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Este texto discute o papel do cunhadismo na exploração e colonização do brasil, examinando como a interação entre as culturas indígena, europeia e africana resultou na formação da população mestiça e na disseminação de uma cultura híbrida. O documento aborda a importância da religião católica, a arte teatral e a linguagem nheengatu na catequese indígena, além da formação de uma sociedade heterogênea na colonização.
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Tipologia: Notas de aula
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PROGRAMA DE P Ó S-GRADUAÇÃO COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM E CULTURA - UNAMA N. 1 2013 ISSN 1517-199x
(^1) Orlando Dias Vieira Filho (^2) Ivone Maria Xavier de Amorim Almeida
RESUMO
Este artigo objetiva evidenciar a utilização do recurso da catequese teatral jesuítica e do cunhadismo no processo inicial de colonização como estratégia para apropriação por parte da coroa lusitana das riquezas do Brasil, e, por extensão do território do Grão-Pará, bem como os seus desdobramentos na conformação de uma nova sociedade ultramarina, cujos valores culturais são herdados e ressignificados pelas populações descendentes, exemplificados pela cultura popular no Estado do Pará por meio do seu teatro dos pássaros. As reflexões apresentadas encontram amparo nas obras de Darcy Ribeiro (1985, 1995, 2010) e em diálogos com Canclini (2005) Mignolo (2003) e Martin-Barbero (1997).
Palavras-chave: Colonização, Cunha- dismo, Catequese, Teatro, Pássaro.
ABSTRACTY
This article aims to highlight the use of the resource of catechesis and the Jesuit Theatre cunhadismo initial colonization process as strategies for appropriation by the Crown of Bra- zil's riches, Lusitania, and by ex- tension the territory of Grão-Pará, as well as their implications in shaping a new society, whose overseas cultural values are inherited and redefined by the descendant populations, exem- plified by the popular culture in the State of Pará through his theatre of the birds. The thoughts presented are amparo in the works of Darcy Ribeiro (1985, 1995, 2010) and in dialogues with Canclini (2005) Mignolo (2003) and Martin- Barbero (1997).
Key words: Colonization. Cunhadismo. Catechesis. Theater. Bird.
1 - Mestrando em Comunicação, Lin- guagens e Cultura – PPGCLC/UNAMA. 2- Professora- Pesquisadora. Doutora em História Social. PPGCLC/UNAMA. Endereço eletrônico: Ivone.xavier@ unama.br
Este artigo é fruto das pesquisas bibliográficas realizadas sobre teatro de pássaros em Be- lém do Pará para elaboração de dissertação de mestrado a ser apresentado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura, da Universidade da Amazô- nia – Unama, cuja temática de investigação está inserida na linha de pesquisa “Comu- nicação, Linguagem e Arte no Contexto Social da Amazônia” do programa em questão.
O mérito deste artigo relaciona-se à abordagem sobre o teatro catequético-apostólico dos padres jesuítas no período da colonização do Brasil e na Capitania do Grão-Pará, no século XVII com o uso da arte teatral como ferramenta de aculturação dos povos indíge- nas, aliado a imposição de um novo padrão cultural com fins de ascendência sobre estes. Também centra olhar sobre o cunhadismo enquanto veículo de manipulação ideológica e física e, também, de dominação do corpo e da mente das populações nativas.
Tanto o teatro catequético – apostólico quanto o cunhadismo foram utilizados como meios que levaram a uma das mais agressivas ações de caráter exploratória e expropria- dora contra os verdadeiros donos e ocupantes da terra ‘descoberta’ que, não obstante o enriquecimento do invasor europeu contribuiu enormemente para o longo e complexo processo de formação da sociedade brasileira e de seu matizado multicultural.
Desta forma, torna-se imprescindível o diálogo com Ribeiro (1987, 1995, 2010), Can- clini (2005), Mignolo (2003), Martin-Barbero (1997) entre outros, tendo em vista a con- textualização teórica e histórica como procedimento metodológico na construção dos argumentos presentes no texto.
