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Ritmo na Vida Psíquica: Diálogos entre Psicanálise e Arte, Notas de estudo de Psicanálise

Victor guerra discute o papel do ritmo na construção subjetiva psicanalítica e na criação artística. Ele argumenta que o ritmo é um primeiro organizador psíquico, como a palavra, e descreve sua expressão na poesia, na dança e na pintura. O autor também discute a importância do encontro intersubjetivo e do ritmo comum entre o bebê e o cuidador na subjetivação.

O que você vai aprender

  • Como o ritmo influencia a linguagem?
  • Qual é a relação entre o ritmo e a comunicação?
  • Como a arte influencia os processos de subjetivação?
  • Qual é a importância do ritmo na construção subjetiva psicanalítica?
  • Como a mãe e o bebê criam um ritmo comum na subjetivação?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Saloete
Saloete 🇧🇷

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ide são paulo, 40 [64] dezembro 2017
O ritmo na vida psíquica: diálogos entre
psicanálise e arte1
Victor Guerra*
Espero desenvolver parcialmente um tema que me convoca há
pelo menos 25 anos, o das zonas de coincidência dos proces-
sos de construção subjetiva psicanalítica, de subjetivação e os
processos da arte. E, por sua vez, dar testemunho da minha sur-
presa ao descobrir como um artista, ao descrever os processos
de criação em que está envolvido, parece referir-se às dobras da
construção subjetiva.
Para mim isto é muito importante porque demonstraria como
é necessário que nós, psicanalistas, estejamos atentos e abertos
aos processos de criação artística, não apenas como aspecto es-
tético, mas para poder incursionar a partir de outra perspectiva,
tanto nos processos de subjetivação como nas formas de sofri-
mento que o paciente pode trazer em uma sessão.
Poderíamos dizer, tomar a arte a serviço da clínica e, por sua
vez, tomar a tarefa clínica como forma de arte.
Quero apresentar uma forma de pensar a investigação a partir
das contribuições de Pascal Nouvel (2004), para quem investigar é
tomar uma ideia e segui-la em todos os detalhes, manter-se próximo
da ideia, pensando e sentindo o que se irradia a partir dela.
Se tomarmos a frase com certa liberdade de interpretação,
poderíamos também equipará-la ao processo de criação de um
artista. Há certa forma de materialização do vínculo com a ideia,
com a qual o investigador dialoga. Nesse caso não se busca com-
provar nada de modo confiável e racional, busca-se dialogar com
a ideia e deixá-la tomar um rumo, um caminho... Para quê?
Para manter-se próximo da vivência de que a ideia a inves-
tigar tem um modo de vida próprio e, em parte, uma existência
autônoma que o investigador acompanha.
Essa é uma forma de refletir a investigação qualitativa.
Quero pensar que, de alguma forma, isso foi o que também
estava no espírito de Freud ao empreender essa aventura, ao
tentar ir além do que na época existia como saber científico
em torno da histeria, e lançar-se a algo novo, manter-se na
proximidade de uma ideia e deixá-la irradiar e criar conceitos
que podem se entrelaçar.
1 Conferência aberta realizada em Cór-
doba, 2015, com público que incluía
não psicanalistas. Este trabalho reflete
os conceitos apresentados nessa ativi-
dade e colocarei em citações, em notas,
alusões atuais de 2017 ao tema que
poderão ser úteis ao leitor que deseja
aprofundar o tema.
* Psicanalista, membro da A.P.U. Fale-
cido em 27 de junho de 2017.
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O ritmo na vida psíquica: diálogos entre

