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Guias e Dicas
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Protestantismo no Brasil: História e Relações Políticas e Internacionais, Manuais, Projetos, Pesquisas de Teologia

Este artigo aborda o protestantismo no brasil, especificamente o grupo de protestantes ou evangélicos que incluem anglicanos, congregacionais, presbiterianos, metodistas e batistas. O texto analisa as idas e vindas deste tipo de protestantismo no brasil, suas relações históricas e dialéticas com o universo político brasileiro e internacional durante aproximadamente 180 anos de sua presença no país. A periodização do artigo inclui o período de implantação do protestantismo no brasil (1824-1916), desenvolvimento do projeto de cooperação ou pan-protestantismo e chegada de 'um bando de teologias novas' (1916-1952), crise política e religiosa, ensaio de politização do protestantismo e impacto do pentecostalismo (1952-1962), período de repressão no interior do protestantismo, revolução neopentecostal, fortalecimento do denominacionismo e isolacionismo das igrejas (1962-1983).

O que você vai aprender

  • Quais foram as repercussões do protestantismo no Brasil durante a Guerra Fria?
  • Qual foi a doutrina da Igreja Espiritual que marcou o protestantismo no Brasil?
  • Quando os primeiros ingleses começaram a realizar cultos no Brasil?
  • Quais igrejas estão incluídas no chamado protestantismo de missão ou conversão no Brasil?
  • Quais foram as consequências da Conferência de Evanston para as igrejas brasileiras?

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Carioca85
Carioca85 🇧🇷

4.5

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ANTONIO GOUVÊA MENDONÇA
O protestantismo
no Brasil e suas
encruzilhadas
ANTONIO GOUVÊA
MENDONÇA é professor
da Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
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ANTONIO GOUVÊA MENDONÇA

O protestantismo

no Brasil e suas

encruzilhadas

ANTONIO GOUVÊA MENDONÇA é professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

O título deste artigo exige desde logo um

esclarecimento preliminar sob pena de cair na

confusão reinante quando se trata de estudar o

campo religioso brasileiro sob qualquer ponto

de vista. Nunca se viu uma diversidade religiosa

tão grande como a que se nota atualmente no

Brasil. Para complicar mais ainda, a dinâmica

interna desse campo, que demonstra intensa

itinerância entre grupos religiosos, assim como

as variações numéricas indicadas no último censo

(2000) apontam para a necessidade de se buscar

conceitos mais atuais e capazes de estabelecer

distâncias e aproximações entre os diversos gru-

pos que disputam o espaço religioso.

Estamos diante do conceito de protestantismo

brasileiro, usado sem maiores preocupações pe-

los primeiros estudiosos do assunto. Entre eles, o

respeitável historiador francês Émile G. Léonard

que, estando no Brasil por dois anos (1948-49)

como professor contratado pela Faculdade de

“A utopia só trabalha em prol do presente a ser alcançado, e assim o presente, sendo a ausência dedistanciamento intencionada para o fi m, estará, no final, borrifado por todos os intervalos utópicos” (Ernst Bloch, O Princípio Esperança ).

vinistas que se espalham pelo mundo em numerosa diversificação, particularmente estes últimos. Então, protestantes seriam aquelas igrejas que se originaram da Refor- ma ou que, embora surgidas posteriormente, guardam os princípios gerais do movimento. Essas igrejas compõem a grande família da Reforma: luteranas, presbiterianas, meto- distas, congregacionais e batistas. Estas últimas, as batistas, também resistem ao conceito de protestantes por razões de ordem histórica, embora mantenham os princípios da Reforma. Creio não ser, por isso, neces- sário criar para elas uma categoria à parte. São integrantes do protestantismo chamado tradicional ou histórico, tanto sob o ponto de vista teológico como eclesiológico. Esses cinco ramos ou famílias da Reforma multiplicam-se em numerosos sub-ramos, recebendo os mais diferentes nomes, mas que, ao guardar os princípios fundantes, podem ser incluídos no universo do protestantismo propriamente dito. O QUE É PROTESTANTISMO BRASILEIRO? Talvez a pergunta mais adequada seja esta: podemos falar em protestantismo brasileiro? Ou seria melhor falar em “pro- testantismo no Brasil” precisamente quando a referência recai sobre as igrejas acima mencionadas? Embora seja certo que as re- ligiões universais, como são as protestantes, sempre assimilam ou mantêm traços das culturas locais, como me é permitido falar em catolicismo brasileiro, por exemplo, o protestantismo que chegou ao Brasil jamais se identificou com a cultura brasileira. Con- tinua sendo um protestantismo norte-ame- ricano com suas matrizes denominacionais e dependência teológica. Por isso, prefiro falar em “protestantismo no Brasil” e não em protestantismo brasileiro. O mesmo vale para o que talvez fosse exceção, isto é, o luteranismo. Apesar de proceder de verten- tes geográficas e culturais diferentes, ambos os luteranismos brasileiros vinculam-se ao centro mesmo da Reforma Luterana, isto é, a Europa alemã. Por essas razões, quando se fala em protestantismo brasileiro, creio que se deve entender por protestantismo no Brasil. O QUE É UM PROTESTANTE, O QUE É SER PROTESTANTE? O grande e maior princípio da Reforma é o da liberdade e está explícito no talvez menor dos livros de Martim Lutero (2) e mesmo de toda a literatura reformada. Diz Lutero que o cristão é “senhor livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém”, mas completa: “um cristão é um servo prestativo em todas as coisas e está sujeito a todos”. Essa aparente contradição se resolve assim: o cristão é livre para fazer e não fazer ou, ainda, o cristão não está debaixo de nenhuma mediação e se refere diretamente a Deus pela fé, instrumento de sua salvação. A salvação é individual e sua vida religiosa é pautada exclusivamente pela Bíblia cuja leitura é direta e também não mediada. Como pontifica Dunstan, o homem é o centro de sua religião. Em suma, o protestante é o homem que se sente liberto por Cristo, segue exclusi- vamente a Bíblia “como única regra de fé e prática”, cultiva uma ética racional de desempenho para contribuir para a glória de Deus e vive moralmente segundo os “10 mandamentos” e os padrões da moral burguesa vitoriana. A conversão, que no período do Grande Despertamento (3) era mais propriamente uma “reconsagração” à vida devota, reajustava o indivíduo ao modelo burguês vitoriano acompanhado da ética do trabalho apropriada à ideologia do progresso. A preguiça, a ociosidade e a falta de objetividade na vida, assim como desregramentos sexuais e desorganização familiar, eram pecados graves para os vi- torianos (4). O protestantismo, principal- mente o calvinismo posterior, privilegiou as relações sociais e econômico-políticas no sentido horizontal, buscando pôr de 2 Da Liberdade Cristã , escrito em 1520 (Lutero, 2004). Ver também: Altmann, 1994. 3 Grande Despertamento ou Grandes Avivamentos desig- nam movimentos esparsos de renascimento de vitalidade religiosa que ocorreram na América do Norte a partir dos primeiros anos do século XIX. 4 Quanto a isso é muito interessan- te ver: Gay, 2000 e 2005.

