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o mecanicismo de rené descartes e sua influência na visão, Notas de estudo de Máquinas

Assim percebe-se claramente como o ser humano, influenciado por essa visão utilitarista provocada pelo mecanicismo cartesiano, passou a manusear os outros seres ...

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Tucupi
Tucupi 🇧🇷

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O MECANICISMO DE RENÉ DESCARTES E SUA INFLUÊNCIA NA VISÃO
EXPLORATÓRIA DO MUNDO NATURAL
Silvonei Pereira Escobar
1
Suderlan Tozo Binda
2
RESUMO
Neste artigo, pretende-se apresentar o conceito de mecanicismo na filosofia de René
Descartes e a sua influência na visão utilitarista/pragmática do homem moderno e pós-
moderno frente à natureza. Descartes, em sua busca por um método seguro de
investigação, chega à ideia mecanicista da natureza: a considerando como simples
matéria em movimento (res extensa), uma grande máquina que funciona a partir das
engrenagens e sistemas nela colocados na criação. Com esse movimento, a natureza
fica privada de qualidades e sensações, uma vez que o intelecto humano seria
capaz de interagir matematicamente com a natureza. Para ele, na subjetividade (res
cogitans) é que estão todas as qualidades e sensações. Pretende-se assim, a partir
da pesquisa documental e bibliográfica, apresentar como esta concepção influenciou
negativamente no que diz respeito à relação homem x natureza, uma vez que se
passou a considerá-la como algo passível de matematização e quantificação.
Palavras-chave: Mecanicismo, Descartes, Natureza, Exploração.
ABSTRACT
In this article, we intend to present the concept of mechanism in René Descartes'
philosophy and its influence on the utilitarian / pragmatic view of modern and
postmodern man in relation to nature. Descartes, in his search for a safe method of
investigation, comes to the mechanistic idea of nature: considering it as simple matter
in motion (res extensa), a great machine that works from the gears and systems placed
in it in creation. With this movement, nature is deprived of qualities and sensations,
since only the human intellect would be able to interact mathematically with nature. For
him, subjectivity (res cogitans) is where all the qualities and sensations are. Thus, it is
intended, based on documentary and bibliographic research, to present how this
conception negatively influenced the relationship between man and nature, since it
started to be considered as something that could be mathematized and quantified.
Keywords: Mechanism, Descartes, Nature, Exploration.
1. INTRODUÇÃO
Vivemos em um mundo repleto de ações humanas filantrópicas que possibilitam
melhorias para o ser humano e para a vida em todos seus aspectos, seja ela humana,
1
Graduando do curso Bacharel em Filosofia do Centro Universitário Salesiano.
2
Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1997), Pós-graduação
em filosofia Clínica pela Faculdade Bagozzi (2002) e mestrado em Filosofia pela Pontificia Universitas
Gregoriana -Roma - (2006).
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O MECANICISMO DE RENÉ DESCARTES E SUA INFLUÊNCIA NA VISÃO

EXPLORATÓRIA DO MUNDO NATURAL

Silvonei Pereira Escobar^1 Suderlan Tozo Binda^2 RESUMO Neste artigo, pretende-se apresentar o conceito de mecanicismo na filosofia de René Descartes e a sua influência na visão utilitarista/pragmática do homem moderno e pós- moderno frente à natureza. Descartes, em sua busca por um método seguro de investigação, chega à ideia mecanicista da natureza: a considerando como simples matéria em movimento (res extensa), uma grande máquina que funciona a partir das engrenagens e sistemas nela colocados na criação. Com esse movimento, a natureza fica privada de qualidades e sensações, uma vez que só o intelecto humano seria capaz de interagir matematicamente com a natureza. Para ele, na subjetividade (res cogitans) é que estão todas as qualidades e sensações. Pretende-se assim, a partir da pesquisa documental e bibliográfica, apresentar como esta concepção influenciou negativamente no que diz respeito à relação homem x natureza, uma vez que se passou a considerá-la como algo passível de matematização e quantificação. Palavras-chave: Mecanicismo, Descartes, Natureza, Exploração. ABSTRACT In this article, we intend to present the concept of mechanism in René Descartes' philosophy and its influence on the utilitarian / pragmatic view of modern and postmodern man in relation to nature. Descartes, in his search for a safe method of investigation, comes to the mechanistic idea of nature: considering it as simple matter in motion (res extensa), a great machine that works from the gears and systems placed in it in creation. With this movement, nature is deprived of qualities and sensations, since only the human intellect would be able to interact mathematically with nature. For him, subjectivity (res cogitans) is where all the qualities and sensations are. Thus, it is intended, based on documentary and bibliographic research, to present how this conception negatively influenced the relationship between man and nature, since it started to be considered as something that could be mathematized and quantified. Keywords : Mechanism, Descartes, Nature, Exploration.