psicanálise e arte^1

Victor Guerra*

Espero desenvolver parcialmente um tema que me convoca há pelo menos 25 anos, o das zonas de coincidência dos proces- sos de construção subjetiva psicanalítica, de subjetivação e os processos da arte. E, por sua vez, dar testemunho da minha sur- presa ao descobrir como um artista, ao descrever os processos de criação em que está envolvido, parece referir-se às dobras da construção subjetiva. Para mim isto é muito importante porque demonstraria como é necessário que nós, psicanalistas, estejamos atentos e abertos aos processos de criação artística, não apenas como aspecto es- tético, mas para poder incursionar a partir de outra perspectiva, tanto nos processos de subjetivação como nas formas de sofri- mento que o paciente pode trazer em uma sessão. Poderíamos dizer, tomar a arte a serviço da clínica e, por sua vez, tomar a tarefa clínica como forma de arte. Quero apresentar uma forma de pensar a investigação a partir das contribuições de Pascal Nouvel (2004), para quem investigar é tomar uma ideia e segui-la em todos os detalhes, manter-se próximo da ideia, pensando e sentindo o que se irradia a partir dela. Se tomarmos a frase com certa liberdade de interpretação, poderíamos também equipará-la ao processo de criação de um artista. Há certa forma de materialização do vínculo com a ideia, com a qual o investigador dialoga. Nesse caso não se busca com- provar nada de modo confiável e racional, busca-se dialogar com a ideia e deixá-la tomar um rumo, um caminho... Para quê? Para manter-se próximo da vivência de que a ideia a inves- tigar tem um modo de vida próprio e, em parte, uma existência autônoma que o investigador acompanha. Essa é uma forma de refletir a investigação qualitativa. Quero pensar que, de alguma forma, isso foi o que também estava no espírito de Freud ao empreender essa aventura, ao tentar ir além do que na época existia como saber científico em torno da histeria, e lançar-se a algo novo, manter-se na proximidade de uma ideia e deixá-la irradiar e criar conceitos que podem se entrelaçar.

(^1) Conferência aberta realizada em Cór- doba, 2015, com público que incluía não psicanalistas. Este trabalho reflete os conceitos apresentados nessa ativi- dade e colocarei em citações, em notas, alusões atuais de 2017 ao tema que poderão ser úteis ao leitor que deseja aprofundar o tema.

  • Psicanalista, membro da A.P.U. Fale- cido em 27 de junho de 2017.

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Além do mais, com surpresa, também encontramos o conceito de “ irradiação ” em uma poeta uruguaia que muito admiro, Circe Maia. Em reportagem em que lhe perguntam o que a poesia é para ela, Circe (21010) afirma que o gesto primário na vida consis- te em abrir-se ao exterior, comunicar-se e assimilar o gesto que também ocorre ao olhar: trata-se de ir para o mundo. A poesia também é um olhar que nos conduz para a realidade externa, sem deixar de irradiar-se a partir de um centro íntimo. Circe começa aí uma definição clara da vida como um gesto de abertura a partir de uma rítmica expressa nesse movimento de saída para o exterior (tanto no gesto como no olhar ou no olhar como gesto), de nos conduzir à realidade externa e, ao mesmo tempo, manifestar essa irradiação de um centro íntimo. Centro que me faz pensar no conceito de verdadeiro self, de Winnicott, que diríamos ser o centro de irradiação do gesto es- pontâneo, como uma possível expressão do genuíno no sujeito. Por conseguinte, é significativo que tanto P. Nouvel quanto C. Maia, que obviamente não se conhecem e pertencem a diferentes latitudes culturais, usem o mesmo verbo, o mesmo termo: irra- diar , seja a partir de um centro íntimo ou de uma ideia. Insisto que há algo alheio ao sujeito que pulsa, que é motor de criação e de investigação... estranheza do inconsciente? Outro investigador que reúne também algo de espessura poética é o francês J. C. Ameisen (2015), ao falar em aprender, inovar, transmitir, responder e apropriar-se do novo – vibrar ao ritmo das emoções que as experiências novas imprimem em nós. O que descreve Ameisen? Creio, entre outras coisas, que des- creve o que denominamos pulsão epistemofílica, que é o desejo de saber, que implica a articulação entre o pensar e o sentir. Esse aspecto é um elemento até “diagnóstico” dos processos de subje- tivação de uma criança, de um bebê: quanto responde ou não à novidade. Se ele se abre ou não à novidade, se ele se abre ou não a novos ritmos e como os integra subjetivamente. De Ameisen, que é biólogo, passemos a um poeta português: Eugénio de Andrade. É um poeta pouco conhecido, mas com coisas muito interessantes, porque Eugénio trabalha a poesia e também é um sutil crítico de arte sobre a obra de alguns pintores. Descobrimos que ele, que nada tem a ver com a subjetivação psi- canalítica – ao menos no manifesto –, nos traz uma frase muito sugestiva, ao dizer que, no início, há o ritmo, surdo, espesso, do coração ou do cosmo, pois não se sabe onde um começa e o outro termina. Soltas do limbo, surgem as primeiras sílabas, palpando