TUDO ÍNDIO, TUDO PARENTE... De acordo com Ribeiro (2010), o cunhadismo, ao lado de uma catequese que manteve expressiva parcela dos povos indígenas sob o poder ideológico de cunho religioso in- termediado pela arte teatral, viabilizou em um primeiro momento, parte do projeto lusi- tano de exploração e colonização das terras brasílicas, desdobrando-se numa oportuna maneira de apoderamento da força de trabalho local por meio das mais proeminentes e interessantes formas de relação entre o povo gentílico e os outros.
O cunhadismo foi muito explorado pelo colonizador português, posto que, ao se acasalar com as mulheres das aldeias, estabeleceu-se uma ampla rede de relações, passando a contar com vários homens em seu entorno para prestar-lhes serviços. Alguns chegaram a possuir dezenas de índias como esposas e consequentemente, outras centenas de parentes dados às diversas ações de seu interesse mercantil e mais, como uma “prática tribal para tratar com pessoas estranhas”, posto que:
Essa consistia em dar ao estranho uma moça como esposa. No momento em que a assumisse, estabelecia de imediato, relações mais extensas com todo o povo de onde ele viera. O branco passava a ter dezenas de cunha- dos, de sogros, genros e parentes outros, posto a seu serviço e dele pedindo bugigangas [...] pelo cunhadismo alguns europeus chegaram a ter 50 e até 80 mulheres, através das quais se relacionava com outras tantas comuni- dades indígenas, postas a seu serviço (RIBEIRO, 2010, p. 66).
PROGRAMA DE P Ó S-GRADUAÇÃO COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM E CULTURA - UNAMA N. 1 2013 ISSN 1517-199x
Assim, o lusitano invasor passou a ter a ‘colaboração’ de um expressivo número de nativos “para construir suas casas, fa- zer suas roças, remar seus barcos, fazer suas guerras e para produzir as mercado- rias com que eles enriqueceriam” (RIBEI- RO, 2010, p. 66-67). A subserviência ia ao encontro de seus propósitos de acumula- ção, resultantes da oportuna relação afetu- osa e precursora na aliciação dessa forma obreira abundante. Desse modo sobrevi- veram numerosos descendentes frutos da interação étnica, com relevante desdobra- mento no padrão racial e multicultural em formação, posto que: Paralelamente ao processo eco- nômico se realiza um processo biológico mais profundo, median- te o qual, simultaneamente com a redução das populações indíge- nas, nasce e cresce uma popula- ção nativa mestiça pela multipli- cação prodigiosa de uns poucos varões europeus sobre os ventres de milhares de mulheres indíge- nas (RIBEIRO, 2010, p. 67).
Este autor realça ainda uma preocupação teórica ao mencionar seus estudos rela- tivos ao processo de integração entre os “índios e as frentes econômicas”, tam- bém referenciadas àquelas constituídas por imigrantes sem distinção no período do aliciamento na época colonial, aten- do-se ao conceito por ele determinado de transfiguração étnica e baseado, como esclarece, “em observações diretas e em toda bibliografia pertinente, bem como na vasta documentação que me foi acessível” (RIBEIRO,2010, p.28).
Esse conceito leva a compreensão de que as culturas são imperativamente trans- formadas no confronto de umas com as outras. Mas, suas identificações étnicas originais persistem, resistindo a toda sor- te de violência. Partindo-se dele, se pode vislumbrar uma nova instância cultural, influenciando outra população, originária da fusão inter-racial nos primórdios da colonização lusitana que aos poucos vai encontrando uma identidade, mas aten- do-se a herança cultural dos seus povos formadores.
O cunhadismo, em que pese a sua práti-
ca desmotivada de interesses espúrios por parte dos índios - muito além da aquisição de ferramenta necessário à melhor conse- cução das atividades artesanais e artísticas com ás quais ornavam e embelezavam seu mundo material e espiritual - também permitiu intensas trocas culturais com o europeu refletidas no modo de vida das sucessivas gerações locais, pois, por meio dele e “levado a extremo, se criou um gê- nero humano novo, que não era, nem se reconhecia e nem era visto como tal pelos índios, pelos europeus e pelos negros [...] tudo isso aurido o seu convívio compulsó- rio com os índios de matriz tupi” (RIBEI- RO, 2010, p. 109).
