Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

O PROCESSO SEMIÓTICO NUM POEMA DE DRUMMOND ..., Esquemas de Comunicação

Poema das sete faces. Carlos Drummond de Andrade ... Não nos propomos fazer aqui uma análise do poema de Drummond, ... que a análise jamais o esgota.

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Rio890
Rio890 🇧🇷

4.8

(22)

221 documentos

1 / 12

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
O PROCESSO SEMIÓTICO NUM POEMA DE DRUMMOND
Salatiel Ferreira Rodrigues
CORPUS
Poema das sete faces
Carlos Drummond de Andrade
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás e mulheres
A tarde talvez fosse azul
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás do óculos e do bigode.
Meu Deus, porque me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa

Pré-visualização parcial do texto

Baixe O PROCESSO SEMIÓTICO NUM POEMA DE DRUMMOND ... e outras Esquemas em PDF para Comunicação, somente na Docsity!

O PROCESSO SEMIÓTICO NUM POEMA DE DRUMMOND

Salatiel Ferreira Rodrigues CORPUS Poema das sete faces Carlos Drummond de Andrade Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás e mulheres A tarde talvez fosse azul não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás do óculos e do bigode. Meu Deus, porque me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo Seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo.

O PLANO DE EXPRESSÃO

Não nos propomos fazer aqui uma análise do poema de Drummond, muito menos pretendemos atribuir-lhe uma decifração total, visto que um texto poético de tal envergadura se constitui numa galáxia de significados que a análise jamais o esgota. Pretendemos apenas estudar-lhe o plano da expressão, sob os aspectos denotativos, conotativo e mítico, dentro de de- terminado enfoque, sem negar-lhe a possibilidade de n outros percursos de leitura diferentes. Partindo do princípio de que a grandeza do poeta consiste no modo como explora as palavras e que entre estas há as que encerram um signifi- cado em si (substantivos, adjetivos, verbos) e outras que são palavras de re- lação, sem significado ou com significação latente (pronomes, preposições, conjunções), é com as primeiras que vamos nos ocupar, embora não esque- çamos do que na obra literária aquelas posições podem ser invertidas na es- cala de valores. Nossa preferência se explica também pela própria finalida- de deste trabalho que é a análise de relação expressão / conteúdo em escala ascendente a partir do nível denotativo. O contato com a poesia drummondiana revela-nos, logo de saída, marcante originalidade de vocabulário. O poeta esmera-se em alcançar os melhores resultados no trato com a palavra, no teorizar a palavra, como as- sim é visto por Antônio Houaiss: Teoria da palavra – divagações, talvez, em torno de uma lúcida intuição de poeta, de cuja prática da palavra se pretende, agora, dar uma idéia, com a sua sele- ção verbal, prática mais rica ainda do que a teoria, que não a sistematiza, não a li- mita, não a define inteiramente. Prática, ademais, fecunda, e fecunda desde o início

  • sem a mínima quebra do valor de sua mensagem, muito antes pelo contrário.^1 O vocabulário de Drummond – como é o dos poetas contemporâneos
  • opõe-se ao vocabulário usual dos poetas anteriores, como o disse Houaiss: ...não apenas uma oposição consagrada – como a dos parnasianos, à procura do rigor racional no uso dos vocábulos em oposição ao uso afetivo e padronizado dos românticos, ou dos simbolistas, à procura dos vocábulos musicais ou sugestivos em oposição ao uso lógico dos parnasianos. Nos contemporâneos, a oposição a to- dos os outros é por universalização; não há proscrição possível por princípio; have- rá, se tanto, omissão, por não ocorrer a necessidade de uma dada palavra; e ainda mais, essa universalização não se faz na base da chamada adequação verbal – pala- vras afins pelo uso social de certa camada, pelo uso técnico, pela sugestão histórica, pela associação histórica – mas as palavras, provindas de quaisquer setores do vo- cabulário, confluem em inusitadas combinações, associações, que carregam de ine- ditismo o inusitado, sobretudo porque não se amarram em esquemas convencionais, (^1) HOUAISS (1975), p. 177