lado todo tipo de dependência piramidal ou vertical. Em suma, uma desconfiança permanente de monarquias absolutas em favor de repúblicas democráticas. Isso ga- nhou muita força após a independência das colônias norte-americanas e da expansão protestante durante o século XIX (5). Não é necessário que nos alonguemos na discussão a respeito da chamada ideologia norte-americana protestante da inter-relação íntima entre evangelizar e civilizar. Outros autores já trataram dessa questão. Contu- do, é oportuno lembrar que essa ideologia não é exclusiva do protestantismo porque o mesmo papel que os Estados Unidos se propunham, e ainda se propõem, de expandir o seu próprio modelo civilizatório, isto é, o reino de Deus terreno, já empolgava, na oratória de Antonio Vieira, o velho Por- tugal seiscentista. Não obstante, há que se estabelecer as diferenças entre os dois modelos: o reino de Deus por Portugal era um reino caracterizado pelo modelo de cristandade, vertical e monárquico, ao passo que o norte-americano era, e é, democrático republicano, horizontal e contratual. Em suma, o protestante é um indivíduo que professa uma religião individual, de consciência, que se inspira na interpretação direta e pessoal da Bíblia, pauta suas ações na ética racional do trabalho e na moral burguesa vitoriana. Sua racionalidade pro- cura manter a distância a interferência do extraordinário no cotidiano, assim como sua individualidade o situa nos limites mínimos do poder sacerdotal ou eclesiástico. É uma religião quase secularizada e se aproxima, mesmo quando institucionalizada, de uma religião civil. As igrejas são comunidades de fé e aprendizado religioso mútuo. A disciplina, que se prende mais a questões de ética, principalmente de moral, tende a se tornar elástica na medida em que, no gradiente seita-igreja, a comunidade se aproxima mais desta. Este é o modelo, por que não dizer tipo ideal, do protestante histórico ou tradicional, ao qual se aplica bem, como já foi dito, o conceito de evangélico, mas que implica dificuldades quando generalizado para todos os cristãos não-católicos. Este artigo trata exclusivamente do grupo de protestantes ou evangélicos que abrange aquelas igrejas já mencionadas, tanto as do chamado protestantismo de missão ou conversão, quanto as do pro- testantismo de imigração. Propomo-nos a analisar, dentro dos limites impostos, as idas e vindas desse tipo de protestantismo no Brasil em suas relações históricas e dialeticamente relacionais com o universo político brasileiro e internacional durante os cerca de 180 anos de sua presença no país. Tomaremos como ponto de intersecção his- tórica a chamada Conferência do Nordeste, realizada no Recife (PE), em 1962, último momento de convergência identitária desse protestantismo antes do seu isolacionismo denominacional. Não serão levadas em conta as questões e crises internas que, por vezes, agitaram as igrejas, mas exclusiva- mente como elas reagiram ao impacto dos momentos históricos externos. Propomos a seguinte periodização: de 1824 a 1916, período de implantação do protestantismo no Brasil; de 1916 a 1952, desenvolvimento do projeto de coopera- ção ou pan-protestantismo e a chegada de “um bando de teologias novas”; de 1952 a 1962, crise política e religiosa, ensaio de politização do protestantismo e impacto do pentecostalismo; de 1962 a 1983, período de repressão no interior do protestantismo, da revolução neopentecostal, fortalecimento do denominacionismo e o isolacionismo das igrejas. PERÍODO DE IMPLANTAÇÃO: DE 1824 A 1916 Até o final do século XIX todas as de- nominações protestantes tradicionais ou históricas estavam estabelecidas no Brasil, sendo a última a Igreja Protestante Episco- pal, mais adiante conhecida simplesmente por Igreja Episcopal. Dada sua origem anglicana, hoje se chama Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (6). No sistema de classificação ainda adotado, os episcopais 5 Bastaria, neste ponto, assinalar o testemunho da missionária educadora metodista Martha Watts (1881-1908), fundadora do Colégio Piracicabano, em carta de abril de 1890, logo após a proclamação da República: “O Brasil está indo para frente, e devemos seguir com ele, carregando a religião do Evangelho […]” (Mesquita, 2001, p. 90). 6 Ver o artigo de Calvani, “ O Anglicanismo no Brasil”, neste Dossiê.

