobato critica a velha elite cafeicultora valparaibana decadentista por seus desperdícios, pelo absenteísmo, pela falta de racionalidade no trato com as lavouras e por suas reclamações de protecionismo governamental. Para o autor, a mentalidade desses perdedores ficou presa ao passado colonial; um obstáculo para o progresso da nação. Palavras-chave Pensamento social brasileiro; Monteiro Lobato; Cidades mortas ; Brasil rural.

DeaD Cities: the rural as a synonym for baCkwarDness anD DeCaDenCe

Abstract In Dead cities , a book first published in 1919, is collected a series of short stories written between 1900 and 1910. Monteiro Lobato (1882-1948) criticizes the specificities of Brazilian rural. He sees it as decadent and no prospects of being rehabilitated, because as he understands it fell into deep depletion. In the tales acclimatized in the valparaibana region, the images prepared to talk about the decadence are tragic and morbid. The rural

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idea appears in opposition to urban idea. The urban construction, done by Lobato, is linked to progress; it is understood as modernization linked to the dynamism of cities. The model is São Paulo and also the rich Ribeirão Preto, in the West region of São Paulo. Monteiro Lobato criticizes the old and decadent valparaibana coffee elite for their waste, absenteeism, lack of rationality in dealing with crops and for their claims of government protectionism. For the author, those losers’ mentality will be attached to the colonial past, an obstacle to the nation progress. Keywords Brazilian social thought; Monteiro Lobato; Dead cities ; rural Brazil.

INTRODUÇÃO

Entre os aspectos mais significativos da Primeira República, constituídos das mais reveladoras preocupações da literatura de Monteiro Lobato nas décadas de 1900 e 1910, figuram a decadência da agricultura cafeeira na região do Vale do Paraíba e sua migração para o Oeste Paulista. No final do século XIX, a lavoura cafeeira valparaibana perdeu sua hegemonia de região predominantemente cafei- cultora para a produção da região do oeste do estado de São Paulo. A transição, vista e vivida por ele como filho de uma família oligárquica cafeeira^1 na região do Vale do Paraíba, é tema recorrente em Cidades mortas , uma coletânea de textos escritos entre 1900 e 1910, mas publicada somente em 1919. Nesse livro, Monteiro Lobato recria de forma literária e saudosa fatos e glórias passados quando da produção rural cafeeira. Diferentemente, entretanto, da nostalgia romântica, sua expectativa, a princípio, não parece ser a volta ao passado, e sim à sua superação. Lobato chama a atenção do leitor para o estado de declínio e decadência da região agrária valparaibana. Como “arguto crítico social, homem preocupado com os destinos de seu país^2 ”, ele traz para o leitor o rural valparaibano, em sua visão, atrasado e decadente e elabora sua interpretação da transição histórica da agricultura cafeeira da região. Segundo Lobato, a pujança de ontem do Vale do Paraíba teria migrado para o Oeste Paulista por meio do chamado “progresso nômade”.

1 Conforme Sérgio Miceli (2001, p. 98), no livro Intelectuais à brasileira, José Bento Monteiro Lobato foi “filho e neto de grandes proprietários de terras na região paulista do Vale do Paraíba, teve a educação esmerada que em geral recebiam os jovens dessa fração da classe dominante. A morte de seu pai ocorre no momento em que cursava os preparatórios então exigidos para matrícula no curso superior. Como para seu avô, o visconde de Tremembé, não houvesse outro caminho possível a não ser torná-lo um bacharel, nem mesmo lhe permitiria tentar o ingresso na Escola de Belas-Artes ou na Escola de Engenharia, as duas outras alternativas entre as quais podia se dar ao luxo de hesitar um herdeiro de quase 2 mil alqueires [...]”. 2 Expressão dos autores Azevedo, Camargos e Sacchetta (1997, p. 58).