1. INTRODUÇÃO Vivemos em um mundo repleto de ações humanas filantrópicas que possibilitam melhorias para o ser humano e para a vida em todos seus aspectos, seja ela humana, (^1) Graduando do curso Bacharel em Filosofia do Centro Universitário Salesiano. (^2) Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1997), Pós-graduação em filosofia Clínica pela Faculdade Bagozzi (2002) e mestrado em Filosofia pela Pontificia Universitas Gregoriana - Roma - (2006).

vegetal ou animal. Entretanto, infelizmente nos deparamos também com atitudes egoístas e utilitaristas presentes desde os tempos antigos e potencializadas com o advento da modernidade que ameaçam, muitas vezes, esta mesma vida. René Descartes foi um filósofo francês que viveu entre os anos de 1596 a 1650, sendo considerado o pai da modernidade por ser um dos mais influentes pensadores para o mundo ocidental e ser apontado como o fundador do racionalismo moderno. É considerado também como o principal defensor da corrente filosófica chamada mecanicismo, que se sobressaiu na idade moderna e que teve uma grande influência nas concepções futuras de ser humano e de mundo. O mecanicismo defendia que o mundo é uma grande máquina e que tudo que está nele são engrenagens dessa mesma máquina, podendo ser explicadas com leis objetivas e matemáticas. Com isso, o homem passou a se colocar no centro como “dominador” dessa máquina, podendo utilizá-la a seu bel prazer com uma cosmologia utilitarista visando o lucro imediato e poder econômico, negligenciando todo o complexo mundo de impulsos e necessidades dos animais. (TARNAS, 2011). Portanto, utilizando-se do método de pesquisa bibliográfica e documental, pretende- se nesta pesquisa evidenciar e discutir o conceito de mecanicismo na filosofia cartesiana e a cosmologia contemporânea utilitarista/pragmática trazida por ele, bem como sua influência na atitude do homem ao se versar sobre o mundo natural. Atitude esta que, a partir do mecanicismo cartesiano, passou a estar intimamente ligada ao valor que a natureza tem para o homem e não o valor que ela tem em si mesma. Pretende-se também apontar a atual realidade de exploração dos recursos naturais de maneira desenfreada, como se pode ver em inúmeros locais pelo globo e relacionar o mecanicismo cartesiano com o atual quadro exploratório. Por fim, confrontar o mundo de qualidades de Aristóteles com o mundo sem vida e sem alma de Descartes, que “justificou” a relação exploratória e desmedida do homem para com a natureza. Refletir a cosmologia utilitarista contemporânea é de capital importância na busca por uma lógica alternativa, indo de encontro à procura de lucro imediato e desmedido. Isto provoca, gradativamente, uma forte exploração natural que ameaça todas as formas de vida do planeta. É preciso realizar a inversão de alguns valores que regem o mundo atual. Fazer uma discussão acerca do mecanicismo moderno é imprescindível para entendermos suas consequências hoje e para remediarmos esse impacto antes que seja tarde e não consigamos mais preservar nem a própria vida humana, que é o que