em propagar a fé, limitaram-se inicialmente à prática da piedade e do culto. A não ser os congregacionais proce- dentes da missão de um escocês, todos os demais protestantes de missão originaram- se do protestantismo norte-americano. Como já tentamos demonstrar em outro trabalho (Mendonça, 1995, parte, cap.1), o movimento religioso norte-americano ocorrido no século XIX conhecido por Grande Despertamento produzira um sis- tema teológico mais ou menos uniforme que se superpunha às particularidades de- nominacionais. Resumidamente, esse sis- tema consistia em dois pontos principais: o princípio da conversão, que se apoiava na regeneração, ou novo nascimento, que tinha como resultado a salvação individual (Graham, 1973, cap. 11), e a devoção à ética do trabalho assim como à disciplina moral. Duas alavancas para a ideologia do progresso, como já foi dito. Mas há ainda outro fator de ordem teo- lógica que, embora contraditório no interior do protestantismo, veio marcar fortemente o protestantismo no Brasil. A controvérsia a respeito da abolição do sistema escravista abalara as igrejas americanas e provocara cisões no interior de algumas delas, levan- do-as a se dividir entre norte e sul. Surgiu, assim, entre os conservadores, a idéia de não comprometer a igreja com a questão escravista. A solução foi racionalizar a escravidão através de uma doutrina nova que ficou conhecida por Teologia da Igreja Espiritual. Com base no preceito bíblico “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, a Teologia da Igreja Espiritual insistia em que à igreja importavam as ques- tões espirituais e as materiais e políticas ao Estado (Mendonça, 1995, p. 59). Buscando espaço na sociedade brasilei- ra, o protestantismo, embora criticando com insistência a religião oficial, manteve-se o quanto possível afastado de questões de ordem social e política, sendo parcos os pronunciamentos a respeito da abolição da escravidão. Parece ter contribuído para isso a composição do corpo missionário que punha lado a lado nortistas e sulistas. Por isso, causou mal-estar entre eles um folheto publicado por um pastor presbi- teriano brasileiro contrário à escravidão (Pereira, 1886). O fato é que a doutrina da Igreja Espiritual permaneceu distintiva no protestantismo no Brasil distanciando-o sempre das atividades políticas e sociais. Era muito comum entre os protestantes a expressão: o crente não deve se meter em política. Parece também ter contribuído bastante para essa atitude o pré-milena- rismo que se instalou nele, expresso num messianismo de espera que tornava o fiel protestante indiferente diante das “coisas deste mundo” (Mendonça, 2001). Nesse período, o sentimento nacionalista que envolvia alguns dos mais influentes pensadores e políticos brasileiros, como Eduardo Prado (1860-1901), principalmen- te em A Ilusão Americana (1893), provocou velados conflitos entre os protestantes de origem missionária norte-americana. Em- bora velados nos princípios, os conflitos se tornaram evidentes entre os presbiterianos, particularmente em dois momentos. O primeiro foi a extinção da Imprensa Evan- gélica , em 1892. Fundado em 1864, esse jornal, que circulou durante vinte e oito anos, alcançando inclusive o universo católico, foi encerrado por ordem das missões presbite- rianas que, além de fechá-lo, negaram aos brasileiros o direito de fundar outro com o mesmo nome. Sob a camuflagem de desen- contros com a maçonaria, o nacionalismo também provocou o primeiro cisma entre protestantes no Brasil que deu origem, em 1903, à Igreja Presbiteriana Independente do Brasil sob o signo do antimaçonismo. O protestantismo, valendo-se das difi- culdades que enfrentava a Igreja Católica por causa de fatores como o regalismo e o galicanismo, que buscavam o afastamento cada vez maior da centralidade vaticana, assim como de conflitos com a maçonaria, teve, em números absolutos, crescimento significativo. Os presbiterianos foram os que avançaram mais até os vinte anos sub- seqüentes à Proclamação da República, quando começaram a perder para os batistas. Ganharam espaço também na atividade educacional em que investiram bastante, o que causou também dificuldades no interior