Eco observa: Logo, dizer que um significante veicula uma dada posição num dado campo semântico constitui uma definição cômoda, já que o significante deve, ao contrário, referir-se (i) a uma rede de posições no interior do mesmo campo semântico e (i i) a uma rede de posições no interior de diversos campos semânticos.^6 A estas posições Eco chama de MARCAS SEMÂNTICAS do se- mema e lhes atribui a possibilidade de serem denotativas ou conotativas, como segue: Chamamos DENOTATIVAS às marcas cuja soma (ou hierarquia) constitui e identifica a unidade cultural à qual o significado corresponde em primeira instância e sobre a qual se baseiam as conotações sucessivas. Ao contrário, chamamos CO- NOTATIVAS às marcas que contribuem para a constituição de uma ou mais uni- dades culturais expressas pela função sígnica anteriormente constituída. (.....) as marcas denotativas diferem das conotativas apenas enquanto uma conotação deve basear-se uma denotação precedente. 7 Portanto o exposto acima é o suficiente para aclarar que é denotativa a marca à qual o significante é referido sem mediação de outras preceden- tes, salvo aquelas que lhes são implícitas semanticamente por redundância, e, para conclusão, recorremos, mais uma vez, às palavras de Eco: “a deno- tação é o conteúdo de uma função sígnica.”^8 Logo um levantamento das palavras que encerram uma significação em si e que se referem ao mundo objetivo, no poema acima, nos mostraria o seguinte resultado, de acordo com o nível denotativo: ANJO = Ser espiritual que exerce o ofício de mensageiro en- tre Deus e os homens. TORTO = Que não é reto, direito; sinuoso, torcido, tortuoso. VIVER = Ter vida; estar com vida, existir. SOMBRA = Espaço sem luz, ou escurecido pela interposição de um corpo opaco. GAUCHE = Acanhado, inepto, esquerdo, deslocado. CASA = Edifício de um ou poucos andares, destinado, geral- mente, a habitação; morada, vivenda, moradia. ESPIAR = Observar secretamente; espionar. HOMEM = O ser humano do sexo masculino. CORRER = Deslocar-se, numa seqüência de impulsos, repousan- do o corpo ora sobre uma, ora sobre outra perna, e num andamento em geral mais veloz que a marcha. (^6) Ibidem (^7) Idem, idem, p. 74 (^8) Ibidem

ATRÁS = Na parte posterior; na retaguarda. MULHER = O ser humano do sexo feminino À TARDE = Tempo entre o meio-dia e a noite. AZUL = Da cor da safira. BONDE = Veículo elétrico de transporte urbano, para passagei- ros ou carga, que se move sobre trilhos e pode ser fe- chado ou aberto, com estribo corrido e bem perpendi- cular a este. PERNA = Cada um dos membros inferiores do corpo humano destinados à sustentação ou à locomoção. BIGODE = Barba que nasce sobre o lábio superior. AMIGO = Homem ligado a outrem por laços de amizade. Enquanto, do ponto de vista conotativo, poderíamos aceitar como perfeitamente válidos, significados do tipo: ANJO = Pessoa, espírito. TORTO = Negativista, pessimista; involuído, atrasado. VIVER = Habitar; demorar-se. SOMBRA = Matéria, carne; trevas, zonas tenebrosas. GAUCHE = Obscuro, ignorado, desconhecido; feliz. CASA = Pessoa (A parte tomado pela parte); o pescador, o poeta. ESPIAR = Analisar; meditar sobre. HOMEM = A humanidade (polarizada no varão); o ser máximo da criação – incompleto. CORRER ATRÁS = Buscar; necessitar. MULHER = Parceira, companheira, par, consorte; o ser máximo da criação – complemento. À TARDE = O momento; a vida presente. AZUL = Amena; feliz. DESEJO = Interesse adverso, obstáculo, contratempo; depen- dência. O BONDE = O mundo; a existência. PERNA = Pessoa (A parte tomada pelo todo); mulher. O HOMEM = O poeta; o pescador. BIGODE = Adorno, enfeite; o texto literário; expressão. ÓCULOS = Colocação; ótica, cosmovisão. AMIGO = Simpatizante; intérprete, decodificador, hermeneuta. A fala mítica O que é um mito, hoje? Darei desde já uma primeira resposta muito simples,