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coisa que fazemos é estabelecer uma comunicação rítmica cor- poral. Seja com a repetição da palavra ou através do movimento corporal, tanto para brincar como para acalmá-lo. Seguimos na relação com outros, nessa polissemia, essas tex- turas várias. Paul Valéry também dizia que o ritmo seria “uma ordem em movimento”. Amado Alonso, que é crítico literário, ao analisar o ritmo na po- esia, diz que “o ritmo na poesia é o prazer de criar uma estrutura”. O ritmo é o prazer de criar uma estrutura. A citação, além disso, diz: “[...] para ordenar, integrar os elementos sensoriais dispersos”. Retomaremos adiante a correlação entre sensorialidade e rítmica. Apresentarei agora um aspecto muito interessante da minha in- vestigação, a expressão do ritmo na poesia, na dança e na pintura.

O ritmo na poesia

Octavio Paz, em livro denominado Sombra de obras (1988), re- compila análises de pintura e de pintores, formula também uma definição de ritmo relativa ao poema. Para ele, o poema é orga- nismo rítmico, forma em perpétuo movimento. Feito de lâminas de ar que, ao girar, emitem turbilhões de sons, redemoinhos de significados. Ideias bailam, sons pensam. Vasos comunicantes: ouvimos o poema com os olhos, pensamos com os ouvidos, sen- timos com a mente. Unimos em um único rodopio, em onda rítmica, o sentir e o pensar. Unir em onda rítmica o sentir e o pensar... Deixemos traba- lhar em nós algumas frases que surgem no poema, pois é um poema em prosa. Veja o que ele traz: ideias bailam, sons pensam, ouvir com os olhos, pensar com os ouvidos. Trabalho analítico, escuta analítica, não é também pensar com os ouvidos? Digo de forma metafórica. Unir em onda rítmica o sentir e o pensar? Octavio Paz propõe o poema como um organismo vivo. Esse foi e é um ponto fundamental do processo criativo de muitos poetas e do trabalho analítico também. Dotar de vida as pala- vras, poder dar-lhes caráter sensorial, pulsional, vivo, matéria viva que transporta sentimentos. Há uma linha atual de psicanalistas, por exemplo, René Roussillon, que, em seu trabalho de escuta e trabalho analítico com pacientes especiais, denominado por ele “sofrimento nar- cisista identitário”, insiste muitas vezes que o trabalho analíti- co deve estar muito mais atento à sensorialidade e rítmica das palavras do que ao conteúdo do discurso. Tanto no que diz o paciente quanto sobre a maneira de o analista intervir.