das próprias igrejas. Para muitos protestantes, a prioridade era converter pessoas ao pro- testantismo e promover o crescimento das igrejas; para outros, era necessário “educar para civilizar”, causa que era óbvia na men- talidade missionária norte-americana. Um protestantismo entusiasta e em desenvolvi- mento, mas já com crises internas, caracteriza esse primeiro período. Crises principalmente geradas por mentalidades diferentes e com prioridades divergentes. PROJETO DE COOPERAÇÃO E UNIONISMO: DE 1916 A 1952 Momento histórico importante para o protestantismo no Brasil e na América Latina foi o Congresso da Obra Cristã na América Latina, realizado na Zona do Canal do Panamá, em fevereiro de 1916. Esse congresso, conhecido simplesmente por Congresso do Panamá, foi uma reação à Conferência Missionária de Edimburgo, Escócia, realizada em 1910. Essa conferên- cia, influenciada pela amplitude colonialista da Inglaterra, fi rmou o princípio de que as missões só deveriam ter como objetivo o mundo não-cristão, o que excluía as áreas ocupadas pela Igreja Católica e punha em xeque todo o arcabouço missionário pro- testante na América Latina. Mas a história, muitas vezes irônica, pregou mais uma vez uma de suas peças. O Panamá, que pretendia fi rmar o princípio de que era necessário fazer missão também nos países católicos por razões de ordem teológica, não contava com outras razões, estas de caráter mais forte porque geradas no âmbito político internacional, e acabou provocando um impasse dentro do próprio protestantismo latino-americano. A políti- ca do pan-americanismo, provocada pelo presidente norte-americano James Monroe (1817-25), não desejava desagradar os países latino-americanos, todos católicos, alguns ainda mantendo a ligação Igreja- Estado. Assim, a pauta do congresso, toda preparada nos Estados Unidos, praticamente manteve a política de Edimburgo ao decidir pela prudência em relação à Igreja Católica. A mensagem fi nal do congresso recomen- dou que a ação missionária deveria buscar áreas não atendidas pela Igreja Católica, principalmente entre os índios. O pastor e educador presbiteriano bra- sileiro Erasmo Braga (1877-1932), consi- derado um dos pioneiros do movimento ecumênico, foi encarregado de resumir e publicar o pensamento ofi cial do congres- so, isto é, o movimento pela unidade dos cristãos latino-americanos, o que fez em seguida escrevendo a obra emblemática do evento Panamericanismo, Aspecto Reli- gioso , publicada em Nova York (1916) em português e espanhol. A idéia de unidade dos cristãos, aqui entendida como unidade dos protestantes, foi posta em ação pela organização, em 1917, da Comissão Bra- sileira de Cooperação. Fizeram parte da comissão presbiterianos, presbiterianos independentes, metodistas, congregacionais e episcopais, e o objetivo era produzir litera- tura religiosa em português, uma imprensa e livraria no Rio de Janeiro, uma revista da família, uma universidade protestante e um orfanato (Pierson, s/d). Esse ambicioso projeto, com fundos que excediam um milhão de dólares, era inteiramente subsidiado pelas igrejas norte- americanas. Parte do projeto foi realizada, principalmente a partir da fundação da Confederação Evangélica do Brasil, em 1934, embora já houvesse fracassado o Se- minário Unido do Rio de Janeiro (1918-33), talvez o que viria ser semente da sonhada Universidade Protestante. Sempre em pauta a disputa entre brasileiros e missionários norte-americanos. Contudo, sob a tutela da confederação, foram publicados vários textos de instrução religiosa, principalmente revistas para as escolas dominicais mediante trabalho exaustivo do educador Erasmo Braga. Buscava-se a unidade dentro da diversidade do protestantismo. De fato, durante muitos anos foi possível participar de cultos e escolas dominicais da maioria das igrejas no Brasil portando a mesma versão da Bíblia, o mesmo livro de hinos e a mesma revista de escola domini-