de um raciocínio minucioso e preciso, aplicado a todas as questões da filosofia, aceitando apenas como verdade as ideias que se apresentassem sendo claras e distintas. Desse modo, a racionalidade crítica superaria o conhecimento que não fosse confiável por proceder dos sentidos ou da imaginação (TARNAS, 2011, p.299). Nesse processo metodológico de duvidar de tudo, inclusive da sua própria existência e da aparente realidade do mundo material, Descartes chega a uma certeza fundamental a que não poderia sequer ter uma vaga sombra de dúvida: a de que para duvidar, é preciso pensar e, para pensar, é preciso existir. Assim Descartes postula sua primeira certeza indubitável: “Cogito, ergo sum” - penso, logo existo: Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que eu procurava (DESCARTES, 1996, p. 92). Aqui Descartes chega à certeza da consciência individual, que para ele se tornou o ponto de partida de toda a construção de conhecimento. Partindo da indubitável existência do sujeito que duvida, por isso consciente de sua imperfeição, Descartes deduz também a necessária existência de um ser perfeito, Deus, uma vez que todo efeito necessita de uma causa. Admitindo a existência da ideia de um ser mais perfeito em seu intelecto, Descartes conclui que essa não poderia vir dele mesmo, um ser menos perfeito. De forma que restava apenas que tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha, em que mesmo tivesse em si todas as perfeições de que eu poderia ter alguma ideia, isto é, para explicar-me numa palavra, que fosse Deus (DESCARTES, 1996, p. 93). Assim, Descartes vai trilhando seu caminho investigativo chegando às primeiras verdades indubitáveis e, a partir delas, construindo o conhecimento por ele considerado claro e distinto. Uma vez que se admitiu a existência do sujeito pensante e de Deus, Descartes chega à existência da matéria. Desse modo, Descartes faz a separação entre res cogitans e res extensa. Por res cogitans, Descartes entende todas as coisas referentes ao mundo espiritual, do pensamento, existentes no intelecto humano: a substância pensante, o espírito, a experiência subjetiva e a consciência, aquilo que o homem percebe interiormente. A res cogitans era fundamentalmente diferente e separada da res extensa. Por res extensa, ele entende o mundo da matéria, das coisas sensíveis, a substância extensa,

o mundo objetivo, a matéria, o corpo físico, as plantas e os animais: todo o universo físico a que o homem percebe exterior à sua mente. “Somente no homem as duas realidades se reúnem como corpo e espírito. A capacidade cognitiva da Razão humana, a realidade objetiva e a ordem do mundo natural encontraram sua fonte em Deus” (TARNAS, 2011, p. 301). Assim Descartes dá início a um dualismo entre alma e matéria. De um lado a alma é entendida como o espírito da consciência humana, sendo diretamente pensante. Do outro lado, ao contrário da mente, estão todos os objetos do mundo exterior que, segundo ele, são desprovidos de consciência subjetiva, de qualquer propósito ou espírito. De acordo com esse pensamento, o universo físico é inteiramente desprovido de qualidades humanas (TARNAS, 2011). O mundo sensível fica privado de todas as sensações, ao passo que estas só existem na mente humana. Na gênese do homem, segundo Descartes, Deus teria criado o corpo humano igual às outras criaturas: como uma máquina sem alma, apenas com a existência de um fogo sem calor em seu coração. Depois, adicionou ao homem a sua alma, localizada na glândula pineal. É essa presença da alma que dá ao homem racionalidade, que o faz tão diferente dos outros seres criados (ROVIGHI, 2015). Desse modo, movido pelo desejo de chegar a princípios claros e distintos acerca dos fenômenos que aparecem para nós e acerca da própria natureza, Descartes se inspira nas leis matemáticas que, para ele, eram o conhecimento mais objetivo de que se poderia utilizar. Na tentativa de explicar o mundo natural e a forma pela qual ele funciona, Descartes introduz a visão de mundo mecanicista. Essa forma de ver o mundo marcará profundamente a idade moderna e exercerá uma influência considerável na cosmologia futura (REALE; ANTISERI, 1990b, v. 2). Segundo Descartes (1996, p. 111): O que não parecerá de modo algum estranho a que, sabendo quão diversos autômatos , ou máquinas móveis, a indústria dos homens pode produzir, sem empregar nisso, senão pouquíssimas peças, em comparação à grande multidão de ossos músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada animal, considerará esse corpo como uma máquina que, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente melhor ordenada e contém movimentos mais admiráveis do que qualquer das que possam ser inventadas pelos homens (grifos do autor). O mundo como um todo, cada planta, cada animal, cada ser que nele se localiza, passam então a serem vistos como máquinas, funcionando com base em princípios

