Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

O Papel da Linguagem no Desenvolvimento Cognitivo: A Disputa entre Chomsky e Piaget, Provas de Desenvolvimento Cognitivo

Este documento discute a evolução da discussão sobre o papel da linguagem dentro do escopo do desenvolvimento cognitivo na literatura ocidental, apresentando as posições opostas de chomsky e piaget e a tentativa de relativização destas duas posições. O texto explora como a discussão sobre a aquisição de linguagem tomou novos rumos nos últimos 15 anos e encontrou seu ápice no debate entre chomsky e piaget em 1975. O documento também aborda as críticas aos pontos de vista de chomsky e piaget e os desafios recentes à teoria piagetiana no que diz respeito ao processo de aquisição de linguagem.

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Vinicius20
Vinicius20 🇧🇷

4.5

(183)

407 documentos

1 / 15

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
O PAPEL DA LINGUAGEM NO DESENVOLVIMENTO
COGNITIVO *
Carolina Lampreia e Ana Maria Nicolaci-da-Costa
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
RESUMO Neste trabalho procuramos, em um primeiro momento,
discutira evolução da discussão sobre o papel da linguaguem dentro do
escopo do desenvolvimento cognitivo na literatura ocidental, apresen-
tando as posições opostas de Chomsky e de Piaget e a tentativa
posterior, por parte de outros pesquisadores, de uma relativização
destas duas posições. Em um segundo momento, tentamos resgatar e
ressaltar a contribuição de Vygotsky e seus seguidores por considerar-
mos que suas posições teóricas podem redirecionar nossas con-
cepções sobre a relação dos processos lingüísticos com outros
processos cognitivos tanto na criança como no adulto.
THE ROLE OF LANGUAGE IN COGNITIVE DEVELOPMENT
ABSTRACT —This essay has two main purposes. Firstly, we discuss the
evolution of the debate on the role assigned to language within
cognitive development in western literature. We present the opposing
views of Chomsky and Piaget and the recent attempt, on the part of
other researchers, to reach a consensus based on less radical versions of
these two viewpoints. Secondly, we try to recover and emphasize the
contribution of Vygotsky and his followers, due to our belief that their
theoretical propositions may re-direct our conceptions about the
relation of linguistics with other cognitive processes in both child and
adult.
A discussão sobre o papel da linguagem dentro do escopo do desenvol-
vimento cognitivo (ou, mais especificamente, sobre a aquisição de linguagem
como processo autônomo ou determinado pelo desenvolvimento de habilidades
cognitivas) tomou novos rumos nos últimos 15 anos e encontrou seu ápice no
debate entre Chomsky e Piaget, realizado em 1 975. A partir de então, os seguidores
da Escola de Genebra (à exclusão do próprio Piaget) e os de Chomsky parecem ter
chegado a um consenso quanto à necessidade de uma abordagem que enfatize a
especificidade do aprendizado lingüístico em um referencial cognitivo mais amplo.
No entanto, apesar deste consenso, a questão da primazia da cognição sobre a
linguagem ou da linguagem sobre a cognição está longe de ter sido resolvida.
Agradecemos a nossos colegas do Departamento de Psicologia da PUC/RJ Luís Cláudio
Figueiredo, Anamaria Ribeiro Coutinho e Sérvulo A. Figueira, pela leitura cuidadosa deste
texto, discussões e sugestões.
Psicol., Teori., Pesqui., Brasília, V.2 N.° 2 p. 101-115 - Mai.-Ago. 1986 101
pf3
pf4
pf5
pf9
pfa
pfd
pfe
pff

Pré-visualização parcial do texto

Baixe O Papel da Linguagem no Desenvolvimento Cognitivo: A Disputa entre Chomsky e Piaget e outras Provas em PDF para Desenvolvimento Cognitivo, somente na Docsity!

O PAPEL DA LINGUAGEM NO DESENVOLVIMENTO

COGNITIVO *

Carolina Lampreia e Ana Maria Nicolaci-da-Costa Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

RESUMO — Neste trabalho procuramos, em um primeiro momento, discutira evolução da discussão sobre o papel da linguaguem dentro do escopo do desenvolvimento cognitivo na literatura ocidental, apresen- tando as posições opostas de Chomsky e de Piaget e a tentativa posterior, por parte de outros pesquisadores, de uma relativização destas duas posições. Em um segundo momento, tentamos resgatar e ressaltar a contribuição de Vygotsky e seus seguidores por considerar- mos que suas posições teóricas podem redirecionar nossas con- cepções sobre a relação dos processos lingüísticos com outros processos cognitivos tanto na criança como no adulto.