Dentre esses clássicos pregadores brasi- leiros, herdeiros do melhor púlpito cristão, um deles merece destaque porque se dife- rencia dos demais quanto à direção de sua pregação: enquanto os outros seguiam a tra- dição do “Despertamento”, que procurava trazer convertidos para o interior da igreja, Rizzo empenhava-se em levar a fé religiosa àqueles que normalmente relutavam em entrar num templo protestante. Para isso, usava espaços não sagrados como teatros e salões de conferências em geral. Fundou também o Instituto de Cultura Religiosa que publicou revistas com o mesmo objetivo. Sua produção literário-religiosa visava cha- mar a atenção para o Jesus varão-modelo e não teologizado, muito semelhante ao descrito pelos teólogos do protestantismo liberal que preconizavam o “seguir a Je- sus” como essência do “ser cristão”. Não é injusto pensar que o ideal de Rizzo seria, embora com muita antecipação no Brasil, o de um cristianismo anterior à religião. Essa hipótese, para ser demonstrada, demandaria um estudo mais aprofundado de sua obra, mas não deixa de ser atraente. A tolerância, e mesmo respeito, para com o catolicismo latino-americano por parte do Congresso do Panamá gerou forte reação por parte de alguns líderes brasilei- ros, ambos presbiterianos. Eduardo Carlos Pereira, respeitado gramático e pastor da então recém-criada Igreja Presbiteriana Independente, e Álvaro Reis, notável ora- dor sacro e pastor da Igreja Presbiteriana no Rio, encabeçaram séria oposição à ala mais aberta do congresso, cujo principal representante foi o também brasileiro e presbiteriano Erasmo Braga. Eduardo Carlos Pereira, cuja moção contrária à política do pan-americanismo religioso sequer entrara na pauta do con- gresso, publicou em 1920 o livro mais polêmico contra a Igreja Católica: O Pro- blema Religioso da América Latina , com o subtítulo Estudo Dogmático Histórico. Erudito, crítico e por vezes muito ácido, Pereira conclui o livro grafando em desta- que: “fora de Roma, dentro do cristianismo”. Falecendo em 1923, Pereira por pouco não viu a volumosa e também erudita, assim como ácida, réplica do jesuíta Leonel Franca publicada no mesmo ano: A Igreja, a Refor- ma e a Civilização. A douta polêmica durou alguns anos tendo, de um lado, Franca, e de outro, vários oponentes que assumiram o lugar de Pereira, todos presbiterianos. Pastores de outras denominações também ajudaram a incrementar o debate através de artigos em revistas e jornais. O conflito entre a religião hegemônica e o protestantismo emergente, de início limitado à disputa por fiéis e território, agora guindara o plano da erudição histórica e teológica No interior das denominações, dois outros eventos históricos ocorreram nesse período, ambos tendo como motivo as relações entre nacionais e missionários es- trangeiros. Em 1925, os batistas brasileiros, através do movimento conhecido como “Questão Radical”, obtiveram parcial auto- nomia na gestão de fundos, movimento que prosseguiu sempre na direção da autonomia completa e de maneira complicada, dado o princípio batista da autonomia absoluta das igrejas locais. Por esse princípio, acordos de cúpula, sejam através de comissões ou convenções, não as obrigam necessariamen- te (Pereira, 1982, cap. 12; Reily, 2003, pp. 182 e segs.). Ainda dentro do contexto do movimento nacionalista, a Igreja Metodista do Brasil obteve sua autonomia em 1930 (Josgrilberg, 1998). Não podemos encerrar esse período, muito rico em mudanças no protestantismo mundial, especialmente no norte-ameri- cano, sem mencionar, embora em traços largos, algumas de suas repercussões no Brasil. Um desses movimentos foi o do Evangelho Social, que se liga diretamente ao pastor batista norte-americano Walter Rauschenbusch (1861-1918). Ligado ao protestantismo liberal, Rauschenbusch, após estudos na Alemanha, desenvolveu seu ministério pastoral entre imigrantes alemães numa das áreas mais pobres de Nova York, e entrou num debate sobre os direitos das classes trabalhadoras. Convencido de que o pecado era tanto social como individual, talvez mais social, Rauschenbusch aban- donou, como os liberais, toda teologia metafísica em favor de uma teologia de-

dicada ao reino de Deus neste mundo em lugar de uma meta ultraterrena. Traços do marxismo, sem dúvida, estão presentes no pensamento do Evangelho Social quando, de modo mais direto, o protestantismo passa a pensar também nas relações entre os indivíduos. O Evangelho Social, enquanto corrente teológica, foi bloqueado no Brasil. Contu- do, um dos seus projetos relativos ao reino de Deus, chamado nos Estados Unidos de settlement houses , ou centros sociais, surgiu nas igrejas locais maiores visando ajudar as pessoas de seus bairros através de serviços sociais, recreação, bibliotecas, orfanatos, creches, hospitais e assim por diante. Al- gumas dessas instituições sobreviveram aos seus idealizadores e suas idéias. Hoje, o Evangelho Social é visto como grande heresia, pois o reino de Deus voltou a ser visto como algo para além da história. O clássico livro do Evangelho Social foi Nos Passos de Jesus ( In His Steps) , de Charles M. Sheldon, escrito em 1896. Consta ser um dos livros mais lidos no mundo e labora em torno da pergunta: em cada ação como agiria Jesus? Se o Evangelho Social foi uma das ex- pressões diretas do liberalismo teológico protestante, o fundamentalismo surgiu como uma reação também direta à acolhida que o liberalismo dava aos preceitos e méto- dos da ciência moderna, principalmente à influência crescente do evolucionismo. O ponto de partida do fundamentalismo foi dado na célebre Conferência Bíblica de Niágara, em 1878. Em poucas palavras, o fundamentalismo se define pela defesa da ortodoxia protestante a respeito da Bíblia como infalível e acima de qualquer rein- terpretação que parta da ciência moderna, principalmente do evolucionismo. O fun- damentalismo institucionalizou-se como movimento internacional após a Segunda Guerra Mundial com a fundação do Con- selho Internacional de Igrejas Cristãs, em 1948, em Amsterdã, sob a liderança do pastor presbiteriano norte-americano Carl McIntire (1906-2002). Voltando-se princi- palmente contra o movimento ecumênico, que também se institucionalizava, o ICCC (International Council of Christian Chur- ches), pela voz de seu fundador, chamado pelos seus adversários de “apóstolo da discórdia”, promoveu crises internas nas igrejas. As brasileiras, mormente as pres- biterianas, não ficaram imunes à pregação de McIntire, que esteve no Brasil ao menos duas vezes, e acabou influindo na criação de uma Federação de Igrejas Fundamentalistas que publicou durante bom tempo um jornal intitulado O Presbiteriano Bíblico. O curioso é que na mesma semana e na mesma cidade de Amsterdã fundava-se o Conselho Mundial de Igrejas (WCC – World Council of Churches), fruto de longa expe- riência de convívio entre cristãos de várias tradições e denominações. Esse convívio, sem dúvida sob a inspiração do liberalismo da chamada Escola da História das Reli- giões, só aguardou o término da guerra para Reprodução