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utilizados por seus mestres. Esses eram alguns dos aspectos da vida na capital paulista, onde a “boemia literária” ocupava lugar de destaque entre os estudantes. E, comparadas à cidade de São Paulo e seus duzentos e quarenta mil habitantes, com seu projeto modernizador inspirado na Belle Époque^3 europeia e capitaneado pelo prefeito Antônio da Silva Prado, “ex-conselheiro do Império, fazendeiro, indus- trial e influente paulista, que permaneceu no cargo até 1911 – ano em que é inaugurado o Teatro Municipal” (C osta; sChwarCz, 2000, p. 34-35), as cidadezinhas do Vale do Paraíba parecem viver em outro tempo. Em contraposição à sua ideia de rural como sinônimo de atraso, a construção do urbano feita por Lobato é vinculada à determinada ideia de progresso, enten- dido como modernização, ligada ao dinamismo das cidades urbanizadas. No conto Cidades mortas , escreve:

Até o ar é próprio; não vibram nele fonfons de auto nem cornetas de bicicletas nem campainhas de carroça nem pregões de italianos nem ten-tens de sorve- teiros, nem plás-plás de mascates sírios. Só os velhos sons coloniais – o sino, o chilreio das andorinhas na torre da igreja, o rechino dos carros de boi, o cincerro de tropas raras, o taralhar das baitacas que em bando rumoroso cruzam e recru- zam o céu (Lobato, 1995, p. 23, grifos do autor).

Sua representação do urbano se caracteriza pela agitação e pelo movimento das vias públicas e seus rumores, elementos vinculados aos signos do mundo moderno. Eles traduzem o dinamismo do trabalho a todo vapor da zona urbana, entendida como a cidade de São Paulo e também as cidades da nascente região cafeicultora do Oeste Paulista: o barulho dos autos traduz a liberdade dos indiví- duos se locomoverem com certa velocidade pelas ruas, e as “cornetas de bicicletas”, “campainhas de carroça”, “pregões de italianos”, “ ten-tens de sorveteiros” e “ plás-

3 Segundo Nicolau Sevcenko (1999, p. 27): “A situação era realmente excepcional. A cidade do Rio de Janeiro abre o século XX defrontando-se com perspectivas extremamente promissoras. Aproveitando de seu papel privilegiado na intermediação dos recursos da economia cafeeira e de sua condição de centro político do país, a sociedade carioca viu acumularem-se no seu interior vastos recursos enraizados principalmente no comércio e nas finanças, mas derivando já também para as aplicações industriais. Núcleo da maior rede ferroviária nacional, que o co - locava diretamente em contato com o Vale do Paraíba, São Paulo e os Estados do Sul, Espírito Santo, e o hinterland de Minas Gerais e Mato Grosso, o Rio de Janeiro completava sua cadeia de comunicações nacionais com o comércio de cabotagem para o Nordeste e o Norte até Manaus. Essas condições prodigiosas fizeram da cidade o maior centro comercial do país. Sede do Banco do Brasil, da maior Bolsa de Valores e da maior parte das grandes casas bancárias nacionais e estrangeiras, o Rio polarizava também as finanças nacionais. Acrescente-se ainda a esse quadro o fato de essa cidade constituir o maior centro populacional do país, oferecendo às indústrias que ali se instalaram em maior número nesse momento o mais amplo mercado nacional de consumo e de mão-de-obra”.