THE ROLE OF LANGUAGE IN COGNITIVE D E V E L O P M E N T

ABSTRACT —This essay has t w o main purposes. Firstly, we discuss the evolution of the debate on the role assigned to language within cognitive development in western literature. We present the opposing views of Chomsky and Piaget and the recent attempt, on the part of other researchers, to reach a consensus based on less radical versions of these t w o viewpoints. Secondly, we try to recover and emphasize the contribution of Vygotsky and his followers, due to our belief that their theoretical propositions may re-direct our conceptions about the relation of linguistics w i t h other cognitive processes in both child and adult.

A discussão sobre o papel da linguagem dentro do escopo do desenvol- vimento cognitivo (ou, mais especificamente, sobre a aquisição de linguagem como processo autônomo ou determinado pelo desenvolvimento de habilidades cognitivas) t o m o u novos rumos nos últimos 15 anos e encontrou seu ápice no debate entre Chomsky e Piaget, realizado em 1 975. A partir de então, os seguidores da Escola de Genebra (à exclusão do próprio Piaget) e os de Chomsky parecem ter chegado a um consenso quanto à necessidade de uma abordagem que enfatize a especificidade do aprendizado lingüístico em um referencial cognitivo mais amplo. No entanto, apesar deste consenso, a questão da primazia da cognição sobre a linguagem ou da linguagem sobre a cognição está longe de ter sido resolvida.

Agradecemos a nossos colegas do Departamento de Psicologia da PUC/RJ Luís Cláudio Figueiredo, Anamaria Ribeiro Coutinho e Sérvulo A. Figueira, pela leitura cuidadosa deste texto, discussões e sugestões.

Psicol., Teori., Pesqui., Brasília, V. 2 N.° 2 p. 1 0 1 - 1 1 5 - Mai.-Ago. 1 9 8 6 101

102 Psicol., Teori., Pesqui., Brasília, V. 2 N° 2 p. 1 0 1 - 1 1 5 - Mai.-Ago, 1 9 8 6

  1. Em suas publicações posteriores, Chomsky abandona a visão de que grande parte do corpus de fala que a criança ouve seria composto por enunciados truncados e agramaticais. E também interessante observar que estudos recentes do tipo linguagem que mães usam para com seus filhos pequenos (os chamados estudos de "motherese") evidenciam o alto grau de gramaticalida- de da fala materna. A este respeito ver, por exemplo, Bard, 1980; Slobin, 1 975 e Snow e Ferguson, 1977.

Neste trabalho procuramos, em um primeiro momento, apresentar a evolução dessa discussão, e seus impasses, na literatura ocidental. Em um segundo momento, tentamos resgatar e ressaltar a contribuição de alguns autores soviéticos, notadamente a de Vygotsky, muitas vezes omitida ou relegada a plano secundário no âmbito deste debate. Isto porque acreditamos que as posições teóricas do chamado " b l o c o soviético" podem eventualmente redirecionar nossas concepções sobre a relação dos processos lingüísticos e cognitivos tanto na criança como no adulto.

LITERATURA OCIDENTAL

A aquisição de linguagem pode ser concebida como um processo autônomo ou como um processo inseparável do desenvolvimento de outras habilidades cognitivas. Abordagens radicais e opostas desta questão foram propostas por Chomsky e Piaget. No que se segue procuraremos explicitar, ainda que de forma esquemática, o ponto de vista de ambos. Chomsky (1965, 1 9 7 6 , 1983) afirma que a linguagem tem seus próprios princípios, que são qualitativamente diferentes daqueles que governam outros sistemas cognitivos. A seu ver, os princípios subjacentes à estrutura de qualquer língua humana são tão específicos e tão complexos que o domínio dos mesmos constituiria uma extraordinária proeza intelectual para um organismo não especifi- camente programado para desempenhartal tarefa. Assim sendo, para darconta da aquisição, durante os primeiros anos de vida, de um sistema de regras tão complexo tendo por base dados fragmentários e, como inicialmente sugerido (Chomsky 1 9 6 5 , 1968), imperfeitos^1 , Chomsky assevera que o ser humano é geneticamente dotado com a capacidade específica de aprender uma língua humana. Para Chomsky, portanto, a aquisição de linguagem é um processo autônomo de bases biológicas. Em nítido contraste com a posição de Chomsky, Piaget (1982, 1983) concebia a linguagem como sendo apenas uma entre várias manifestações (e. g. jogo simbólico, imitação diferida, imagens mentais) da função simbólica que tem suas raízes nos esquemas de ação que a criança desenvolve durante o período sensório-motor. Ou seja, embora atribuindo grande importância à função simbólica como um t o d o - que via como o resultado natural da necessidade infantil de transcender às restrições espaço-temporais de ações imediatas a fim de poder representar coisas ausentes, eventos futuros e passados, etc. -, Piaget não ressaltou as características específicas do processo de aquisição de linguagem. Dentro deste acarbouço teórico, a língua se torna particularmente relevante somente quando a criança alcança níveis mais avançados de desenvolvimento estrutural, (i. е., no período operatório formal). As habilidades lingüísticas são, então, vistas por Piaget como importantes (embora não suficientes) para a ampliação do poder das operações lógicas infantis, na medida em que conferem a estas uma mobilidade e uma universalidade que seriam inatingíveis em sua

