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Neste artigo, o autor apresenta uma proposta inusitada: pede ao leitor que se transforme em sal de cozinha para substituir o mundo pouco rigoroso da realidade por um mundo mais simples e passível de maior rigor. Ele argumenta que a imaginação criadora é a mola mestra da atividade criadora e que a existência do sal é o dado primordial do mundo. O autor explora as ideias de salinidade, halomorfismo e a forma do cubo na nossa existência.
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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Vilém Flusser Pesquisa: Milton Pelegrini
Pedirei neste artigo ao leitor uma façanha digna dos mágicos mais poderosos: pedirei que se transforme (pelo menos na sua imaginação) em sal de cozinha. A nossa imaginação, embora limitada por paredes que serão discutidas no curso deste artigo, é muito elástica e capaz de muita coisa surpreendente. Pode ultrapassar de muito as grades daquilo que chamamos de “realidade”, e estabelecer, além, uma multidão de mundos. Esses mundos imaginários serão tão consistentes, ou mais, do que o mundo da “realidade”, desde que a nossa imaginação criadora de mundos seja informada pelo rigor do nosso intelecto. Imaginação rigorosa é a mola mestra da atividade criadora. O mundo da “realidade” não passa de uma criação da imaginação imperfeitamente rigorosa. O pedido que faço ao leitor é, em resumo, um apelo de substituir esse mundo pouco rigoroso da “realidade” por outro, muito mais simples e passível de maior rigor. Não será fácil o cumprimento do meu pedido, porque o mundo da “realidade” nos prende de mil maneiras. A imaginação que o estabeleceu endureceu e petrificou- se no curso de milênios, a ponto de não sabermos mais da origem imaginária do mundo da “realidade”. Com efeito, essa imaginação que estabeleceu o nosso mundo petrificou-se na forma das diversas línguas. Mas com um esforço podemos, precariamente, ultrapassar a “realidade”. Sejamos pois sal de cozinha por uns poucos instantes.
Para tanto será necessário que esqueçamos tudo que sabemos a respeito dessa substancia humilde que é o sal de cozinha. Como objeto do conhecimento, como pó branco de gosto específico, ou como molécula de um átomo de sódio e outro de cloro, o sal de cozinha faz parte do nosso mundo “real”, e não poderá servir de base para um mundo novo. É preciso intuir o sal de cozinha como existência, como centro de uma situação que adquire o seu significado somente em função do sal, que é doravante o seu centro. Se “somos sal”, então doravante o sal é o sujeito do mundo, e tudo mais são seus objetos. As coisas do mundo são coisas somente enquanto “para o sal”, mas o sal, este sim, simplesmente está aqui (“ist da”), simplesmente existe. A existência do sal é doravante o dado primordial do mundo, e tudo mais é apenas derivado desse dado. Nessa primazia
cubista. Em suma: somos projetados em forma de cubo. O cubo é nosso projeto, e o processo da nossa cristalização é a realização progressiva desse projeto. Se nos tornarmos cubo, teremos sido autenticamente nós mesmos. “This above all, to thine own self be true” – terá sido o nosso lema. Mas se decairmos no pó branco e amorfo que está jogado em qualquer canto da cozinha, teremos sido existências inautênticas e decadentes. Teremos traído o projeto do cubo.