Embora o citado autor não faça referência especificamente à prática do cunhadismo no período da colonização e do povoamen- to do território do Grão-Pará partindo-se da fundação da cidade de Belém em 1616, essa recorrência torna-se provável entre os nativos e os aqui chegados, tendo em vis- ta a presença maciça dos Tupinambás na região onde surge a cidade que mais tarde seria a sua capital. Os Tupinambás são ci- tados por diversos historiadores como os primeiros e mais numerosos habitantes da terra brasileira a ter contato com o invasor lusitano e com outros europeus.
Há relato de Ribeiro (2010) quanto a esta “instituição social que possibilitou a forma- ção do povo brasileiro” (1995, p.81) encon- trado tanto nos Estados da Bahia como em Pernambuco e no Maranhão, dando des- taque a dois núcleos relevantes: o baiano, de Caramuru, que “conseguiu manter certo equilíbrio entre a indiada com que convivia cunhadalmente e os lusitanos que foram chegando” assim como “o de Pernambuco, em que vários portugueses, associados aos índios Tabajara, produziram quantidade de mamelucos” (1995, p. 85). O autor desta- ca no Maranhão “notícia de um guerreiro [...] que teria gerado também quantidade de mamelucos, que representaram papel muito ativo na colonização daquela área” (idem, p.85).
Neste caso e resguardadas as peculiarida- des da região amazônica, é de esperar que a colonização dessa fração tropical tenha se dado de maneira similar a do resto do ter- ritório brasileiro, onde os aspectos mais re-
levantes da cultura local estão intimamente ligados à trajetória de ocupação econômica e política centrada na gestação inicial de pessoas oriundas de etnias indígenas, na maioria, mescladas com o branco europeu.
Mas a miscigenação, iniciada com o cunhadismo no Brasil afora, ultrapassa o período de sua vigência, pois ainda de acordo com Ribeiro (1995), no Brasil ca- boclo e relativo ao norte brasileiro, Surgiu e se multiplicou uma vasta população de gentes distribaliza- das, desculturadas e mestiçadas que é o fruto e a vítima principal da invasão europeia [...] origina- ram-se principalmente das mis- sões jesuíticas, que, confinando índios tirados de diferentes tribos, inviabilizavam as suas culturas de origem e lhes impunham uma língua franca. [...] A eles se junta- ram, mais tarde, grandes massas de mestiços, gestados por bran- cos em mulheres indígenas, que também não sendo índios nem chegando a serem europeus, e falando o tupi, se dissolveram na condição de caboclos (RIBEIRO, 1995, p. 319).
Partindo-se dessa fonte é que se pode compreender o matizado sociocultural das populações habitantes da vasta região norte de ascendência majoritariamente indígena, ungida de laços provenientes de uma herança comum - apesar de sua diversidade - e baseada na familiaridade linguística representada pela língua tupi, resultante da sagacidade portuguesa em direção ao completo domínio da Amazô- nia, já cobiçada por outras nações euro- peias naqueles remotos tempos.
Sendo a língua um dos mais destacados elos de identidade de um povo, deve-se aqui ressaltar as pertinentes palavras de Gomes (2011) que vão ao encontro das ponderações presentes no texto e ao pen- samento de Ribeiro: A família tupi [...] compreende um número bastante expressivo de línguas e povos indígenas [...] O seu exemplar mais comum no Bra- sil é o Tupinambá, que foi falado em quase toda a costa brasileira e serviu de língua franca para os
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pelho da alma indígena [...] Nos seus mitos, lendas e contos os ín- dios veem tanto a sua imagem e o seu destino dramatizado pela ação dos heróis, como sua exis- tência cotidiana [...] Através dela, todo um passado mítico da tribo se fixa e se perpetua [...] O equi- valente nas culturas ocidentais à mitologia indígena não é, por- tanto, o repertório folclórico dos contos populares. É, isso sim, a herança bíblica, por exemplo, ou a explanação religiosa em que se funda o culto [...] contém em si [...] um vasto espaço para o virtu- osismo da interpretação dramáti- ca (RIBEIRO, 1987, p. 43-45).