(^104) Psicol., Teori., Pesqui., Brasília, V.2 N.° 2 p. 1 0 1 - 1 1 5 - Mai.-Ago. 1986

problema de categorias semânticas, Schlesinger argumenta que o aprendizado da linguagem depende não somente de capacidades cognitivas gerais, mas também de uma categorização de objetos e eventos que se faz necessária para falar e compreender uma Iíngua. Não há, segundo Schlesinger, nenhum modo inerentemente "correto" ou "natural" de agrupar objetos em conceitos. Assim sendo, a experiência extra- lingüística da criança não poderá servir-lhe de guia para certas fronteiras conceituais que são específicas de sua Iíngua. 0 conceito de " t i o " , por exemplo, tem suas fronteiras demarcadas pela terminologia de parentesco empregada pela Iíngua em questão e não por qualquer outra. Dados de grande importância para o reconhecimento da especificidade da aquisição de linguagem dentro de um referencial mais amplo de desenvolvimento são fornecidos pelos relatórios das pesquisas lingüísticas transculturais levadas a cabo por Slobin e seus colaboradores (Slobin, 1973, 1 9 8 1 , 1982). Um, entre vários exemplos que Slobin oferece como ilustração de seu ponto de vista, diz respeito à aquisição de expressões locativas por duas crianças bilíngües em fase de aquisição simultânea de servo-croata e húngara. Devido ao fato de que expressões locativas são gramaticalmente mais complexas em servo-croata, estas crianças inicialmente eram capazes de expressar posições espaciais em húngaro mas não em servo-croata. De acordo com Slobin, estes e outros achados semelhantes revelam claramente que a aquisição de conceitos tendo por base experiências extra-lingüísticas não é suficiente para o aprendizado de uma língua. A criança tem também que descobrir quais são os meios lingüísticos para expressar tais conceitos. Slobin (1 982) afirma que "há uma longa distância entre uma intenção comunicativa, que pode estar presente de forma elementar mesmo no estágio de frases de uma só palavra, e a estrutura semântica que contém aquele arranjo particular de idéias e que precisa sertransposta para um enunciado gramatical em uma língua específica" (p. 137). A seu ver, qualquer língua é, em si mesma, um corpo de conhecimento complexo que tem que ser descoberto e estruturado em seus próprios termos. A formação de um conceito em bases primordialmente cognitivas, Slobin argumenta, não fornece à criança qualquer indicação de como este conceito é codificado em sua língua materna. Cromer ( 1 9 7 4 , 1979), Schlesinger (1977) e Slobin ( 1 9 8 1 , 1982) fazem, portanto, a mesma afirmação básica: a especificidade do aprendizado lingüístico não pode ser negligenciada. Qualquer língua natural é um sistema complexo que tem que ser adquirido em seus próprios termos. Embora o desenvolvimentode certas habilidades cognitivas possa ser necessário para a aquisição de certos aspectos da estrutura lingüística, a tentativa de explicar a aquisição de linguagem única e exclusivamente através de capacidades cognitivas subjacentes será forçosamente infrutífera. Há aspectos do aprendizado lingüístico que diferem muito da aquisição de outras habilidades cognitivas. A necessidade de uma abordagem que introduza e enfatize a especificidade do aprendizado lingüístico em um referencial cognitivo mais amplo também tem sido ressaltada por representantes da Escola de Genebra. Como argumentou Inhelder (1 983), durante o debate entre Chomsky e Piaget realizado na Abadia de Royaumont em 1 9 7 5 :