E é precisamente este termo final que vai transformar-se em primeiro termo ou termo parcial do sistema aumentado que ele constrói. Tudo se passa como se o mi- to deslocasse de um nível o sistema formal das primeiras significações.^15 Vimos até aqui que no mito estão presentes dois sistemas semiológi- cos, havendo um deslocamento de um em relação ao outro porquanto o se- gundo começa onde termina o primeiro; há também um sistema lingüístico, representado pela língua ou por seus modos de representação, que constitui a linguagem usada pelo mito construção de seu próprio sistema, e há, final- mente, o próprio mito, que se constitui de uma segunda língua (ou metalin- guagem) que fala da primeira. E, por existir uma situação de deslocamento entre os dois sistemas semiológicos, surge a necessidade de uma alteração na terminologia: assim ao que é significante, significado e signo, no plano lingüístico, vai corresponder forma, conceito e significação, no plano míti- co. Com a passagem do primeiro ao segundo sistema o significante lin- güístico ( sentido , em relação à terminologia mítica) esvazia-se, empobrece. “Efetua-se aqui uma permutação paradoxal das operações de leitura, uma regressão anormal do sentido à forma, do signo lingüístico ao significante mítico.”^16 Esvazia-se mas não desaparece; torna-se transparente na constru- ção do forma do mito. Já o significado lingüístico ( conceito , em relação ao mito) enriquece-se de uma nova situação, cria em torno de si toda uma his- tória, adquire uma função precisa, “restabelece uma cadeia de causas e efei- tos, de motivações e intenções.”^17 o terceiro termo do sistema mítico, a sig- nificação, é, entre todos, o que se apresenta com plenitude. “Conforme se vê, a significação é o próprio mito, exatamente como o signo saussuriano é a palavra (ou, mais exatamente, a entidade concreta).”^18 Abramos, no en- tanto, aqui, um espaço para registrar a presença de um novo elemento no plano da significação mítica: a motivação. Enquanto, na língua, o signo é arbitrário, no mito a significação nunca é completamente arbitrária e fre- qüentemente está acompanhada de boa carga de analogia. Finalmente, o mito é uma linguagem roubada que leva o leitor a con- sumi-la inconscientemente por não enxergar-lhe o valor semiótico e conse- qüentemente atribuir-lhe uma funcionabilidade indutiva: “onde existe ape- nas uma equivalência, ele vê uma espécie de processo causal: o significante e o significado mantêm, para ele, relações naturais.”^19 Logo uma leitura do Poema de Sete Faces , no nível mítico, poderia (^15) Idem, idem, p. 136 (^16) Idem, idem , p. 139 (^17) Idem, idem , p. 140 (^18) Idem, idem , p. 143 (^19) Idem, idem, p. 152