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-plás de mascates sírios” sugerem a valorização da dinâmica social promovida pelo trabalho dos imigrantes, principalmente com as atividades comerciais. Tal mão de obra, livre e assalariada, é incorporada pelo comércio e pela nascente indústria nacional. Também o Oeste Paulista congrega mão de obra estrangeira e prospera a olhos vistos. Em contraposição, há uma vida colonial rural silenciosa, lenta e atra- sada no Vale do Paraíba, sem a agitação urbana e sem a velocidade características da dinâmica social do trabalho possibilitada pela indústria e pelo comércio. Seu silêncio só era quebrado quando o sino da igreja tocava, as andorinhas chilreavam e os carros de boi passavam. “O cincerro de tropas raras” indica a ausência das tropas, outrora carregadas de mantimentos e então sem mais passarem por ali. Sem a circulação de dinheiro, não haveria grande circulação de mercadorias. O canto das baitacas ao cruzar o céu é a consagração do viver rural pacato. Nesse sentido, o rural é representado como estilo de vida quieto e colonial, com base nas tradições e religiosidades, e caracterizado pela sintonia com a natureza. Monteiro Lobato reclama uma dinâmica social urbana e laboral, relacionada à sua ideia de progresso, inexistente nas cidades mortas do Vale do Paraíba, identificadas como decadentes e irracionais. Lobato observa o desenvolvimento desigual do capitalismo brasileiro. A região rural do Vale do Paraíba se enfraquecera na batalha do desenvolvimento capita- lista e ficara para trás, em contraposição a outras cidades que se dinamizaram: “Desviou-se dela a civilização. O telégrafo não a põe à fala com o resto do mundo, nem as estradas de ferro se lembram de uni-la à rede por intermédio de humilde ramalzinho” (L obato, 1995, p. 25). A civilização, desviada da região, é retratada, por exemplo, pela ausência do telégrafo, facilitador da comunicação com o mundo, das estradas de ferro, pois, no processo civilizatório da era cafeeira, elas contribuem para o escoamento do café para o mercado de consumo interno e externo. A velocidade sobre os trilhos diminui o isolamento entre as zonas rural e urbana e abre novos caminhos para a acumulação capitalista brasileira e para investimentos em outros setores da economia nacional. A dinâmica de trabalho produtivo, representada pela região próspera do Oeste Paulista e pela cidade de São Paulo, é a referência de progresso material para Lobato nesse momento. Essa é a civilização inexistente nas cidades mortas da região do Vale. Ao contrário, o rural decadente se sobressai como a imagem de uma “vovó entrevada, sem netos”, estéril, decaída à margem do caminho. Sem esperanças de reversão da situação, ela chora as saudades de um passado glorioso. Um rural com vida parasitária, em um lugar distante, situado na depressão profunda entre as montanhas de relevo fortemente desnivelado e

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dência, pode-se concordar com Ana Luiza dos Reis Bedê (2007), quando ela afirma haver em Lobato influências intelectuais dos literatos decadentistas do fim do século 4. Pode-se dizer ainda que o pensamento de Lobato oscila dialeticamente entre tradição e modernidade, pois, como forma de superação da decadência cafe- eira do Vale do Paraíba, o autor aponta para a exploração capitalista próspera nas terras da região do Oeste Paulista. Em carta endereçada a Godofredo Rangel, no dia 18 de janeiro de 1907, Monteiro Lobato se mostra fascinado com as novas possibilidades do nascente Oeste Paulista. Este passa a representar o lugar de novos “costumes, hábitos e ideias”, diferente do clima mórbido do Vale:

[...] O mês de dezembro passei-o todo fora daqui, em São Paulo e no Oeste, cor- ri as linhas da Paulista, Mogiana e Sorocabana, com paradas nas inconcebíveis cidades que da noite para o dia o café criou – São Carlos, um lugarejo de ontem, hoje com 40 mil almas; Ribeirão Preto, com 60 mil; Araraquara, Piracicaba a formosa e outras. Vim de lá maravilhado e todo semeado de coragens novas, pois em toda a região da Terra Roxa – um puro óxido de ferro – recebi nas ventas um bafo de seiva, com pronunciado sabor de riqueza latente. /Em Ribeirão a colheita do município foi o ano passado de quatro e meio milhões de arrobas – coisa fabulosa e nunca vista. Um fazendeiro, o Schmidt, colheu, só ele, 900. arrobas. Costumes, hábitos, idéias, tudo lá é diferente destas nossas cidades do velho São Paulo e da tua Minas [...] (Lobato, 1964, p. 153).