"Se é verdade que os trabalhos de Genebra se concentraram sobretudo nos aspectos gerais da conduta, nem por isso vamos

considerar que a linguagem seja apenas uma das manifestações do pensamento, ou que seus aspectos específicos são redutíveis às leis da razão... não é surpreendente poder recordar as palavras de um psicolingúista genebriano que sugerem, como pensamos, que os pontos de vista de Chomsky e Piaget não são tão contraditórios quanto procuram fazer-nos crer? "E a obra de Chomsky que está possibilitando o estudo da aquisição de linguagem num quadro de referência piagetiano" (Sinclair, 1971, p. 204). E não foi somente em Genebra que essa aproximação mereceu consideração. Não concluiu Cromer (1974) sua discussão afirmando: "Talvez Chomsky e Piaget estejam ambos certos"? " (p. 174-175).

É interessante observar que o próprio Chomsky, nesta discussão, não discorda da posição de Inhelder, embora esteja em franco desacordo com a de Piaget. Durante o debate de Royaumont, por exemplo, Chomsky fez a seguinte declaração:

"Duas proposições emanam das exposições do grupo de Ge- nebra: uma é a asserção de Inhelder segundo a qual certas, mas não a totalidade das propriedades de emprego e de estrutura da linguagem, provêm da construção sensório-motora; o que eu não contesto, absolutamente. A outra asserção é a de Piaget, segundo a qual todas as propriedades de emprego e de estrutura da linguagem provêm da construção sensório-motora... Em minha opinião, tal asserção é falsa". (em Piatelli-Palmarini, 1983, p. 177).

Recentemente, ainda, Chomsky admitiu que pode ter subestimado a influência de fatores ambientais no processo de aquisição de linguagem (ver Rieber e Voyat, 1981). Em contrapartida, Karmiloff-Smith (1977, 1978, 1979a, 1979b, 1981), ex- integrante da Escola de Genebra, salienta que Piaget subestimou a importância da linguagem como um espaço-problema per se para a criança. Na opinião desta autora, a linguagem (i. e. a língua materna) é um objeto da atenção cognitiva espontânea da criança e seu desenvolvimento não pode ser explicado somente através do desenvolvimento cognitivo. 0 aprendizado de uma língua, Karmiloff- Smith argumenta, "é semelhante à solução de problemas com objetos físicos, a língua precisa ser isolada, classificada, comparada etc., e gradualmente organizada em sistemas de opções relevantes" (1979a, p. 15). Karmiloff-Smith utiliza sua própria pesquisa sobre a aquisição de formas plurifuncionais, tais como determi- nantes (e. g. artigos indefinidos) cujas múltiplas funções (e. g. número, gênero, indefinição) são adquiridas gradualmente, como fundamentação de seu ponto de vista.

Até o momento, o quadro que emerge da presente revisão da literatura sobre aquisição de linguagem é o de um consenso crescente, tanto no seio da Escola de Genebra como fora desta, no sentido de rejeitar a hipótese piagetiana do determinismo cognitivo. Esta rejeição tem como conseqüência uma postura a partir da qual qualquer língua é vista como um sistema que, embora não inseparável de outros sistemas cognitivos, tem sua própria especificidade.

primeiro percebe certos padrões lingüísticos (como padrões de sufixação dos verbos, no caso de tempo passado) e depois então tenta dar a estes um significado conceituai. Sua sugestão é a de que o desenvolvimento provavelmente envolve uma complexa interação de ambos os processos, mas que respostas lingüísticas consistentes no tratamento de diferentes eventos podem facilitar as tentativas da criança de impor ordem ao seu mundo. Além de suas propostas e sugestões, Karmiloff-Smith (1977, 1 9 7 8 , 1979a, 1979b) demonstra que a aquisição de estruturas lingüísticas, por parte da criança, não necessariamente envolve a aquisição de todas as distinções conceituais expressas por estas estruturas. Deste modo, por exemplo, crianças em processo de aquisição de francês como língua materna usam corretamente um determinante plurifuncional, tal como o artigo indefinido, para expressar somente uma distinção conceituai, digamos, singu- laridade ou pluralidade. Atransposição de outras distinções conceituais, tais como a de indefinição, a esta forma lingüística particular ocorre apenas posteriormente em decorrência das constantes análises infantis do tratamento comum, i. e. do uso deste determinante, dado a diferentes ocorrências de eventos^2. Diferentemente de Slobin, portanto, Schlesinger e Karmiloff-Smith susten- tam que a formação de conceitos e sua transposição para formas lingüísticas pode ser influenciada pelo desenvolvimento cognitivo, pela estrutura lingüística e, mais provavelmente, por ambos. Assim sendo, na concepção de Schlesinger e Karmiloff-Smith, a transposição do sistema lingüístico ao sistema conceituai é o resultado de uma complexa interação de aquisições lingüísticas com outras aquisições cognitivas.

