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O QUE EU ME TORNEI PARA MIM MESMO? O HOMEM SEM ..., Notas de aula de Ética

2008 qualidades, e o caráter predatório da modernidade tardia/ Maria. Thereza Waisberg. – 2008. 419 f. Orientador: Eda Terezinha de Oliveira ...

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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MARIA THEREZA WAISBERG
O QUE EU ME TORNEI PARA MIM MESMO?
O HOMEM SEM QUALIDADES, E O CARÁTER PREDATÓRIO
DA MODERNIDADE TARDIA
Tese apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo,
como parte dos requisitos para obtenção
do título de Doutor em Psicologia
Área de concentração: Psicologia Social
Orientadora: Profa. Dra. Eda Terezinha de Oliveira Tassara
SÃO PAULO
2008
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MARIA THEREZA WAISBERG

O QUE EU ME TORNEI PARA MIM MESMO?

O HOMEM SEM QUALIDADES , E O CARÁTER PREDATÓRIO

DA MODERNIDADE TARDIA

Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Psicologia

Área de concentração : Psicologia Social Orientadora : Profa. Dra. Eda Terezinha de Oliveira Tassara

SÃO PAULO 2008

Ficha Catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Psicologia da USP

150 Waisberg, Maria Thereza

W143o O que eu me tornei para mim mesmo? O homem sem

2008 qualidades , e o caráter predatório da modernidade tardia/ Maria

Thereza Waisberg. – 2008.

419 f.

Orientador: Eda Terezinha de Oliveira Tassara.

Tese (doutorado) – Universidade de São Paulo, Instituto

de Psicologia.

1. Psicologia - Teses 2. Identidade – Teses 3. Modernidade –

Teses. 4. Guerra - Teses 5. Estética – Teses 6. Ética – Teses I.

Tassara, Eda Terezinha de Oliveira II. Universidade de São

Paulo. Instituto de Psicologia III.Título

A meus pais, Esther e Onaldo. Mais do que agradecer, esta tese lhes é dedicada.

Aos seis milhões de antepassados e a todas as incontáveis vítimas que pereceram no Holocausto nazista.

AGRADECIMENTOS

Pela confiança, sabedoria, amizade, generosidade e infinita paciência, sou profundamente grata à Professora Dra. Eda Terezinha de Oliveira Tassara, minha orientadora.

Pela acolhida, incentivo, conselhos e palavras de confiança em momentos difíceis, sou grata aos professores doutores Rodrigo Antônio de Paiva Duarte, Jéferson Machado Pinto, Eunice Galery, Elaine Pedreira Rabinovich, Ecléa Bosi, Lúcio Kowarick, Lyslei do Nascimento, Luiz Nazário, Ruth Silviano Brandão e Maria Imaculada Kangussu.

Pelo generoso oferecimento do arquivo para seu livro Heranças e lembranças ; pelo exemplo de força e perseverança inquebrantável diante de uma pesquisa, que muito inspirou esta tese, sou grata a Susane Worcman.

Pela presteza e dedicação, minuciosa leitura, comentários e revisão dos originais, agradeço a Rachel Kopit Cunha, querida amiga dos tempos de adolescência.

Por terem tornado este trabalho não apenas possível, mas também prazeroso, agradeço às amigas Luciana Barongeno, Solange Ribeiro de Oliveira, Laura Schreiber, Vera Zavarise, Liane Terezinha Shuh Pauli, Nagirley Kessin. A Ana Leonel Queiroz, Argentina Alves da Silva e Lílian Leles, pela colaboração com anotações, tradução e organização de arquivos. Agradeço a meus filhos Paulo, Michael e Marcelo. Aos momentos inesquecíveis de alegria, e como prova inequívoca de amor, agradeço aos meus queridos Eric, Miriam, Lara, David e Sophia.

Ao Benami, meu dedicado esposo, a minha gratidão pela paciência com as incontáveis horas de retiro nas madrugadas, voltadas à consecução desta tese; por sua inestimável generosidade e apoio financeiro imprescindível, sem os quais esta tese não seria possível.