Monteiro Lobato contrapõe as características da cultura paulistana, repre- sentantes do progresso por meio do urbanismo cosmopolita e da dinâmica social do trabalho, com o progresso da nova região próspera do Oeste Paulista. Dessa nova região, elogia a colheita realizada por fazendeiro empreendedor. Ao mesmo tempo, ele vê o fazendeiro do Vale como responsável pela derrocada^5 e elogia e

4 A autora Ana Luiza Reis Bedê (2007, p. 137) analisa a influência que Guy de Maupassant exerceu no pensamento de Monteiro Lobato e pergunta: “Por que Lobato queria contos que tivessem dramas ou que deixassem entrever dramas? Talvez uma das razões seja o seu anti-romantismo. [...] o criador de Jeca Tatu revelou-se um dos mais acirrados críticos da visão idealizada dos índios nos romances de José de Alencar e dos caboclos nos contos de Bernardo Guimarães. Deste último afirmou, em Oblivion de Cidades mortas , que lê-lo ‘era [...] ir para a roça adjetivada por menina de Sião’”. 5 Em perspectiva comparativa ao pensamento de Monteiro Lobato sobre a decadência da elite cafeicultora, cita-se o estudo de Oliveira Viana, Populações meridionais no Brasil, publicado originalmente em 1918. Em seu livro, ao falar das populações rurais, mais precisamente do fazendeiro patriarcal, proprietário de terras, escravos e agregados, Oliveira Viana o descreve como “poderosa aristocracia rural” constituída pelo elemento ariano da nacionalidade, uma raça superior porque preservava a característica do povo português, brava gente cheia de qualidades,

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entende como progresso a nova forma de exploração capitalista dos cafeicultores do Oeste Paulista. Um exemplo de pensamento contraposto às críticas à elite cafeeira de Monteiro Lobato é o de Paulo Prado, escritor de Paulística ([1925] 1927). Ele reclama a estirpe empreendedora, afirma a superioridade do cafeicultor paulista, considerado uma raça de nobres, brancos portugueses, incansáveis na exaltação de sua própria ascendência, à frente da economia agroexportadora e na condição de elite aristo- crática; diferente, portanto, do restante da população do país: pobre, “miscigenada por raças múltiplas” e de “resultado duvidoso”. Contudo, aquela “raça de fortes” perdia sua característica de elite agrária dominante com a chegada dos imigrantes, internos e externos, para o trabalho na indústria, no comércio e no campo, energia laboral e empreendedora ofuscante do viver social e tradicional português:

A aristocracia rural era o último reduto do tipo ancestral, degenera, se extingue e se transforma no industrialismo cosmopolita, e sem laço íntimo e profundo que a liga ao solo – na sua vida social e na sua vida política – estrangeira na própria terra, assiste inerte e desolada à formação de uma nova raça, que ainda não tem nome, e que será o futuro habitante de São Paulo. A onda imigratória – imigrante de outros países, imigrantes do próprio Brasil – inunda os campos e colinas do planalto, que não mais protege a serra rude e hostil (prado, 1927, p. 39).

Portanto, diferente do visto nos escritos de Paulo Prado (1925), Lobato (1906) não lamenta a perda de uma “estirpe heroica e nobre”, tampouco o patriarcalismo centralizador como condutor da nação e guia político da vida nacional. Lobato ironiza a tragédia daqueles que, apesar de alardearem sua superioridade e de se