não é um organismo vivo, mas uma máquina criada por Deus com leis geométricas e matemáticas. Deus ao criá-lo aplicou nele uma certa quantidade de movimento, um “empurrão”, e a partir disso o próprio sistema dessa grande máquina, com suas “engrenagens” e “molas” se encarregou de manter o movimento (TARNAS, 2011). O mecanicismo incorpora a definição do mundo natural em que ele é pura extensão geométrica, assim, os únicos modos relevantes para explicá-lo passam pelas ideias de movimento, grandeza e figura. Diante dessa cosmologia, a única categoria a que se poderia usar para explicar o mundo natural passa a ser a de espaço geometricamente definido (BARRA, 2003). Esse pensamento cartesiano trouxe a emancipação do mundo natural da efetiva associação com a crença religiosa, deixando a ciência livre para desenvolver sua análise sem as qualidades espirituais ou humanas e sem as restrições do dogma teológico. O espírito humano fora separado do mundo natural e ambos separados de Deus, tendo uma total autonomia. Desse modo, o fruto do dualismo entre sujeito racional e mundo material passa a ser a ciência, com sua capacidade de proporcionar um conhecimento seguro do mundo. Isso provocou uma grande revolução na forma em que o ser humano vê a natureza, os animais e a forma com que ele se vê nela (TARNAS, 2011).

3. O MECANICISMO E A VISÃO UTILITARISTA DO MUNDO NATURAL A partir do mecanicismo, portanto, o homem deixou de ver o mundo como berço de qualidades, significados e fins, e passou a vê-lo como algo quantificável e matematizável. Falando acerca da mudança de paradigma do mundo qualitativo para o quantitativo, Japiassu, (1985, p. 44) diz que: Trata-se de uma revolução que substituiu a física qualitativa por uma física quantitativa, que substituiu uma Natureza por outra, uma ciência por outra, o método de autoridade pelo recurso à razão e à experiência. Trata-se de uma revolução que, além de derrubar a ditadura de Aristóteles, arruína completamente, através da luneta astronômica, o dogma da incorruptibilidade dos corpos celeste. Fica ainda absolutamente rejeitado o axioma identificando o real objetivo à percepção sensível: as qualidades são relativas aos nossos sentidos e a matéria é quantitativa. O mundo qualitativo defendido por Aristóteles cede lugar a um mundo onde a matemática não é apenas a ciência das relações entre os números, mas também o próprio modelo de explicação de toda realidade física. Não se procura explicar as leis