Aos estimados amigos do LAPSI, agradeço os momentos fecundos de convivência.

Agradeço a Tarcísia Lobo e a Baruch Ashem o minucioso trabalho de tradução dos textos em alemão e italiano.

Agradeço a Nalva, Maria Cecília, Maria Clarice, Vanessa, Vilma Carvalho de Souza, bibliotecária-chefe da UFMG, e demais funcionários da USP e UFMG que colaboraram em diversos momentos.

Esta tese é o resultado do esforço de muitos que me ajudaram. Meu agradecimento a todos os que me acompanharam nesta jornada, ajudando direta e indiretamente, é infinito. A todos os amigos de quem porventura possa ter omitido os nomes, peço desculpas e deixo registrada a minha gratidão.

RESUMO

Esta tese tem como objetivo estudar a noção de identidade narrativa em Robert Musil, concentrada, sobretudo, em O homem sem qualidades. Para alcançá-lo, parte-se do exame dos escritos musilianos, publicados como obras completas, a fim de reconhecer, na dissolução da identidade do personagem, a contribuição emblemática ao problema da identidade mutante do homem, desde o advento da modernidade. Compreendido o lugar reservado da identidade ética figurada pela manutenção de si, compreende-se como a falta de qualidades retira-lhe todo o ponto de apoio. O drama da dissolução da identidade do personagem de Musil deixa aberta a questão: pode o não-sujeito permanecer uma figura do sujeito, mesmo que fosse sobre o seu modo negativo? A ficção literária de Musil opera no duplo sentido de definir a condição de ipseidade e voltar à vida, quando se procura uma definição para identidade. Dessa análise se depreende que o si representado pela narrativa é confrontado com a hipótese de seu próprio nada. Certamente esse nada não é o nada do qual não se tem nada a dizer. Essa hipótese dá, ao contrário, muito o que dizer, como disso é testemunha a imensidade da obra analisada. Dessa análise reconhecem-se como não faltam à hipótese verificações existenciais sobre as transformações da identidade pessoal à prova desse nada de identidade que aparece nos momentos de desenraizamento como extremo despojamento dos valores da cultura, deixando a resposta negativa à pergunta quem sou eu? exposta não mais à nulidade da própria condição do homem verdadeiro, mas à nudez da própria questão. A análise do caso de um homem sem qualidades expõe que a identidade pessoal não é o que importa; levando ao apagamento não apenas a identidade do mesmo, mas a identidade de si. Ao revelar a negação do si, o homem sem qualidades expõe a passagem do “Quem” sou eu? ao “que” sou eu? como perda de pertencimento aos valores da cultura; tal perda é o caráter, isto é, o conjunto das disposições adquiridas e das identificações sedimentadas pela cultura. O personagem expõe a condição de impossibilidade atual de reconhecer a alguém sem uma maneira durável de pensar, de sentir, de agir, que, outrossim, seria impensável. Se há identidade no fluxo mutante da sociedade atual, esta só é praticável no fracasso de uma sucessão indefinida de tentativas de identificação as quais constituem a matéria de narrativas com valor interpretativo a respeito da contração do si. Manter-se no plano ético um si que, no

plano narrativo, pode apagar-se é o desafio e um limite para encontrar, no indivíduo, a distância entre identidade narrativa e identidade moral em benefício da dialética viva entre uma e outra. Eis aqui como se vê tal oposição transformar-se em uma tensão frutuosa.

Palavras-chave: Identidade. Modernidade. Guerra. Estética. Ética. Qualidades.

narratives with an interpretive value about the contraction of the self. To keep on an ethical plane a self which, in the narrative plane, can erase itself, is the challenge and a limit to find, in an individual, the distance between narrative identity and moral narrative for the sake of a living dialectics between the two. Hence one can see how this opposition can be metamorphosed into a fruitful tension.

Key-words : Identity. Modernity. War. Aesthetics. Ethics. Qualities.