LITERATURA SOVIÉTICA

Gostaríamos, neste ponto, de resgatar a posição de Vygotsky e seus seguidores ressalvando, no entanto, que por ter vivido no início deste século, ou seja, em outra época, os termos de sua discussão diferem dos empregados acima. O primeiro ponto analisado na parte inicial deste trabalho se refere à discussão sobre os requisitos necessários para a aquisição da linguagem, ou seja, ao debate sobre a especificidade da linguagem dentro do escopo da cognição. Vimos, então, como a partir das posições opostas de Chomsky e de Piaget, e as críticas a eles formuladas, chegou-se a um certo consenso, passando-se a admitira especificidade da linguagem mas sem desvinculá-la de outros sistemas cognitivos. A posição de Vygotsky (1962) a esse respeito pode ser encontrada em sua análise das raízes genéticas do pensamento e da fala, onde ele considera que tanto o pensamento quanto a linguagem têm origens independentes e paralelas. Assim, inicialmente, haveria um pensamento pré-verbal e uma linguagem pré-intelectual. A partir de determinado momento - dois anos de idade mais ou menos — o pensamento passaria a servir à fala e a fala ao pensamento, constituindo o pensamento verbal. No entanto, para Vygotsky, nem todo pensamento, na criança ou no adulto, envolve a linguagem, assim como nem toda linguagem envolve

  1. Há, também, importantes indicadores de que o mesmo processo está presente na aquisição de outras formas gramaticais. As pesquisas efetuadas por Nicolaci-da-Costa (1983), por exemplo, revelam que crianças de até 5 anos de idade são capazes de produzir concordâncias gramaticais envolvendo determinantes, substantivos e verbos sem, no entanto, evidenciarem compreensão de pelo menos uma das distinções conceituais expressas através dos membros de cada uma destas categorias, a de número.

pensamento (como exemplo de pensamento não-verbal temos o pensamento efetivado no uso de instrumento, e como exemplo de linguagem sem pensamento temos o recitar mecanicamente um poema ou mesmo cantar uma canção num idioma desconhecido pelo sujeito). Apenas no pensamento verbal é que estes dois fatores se sobrepõem tornando-se intimamente relacionados. Ou seja, Vygotsky nunca tentou equacionar pensamento e linguagem nem considerou jamais que a linguagem serve apenas para expressar um pensamento já preexistente, mas defendeu, de uma certa maneira, a especificidade tanto da linguagem quanto da cognição. No entanto, a nosso ver, a maior contribuição de Vygotsky foi a de privilegiar de uma certa maneira o pensamento verbal mostrando como a fala se torna um instrumento do pensamento. Em A Formação Social da Mente, Vygotsky afirma: "Embora a inteligência prática e o uso de signos possam operar independentemen- te em crianças pequenas, a unidade dialética desses sistemas no adulto humano constitui a verdadeira essência do comportamento humano complexo. Nossa análise atribui à atividade simbólica uma função organizadora específica que invade o processo do uso de instrumento e produz formas novas de comportamento" (1 984, p. 26-27), ou seja, a linguagem tem importância na organização do raciocínio. Vygotsky chegou a esta conclusão a partir de estudos sobre a fala egocêntrica que mostraram que esta fala tinha um papel fundamental na solução de problemas já que ela consistia numa análise e descrição da situação e tomava a forma de um plano de ação. Para ele: "A fala da criança é tão importante quanto a ação para atingir um objetivo. As crianças não ficam simplesmente falando o que elas estão fazendo; sua fala e ação são parte de uma mesma função psicológica complexa, dirigida para a solução do problema em questão" (1 9 8 4 , p. 28). Através de outros estudos, Vygotsky (1 962) também procurou mostrar que esta fala não desaparecia com a idade mas se internalizava, tornando-se fala interna, isto é, pensamento verbal. O segundo ponto abordado inicialmente se refere à transposição de conceitos em formas lingüísticas, e nele encontramos duas posições opostas: a de Slobin que privilegia bases extralingüísticas para a formação de conceitos, e a de Schlesinger e Karmiloff-Smith que defende a contribuição do input lingüístico. A esse respeito, Vygotsky parece ter uma posição oposta a de Slobin e se aproximar mais de Schlesinger e Karmiloff-Smith, quando ele procura mostrarque, a partir do momento em que, no desenvolvimento ontogenético, o pensamento passa a servir à fala e a fala ao pensamento, há uma reestruturação radical de todas as funções psicológicas - memória, atenção, solução de problemas, percepção. É esta a função organizadora da fala, mencionada por Vygotsky no trecho acima citado, que introduz mudanças qualitativas tanto na forma de uma função isolada (e. g. memória) quanto na relação de uma função com todas as outras funções (e. g. atenção e as demais). A proposta fundamental de Vygotsky (1962) para o estudo da inter-relação pensamento e fala é que se estude a unidade do pensamento verbal e não apenas seus elementos separados - pensamento e fala. Para ele, esta unidade pode ser encontrada no significado da palavra já que é nele que pensamento e fala se unem em pensamento verbal. E isto nos remete a seus estudos sobre a formação de conceitos. Em Thought and Language, no capítulo referente ao estudo da formação de conceitos, Vygotsky nos dá uma indicação bastante clara de sua posição sobre o