da natureza baseando-se em seres transcendentes ou em explicações metafísicas. O movimento não é mais provocado por um motor imóvel que atrai todas as coisas a ele, mas é explicado a partir de relações de causa e efeito quantificáveis e matematizáveis (REALE; ANTISERI, 1990b, v. 2). De acordo com Koyré essa atitude buscava transformar o modo de conceber o mundo natural, transformando a cosmologia, o modo com que se via o próprio homem, e a forma com que esse homem se via na natureza e interagia com ela. “[...] enquanto o homem medieval e o antigo visavam à pura contemplação da Natureza e do ser, o moderno deseja a dominação e a subjugação” (KOYRÉ, 2001, p. 13). Os avanços da revolução industrial produziram uma combinação de energia em abundância e barata com matérias-primas também abundantes e baratas. Isso ocasionou um enorme aumento na produtividade humana, principalmente no campo da agricultura. A evolução do maquinário, em especial dos tratores, possibilitou a execução de tarefas que antes não eram feitas ou eram executadas com a lenta força muscular. Assim, os campos e os animais se tornaram altamente produtivos devido aos fertilizantes artificiais, inseticidas industriais, hormônios e medicamentos. A produção passou a ser armazenada em refrigeradores e transportada em aviões e navios. Desse modo, com o advento da modernidade, o foco era a produção, independente das consequências que poderiam surgir ou do sacrifício de espécies inteiras para alimentar esse desejo humano (HARARI, 2019). Segundo essa concepção, por ser o único animal a possuir racionalidade, o homem passou a ser considerado também o único capaz de ter sentimentos e de expressar esses sentimentos por meio da fala. Os animais foram privados de sensações. Qualidades como cor, sabor, cheiro não estão presentes nas coisas sensíveis como defendia Aristóteles, mas no pensamento humano, no mundo do espírito. Assim, como as qualidades estão apenas no intelecto, o valor qualitativo que o mundo possui é apenas aquele a qual o homem nele coloca (ROVIGHI, 2015). De acordo com Battisti (2015, p. 34-35): [...]o finalismo é, em grande parte, uma projeção humana sobre a natureza ou uma avaliação da natureza a partir da perspectiva humana. Nós, seres de vontade e de liberdade, avaliamos a natureza a partir da perspectiva dessas características do espírito. Avaliamo-la também sob a perspectiva da sensibilidade e do que ela nos fornece. Assim, cometemos dois erros ao procedermos desse modo. Em primeiro lugar, por não distinguirmos claramente alma (pensamento) e matéria, imputamos à matéria vontade,

Compramos uma série de produtos de que não precisamos realmente e que até ontem não sabíamos que existiam. Os fabricantes criam deliberadamente produtos de vida curta e inventam modelos novos e desnecessários de produtos perfeitamente satisfatórios que devemos comprar para “não ficar de fora”. Ir às compras se tornou um passatempo favorito, os bens de consumo se tornaram mediadores essenciais nas relações entre membros da família, casais e amigos. Feriados religiosos como o Natal se tornaram festivais de compras. Esse consumismo exagerado aumentou cada vez mais a procura por bens que, em sua maioria são dispensáveis à vida humana, são bens supérfluos do homem que deseja o luxo a qualquer custo. E, infelizmente, em sua maioria esses bens vêm da exploração dos recursos naturais. Portanto o mecanicismo e sua cosmologia, somado com os avanços industriais futuros que trouxeram formas revolucionárias de produção, a exploração irresponsável do mundo natural sofreu um notável aumento.

4. A VISÃO UTILITARISTA E A EXPLORAÇÃO NATURAL Com esses fatores antes mencionados, o ser humano passou a explorar de maneira desenfreada todo o conjunto de recursos naturais, sejam eles vegetais ou animais. Segundo Harari (2019, p. 352): [...] os animais de criação deixaram de ser vistos como criaturas vivas capazes de sentir dor e sofrimento e passaram a ser tratados como máquinas. Hoje, esses animais muitas vezes são produzidos em massa em instalações similares a fábricas, seus corpos moldados de acordo com as necessidades industriais. Eles passam a vida inteira como engrenagens em linhas de produção gigantes, e a duração e a qualidade de sua existência são determinadas pelos lucros e perdas das corporações. Mesmo quando a indústria toma cuidado para mantê-los vivos, razoavelmente saudáveis e bem alimentados, não tem nenhum interesse intrínseco nas necessidades psicológicas e sociais dos animais (exceto quando estas têm um impacto direto sobre a produção). Harari diz ainda que os porcos, ficando atrás apenas dos grandes primatas, estão entre os animais mais curiosos e inteligentes dos mamíferos. No entanto, totalmente indiferentes a isso, as fazendas industrializadas de criação intensiva adotam a prática da confinação desses animais em pequenos espaços por praticamente toda a sua vida. As porcas em lactação são colocadas em caixotes de madeira pouco maiores que elas, sendo impossível seu movimento: não conseguem nem se virar, muito menos explorar o ambiente que as cerca, ambiente esse que também é apenas um pequeno cercado. Após quatro semanas mantidas nessa condição, sua prole é