SUMÁRIO

RESUMO a

  • INTRODUÇÃO ABSTRACT b
  • NOTA PRÉVIA
  • Primeiro Capítulo - Identidades em crise ética e preparação do inimigo PARTE I
  • Crise ética na modernidade tardia
  • A preparação do inimigo oculto
  • Segundo Capítulo – O que é a identidade sem qualidades
  • Distinções terminológicas
  • Este é o verdadeiro eu?
  • A identidade como construção
    • não se define pela negação do idêntico O idêntico não se define pela negação da diferença, assim como a diferença
  • A noção de identidade carece de rigor etimológico
  • A qualidade é condição necessária da identidade
  • Como o sujeito humano se constitui
  • A identidade do indivíduo se perde na massa
  • A identidade em colapso na sociedade unidimensional
  • A identidade ─ algo novo na sociedade pós-industrial
  • A identidade pessoal, se existe, é uma construção narrativa
  • O caráter é o si sob a aparência da mesmidade
  • O homem sem qualidades é um laboratório para experiências de pensamento
  • Terceiro Capítulo - O homem, a obra, o tempo-lugar, Zeitgeist etc.:
  • Musil – matemático, engenheiro e psicólogo se transforma em escritor
  • O declínio da alta cultura
  • O jovem Musil e o círculo da vida
  • Como pode alguém inventar a pessoa interior?
  • Ficções musilianas: o indivíduo libertado do feitiço das imagens
  • A sociedade assombrada por suas próprias contradições
  • Mudanças irreversíveis que a modernidade trouxe em seu despertar
  • A ética que emerge do mais fundo dos abismos
  • O simulacro da totalidade e o desafio da linguagem em desconstrução
  • A realidade desestruturada da modernidade
  • A tendência disciplinar do século XX
  • A face dupla da experiência
  • Uma ponte extraordinária chamada realidade
  • O tempo congelado na linguagem
  • O falso casulo da subjetividade burguesa
  • O mundo do sentimento e do intelecto é incomensurável
  • A realidade escapa no indizível
  • A fé e a experiência da desrazão
  • Quarto Capítulo - Musil diante da “genialidade” de um cidadão kakaniano PARTE II
  • O Homem Matemático e as vantagens da precisão científica
  • sonhadoras do filósofo O empreendimento imaginativo da matemática não coincide com as especulações
  • O fascínio de Musil com estados místicos inefáveis
  • A cultura de nervos em decadência
  • O verdadeiro tecido da experiência ética
  • A profecia sobre o fim utópico das diferenças
  • A razão é meramente uma convenção histórica
  • O mal e o bem não são ficções simplistas
  • Criminosos no poder
  • “O objeto da psicologia é o caso geral. O objeto da literatura é o caso pessoal”
  • [EXCURSO] Um paralelo: “Nossa existência nada mais é do que um pálido fantasma”
  • i Das ilusões do progresso tecnológico a qualquer custo
  • ii O novo ethos
  • iii O indivíduo, na sua singularidade, se julga mônada independente e auto-suficiente
  • iv Uma ética para os bárbaros, outra para os não-bárbaros
  • v A cultura e a sociedade sob a vigência de duas ordens distintas
  • vi A impossibilidade da revelação mecânica das verdades
  • vii Quaestio mihi factus sum , O que me tornei para mim mesmo?
  • viii O homem não é simplesmente uma peça na Natureza
  • Quinto Capítulo - O pensamento unidimensional na base da modernidade PARTE III
  • O homem unidimensional é também o homem sem qualidades
  • Quantidade e qualidade como critérios de predicação do sujeito
  • Sexto Capítulo - O totalitarismo aperfeiçoado pela aldeia global
  • A linguagem coisificada do homem sem qualidades
  • Psicologia e política: o caráter mágico e hipnótico da linguagem
  • O homem coisificado é o sujeito, enfim, sem qualidades
  • Sétimo Capítulo - Uma obra inacabada para um homem sem qualidades PARTE IV
  • Paternidade da obra
  • Metamorfoses do sujeito no campo paralelo da guerra
  • A obra no espelho da guerra
  • Um homem sem qualidades tem uma genealogia remota
  • O legado da vida diante do caráter inexorável da morte
  • Inacabamento e imortalidade da obra: a morte espreita o criador
  • Dois caminhos para experimentar a realidade
  • Musil como persona no exílio do ideal iluminista
  • Honestidade, veracidade e recusa a fazer concessões: qualidades de um homem
  • Dilemas do engajamento intelectual
  • A ética indutiva do homem sem qualidades CONSIDERAÇÕES FINAIS ─ CONCLUSÃO
  • Ética e subjetivação em Musil
  • REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
  • BIBLIOGRAFIA