quadros estudantis que formavam os cen- tros acadêmicos nas escolas superiores e, assim, passaram a ver a realidade sob outro ângulo, ou melhor, voltariam suas faces para o mundo real. Perceberam o quanto suas igrejas estavam alheias ao que se passava fora de suas portas. Passaram a falar outra língua e se abriu um vazio entre eles e as lideranças eclesiásticas. É nesse cenário que surge o “bando de teologias novas” (9) que atinge primeiro o Seminário Presbiteriano do Sul, em Cam- pinas (SP), e se alastra por outros em pouco tempo. Ao mesmo tempo em que uma nova realidade histórico-social se abria para os jovens leigos das igrejas, aragens frescas do pensamento teológico passaram a entrar pelas janelas dos seminários. A história do ensino de teologia nos seminários brasileiros, talvez com exceção dos de tradição luterana européia, mostra- va uma prática repetitiva de segunda mão com base em manuais clássicos de teologia metafísica. Fórmulas frias e distantes. Nos seminários presbiterianos, por exemplo, circulavam os manuais de A. B. Berkhof, de 1933, e o de A. H. Strong, de 1907, o que deveria ocorrer também em outros. Em 1952, chega ao Brasil – e foi para o Seminário Presbiteriano do Sul, em 1953

  • o missionário norte-americano Richard Shaull (1919-2002) para assumir um pos- to no corpo de professores. Então com 33 anos de idade, Shaull já se envolvera com o movimento estudantil através da Federação Mundial de Estudantes Cristãos (Fumec) em sua 1a^ Conferência Latino-Americana, realizada em São Paulo, em 1952. A Fumec dedicava-se à evangelização de jovens universitários e ao estudo da Bíblia em profundidade e “cuja fé deveria expressar-se no meio das lutas sociais” (Shaull, 2003, p. 94). Encontra-se com o pastor presbiteriano Jorge César Mota, que dirigia a incipiente União Cristã de Estudantes do Brasil (Uceb), e vai, durante os anos seguintes, exercer forte influência nesse organismo. Shaull, como ele mesmo diz em suas memórias, acreditava na “potencialidade desse mo- vimento como resposta à nova geração de protestantes ansiosos para aprofundar sua fé e encontrar seu caminho no mundo”. Shaull foi além, dialogando com a UNE (União Nacional de Estudantes) e com as UEEs (Faria, 2002, p. 105). Estava aí a liderança intelectual e prática que os jovens protestantes brasileiros de- sejavam. Quanto ao pensamento teológico, Shaull introduziu seus alunos no mundo então desconhecido da teologia européia, pensamento produzido no turbilhão da guerra e do pós-guerra. O principal nome que surge no cenário seria o do reformado Karl Barth (1886-1968), tido como o maior teólogo do século XX. Sua obra, conhecida por “teologia dialética” ou “teologia da Pa- lavra de Deus”, posteriormente englobada sob o título mais geral de “neo-ortodoxia”, apontava para a ação contínua de Deus na história e com a qual o homem devia colaborar. A leitura de Barth, notável por sua oposição ao nazismo, representava, no pós-guerra, um apelo aos cristãos para que superassem o conformismo e avançassem na direção da construção de um mundo justo. Mais ou menos na mesma linha, passaram a circular outros teólogos como Emil Brunner (1889-1966) e Rudolf Bultmann (1884- 1976). O que despertou mais paixão entre os estudantes de teologia no Brasil foi Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), enforcado pelos nazistas em um campo de concentração nos últimos dias da guerra. Bonhoeffer, em suas famosas cartas escritas da prisão, refletia sobre a possibilidade de ser cristão num mundo secularizado, superando a religião e mesmo a igreja. Esse pensamento iria avançar pela década seguinte com o título genérico de Teologia Radical. Richard Shaull, além de levar a chamada teologia moderna para o ambiente em que atuava, ele mesmo passou a pôr em prática uma teologia da ação e no estilo aberto e ecumênico. Shaull aponta para a natureza dinâmica de Deus e para o fato de que sua atividade na história estava prosseguindo rumo a um alvo. Essa postura de Shaull foi logo vista como uma crítica e um desafio às igrejas para que saíssem da inércia e do conformismo e tomassem parte e responsa- bilidade diante de um mundo em mudança. Passou a ser incômodo. 9 Referência à expressão “um bando de idéias novas” usada por João Cruz Costa em Con- tribuição à História das Idéias no Brasil.