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Nesse aspecto que Octavio Paz traz e no que dizemos a esse respeito, submergimos de novo na qualidade sensorial, pulsio- nal, viva da palavra. Visitemos outro escritor, em outra latitude, Rio Grande do Sul: Armindo Trevisan. Perguntam a Armindo Trevisan: “Senhor, conte-me, como você é poeta? De onde vem sua poesia?”. Armindo responde (2006) que sua forma de ser poeta é quase artesanal. Ele prefe- re a carpintaria à magia. Relembra seu amor ao trabalho com madeira de lei, todas impregnadas dos aromas da terra. Mara- vilhado de observar todos os instrumentos reunidos a serviço das necessidades do homem. Quando menino, emocionava-se ao observar a caída das camadas de madeira escovada, ao ver o trabalho do avô. O gosto por poesia vem dessa concretude, des- sa sensualidade primária. A palavra é algo sólido, tátil, audível, olfativo, degustável, enfim, sinestésico. Do que nos fala Trevisan de processo criativo? Presenteia- -nos com uma versão do processo criativo que parece ter ao me- nos duas vertentes. Uma, a identificação com o prazer libidinal do avô de criar, transformar o objeto de madeira é um processo de transformação. A outra, o revisitar suas raízes da infância e, em especial, o contato sensorial com a palavra, através do que ele chama “sinestesia”. A que denominamos “sinestesia”? Se formos à etimologia, a sinestesia vem do grego e significa “juntar” e “sentido”. Ou seja, juntar os sentidos. Seria uma percepção conjunta de vários tipos de sensações de diferentes sentidos em um mesmo ato perceptivo. Os sinestésicos percebem, com frequência, dizem alguns, cor- respondências entre tons de cor, tons de som e intensidade dos sabores de forma involuntária. “Correspondências” é o poema de Baudelaire que, de alguma forma, inaugura este aspecto da percepção da sinestesia ou transmodalidade, que é outra forma de denominar essa experiência. Por quê? Porque isso que alguns chamam de “sinestesia”, outros investigadores, que fazem inter- secção com a psicanálise, como Daniel Stern (1990), chamam de “transmodalidade”. Essa potencialidade de nosso pensamento sensorial aparente- mente estaria presente em todo ser humano desde o nascimento. O bebê, ao nascer, tem a potencialidade de viver a transmodali- dade, ou seja, a faculdade de traduzir a informação de um canal sensorial a outro. Essa forma de articular, unir, integrar diferentes modalida- des sensoriais, foi reconhecida por Daniel Stern como uma das primeiras formas de organização do ser. É também, às vezes, um

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Sobretudo no aspecto de como se faz no concreto, às vezes em um jardim de infância com os próprios pais. O que Pontalis aborda de forma muito interessante, ao dizer que seria como se a pessoa pudesse palpar o que está representado na pintura ainda que sem tocá-la, é a experiência de transmodalidade que os poetas põem em jogo em situações distintas. Manoel de Barros, poeta brasileiro que viveu toda sua vida no Pantanal e se dedicou a trabalhar o que ele chama de “a in- fância da língua”, ou seja, a experiência de polissensorialidade em um poema, pergunta se o lagarto pode lamber o lado azul do silêncio. Ou seja, há uma correspondência e uma passagem de um canal sensorial a outro, com valor metafórico e poético. Há muitas outras amostras dessa experiência na poesia. Evo- co agora um poeta espanhol, Marcos Ana, que foi um dos úl- timos presos na era franquista. Uma pessoa que sofreu tortura, reclusão, e esteve muitos anos preso, traz um poema que se cha- ma “Minha casa é um pátio”, no qual relata que sua casa era o pátio do cárcere, já que não podia sair. Em um momento no poema, ele conta que palpava com seu olhar a paisagem e os tons de verde que não podia alcançar com seu olhar. Palpava com o olhar o que não podia tocar com as mãos. Mostra, assim, como em situações limites o sujeito põe em jogo também toda essa polissensorialidade para, desse modo, estar em contato com o mundo. Essa transmodalidade inicial de que falamos, em um bebê deve ter um correlato exterior, que é a capacidade de a mãe en- trar em contato com essa forma de funcionamento primário, que chamo de “complexo do arcaico”. Porque, ao mesmo tempo que o bebê tem sua potencialidade transmodal para organizar suas polissensorialidades, tem do ambiente o valor do ritmo ma- terno como organizador exterior que ele logo introjeta. O que queremos dizer com isso? Antes de ensaiar uma hipó- tese psicanalítica, revisitemos mais uma vez a arte, só que desta vez sob a visão de um psicanalista, Edmundo Gomez Mango (2011), diante da visão da obra “Los peines del viento” [Os pen- tes do vento], do artista basco Antonio Chillida. Gomez Mango conta o impacto que viveu quando visitou as praias do País Basco e deparou-se com a obra “Los peines de viento”, ancorada nas rochas da praia. Obra que, segundo Chillida, plasma- ria a batalha entre as forças que sobem e as forças que descem, entre as linhas curvas e as verticais, entre o centrípeto e o centrífugo, entre a convexidade e a concavidade. Trabalho de articulação de contrá- rios, do “entre”, de pares opostos, que é uma das funções do ritmo...