Ressalte-se, portanto, que no tocante ao aprendizado, é de se esperar que o gentio à época colonial tenha apresado com rela- tiva facilidade os mais importantes traços da cultura branca erudizada transmitidas pelos religiosos católicos, detentores do conhecimento sobre extensa área de saber, a quem no mundo dito civilizado cabia a compreensão e a interpretação dos fenô- menos naturais e sobrenaturais, além do grande domínio sobre as artes que o na- tivo já praticava à sua moda, sobejamente sobre a música, a literatura oral e, de certa forma, o teatro.
Nesse ambiente, o exercício da aprendi- zagem artística, entre outras, a do teatro religioso e as práticas dele decorrentes, certamente passam à composição do uni- verso daqueles indivíduos, principalmente crianças, que foram submetidos e inte- grados à nova realidade determinada pela dominação, provocando então um desdo- bramento que se reflete tanto no campo cosmológico quanto nas concepções de ordem cultural dos subjugados e seus her- deiros, e que mais adiante, na assimilação e no confronto com o que restou da cultura dos homens e mulheres negras aprisiona- das como escravos, vem dar origem a uma prática religiosa que convém ser designa- do catolicismo popular. Sob esse aspecto observamos: essa parca herança africana – meio cultural e meio racial – as- sociada às crenças indígenas, emprestaria entretanto á cultura brasileira, no plano ideológico, uma singular fisionomia cultural.
Nessa esfera é que se destaca, por exemplo, um catolicismo popular muito mais discrepante que qual- quer das heresias cristãs tão per- seguidas em Portugal (RIBEIRO, 1995, p. 117).
Segundo ele, foi reproduzido essencial- mente pelas mulheres mestiças que nos núcleos coloniais passaram a ser aceitas como possibilidades matrimoniais em ra- zão da sua devoção e pregações associa- das aos dogmas da igreja católica, que até então dividia com a coroa o poder tempo- ral e espacial sobre a escassa população neobrasileira. Ainda sobre o mesmo tema, Ribeiro (1995) assinala as ponderações do padre Manuel da Nóbrega, acompanhante da comitiva do primeiro governador geral Tomé de Souza, em 1554, por meio de carta enviada em 1551 aos “padres e irmãs de Coimbra”, como segue: Nóbrega assinala que para Per- nambuco não era necessário mandar mulheres nem meninos, por haverem muitas filhas de ho- mens brancos e de índias da terra “as quais todas agora casarão, com a ajuda do senhor” (Carta de 1551 In: Nobrega: 102) [...] Já não sendo índias, procuravam espaço para ser alguma catego- ria de gente digna. A única que se lhes abria era de fiéis contritas dos santos católicos, seguidoras entusiastas os cultos. Essa foi a única conversão que os padres al- cançaram. Elas foram, de fato, as implantadoras do catolicismo po- pular santeiro no Brasil, como se documenta pelo texto de Nóbrega [...] (1995, p. 90).
Essa forma popular de ressignificação da religião imposta pelos jesuítas, atrelada essencialmente à figura dos santos - e, por conseguinte, ao sincretismo entre as cren- ças dos povos indígenas brasileiros e dos elementos religiosos de origem africana - desponta até hoje nas manifestações mais destacadas da cultura popular brasileira, cujo matizado religioso encontra-se avi- ventado nas pertinentes formas de apre- sentação, espetáculo ou encenação, reve- lando nos enredos, muitos componentes de uma ou de outra cultura.
São evidências encontradas nas afirmati-
vas de Martin-Barbero (1997), ao analisar um dos aspectos basilares na constitui- ção da cultura popular, dado à leitura de outro respeitado autor: “a contribuição de le Goff sustenta-se em ter conseguido resgatar a dinâmica própria do processo cultural: a cultura popular fazendo-se em uma dialética de permanência e mudança, de resistência e intercâmbio” (MARTIN- -BARBERO, 1997, p. 105). Tais alegações se encontram na harmonia que faz ressoar o timbre exato da composição textual de Ribeiro (1995) sobre a “ação aculturativa intensa” exercida pelos “aldeamentos mis- sionários, sobretudo jesuíticos”. Sua influência maior terá sido o desenvolvimento de uma religiosi- dade folclórica e pouco ortodoxa, que resultou numa crença popular de colcha de retalhos, fundada no sincretismo da pajelança com um vasto culto de santos e datas o calendário religioso católico (RI- BEIRO, 1995, p. 313-314).