retirada para ser engordada em virtude do abate e elas são novamente inseminadas reiniciando o processo (HARARI, 2019). Muitas vacas leiteiras, também em fazendas de criação intensiva, são mantidas quase por toda sua vida em um único pequeno cercado. Elas recebem sua porção de alimento, medicamentos e hormônios através de um conjunto de máquinas sendo ordenhadas a cada poucas horas também por um conjunto específico de máquinas. Segundo Harari, “a vaca é tratada como pouco mais do que uma boca que consome matérias primas e um úbere que produz mercadoria” (HARARI, 2019, p. 353). Assim percebe-se claramente como o ser humano, influenciado por essa visão utilitarista provocada pelo mecanicismo cartesiano, passou a manusear os outros seres movido pelos seus desejos egoístas, indiferentes às peculiaridades e o valor intrínseco de cada ser e ao sofrimento provocado a eles. Dentre as ações humanas que podemos destacar como exploratórias, estão, como nos diz Singers, as experiências científicas com animais (militares ou não) que em sua maioria não trazem grandes benefícios para a área médica, desconsiderando o sofrimento infligido a eles. Entre as dezenas de milhões de experiências realizadas, apenas algumas podem ser possivelmente consideradas como contribuindo para importante investigação médica. São utilizadas grandes quantidades de animais em departamentos universitários das áreas florestal e psicológica, por exemplo; muitos mais são utilizados com fins comerciais, para testar novos cosméticos, xampus, corantes alimentares e outros artigos supérfluos. Tudo isto só é possível graças ao nosso preconceito de não levar a sério o sofrimento de um ser que não é membro da nossa espécie (SINGERS, 2004 , p. 40). Segundo ele, inúmeros animais sofrem todos os anos experiências cruéis em todo o mundo sendo sujeitos a rotinas que induzem angústia, desespero, ansiedade, perturbações psicológicas gerais e morte. Desde camundongos em testes cosméticos até macacos em câmaras elétricas. Utilizando-se de muitas dessas experiências, busca-se chegar a um resultado comparativo ao que acontece com os animais e o que aconteceria com humanos na mesma situação. O que se esquece nesse processo é que, se se pode pensar uma equivalência das reações em ambas as espécies, isso se dá porque os animais possuem a mesma capacidade de sentir que os seres humanos. Assim, não seria correto utilizar-se desses animais em experiências, bem como utilizar-se de humanos. Além disso, está ainda o fato de que sempre são necessárias novas experiências que levam novos animais a essas situações (SINGERS, 2004 ).

a utilização da agropecuária e, em alguns casos, fenômenos naturais, como os principais fatores responsáveis pela redução do tamanho das florestas naturais em todo o mundo (ARRAES; MARIANO; SIMONASSI, 2012). Desde o início da década de 70, vêm sendo observadas altas taxas de desmatamento na Amazônia, que sofrem oscilações decorrentes da ocorrência de incêndios, comércio de madeira, expansão da atividade agropecuária, aumento da densidade populacional e incentivos fiscais. Essa degradação contribui para a perda da biodiversidade, a redução da ciclagem da água e para o aquecimento global, principalmente através das queimadas (ARRAES; MARIANO; SIMONASSI, 2012). Esses indicativos apresentam claramente o atual quadro de exploração dos recursos naturais por parte dos seres humanos.

5. O MECANICISMO E SUA INFLUÊNCIA NA EXPLORAÇÃO NATURAL Essa realidade de destruição e exploração dos recursos naturais provocada pelo homem moderno e pós-moderno nos mostra como o mecanicismo de Descartes influenciou negativamente no que se refere à relação do homem com o meio ambiente. A partir da modernidade se perdeu quase por completo a ideia de valor intrínseco à natureza e a sua capacidade de sentir e expressar sentimentos. Alguns dos continuadores do pensamento cartesiano negavam, explicitamente, que os animais pudessem sentir dor. Para eles os animais eram privados das sensações. O grito de um cão espancado, por exemplo, não constituiria uma prova mais satisfatória de que ele sofrera, do que o som de um órgão provaria que o instrumento sentia dor quando tocado (SHELDRAKE, 1995). Para melhor compreensão da revolução que o mecanicismo cartesiano provocou na cosmologia, vale fazer uma relação entre a visão de mundo de Descartes e a de Aristóteles, que durante muito tempo foi a mais utilizada para explicar o mundo natural e seus fenômenos. Diferente de Platão, que considerava que fora das coisas existia a ideia perfeita e estática no mundo das ideias, Aristóteles defendia que cada substância que existe na natureza é um composto de matéria e forma, forma esta que está na coisa, e não fora dela. “É claro pois, que tais espécies (Ideias) separadas das coisas singulares, como dizem alguns filósofos, não seriam de nenhuma utilidade para a explicação da geração