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Gomez Mango (2011), muito sutilmente, afirma que não é o simples contemplar de uma escultura, mas entrar e habitar o espaço criado pelas formas dos pentes. Espaço estranho, que nos aliena e nos torna estrangeiros, nos faz sentir falta, afasta-nos de nós mesmos, mas nos aproxima de algo muito íntimo. Descobri- mos uma espécie de ritmo, de batimento primordial primário, o das formas artísticas, da natureza, e o corpo do espectador. Mais adiante assinala algo fundamental: entre o lugar e a obra há um limite inacabado, in- terminável, sempre transgredido, de onde surge a vivência coinci- dente do originário incessante que gera as obras. O lugar é o eco do testemunho arcaico dos inícios, do homem ao perceber o mundo que nasce da percepção criadora do homem.

Minha interpretação é que o bebê, através do ritmo, da sen- sorialidade e depois da palavra, conecta-se com esse originário incessante que o engendra em seu processo de subjetivação, mas, claro, não se trata de uma experiência solipsista, precisa da in- teração fundante do outro que cuida dele (função materna e pa- terna), que deve entrar em um ritmo em comum com esse bebê para que torne a se lançar esse originário incessante...

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O ritmo na dança

De modo muito conciso, traremos o exemplo de Vaslav Nijinsky, que revolucionou a arte da dança no início dos anos 1900. Quan- do ele seguiu o quê? Segundo Garner (2009), ele seguiu o método de um autor, Jacques Dalcross, que afirmava que o ritmo do cor- po é o ponto de partida de toda configuração do balé, do teatro e também de todos os processos do movimento humano.

Nijinsky, no papel do Fauno, no de Arlequim em Petruschka, segundo alguns críticos, executava “uma pérola de imaginação rítmica”. Aparentemente o que revolucionou foi o que se segui- ria, não era o ritmo que propunha a música senão a consonância entre o ritmo do corpo e o ritmo da música^5.

O ritmo na pintura

Yolande Escande (2003), especialista francesa em cultura chine- sa, conta que na China Antiga, quando um pintor pintava uma paisagem, não buscava integrar apenas seu aspecto visual, como também os sons e imagens que emitia: ruído do vento, sons das ondas, suas qualidades táteis e olfativas, recriadas por sua ima- ginação sensorial. Existe no chinês antigo uma palavra que designa esse proces- so. A palavra é woyou , que significa “passear na imaginação”.

5 Existe outra autora que desenvolveu especialmente o tema, S. Langer (1986).

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O termo que provinha da antiguidade foi desenvolvido espe- cialmente por Zheng Rikiu, pintor chinês do século XVII. Para pintar uma paisagem, ele realizava seu próprio passeio. Em seu texto ele dizia que fixava com os olhos o que queria pintar. Ao sentir o sopro da brisa, passeava nela com seu nariz... Sentia a água deliciosa ao passear nela com a língua. O ritmo das ondas em que passeava com suas orelhas respondia a suas perguntas. Quando já não via nada, entrava no barco e revisitava com a memória os relevos das montanhas e as curvas do caminho... e a partir disso conseguia pintar.