Num primeiro estudo, ainda em colaboração com Vygotsky, Luria (1976) procura mostrar como a estrutura do tipo de atividade dominante e o sistema lingüístico em diferentes culturas podem determinar as formas de atividade mental. Ao estudar três grupos de sujeitos - analfabetos, semi-analfabetos mas com participação em discussões comunitárias e com educação pré-escolar, e escola- rizados — habitantes de uma mesma região rural, Luria pôde discriminar como as atividades e linguagem de cada um destes grupos estavam correlacionadas com diferentes formas de estruturação cognitiva. Assim, o grupo de analfabetos, cuja atividade dominante era primordialmente prática, apresentava um pensamento concreto em diferentes processos cognitivos como percepção, generalização, dedução, imaginação e auto-analise. Por outro lado, o grupo de escolarizados apresentava um pensamento abstrato, enquanto que o grupo dos semi-analfabe- tos, pela sua participação em cooperativas e discussões grupais, era capaz de atingir o pensamento abstrato em várias ocasiões. Em suma, o que este trabalho pretende mostrar é que o grau de desenvolvimento lingüístico parece influenciar o grau de desenvolvimento cognitivo, e que quanto mais desenvolvida a linguagem maior o grau de abstração do pensamento. Outro estudo de Luria (Luria eYudovich, 1971), com gêmeos univitelinos que não possuíam uma fala gramatical, devido a fatores circunstanciais de falta de interação com adultos, mostra como a alteração dessas circunstâncias, por si só, foi capaz de modificar profundamente o desenvolvimento cognitivo dessas duas crianças. O fato delas interagirem unicamente uma com a outra fez com que desenvolvessem outras formas de comunicação que não a fala. Conseqüentemen- te, todo desenvolvimento cognitivo encontrava-se prejudicado. Essas crianças apresentavam um jogo primitivo não simbólico. O significado de suas palavras dependia inteiramente do contexto e por isso era instável. Não eram capazes de narração nem compreendiam uma comunicação desligada de uma situação prática. No entanto, a mera separação dos gêmeos e sua colocação numa creche com outras crianças e adultos permitiu que em pouco tempo seu desenvolvimento atingisse o nível normal, já que a nova situação as forçou a desenvolver uma fala que permitisse a comunicação com os outros. Em conseqüência ocorreu uma re- estruturação de toda sua atividade mental. Vários outros trabalhos experimentais de Luria (1966) também indicam como a linguagem vai adquirindo sua função reguladora do comportamento. Aqui, ele mostra que a palavra só começa a ter um papel regulador entre os 3 e 4 anos, e que quando esse papel regulador passa ao aspecto semântico da linguagem, o recurso à linguagem externa se torna supérfluo, iniciando-se assim o processo de internalização da fala. Os trabalhos de Galperin (1966, 1969) procuram descrever mais detalha- damente esse processo estudando os diferentes estágios da formação das ações mentais. Galperin procura mostrar como uma ação baseada em objetos materiais, ou suas representações ou signos, se transforma numa ação baseada na fala audível, sem apoio direto do objeto, para no último estágio utilizar apenas a fala interna. Ou seja, o que passa a guiar o comportamento do sujeito é o pensamento verbal e não mais apenas outros processos cognitivos. Em síntese, tanto os trabalhos de Vygotsky, envolvendo a formação de conceitos e o papel da linguagem egocêntrica, como os de Luria sobre o papel da linguagem em adultos e em crianças, e os de Galperin envolvendo a internalização da fala, inquestionavelmente apontam para o papel fundamental desempenhado