das substâncias” (ARISTÓTELES apud MONDIN, 1926, p. 90). Segundo ele “a forma é um princípio intrínseco de funcionamento, implícito no organismo a partir de sua concepção, assim como a forma do carvalho está implícita em seu fruto” (TARNAS, 2011, p. 74). A forma é a responsável pela passagem do organismo de potência para ato, de potencialidade para realidade, sendo um impulso interior responsável pelo seu desenvolvimento. Por potência, Aristóteles entende “[..] aquilo que não encontra impossibilidade para tornar-se ato quando sobrevém o ato” (ARISTÓTELES apud MONDIN, 1926, p. 94). Ou seja, a potência é a capacidade da substância de se transformar em ato, a possibilidade de se realizar como a semente em árvore. “O ato é, para a potência, aquilo que o edifício é para o saber edificar, o estar desperto para o dormir, o ver para o não-ver, mesmo tendo a vista, o objeto trabalhado para a matéria bruta. Ao primeiro membro destes binômios aplica- se o conceito de ato; ao segundo, o de potência” (ARISTÓTELES, apud MONDIN, 1926, p 94). Desta forma, para Aristóteles o mundo natural possui um grande valor intrínseco, sendo “[...] meritória expressão do divino e não, como insinuava Platão muitas vezes, algo que apenas devia ser visto – ou deixado para trás completamente – como impedimento ao conhecimento absoluto” (TARNAS, 2011, p. 82). É através da natureza e do seu contato empírico com ela que o homem consegue construir conhecimento, a partir da abstração da forma presente em cada objeto. Aristóteles admite também diferentes tipos de seres no mundo: os seres inanimados, os seres animados e sem razão, e os seres animados dotados de razão. De acordo com ele, “os seres animados se diferenciam dos seres inanimados porque possuem um princípio que lhes dá a vida. E esse princípio é a alma” (REALE; ANTISERI, 1990a, v. 1, p. 197). A alma, para o Estagirita, seria a “enteléquia primeira de um corpo físico que tem a vida em potência” (REALE; ANTISERI, 1990a, v. 1, p. 198). Dessa forma, estando presente nos corpos, a alma é o que dá vida a eles, é o “ato primeiro de um corpo físico orgânico” (ARISTÓTELES apud MONDIN, 1926, p. 99 ), podendo ser pensada de três formas distintas. De acordo com Reale e Antiseri (1990a, v 1, p. 198): Assim raciocinava Aristóteles: como os fenômenos da vida pressupõem determinadas operações constantes claramente diferenciadas (a tal ponto que algumas delas podem existir em alguns seres sem que as outras estejam presentes), então também a alma, que é princípio vital, deve ter capacidades, funções ou partes que presidem essas operações e as regulam. Ora, os