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INTRODUÇÃO

A presente tese é um estudo teórico comparativo de certos aspectos do processo das transições da identidade contemporânea, principalmente aqueles voltados para as identidades híbridas. 1 Procura-se acompanhar o desenvolvimento do pensamento de Musil sobre a ética, voltada para aqueles aspectos que se endereçam à compreensão psicológica das mutações identitárias na sociedade ocidental. Uma vez que tais mutações ocorrem no período nomeado “modernidade”, os aspectos selecionados na obra desse autor, bem como na obra de Marcuse, servem como eixo ao desenvolvimento do raciocínio desta tese.

A obra do filósofo alemão Herbert Marcuse, com ênfase voltada para a sociedade industrial avançada, não deve ser o único, mas pode ser um bom e original caminho para o exercício de interpretação do romance de Robert Musil, traduzido no Brasil como O homem sem qualidades.

O que se quer destacar, em um raciocínio paralelo entre os autores Musil e Marcuse, é a intensidade em que estes revelam que o social existe aqui e agora e não garante rendimentos pré-fixados na nova lógica das sociedades industrializadas. Nestas, o efêmero passa a ser a medida de todas as coisas, a fruição é a sua finalidade. Se o final da II Grande Guerra anunciava o novo tempo de liberdade, e Marcuse suspeita que ainda não, e se a identidade é um processo de construção ao longo de várias etapas, durante as quais se redefine a distinção entre o eu e o não-eu, seria possível pensar em menos Estado e mais sociedade, menos identidade e mais identificação, menos coletivo, mais individualidades responsáveis.

Porém, sob a influência da chamada Escola de Frankfurt, a teoria crítica dominante durante as quatro últimas décadas já não responderia à complexidade de todas as transições identitárias em fluxo nas sociedades abertas, pluralistas e democráticas. Se, por um lado, a unidimensionalidade entrou em colapso frente à idéia de adesão cega e à negação de fatos em nome de interesses ideológicos e difusão de notícias, como se fossem

(^1) Os termos “identidades híbridas” têm a conotação extraída de Bruno Latour quando ele se indaga: “o que é um moderno?”. LATOUR, 2005, p.13.

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contradições externas a ele, como a política, a sociedade, a religião ou a cultura que o circundavam. O sentido de O homem sem qualidades está no seu texto, e não na vida do autor ou no contexto histórico-cultural, ainda que tais aspectos não possam ser imediatamente dele desprendidos. Não há como recuperar a intenção original do autor supostamente escondida atrás da obra, tal como acreditava ser possível a hermenêutica romântica. É a obra que revela a intenção do autor e não o contrário. Da mesma forma, o historicismo se constitui em impeditivo para ver o universo que a obra revela, tratando-o como puro efeito de uma época.

Preocupando-se em não esgotar os incontáveis aspectos históricos, o empreendimento da tese revela que tal procedimento acaba por desviar a atenção da potencialidade expressiva do objeto investigado e dos elementos psicológicos que efetivamente o constituem. Durante a elaboração da pesquisa empreendida, não interessa substituir o texto pelo contexto e fazer de Musil, bem como de sua obra em foco, uma ilustração passiva do período de transformações em que se dá a modernidade até o momento em que esta passa a ser tratada em um momento “pós”, e é inserida no contexto da modernidade nova ou tardia. Atentando-se para tais aspectos, pode-se assim encontrar as verdades ocultas por uma interpretação que parece desatenta às veredas do texto. Isso não quer dizer que o contexto em que a obra está sendo construída deva ser esquecido. Ao contrário, interessa ver o mundo das guerras que se descortina no século XXI por intermédio do legado escrito deixado por Musil, resgatando-o na concretude e na dimensão que o texto permite, e não por idéias apriorísticas, abstratas e gerais que, vistas de perto, mostram-se falazes e irrelevantes.