pela linguagem no desenvolvimento de grande parte dos processos intelectuais superiores humanos. Embora possa se concordar que tanto a linguagem como a cognição sejam processos que têm sua própria especificidade, é no pensamento verbal, como o diz Vygotsky, que encontramos "a verdadeira essência do comportamento humano complexo". Do momento que a linguagem adquire a capacidade de regular o comportamento ocorre uma transformação radical, para não dizer revolucionária, em toda a estrutura do pensamento.

CONCLUSÃO

O que se depreende da revisão da literatura ocidental, feita no presente artigo são os seguintes pontos, que t ê m a ver com a evolução cronológica, em termos de influência, de uma ou outra corrente teórica, dos estudos sobre aquisição de linguagem. Tanto Chomsky quanto Piaget tiveram posturas bastante radicais. 0 primeiro por postular que a aquisição de linguagem é um processo autônomo, independente do desenvolvimento de outras habilidades cognitivas. O segundo por postular que todas as estruturas lingüísticas teriam suas raízes no desen- volvimento sensório-motor. Embora nem Piaget nem Chomsky tenham eles próprios se dedicado a uma investigação meticulosa dos processos envolvidos na aquisição de uma primeira língua, suas colocações teóricas orientaram a maior parte dos estudos levados a cabo por pesquisadores interessados neste tipo de investigação. Estes últimos, ao adotarem uma ou outra posição teórica, obviamente adotaram uma ou outra posição radical. Seguindo a cronologia apontada no início deste trabalho (Chomsky exer- cendo sua maior influência na década de 60 e Piaget na de 70), podemos observar que o que Schlesinger chamou de reação cognitivista ' t e v e o importante papel de inserir o estudo da aquisição de linguagem dentro do escopo do desenvolvimento cognitivo. No entanto, porque esta reação estava calcada no pressuposto de Piaget de que o desenvolvimento da linguagem encontra todas suas raízes no desenvolvi- mento das habilidades sensório-motoras, foi gerado um outro impasse: a aquisição de linguagem, cuja especificidade havia sido ressaltada com tanta veemência por Chomsky, passou a ser desconsiderada. Com a realização de novas pesquisas na área de aquisição de linguagem, começou-se a perceber que, embora o desenvolvimento da linguagem estivesse associado ao desenvolvimento de outras capacidades cognitivas, seus processos muitas vezes diferiam dos processos que regem estas últimas. Tanto na Escola de Genebra como fora dela, diversos autores começaram a perceber que certas aquisições lingüísticas não poderiam encontrar explicação no desenvolvimento de habilidades cognitivas. Chegou-se, então, a um consenso quanto à especificidade da aquisição de linguagem dentro do escopo do desenvolvimento cognitivo. Mas um impasse fundamental continuava persistindo. Teria ou não a linguagem um papel importante na formação de conceitos e no desenvolvimento cognitivo como um todo? A cisão continua existindo. Autores, como Slobin, que admitem a especificidade da linguagem continuam presos ao determinismo cognitivo. Outros, como Schlesinger e Karmiloff-Smith, superam este impasse, admitindo que o input lingüístico pode ter uma importante influência no desenvolvimento conceituai. Na literatura soviética não encontramos os mesmos impasses. Em primeiro lugar porque Vygotsky supera ou evita o impasse gerado pelo questionamento

CROMER, R. F. (1974). The development of language and cognition: the cognition hypothesis. Em B. Foss (Ed.), New perspectives in child development. Harmondsworth: Penguin.

CROMER, R. F. (1979). The strengths of the weak form of the cognition hypothesis for language acquisition. Em V. LEE (Ed.), Language Development. Londres: Open University.

de VILLIERS, J. G. & de VILLIERS, P. A. (1 978). Language acquisition. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.

ELLIOT, A. J. (1981). Child language. Cambridge: Cambridge University Press.

GALPERIN, P. (1966). Essai sur la formation par étapes des actions et des concepts. Em A. LEONTIEV, A. LURIA, & A. SMIRNOV(Eds.), Recherches psychologiques em U.R.S.S. Moscou: Editions du Progrès.