características adaptadas ao meio rural brasileiro. Ele enaltece os conquistadores portugueses e fala da classe proprietária rural como uma raça de descendência portuguesa moralmente superior e preparada para o ensino de hábitos e costumes ao povo brasileiro, diferente dos caipiras e matutos, denominados por ele de “plebe rural”, “classes inferiores” formadas pelo casamento de uma mulher com vários homens. Dessa forma, os laços familiares seriam solúveis e instáveis, fato que fragiliza o poder paterno e contribuiria para a propensão de falhas morais na sociedade. A moral autoritária e austera, responsável pela coesão social, tem forte presença no pensamento de Oliveira Viana e é uma marca pertencente à aristocracia rural: “Herança da família lusa, profundamente transformada, pelo “habitat” rural, pelo isolamento dos latifúndios, pela dispersão demográfica dos campos, pela necessidade, nos primeiros séculos, da solidarie- dade na luta, a família fazendeira, tal como nos aparece no IV século, é realmente a mais bela escola de educação moral do nosso povo. Hoje, como a vemos, está fortemente abalada na sua solidíssima estrutura, mas, outrora, ela se organiza à maneira austera e autoritária da família romana” (Viana, 1973, p. 54). Observamos Oliveira Viana (1919) falar dessa elite fazendeira “abalada na sua solidíssima estrutura”, mas com valores morais superiores. Por essa razão, o autor reclama o patriarcalismo severo da mentalidade autoritária como o eixo central e diretivo da nação e guia político e moral da vida nacional.

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panharem a marcha do progresso são suplantadas, em sua visão, pelo fazendeiro modernizador da região do Oeste Paulista. No conto “O luzeiro agrícola”, escrito em 1910 e publicado no livro Cidades mortas, Lobato propõe uma saída para a irracionalidade dos fazendeiros e expõe uma solução possível para o problema da monocultura cafeeira por meio de lições pedagógicas a serem aplicadas à sociedade como um todo. No conto, algumas lideranças são convidadas a participar de um curso sobre práticas agrícolas. Como se pode notar, um detalhe chama atenção no texto: dentre os muitos convidados representantes da sociedade, apenas um era “fazendeiro”. Trata-se de uma sugestão de dúvida de Lobato quanto à possibilidade de “restauração” dessa elite, pois, diante das possibilidades de novas práticas, dificilmente esse grupo tornar-se-ia adepto com real interesse. No conto, Lobato sugere a importância de um conhecimento utilitário e pragmático voltado para a lavoura produtiva, ele valoriza o ensino técnico como forma de aprendizado de práticas agrícolas exequíveis para a nação e defende a incorporação de técnicas aliadas à ciência e à organização hierárquica e disciplinada nos procedimentos com o trabalho na lavoura para a conquista do progresso, mas, ao colocar na boca do personagem Sizenando que a máquina agrícola seria o verdadeiro instrumento do progresso, sem nenhum fazendeiro para ouvir (o único presente perdera as terras), Lobato parece colocar a ideia da inexistência de pessoas para escutarem tal discurso. A velha reclamação do autor retorna: os fazendeiros fazem “ouvidos moucos”, quando novas ideias surgem. No final do conto “O luzeiro agrícola”, os resultados alcançados com o inves- timento no curso prático foram um fiasco:

Meses mais tarde precedeu-se à colheita. As cebolas haviam apodrecido na terra, devido às chuvas; os alhos vieram sem dentes, devido ao sol; as batatas não foram por diante, devido às vaquinhas; as outras “policulturas” negaram fogo devido à saúva, à quenquém, à geada, a isto e mais aquilo. /Não obstante, seguiu para o Rio um soporoso relatório de trezentas páginas onde Capistrano, entre outras maravilhas, notava: “Os resultados práticos do nosso método demonstrativo in loco têm sido verdadeiramente assombrosos! Os lavradores acodem em massa às lições, aplaudem-nos com delírio e, de volta às suas terras, lançam-se com furor à cultura poli, em tão boa hora lembrada pelo claro espírito de V. Excia. o Senhor Ministro pode felicitar-me de ter aberto de par em par as portas da idade de ouro da agricultura nacional” (Lobato, 1995, p. 132-33).