Por outro lado, é preciso evitar a tentação positivista de considerar o texto fato absoluto e insensível à interpretação do leitor. A “verdade” do texto só se desvela para quem o interpreta e o focaliza segundo uma intenção que não é nem a do público contemporâneo à obra nem a homologada pela tradição de seus críticos. É na fusão e na abertura do horizonte do texto com a interpretação que o leitor imprime à obra que esta adquire um sentido novo e permanece, refazendo-se ao longo do tempo. Como quis o próprio autor, O homem sem qualidades nunca estará acabado. Sua história começa quando, terminada a tarefa do autor, a obra se põe diante dos olhos do fruidor. Sem essa interação, não há obra, tanto quanto não haveria sentido em circunscrever o seu campo de

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sentidos, de outra forma, inesgotável, em uma tese. Ela se mantém aberta ao presente e ao futuro, encarregados de se fundirem com ela, converterem-na de “coisa” em objeto fecundado por um sujeito que se quer com qualidades.

É nessa alquimia que a tese busca liberar significados nela abrigados; e que estes possam ser úteis a um mundo em contínuo fluxo de mudanças, distinto e semelhante àquele em que a obra foi produzida. Inversamente, cumpre evitar a tentação subjetivista que coloca o leitor no lugar do texto e faz deste mero “pré-texto” sobre o qual aquele impinge suas próprias idéias. O sentido do texto musiliano, especialmente O homem sem qualidades , não se encontra nem dentro nem fora do texto, mas no círculo hermenêutico que, em torno dele e do intérprete, configura um “mundo”. Este mundo é a contemporaneidade vista pelo texto constantemente aberto de Musil, sempre passível de ser reconstruído pelo leitor e adquirir novas formas.

A tese é assim é o efeito de uma falta que, a um só tempo, revelou-se útil e capaz de compreender e enfrentar o presente e conferir às frases musilianas frescor na atualidade. Para melhor compreender o presente, a leitura de Musil revela o que se desdobraria no horizonte futuro como impossibilidade humana de compreender as responsabilidades dos atores, que, sem incoporar as lições do passado, estão limitados, quando muito, à consciência dos efeitos de suas ações. A leitura de Musil, no presente, não se limita ao que se passou, no período em que o autor escreveu essa obra. As qualidades que dão vida à obra e a imortalizam esbarram na pretensão de uma leitura imanente.

O interesse pela pesquisa desta temática já se encontrava nas referências principais da dissertação de mestrado desta autora, que indagava se toda a construção simbólica – a de um sujeito com seus sonhos ou a de uma ciência em relação a seu objeto – é feita a partir do real, a partir da alteridade absoluta, cabendo tanto ao sujeito quanto ao pesquisador verificar de que modo esse estranho agente produz efeitos no discurso. Tal indagação foi respondida até os limites apontados na dissertação defendida na Universidade Federal de Minas Gerais, posteriormente, publicada em livro. 2 Ela também

(^2) WAISBERG, 2006.

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maneira que as tendências estabilizadoras de tal conflito conduzam à vitória da realização unidimensional sobre toda a contradição.

É nesse ponto de tangência possível que esta tese encontra gancho para o contraste entre o homem unidimensional – tal como Marcuse o situa na lógica do operacionalismo científico tardio – e o homem sem qualidades, tal como Musil o descreve em sua ficção literária. Se há identidade entre o homem undimensional e o personagem de ficção que encarna a própria contradição inerente ao objeto do pensamento, quando esse passa ao estatuto de realidade, ultrapassando a imaginação literária, esta contradição se dá à mesma medida que Musil e Marcuse advogam que a razão é ainda anti-razão e o irracional é ainda racional.