A influência de Shaull sobre estudantes universitários e alunos de seminários deu como resultado um distanciamento entre a juventude das igrejas, insatisfeita com a maneira como elas se comportavam perante o chamado “estado revolucionário” do Brasil, e as autoridades que receavam subverter-se a disciplina eclesiástica. Mas, mesmo assim, o Setor de Responsabilidade Social da Igreja, órgão da Confederação Evangélica, pros- seguia em suas atividades, principalmente sob a influência da Segunda Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas realizada em Evanston, Estados Unidos, em 1954. A Conferência de Evanston praticamen- te acirrou a crise nas igrejas brasileiras, principalmente porque participaram dela representantes das igrejas russas, o que serviu para que o Conselho Mundial de Igrejas fosse acusado de estar se abrindo para o comunismo. Desabrochava o conflito entre o fundamentalismo representando pelo Conselho Internacional de Igrejas Cristãs e o ecumenismo representado pelo Conselho Mundial de Igrejas, com intensos reflexos nas igrejas brasileiras. Mesmo assim, o Setor de Responsabilidade Social da Igreja realizou três reuniões de estudos que antecederam a Conferência do Nordes- te, em 1962. Em suma, o período mostra progressiva politização da juventude das igrejas protestantes. Outro impacto que as igrejas sofreram no período considerado foi a explosão pentecostal no início dos anos 50. A in- dustrialização e o crescimento das cidades decorrente da migração campo-cidade provocaram, ao mesmo tempo, desajustes sociais, bem como certo descompromisso dos migrantes em relação às suas igrejas de origem. A migração geográfica trouxe consigo uma migração religiosa em busca de religiões mais práticas e que tivessem a ver com o cotidiano das pessoas. A explosão pentecostal teve como ponto de partida o movimento de “tendas de cura divina” promovido pela chamada Cruzada Nacional de Evangelização que alcançou o país todo. Foi um movimento religioso tipicamente urbano que começou em São Paulo em 1953. A cruzada era um braço da Igreja do Evangelho Quadrangular, igreja pentecostal originada no Sul dos Estados Unidos e que sustentava quatro princípios: salvação da alma, batismo com o Espírito Santo, cura divina e segunda vinda de Cristo. Vê-se que eram mantidas doutrinas comuns ao cristianismo protestante, como a salvação individual e o pré-milenarismo, assim como o batismo dos pentecostais tradicionais. A novidade era a nova ênfase na cura divina. Ao lado da cura divina, como complemento, vinha o exorcismo de demônios. O histo- riador desse movimento, ele mesmo um dos seus pastores (Rosa, 1977, Introdução), queixa-se do desequilíbro dos quatro pilares provocado pela ênfase exagerada na cura divina. Todavia, para uma população de um lado insatisfeita com a falta de atrativo em suas igrejas e, de outro, necessitada de apoio para o desamparo social em que vi- via, a cura divina, entendida no seu sentido mais amplo, constituía de fato a principal atração simbólica. A cruzada atingiu as igrejas tradicionais, bem como as pentecostais clássicas. Muitos pastores e leigos dessas igrejas, influencia- dos pela nova prática religiosa, vieram a fundar várias igrejas no mesmo estilo. Na verdade, a Cruzada Nacional de Evangeli- zação foi a origem do neopentecostais. O período se fecha com as igrejas tradi- cionais situadas perante três vias opostas a elas mesmas e entre si: o pentecostalismo de cura divina, o fundamentalismo e o ecumenismo incipiente. PERÍODO DE REPRESSÃO E ISOLACIONISMO DAS IGREJAS: 1962 A 1983 Mesmo já com dificuldades internas e externas por causa de reações das cúpulas das igrejas contra o avanço da autonomia de setores leigos dentro da Confederação Evangélica, o Setor de Responsabilidade Social da Igreja caminhou na direção da realização da sua quarta reunião de estudos

agora publicado em português, e na teolo- gia surge Jürgen Moltmann (1926-) com sua monumental Teologia da Esperança , primeira edição em 1968. Em português acaba de sair a 3a^ edição. Em 1969, o teólogo presbiteriano brasileiro, um dos participantes da conferência, Rubem Alves, publica sua tese de doutorado nos Estados Unidos intitulada A Theology of Human Hope. Essa obra só saiu em português em 1987 com o título Da Esperança depois de ter sido publicada antes em outras línguas. Vale considerar que o tema perpassa com igual intensidade o universo intelectual católico como, por exemplo, em J. B. Metz, que, passando pelo tema da secularização e por uma teologia do mundo, chega a uma teologia política. Nem mesmo a sociologia fi cou alheia ao movimento porque Henri Desroche (1914-1994) publicou Sociologie de L’Espérance , em 1973. A tradução em português saiu em 1985. Duas outras correntes, paralelas por sinal, empolgam esse período. O teólogo norte-americano Harvey Cox ( The Secular City, 1965-66) trabalha o tema da relação entre a urbanização e a secularização, enquanto dois outros, também norte-ame- ricanos, William Hamilton e Thomas J. J. Altizer, levantam a bandeira da “teologia radical”, também chamada “teologia da morte de Deus”. Entram também por essa via Gabriel Vahanian ( The Death of God,

  1. e o bispo anglicano que causou sen- sação com Honest to God, 1963. Por sua vez, o teólogo católico Robert Adolfs chega ao extremo da crítica à igreja acusando-a de ser “túmulo de Deus”. Em resumo, a massa da produção teológica desse período, tanto protestante como católica, procura mostrar que num mundo secularizado e aberto a mudanças, vez que destruído pela guerra, era necessário buscar novas formas de religião ou até mesmo superar a religião. A teologia radical, ou da morte de Deus, por certo não era atéia, mas tinha implícita a idéia de que o Deus da tradição havia “morrido na cul- tura”. As igrejas o haviam enterrado com suas fórmulas antiquadas e emperradas. Era Nietzsche chamado à liça com o célebre diálogo entre Zaratustra e o velho papa “fora de serviço”, fora de serviço porque sua instituição havia acabado. Estavam em jogo estrutura e poder das igrejas.