vida (alma) neles e o valor que este ser tem para o todo. Segundo o Filósofo “[...] existe um “lugar natural” para o qual cada elemento parece tender por sua própria natureza [...]” (REALE; ANTISERI, 1990a, v. 1, p.193). Ou seja, todo ser faz parte de um sistema, e não pode ser pensado fora deste ou fora da função que nele exerce. De acordo com Descartes, diferente de Aristóteles, os seres não possuem alma, o movimento, as relações ou a própria vida não são mais explicados levando-se em conta o que está intrínseco ao ser. Mas a partir da ideia de que tudo é regido por frias leis mecânicas, fazendo assim a mudança da visão de um mundo qualitativo para um mundo quantitativo. A razão em sua tentativa de dominar o mundo, retirou dele tudo que pudesse indicar complexidade ou incapacidade de compreensão, o simplificando e o reduzindo em matéria clara e distinta. Essa reviravolta cartesiana “justificou” a relação nociva do homem frente a natureza legitimando a concepção que o considera superior e dotado do direito de explorar, desmedidamente, os bens naturais. Fez com que este desconsiderasse o valor daquele ser explorado, o reduzindo a simples extensão. De acordo com Tarnas: O pensamento moderno era concebido como distinto e superior em relação a todo o resto da Natureza. A ordem da Natureza era exclusivamente inconsciente e mecânica. O próprio Universo não era dotado de objetivo ou inteligência inconsciente; somente o Homem possuía essas qualidades. A capacidade racional para manipular forças impessoais e objetos materiais na Natureza tornou-se o paradigma do relacionamento do Homem com o mundo. [...]. O universo era impessoal, não era pessoal; as leis da Natureza eram naturais, não eram sobrenaturais. O mundo físico não possuía nenhum significado intrínseco mais profundo: era materialmente impermeável à Razão, não era a expressão visível de realidades espirituais (TARNAS, 2011, p. 310 e 311). Assim, vê-se que o mecanicismo cartesiano colocou o homem em um estado tão marcado pela indiferença e pelo antropocentrismo que se perdeu a simbiose com o planeta terra. O homem deixou de se ver como participante de um todo e começou a se colocar como um ser isolado dominador de todas as espécies. Perdeu-se a noção de coexistência, o que nos dias de hoje nos provoca à necessidade de uma reflexão que trate de uma visão onde “[...] tudo o que existe, coexiste” (BOFF, 2008, p. 27). Nesse sentido, Benson e Rollin, citados por Harari (2019, p. 353), defendem que “tratar criaturas vivas que têm mundos emocionais complexos como se elas fossem máquinas tende a lhes causar não só desconforto físico como também grande estresse social e frustração psicológica”. Assim, dependendo das formas de manejo,

os animais de produção podem ser drasticamente afetados socialmente e psicologicamente. Portanto, movido por uma cosmologia mecanicista, o homem não vê o mundo natural como um ser vivo. Essa visão o fez acreditar poder agir de maneira desmedida e irresponsável, ameaçando assim a vida do planeta.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A considerar o que foi dito, propõe-se que quando Descartes faz a separação entre res cogitans e res extensa, ele retira do mundo toda dimensão espiritual, a deixando reduzida apenas ao mundo do pensamento. Introduzindo a tese mecanicista, ele busca reduzir o mundo a uma simples máquina que pode ser explicada levando-se em consideração as leis mecânicas matemáticas. Nesse movimento, a razão busca se afirmar como conhecedora de tudo e capaz de explicar o funcionamento de todo o mundo natural, humano ou não. No entanto, uma vez que o mundo perde seu valor em si mesmo, ele passa a tê-lo somente no que diz respeito ao homem, seu valor existe na medida em que está em função do homem. Assim, com essa visão extremamente utilitarista da natureza, o homem passou a se ver como dominador, portador do direito de explorar os recursos naturais a seu bel prazer. Desconsidera o impacto que essa exploração causa em todo o complexo mundo dos vegetais, dos animais e, até mesmo do próprio homem, que também sofre com as próprias ações. Dessa forma, a vida não humana é banalizada a ponto de ser vista como simples mercadoria, onde seu único valor está em sua capacidade de troca. O homem perdeu a capacidade de se ver como um ser integrado ao ambiente. Perdeu também, em sua maioria, a capacidade de enxergar na natureza o valor que ela carrega em si mesma, de modo que mesmo quando são feitas ações supostamente desinteressadas (preservação de nascentes, construção de parques, reflorestamento...), na verdade o olhar está voltado para os benefícios que essas ações trazem para o ser humano: água potável, sombra, diminuição do calor etc. Diferente do pensamento de Aristóteles que considerava que tudo no mundo possuía um fim e que todos os seres animados eram portadores de alma e, consequentemente, vida; Descartes considera todos os seres como apenas

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