Por ser o nosso projeto, é o cubo o mito em obediência ao qual existimos. Foi-nos revelado “in illo tempore” em toda a sua perfeição resplandecente. Nessa sua primeira e definitiva revelação apareceu o cubo como um desvendar do oculto, como uma articulação do inefável. Estabeleceu, nessa sua primeira aparição, as nossas existências e todo o mundo em nosso redor, de modo que podemos dizer que nós e o nosso mundo somos projeções do mito do cubo. Esse mito abre as possibilidades da nossa existência, a saber a possibilidade de cristalizarmos em cubo. Neste sentido estabelece o mito a nossa liberdade. Mas simultaneamente o mito limita essas nossas possibilidades, por exemplo torna impossível a nossa cristalização em dodecaedros. Neste sentido o mito nos condiciona. Somos, como sal de cozinha que somos, prisioneiros do mito do cubo, mas livres dentro dessa prisão que é o nosso mundo. Se e quando tivermos cristalizado inteiramente, teremos realizado esse mundo, teremos esgotado as suas virtualidades, e isto será o “fim do mundo”. Parará o tempo (a cristalização) e reinará a Eternidade. Teremos sido salvos. A revelação primordial e mítica do cubo é um acontecimento festivo. Nela o Ser resplandece festivamente. A nossa existência como sal, isto é, a nossa cristalização, é uma repetição dessa festa primordial que é o mito. Mas à medida que cristalizamos, à medida que traduzimos o mito em realidade, profanamos o seu “tonus” sacral e festivo. A nossa cristalização definitiva, que será o reino da Eternidade e a nossa salvação, será também a profanação total do mito do cubo. Nisso reside a profunda problemática existencial nossa como sal de cozinha. Se decaímos em pó, somos inautênticos, um mero “a gente”, perdão, “grão salino”. Mas se nos cristalizamos em cubo, profanamos o mito que é o nosso projeto. A
nossa salvação é sinônimo da nossa dessacralização; somos, como seres salinos, seres absurdos. Em outras palavras: fomos projetados para cá como cubos e estamos aqui para o cubo. A absurdidade da nossa existência está contida em germe no projeto que nos estabeleceu. Esta a tragédia da existência salina. E são justamente os melhores entre nós, os mais perfeitamente cristalizados, que se chocam contra essa absurdidade, para serem triturados em pó e servirem de condimentos numa sopa qualquer que será servida em uma refeição que ultrapassa a nossa imaginação salina.
A descrição da existência salina e do mito do cubo é uma caricatura brutal da nossa existência como seres humanos e dos nossos mitos. É ainda uma caricatura da nossa existência como ocidentais e dos mitos do cristianismo. Peço que o leitor considere o que fiz ao esboçar essa caricatura. Abandonei, nas asas da imaginação, o projeto da existência humana e procurei existir de acordo com outro projeto, mais “simples”. Mas devo confessar que essa minha tentativa fracassou redondamente. A imaginação, embora capaz de estabelecer mundos além da “realidade”, transfere, para esses novos mundos, a estrutura do projeto dentro do qual nasceu. Essa são as paredes da imaginação, das quais falei no primeiro parágrafo deste artigo. Com efeito, o mundo que estabeleci é, longe de ser salino, humano. E as coisas desse mundo, longe de serem halomórficas, são antropomórficas. Digo mais: o mundo que estabeleci é o mundo da civilização ocidental, e as suas coisas são instrumentos no sentido ocidental deste termo. A imaginação não pode escapar ao projeto que a formou e que é a civilização, da qual ela é uma das articulações criadoras. E o mito do cubo, do qual falei em termos tão exaltados, esse mito não é outra coisa a não ser uma caricatura de Deus (se me for permitida a formulação dessa frase aparentemente blasfêmica, mas, assim mesmo, carregada de espanto).
Disse que este artigo é uma caricatura. É próprio da caricatura exagerar certos traços da “realidade” a ser retratada e suprimir outros. Essa simplificação tem por finalidade ressaltar aquilo que o caricaturista considera mais
pelo contrário, trazê-lo à tona do intelecto. Assim, intelectualizado, não será aniquilado o mito, e não será libertado o homem do seu peso, mas teremos aumentado o território do intelecto, e, com isto, o território da atividade mais característica, e, porque não dizê-lo, mais nobre do homem. A isto está dedicada a caricatura que ofereci aos leitores.
Texto originalmente publicado na página 4 do Suplemento Literário do jornal O Estado de S.Paulo, no dia 22 de agosto de 1964.