O que é interessante nisso e como se articula com o ritmo? Primeiro, porque se analisarmos a frase, ao se referir às diferentes experiências sensoriais, fala de “passeio”, dando a ideia de um contato especial, mas a única forma de resposta que aparece no texto é no ritmo: “o ritmo das ondas responde às minhas per- guntas”. Além de demonstrar como, para a cosmovisão chinesa, o ser humano tem uma relação direta com a natureza, mostra o valor que o ritmo tem como forma de comunicação metafórica. Ou seja, a correlação entre ritmo, comunicação e linguagem. Há muita evidência científica atual que nos leva a pensar que em grande parte a linguagem verbal nasce do ritmo.

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Temos aí um exemplo, para mim impressionante, dessa arti- culação entre os processos de subjetivação, porque quando ele fala de “fragmentos, impulsos, obstáculos”, “tudo busca uma forma”, “entra em jogo o ritmo e eu escrevo dentro desse rit- mo”. Eu o tomo como metáfora desse processo de subjetivação. No princípio há uma situação confusa em torno de uma dis- criminação entre o ser e o outro. Dessa situação confusa se par- te, há uma penumbra da subjetivação, até que se inaugura um balanceio rítmico. E os próprios processos de subjetivação têm a ver com um balanceio rítmico. Quem não viveu a experiência de que uma das formas mais primárias e “eficazes” de acalmar um bebê angustiado é tomá-lo nos braços e cantar para ele, criar um ritmo que transforme a angústia em calma e em prazer de contato? Além disso, intuiti- vamente se sabe que esse ritmo a princípio é regular e contínuo e, a seguir, vai integrando pequenas variações como formas ne- cessárias de descontinuidade. Podemos entendê-lo também dessa forma, ao interpretar o fort-da de Freud (1920), que deu base ao nascimento do pensa- mento sobre os processos de simbolização. O fort-da é um jogo de balanceio rítmico, de vai e vem, de ida e volta. Fort-da , fort- -da. Uma repetição (com variações) que busca elaboração, o que implicaria uma estrutura na qual se veicula o pulsional. O fort-da tem uma reincidência na qual o pequeno Ernst lan- ça o carretel sempre para o mesmo lugar, não o atira para o teto, para outro lado, para trás, para adiante, ele não experimenta nada, não investiga o destino do objeto no espaço. Ele elabora uma perda. E essa elaboração diz respeito a uma experiência rítmica, a um balanceio que o tira do lugar em que está, através do uso da pulsão de domínio. Tira-o do lugar daquele que sofre passivamente e nada pode fazer. É como se dissesse: esse balanceio me leva a outra coisa aon- de eu, ativamente, agora domino a situação e posso elaborar o que sofri passivamente. Não temos que esquecer que o próprio Freud, quando nos apresenta o texto em que descreve esse jogo, na citação de rodapé do texto, diz: este bebê, que começava a jogar o fort-da , antes de brincar com o carretel, brincava com seu próprio corpo, olhando em frente do espelho, entrando e saindo no movimento do fort-da. Então, esse aspecto da escrita que Cortázar nos apresenta, “eu escrevo dentro desse ritmo”, habilita-me a pensar que esse encontro mãe-bebê, que pode ser pai-bebê, é uma experiência de coescrita assimétrica. Porque a mamãe – ou o papai – usa o

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lápis do seu corpo para marcar seu desejo nesse texto que é o corpo do bebê. Mas o bebê também tem uma caligrafia, no início confusa, e mar- ca também os outros com seu corpo. Assim, podemos pensar esse processo de subjetivação como uma forma de coescrita assimétrica. Necessitamos reiterar que o ritmo não seria somente a repe- tição de uma experiência a intervalos regulares, como forma de organizar a experiência e oferecer uma vivência de continuida- de. Essa é uma possível definição de ritmo: a repetição de uma experiência a intervalos regulares que permite organizar uma experiência e oferecer uma vivência de continuidade, mas com a integração progressiva da descontinuidade, do inesperado. O ritmo é também a experiência que, partindo de uma es- pécie de “caos” inicial, dá forma, organização temporal, e tem como função abrir para a terceiridade, abrir para o outro.