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Em arroubos de determinismo climático, Lobato demonstra, em sua crítica, sua descrença nas condições climáticas de um país quente como o Brasil, nas reações dos fazendeiros desinteressados nas melhorias, na “gerência” do governo à frente das propostas de modernização da agricultura, pois este não dava jeito sequer às saúvas e às pragas da lavoura. Nesse momento, Lobato não vê uma saída política para a crise da lavoura. Os famosos relatórios emitidos pelo Ministério da Agricultura para efetivação e acompanhamento dos investimentos mentiam os resultados, uma característica clara de farsa, e tudo ficava por isso mesmo. Monteiro Lobato defende uma modernização agrária para o país, tal como a melhoria das terras usando adubo, diversificação das culturas, avicultura, sericultura, ensino técnico agrícola para aprendizado de práticas exequíveis, máquina agrícola, técnica aliada à ciência, hierarquia e organização disciplinada dos trabalhos na lavoura. Todos esses elementos compõem a crítica fundada na razão positiva de Lobato. Ao reclamar das características predadoras do desenvolvimento brasileiro, observa que, além do “progresso cigano”, outros fatores contribuíram para a deca- dência da cafeicultura no Vale do Paraíba: a falta de um tratamento adequado e racional para o solo; a saída dos “homens fortes aptos para o trabalho” em busca de um lugar para exercerem sua atividade profissional. Segundo ele, a fertilidade natural do solo pode levar ao desenvolvimento, mas esse fato não acontece, pois: “[...] mal a uberdade se esvai, pela reiterada sucção de uma seiva não recomposta, como no velho mundo, pelo adubo, o desenvolvimento da zona esmorece, foge dela o capital – e com ele os homens fortes aptos para o trabalho” (L obato, 1995, p. 21). Lobato trabalha a ideia da existência de um estado de coisas a superar na nação rural, mas ainda não há definida no horizonte qualquer novidade surpreendente. Como se pode ver, há uma preocupação de certa forma modernizante, mas, ao mesmo tempo, um forte condicionamento social com ênfase na lógica da sociedade rural brasileira, nos primeiros anos da República, responsável pela decadência da cafeicultura no Vale do Paraíba. Por isso, ao terminar o texto Cidades mortas, Lobato elogia o café – o “Átila café”, destruidor da uberdade do solo – em sua forma assumida no Oeste Paulista:

Outras vezes o viajante lobriga ao longe, rente ao caminho, uma ave branca pou- sada no topo dum espeque. Aproxima-se devagar ao chouto rítmico do cavalo; a ave esquisita não dá sinais de vida: permanece imóvel. Chega-se inda mais, fran- ze a testa, apura a vista. Não é ave, é um objeto de louça... /O progresso cigano,

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da noite para o dia: São Carlos, Ribeirão Preto, Araraquara e Piracicaba. Lobato passeia de trem pela região e vê com bons olhos as atitudes empreendedoras dos fazendeiros investidores das terras do Oeste. A ideia criada por Lobato do rural despontado na nova região não é de toda apenas motivada pelo entusiasmo, pois, como observa o autor Sérgio Silva (1981), os fazendeiros da região Oeste são homens com características empreendedoras não apenas no setor agrário, mas também em diversos outros, como estradas de ferro, bancos, casas de exportação e a expansão do comércio para atender as novas demandas da exploração cafeeira. Eles tornar-se- -iam participantes de cargos representativos da nação nos âmbitos estadual e federal. Contudo, a felicidade vislumbrada por Lobato com as novas possibilidades de riqueza e prosperidade no Oeste também seria cigana, assim como o progresso das terras do Vale, fato ainda não percebido por ele no momento de sua escrita. Essa singularidade da cafeicultura do Vale do Paraíba, vista como decadente, e sua migração para o Oeste do estado de São Paulo, vista como progressista, foram pensadas, e mais, foram buscadas por Monteiro Lobato como uma condição de experiência e de existência histórica nos primeiros anos da década de 1900.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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