Tanto no desenvolvimento do pensamento filosófico marcuseano quanto na estrutura do romance musiliano, a realidade estabelecida pela lógica do poder milita contra a lógica das contradições, favorecendo modos de pensamento que conservam as formas de vida estabelecidas e modos de comportamento que os reproduzem e aprimoram. A realidade em ambos, Marcuse e Musil, tem a sua lógica e verdade ; o que os aproxima é o esforço para compreendê-la como tal. Ambos os autores se preocupam com as maneiras como o indivíduo escolhe transcender ou se submeter à realidade, da maneira como esta lhe é imposta e como ele a compreende ao se submeter ou se libertar dessa realidade. Ambos pressupõem que há uma lógica diferente, uma verdade contraditória que está tanto no indivíduo quanto na sociedade que, psicologicamente, determina suas ações em um plano não isento das forças históricas e políticas que atuam sobre ele.

A linha filosófica desenvolvida pelo raciocínio de Marcuse encontra sentido e eco na ficção literária de Musil – o engenheiro, matemático e psicólogo experimental. Enfatiza-se, nesta tese, a observação de Marcuse quando ele advoga que a psicologia do indivíduo é a psicologia social. O estatuto de realidade na sociedade tecnológica avançada situa o homem sem qualidades em modos de pensar voltados para mundos “possíveis”. Estes são não operacionais em sua própria estrutura; sua condição de virtualidade soa tão estranha ao operacionalismo científico quanto ao senso comum. Por um lado, a concretude histórica de mundos virtuais advoga paradoxalmente contra a quantificação e a matematização, isto é: em sua operacionalização, voltada para o sujeito que se vê na

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realidade como usuário desta. Por outro lado, quando sobre tal realidade incidem a razão teórica e a crítica, a realidade é apenas um “realismo” contra o positivismo e o empirismo. Tais modos de pensar, ainda que pareçam uma relíquia do passado, como toda a filosofia não científica e não empírica (Marcuse, 1967, p. 141), justificam o exame, em tese, diante da teoria e da prática da psicologia social mais eficaz.

A tese é eminentemente teórica, com ênfase voltada para os escritos de Musil naqueles aspectos que se desenrolam em torno da questão das identidades no transcurso do século XX. O objetivo é, sobretudo, compreender a psicologia do homem sem qualidades em seu aspecto individual, como efeito da perda gradual do dogmatismo da sociedade moderna ocidental. Posto em contraste, ele é também secundariamente voltado para aquele homem unidimensional, quando se trata de examiná-lo como efeito da cultura de massa. Ainda que a leitura de Marcuse possa se constituir uma contribuição valiosa para um estudo comparativo, que estende e desloca o foco do indivíduo às suas manifestações na sociedade unidimensional industrializada tardia, o seu objeto é o homem sem qualidades. Há que se destacar a pesquisa bibliográfica sobre a obra de Musil e de seus diversos críticos, empreendida em 2001, na biblioteca da Case Western University, Cleveland, Ohio, durante os quatro meses de estudos literários nessa universidade.

A condição da modernidade, doravante denominada tardia, torna especialmente difícil para os indivíduos encontrar as coordenadas sociais, em cujo redor possam tecer seus mapas de identidade. A questão é mais bem formulada por Latour (2005) quando ele se refere ao termo modernidade como aquele que possui tantos sentidos quantos forem dados pelo que se pretende defini-lo. Todas as definições apontariam para a passagem do tempo. Há assimetria quando a modernidade é tratada como adjetivo:

o termo “moderno” assinala um novo regime, uma aceleração, uma ruptura, uma revolução do tempo. As palavras: “moderno”, “modernização” e “modernidade” encontram-se sempre colocadas em meio a uma polêmica. Ao se referir a dois conjuntos de práticas diferentes para abrigar redes de ciências e técnicas cria-[se], por “tradução”, misturas entre gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura. Criam-[se], por “purificação”, duas zonas