O ritmo na subjetivação

Utilizarei algumas fotos de um filme que tenta descrever os proces- sos de subjetivação do bebê no primeiro ano de vida, em que meu filho Maximiliano Guerra e eu filmamos nove mães e bebês em seu lar para descrever o processo de subjetivação em relação com o outro, que podemos denominar processo de intersubjetividade. O filme se chama Indicadores de intersubjetividade 0 a 12 meses, do encontro de olhares ao prazer de brincar juntos (Guerra, 2014). Porque penso que o bebê – não sou o único a pensar, muitos apresentam assim – faz uma viagem do encontro do olhar com o outro para o processo de simbolização. Antes de caminhar e deslocar-se, como momento de separação, descobre entre outras coisas o prazer de criar um jogo juntamente com o outro, que é uma das bases dos processos de simbolização, recurso psíquico fundamental para possibilitar a separação do objeto e desenvolver mais plenamente seu funcionamento men- tal em múltiplos aspectos. Nesse filme, tento transmitir esse processo de estruturação, apelando a uma polifonia de vozes – porque há também inter- venções de um pediatra, uma fonoaudióloga, uma psicomotri- cista, e as mamães e papais contando como vivem esse processo de subjetivação do seu bebê. Avalia-se, nesse lento processo de subjetivação dinâmica, como o bebê avança em sua viagem até o prazer de brincar jun- tos, para depois adquirir a capacidade de brincar sozinho. Aqui coloco em jogo o conceito de Winnicott (1958), porque para

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Esse é um aspecto que permite estabelecer, ao menos de modo metafórico, o que nos ensinava Winnicott (1970): o rosto da mãe como espelho, no qual o self do bebê começa uma forma de existência. Isso também nos leva a mencionar pontos teóricos muito in- teressantes sobre a correlação evidente da imitação no processo de introjeção. Porque a imitação para mim é uma forma de hos- pedar o outro em meu corpo. Se imito o bebê, estou transmitin- do a ele uma forma de hospedá-lo, dando-lhe um lugar em um gesto corporal, que, por sua vez, é uma forma de incorporação- -introjeção, porque tomo algo do outro que fica em meu corpo. Voltemos a ver Rocío, de 8 meses, com sua mamãe, em um momento capital em que brinca de esconder. Nesse caso, o jogo esconde-esconde , que surge nessa etapa, é um jogo fundante, que muitos analistas tomaram como metáfora inicial do fort-da. Ao falar do fort-da , Freud descreve que antes o menino brin- cava de entrar e sair do espelho, mas seguramente esse bebê an- tes disso brincou com a mãe de esconder , como um passo prévio nesse processo dialético. Com o fato determinante de que é um jogo que se realiza para ir elaborando a ausência do objeto, mas na presença corporal e intersubjetiva, em que ambos desempe- nham um papel ativo e passivo. O ponto interessante nesse caso é que não é o bebê quem se esconde. Nesse caso é a mamãe. É Rocío quem descobre a ma- mãe, adorando a alegria do encontro. Há um prazer no encontro, em que a mamãe lhe pergunta: “Onde está a mamãe? Rocío, onde está a mamãe?”, tendo o ros- to coberto. Rocío se sente habitada pela voz da mãe que enuncia sua presença ausente. É a bebê que descobre a mamãe, retirando suas mãos para ir ao encontro do seu olhar. É preciso dizer que é um jogo rítmico, repetem três, quatro vezes.