GALPERIN, P. (1969). Stages in the development of mental acts. Em M. COLE & I. MALTZMAN (Eds.), A Handbook of Contemporary Soviet Psychology. Nova Iorque: Basic Books.

INHELDER, B. (1983). Linguagem e conhecimento no quadro construtivista. Em M. PIATTELLI - PALMARINI (Ed.), Teorias da linguagem, teorias da aprendizagem: o debate entre Jean Piaget e Noam Chomsky, São Paulo: Cultrix e Ed. da Universidade de São Paulo.

KARMILOFF-SMITH, A. (1977). More about the same: children's understanding of postarticles. Journal of Child Languages, 4, 3 7 7 - 3 9 4.

KARMILOFF-SMITH, A. (1978). The interplay between syntax, semantic and phono- logy in language acquisition processes. Em R. N. CAMPBELLS P. T. SMITH (Eds.), Recent advances in the Psychology of language: Language develop- ment and motherchild interaction. Nova Iorque: Plenum Press.

KARMILOFF-SMITH, A. (1979a). A functional approach to child language: A study of determiners and reference. Cambridge: Cambridge University Press.

KARMILOFF-SMITH, A. (1979b). Language development after five. Em P. FLETCHER, & M. GARMAN (Eds.), Studies in language acquisition. Cambridge: Cambridge University Press.

KARMILOFF-SMITH, A. (1981). Getting developmental differences or studying child development? Cognition, 10, 151-158.

LURIA, A. (1966). La fonction régulatrice du langage dans son dévelopment et sa degradation. Em A. LEONTIEV, A. LURIA, & A. SMIRNOV (Eds.), Recherches Psychologiques en U.R.S.S. Moscou Editions du Progrès.

LURIA, A. (1976). Cognitive development. Its cultural and social foundations. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.

LURIA, A., & YUDOVICH, F. (1971). Speech and the development of mental process in the child. Harmondsworth: Penguin Books.

NICOLACI-da-COSTA, A. M. (1983). Number markers in non-redundant and redundant sentences: interpretation and use by young children. Tese de Doutorado. University of London, Londres.

NICOLACI-da-COSTA, A. M., & HARRIS, M. (1983). Redundancy of syntatic information: an aid to young children's comprehension of sentenciai number. British Journal of Psychology, 74, 3 4 3 - 3 5 2.

NICOLACI-da-COSTA. A. N. & HARRIS, M. (1984). Young children's comprehen- sion of number markers. British Journal of Developmental Psychology, 2 , 1 0 5 - 1 1 1.

PIAGET, J. (1982). Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária.

PIAGET, J. (1983). Esquemas de ação e aprendizagem da linguagem. Em M. PIATTELLI-PALMARINI (Ed.), Teorias da linguagem, teorias da aprendizagem: o debate entre Jean Piaget e Noam Chomsky. São Paulo: Cultrix e Ed. da Universidade de São Paulo.

PIATTELLI-PALMARINI, M. (1983) (Ed.). Teorias da linguagem, teorias da apren- dizagem: o debate entre Jean Piaget e Noam Chomsky. São Paulo: Cultrix e Ed. da Universidade de São Paulo.

RIEBER, R. W., & VOYAT, G. (1981). An overview of the controversial issues in the psychology of language and thought. Journal of Psycholinguistic Research, 10, 3 4 1 - 3 6 1.

SCHLESINGER, I. N. (1 977). The role of cognitive development and linguistic input in language acquisition. Journal of Child Language, 4, 153-1969.

SINCLAIR, H. (1971). Sensorimotor action patterns as a condition for the acquisiton of syntax. Em HUXLEY & INGRAM (Eds.), Language acquisition: Models and methods. Nova Iorque: Academic Press.

SLOBIN, D. I. (1973). Cognitive prerequisites f o r t h e acquisition of language. Em С A. FERGUSON, & D. I. SLOBIN (Eds.), Studies in child language development. Nova Iorque: Holt Rinehart and Winston.

SLOBIN, D. I. (1 975). On the nature of t a l k t o children. Em E. H. LENNENBERG, & E. LENNENBERG (Eds.), Foundation of language development. Vol. 1. Nova Iorque: Academic Press.

SLOBIN, D. I. (1981). Psychology w i t h o u t linguistics = language w i t h o u t grammar. Cognition, 70, 2 7 5 - 2 8 0.

114 Psicol., Teori., Pesqui., Brasília, V.2 N.° 2 p. 1 0 1 - 1 1 5 - Mai.-Ago. 1986