Na América Latina dois acontecimentos iriam centralizar o grande debate em torno da situação social, econômica e política. A ideologia desenvolvimentista seria ques- tionada pela tese da dependência elaborada por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto ( Dependência e Desenvolvimento na América Latina, 1965-67). A teoria se completava com a obra de Celso Furtado, já citada, sobre as origens do subdesenvol- vimento. Nesse ponto, tanto alguns setores das igrejas protestantes quanto da Igreja Católica avançaram mais ou menos na mes- ma direção, isto é, no sentido de envolver as igrejas na luta pela conquista de uma sociedade mais justa diante de um cenário aberto a profundas mudanças. Assim, no cenário protestante surge, em 1961, a Junta Latino-Americana Igreja e Sociedade com o fim de promover consultas sobre a responsabilidade social das igrejas evangélicas na América Latina. Isal, como passou a ser conhecida, passou a publicar, em Montevidéu, a revista Cristianismo y Sociedad, que teve larga circulação em toda a América Latina. Essa revista, que servia de elo entre os protestantes da “esquerda teológica latino-americana”, migrou por vários países até se extinguir melancolica- mente. Muitos brasileiros participaram de Isal, entre eles, com atuação saliente, Rubem Alves. Richard Shaull, mesmo não sendo latino-americano, foi um dos seus principais nomes. No cenário católico, o aggiorna- mento proposto pelo Concílio Vaticano II iria culminar na Segunda Conferência do Episcopado Latino-Americano, em Me- dellin, Colômbia, 1968, com a declaração da opção preferencial pelos pobres, ponto de partida para a Teologia da Libertação que se desenvolveria na década seguinte. Os mais conhecidos nomes brasileiros inseridos nessa corrente teológica foram os católicos Leonardo Boff e Hugo Assmann. Do lado protestante, ao menos nos seus inícios, o nome de Rubem Alves seria arrolado como um dos seus precursores. Mais tarde ele se afastaria tomando outros caminhos, princi- palmente quanto ao método e à linguagem da teologia (Cervantes-Ortiz, s/d). O protestantismo latino-americano, particularmente o brasileiro, mal chegou aos umbrais da Teologia da Libertação. Mas mesmo a simples aproximação dela através do movimento de Isal foi sufi ciente para o endurecimento das igrejas e o início de um processo de repressão, especialmente pela identificação que as alas conservadoras das igrejas faziam entre ecumenismo e comu- nismo e a pressão fundamentalista tanto interna como externa. Além de tudo, por trás estava já o período de repressão do regime militar. A pressão fundamentalista externa, representada pela presença cada vez maior no Brasil das chamadas missões paraecle- siásticas, ou missões de fé, assim como os clarões ainda visíveis do macarthismo provocaram o expurgo progressivo da ala chamada liberal ou modernista das igrejas representada por estudantes universitários, seminaristas e jovens pastores. Em 1968, ao menos dois seminários presbiterianos e um metodista foram fechados e seus alunos expulsos. Colaborou bastante, sem dúvida, a generalização do movimento de “contracultura” com seus refl exos entre os estudantes brasileiros. Há, pelo menos, três trabalhos que retratam bem esse período de repressão em algumas das igrejas protestantes brasi- leiras: de João Dias de Araújo, Inquisição sem Fogueiras (1976) , de Rubem Alves, Protestantismo e Repressão (1979), e um artigo bem elaborado e documentado de Leonildo Silveira Campos (2002). O confl ito também signifi cativo desse período aconteceu entre o ecumenismo, acirrado pela Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), em Nova Délhi, Índia, e o Conselho Internacional de Igrejas Cristãs, expressão do fundamentalismo protestante. A Assembléia de Nova Délhi, realizada entre 19 de novembro e 5 de dezembro de 1961, com a presença de 577 delegados de 197 igrejas membros, decidiu, entre outras coisas, pela aproximação de outras religiões, compreendendo-as melhor e, principalmente, por tomar conhecimen- to dos problemas econômicos e políticos decorrentes das rápidas mudanças sociais, particularmente do Terceiro Mundo. A rea- ção do Conselho Internacional de Igrejas

que produziram as chamadas igrejas “re- novadas”. O neopentecostalismo, como se sabe, provocou verdadeira devastação nessas igrejas. CONSIDERAÇÕES FINAIS A trajetória histórica das chamadas igre- jas protestantes tradicionais, particularmen- te as oriundas das missões norte-americanas, mostra um confronto permanente entre dependência e autonomia. A autonomia política e administrativa foi sendo obtida ao longo do tempo, mas a financeira ainda exerce forte ascendência em alguns setores da vida dessas igrejas, o que não deixa de influir na dependência de idéias e projetos. As aproximações e distanciamentos perió- dicos entre utopias e ideologias, como lembrou Rubem Alves, sempre acabaram neutralizando o pensamento utópico e as levaram a uma espécie de recolhimento e indiferença pela realidade. Voltaram-se para o interior de si mesmas e construíram nichos de salvação. As causas são múltiplas e não caberia levantá-las exaustivamente neste ponto. Contudo, parece ser suficiente apontar para duas, uma externa e outra interna. A externa é a dependência de matrizes de pensamento geradas em outro lugar ou, usando o já co- nhecido bordão, de “idéias fora do lugar”. A interna é a histórica repressão da construção de um pensamento crítico que, começando nos anos 40, vem exilando os intelectuais de modo a impedir que a autonomia vença a dependência. Os quadros, enfraquecidos pela ausência de pensamento vigoroso e livre, mal ensaiam o debate em torno de novas idéias. Contudo, a abertura legal para a criação de cursos superiores de teologia com reconheci- mento oficial, inclusive pelas universidades, pode descortinar um horizonte novo para o pensamento filosófico-teológico que venha a contaminar as igrejas e abrir aos poucos campo para a sua autonomia.

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