nos revelar uma nova mensagem, como a seguir: o poeta medita sobre a fa- talidade que o atirou no mundo através da ordem de um ‘anjo torto’ e revela seu derrotismo ante o fato de ter que viver como deslocado no mundo dos homens, ao lembrar qual foi a ordem – “vai, Carlos, ser gauche a vida” – o relacionamento do poeta com a realidade é visual e passivo: ele não olha, espia, “as casas espiam os homens”. E mais ainda, é um olhar tímido, para baixo: “o bonde passa cheio de pernas”. Os homens da cosmovisão drum- mondiana, neste poema, são criaturas imperfeitas, incompletas: “correm a- trás de mulheres”; e o mundo talvez fosse outro, completamente diferente, se não houvesse tanta imperfeição, tanta dependência. A vida passa e tão diferentes são as pessoas, raças branca, preta, amarela, porque, meu Deus, como se explica? O mundo interior do poeta quer saber: “pergunta meu co- ração”, mas a sua visão de mundo “não pergunta nada” porquanto está con- victa de que o sentido da vida é seu sem-sentido, e daí o seu interesse pelas coisas ser apenas superficial. O pensador poeta (homem) que se esconde por trás do texto literário (bigodes), mas que tem a sua ótica, a sua visão de mundo (óculos) quase não se comunica, porque existem poucos que o com- preendam. E a indagação perdura: “Meu Deus, por que me abandonaste” e o poeta já não é nada autêntico, mas repetitivo, ( Bíblia Sagrada , salmo 22, e Mateus, 27-46), e essencialmente antitético: “Mundo mundo vasto mundo / se eu me chamasse Raimundo”, que deixa vir à tona o seu conflito Eu ver- sus o Mundo, que pode ser sintetizado num desengano do mundo. Mundo que é menor que o Eu do poeta, que ostenta sua superioridade moral: “mais vasto é meu coração”. Mas, mesmo que as coisas fossem diferentes, que a situação fosse outra, “se eu me chamasse Raimundo”, nada mudaria e a di- ferença seria tão inútil como a rima em si, como mero apoio fonético. A so- lução da dialética existencial não é passível de ser encontrada: “não seria uma solução”. Todavia a brecha entre o Eu e o Mundo se estreita no mo- mento em que sujeito (conhaque) e objeto (lua) se integram num mesmo composto lírico. OS EIXOS SEMÂNTICOS A estrutura do poema se desenvolve a partir de dois sememas: olhos (v.11) e coração (v.10), que dão origem a dois eixos semânticos. O primei- ro, com base sem olhos , gera o sema inicial ver e daí desencadeia uma série que se correlaciona por implicação: ver leva a constatar que leva a compre- ender. VER As casas espiam os homens

mem se isola “atrás do bigode” do sentir. “Quase não conversa / tem pou- cos, raros amigos” seria a condição para poder compreender “é sério, sim- ples e forte”. A série de implicações de sentir vê-se completada na sexta estrofe: Mundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo mais vasto é meu coração. que nas palavras de Anazildo Vasconcelos da Silva: Sentir o que se vê ‘Mundo mundo vasto mundo” implica em imaginar ‘se eu me chamasse Raimundo’ que implica em idealizar ‘seria uma rima não seria uma solução’, conduzindo à superioridade do sentir ‘mais vasto é meu coração’. Assim, completa-se a série de implicações: Sentir implica em Imaginar que implica em I- dealizar. 21 Assim se estabelece a série ver, constatar, compreender que se opõe a sentir, imaginar, idealizar, perfazendo o total de seis faces do poema. A sétima nos é mostrada através da proposição: Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido com o diabo. onde a tensão se estabelece entre o ver “mas essa lua” e o sentir “mas esse conhaque” e se anula no “comovido”. A tensão entre exterior / interior re- vela a sétima face, que é a face lírica. CONCLUSÃO Em qualquer dos percursos de leitura praticados acida sempre foi-nos possível entrever Drummond, no que se refere ao momento histórico em que se situa o Poema de Sete Faces, como um poeta conflituado com o mundo, buscando na própria dialética existencial a explicação do sem- sentido da vida. Seu drama começa ao ser lançado nos adversidades do mundo sob as ordens de um “anjo torto”: anjo que representa as desarmoni- as entre o poeta gauche e o mundo. Para o gauche visualista, o mundo é um espetáculo que passa, assim como o bonde, à revelia de qualquer indagação (^21) Ibidem

ou explicação. Na oscilação entre o real e o irreal, na busca entre essência e aparência é que a cena se movimenta. O poeta gauche é um contemplador orgulhoso que se considera mai- or que o mundo num mesmo momento em que se vê quebrantado pela reali- dade, pelo dualismo do Eu menor que o Mundo, sente-se fraco e não vacila em apelar: “Meu Deus, porque me abandonaste”. Afinal, que a simples in- dagação se ponha no lugar da solução, pois que qualquer outra apenas “seria uma rima” inútil. E porque rimar, se as palavras não são necessariamente rimáveis, se sua interdependência não lhes aumenta o valor expressivo, não apenas fonético, mas de conteúdo?