A mamãe comentava na entrevista do filme que a bebê ficava fascinada com esse jogo. Evidentemente ela também. Seu prazer pode ter múltiplas fontes, mas quero marcar que, talvez, na construção conjunta dessa experiência lúdica a bebê se subjetiviza e ela também se re-subjetiviza. Ou seja, revisita sua própria infância, e há um processo de re-subjetivação, como seria todo processo de maternidade quando as coisas se dão “suficien- temente bem” e a mãe integra essa nova experiência de criação da sua bebê como uma oportunidade criativa para si mesma (na qual também há lugar para o desencontro e a ambivalência). Há outro elemento fundamental, como Winnicott dizia: o bebê sozinho não existe, a mamãe sozinha não existe, a mamãe necessita de um bebê que a busque de forma libidinal, que se apresente, diríamos, como objeto de desejo. Algo que, às vezes, podemos metaforizar com o que traz Marie Christine Laznik (2004), tomando também a contribui- ção de Lacan com o terceiro tempo do circuito da pulsão, que é o momento em que o bebê se oferece ao outro como objeto de desejo. Essa disponibilidade da mãe para deixar-se descobrir no jogo com a bebê implica permitir que a bebê defina a temporalidade do encontro com a mamãe. A mamãe está disponível para que a bebê a encontre e também há dimensão rítmica como organiza- ção temporal que comanda a bebê.

O ritmo e a lei materna

Isso sugere que essa disponibilidade lúdica, necessária, que a mãe precisa ter para que o bebê se subjetive e se separe, levou-me a formular uma hipótese sobre como pensar esses encontros rítmi- cos, que favorecem os processos de subjetivação e simbolização.

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do apoio concreto paterno. A frase seria: “São necessários três para que dois tenham a ilusão de ser um”. Esse “três” precisa tolerar a exclusão temporal para depois transmitir a proibição do incesto e de tomar a mamãe como objeto de desejo. Entre outras coisas, com a consequência de o ponto dois estabelecer a diferença de gerações. O terceiro elemento da lei paterna , evidentemente, é preparar para a exogamia. A libido orientada para outros objetos. Então, insisto, creio que a estruturação psíquica e, mais ainda, a patologia grave da infância, têm a ver com a difícil inter-rela- ção desses dois aspectos. Não apenas a falha na lei paterna , mas esse aspecto da difícil instauração dessas duas leis subjetivantes. Apresentarei um desenho e um poema meu que talvez repre- sentem de forma gráfica esse conceito de ritmo e lei materna. Milton Matos, artista plástico brasileiro de Porto Alegre, re- alizou o desenho. Em uma atividade na qual eu iria participar, em um grupo psicanalítico em Porto Alegre, em que o tema era justamente o ritmo na vida psíquica, encomendou-se a ele a re- alização de uma imagem. Esse autor em poucas linhas criou e conseguiu plasmar o que para mim é uma imagem impactante. Eu denominei “Três linhas em ritmo”.

Três linhas apenas ondulantes ascendentes descendentes

Três linhas dançando no universo da folha em branco.

Três linhas em ritmo ” – Desenho de Milton Matos

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O círculo da folha envolve a figura, enquanto Esta viaja pelo papel inaugurando vida. Inaugura traço, marca, sentido. Pode apenas uma linha vestir de sentido um espa- ço vazio?

Em três linhas duas vidas, a mãe que olha o bebê que dorme ou olha outro espaço

Na verdade não importa se dorme ou olha, importa que unidos estão se separando

Porque entre a mãe e o bebê Há um espaço em branco. Porque entre a mãe e o bebê Pulsa um pequeno vazio:

separação , distância, ponte. respiração, ritmo.

O que os une na imagem? o gesto do rosto que olha, que envolve? a mão que guia e continua na curva do corpo?

Continuidade na descontinuidade Além do buraco em branco, algo da mãe continua: a ondulação de um ritmo, aberto ao outro que espera ansioso, fora do quadro: O Pai?

Tradução: Tania Mara Zalcberg n

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