Sendo assim, torna-se aceitável o entendi- mento de que muitas manifestações cul- turais de cunho popular, até recentemente abundantes em Belém e no interior do Pará consideradas como pertencentes a classes subalternizadas povoadas por indivíduos na maioria produto da mestiçagem remanes- cente, mantém na sua estrutura, independen- te da natureza, esses traços de religiosidade e cosmologia associados ao imaginário ca- boclo descendente e que foram incorpora- dos ao drama dos seus enredos, nada mais representando do que o drama de resistência cultural do legado indígena constitutivo de uma identidade e memória, expressas, por exemplo, numa das provavelmente mais ri- cas e originais formas de teatro popular, o teatro dos pássaros.
TÁ TUDO DOMINADO... A partir do cunhadismo e do teatro cate- quético-apostólico como instrumento de apoio à ocupação e expansão dos domí- nios lusitanos, onde a associação entre a religião católica e a coroa na exploração do trabalho escravocrata se volta à ma- nipulação dos recursos naturais da nova possessão, a dominação portuguesa sobre os nativos das terras brasílicas se faz de forma eficaz do ponto de vista ideológico e econômico, mas com desdobramentos até então impensáveis quanto ao aspecto
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da nova ordem econômica refletida na or- ganização social e cultural advinda deste longo período de transição de colônia ao estado-nação, que emerge do processo de apropriação de riquezas ultramarinas.
Este procedimento apresenta uma forte ressonância na formação social e na he- rança cultural daqueles imigrantes e sua progênie de matriz indígena, cujo projeto não passava de mero interesse mercantil e patrimonialista. Tal projeto ocorre em uma época de transição entre os dois modos de produção na Europa seiscentista, coinci- dindo com a fase primária de acumulação de capital, onde o capitalismo europeu emerge e se desenvolve enormemente a partir dos recursos vegetais e, sobretudo minerais advindos das suas colônias ame- ricanas sob o braço obreiro do ameríndio. Tal fato para Ribeiro (2010) evidencia uma relação desigual e desproporcional no tocante aos benefícios socioeconômi- cos entre as culturas que se confrontam: O grave é que os índios não se incorporavam a uma economia mercantil. O que ocorria era uma incrustração do mundo micro ét- nico, da reciprocidade solidária, fundada nas obrigações de pa- rentesco, no sistema europeu de mercado. Ali se intercruzavam duas esferas evolutivas, contem- porâneas, mas não coetâneas, en- tre as quais o intercâmbio econô- mico era sempre o mais desigual em prejuízo dos índios (RIBEIRO, 2010, p. 67).
Nesta fase de transição entre feudalismo e o ordenamento e expansão do mundo capitalista, que leva significativa parte da Europa ao enriquecimento ‘ilícito’ -em vistas da apropriação das riquezas alheias com a gentílica e ingênua obsequiedade dos expropriados e explorados - o modo de produção praticado na colônia apresenta-se com características distintas e peculiares. Em vistas de uma nação em estado de gê- nese e de formação social ainda indefinida, no processo de colonização “puseram-se, uma diante da outra, duas formações so- ciais heterogêneas: a dos conquistadores europeus e a das tribos autóctones” (GO- RENDER, 1978, p. 53), mas, “o modo de produção resultante da conquista – o escra- vismo colonial – não pode ser considerado
uma síntese dos modos de produção histo- ricamente novo” (idem, p. 54-55).
E é justamente nesse contexto da econo- mia ocidental em fase acelerada de expan- são e mudanças, que se insere a realidade da nova colônia europeia, com sua gene- rosa oferta de mão de obra espontânea num primeiro momento e que mesmo mais tarde, permanece gratuita, mas for- çada pelo ímpeto escravizante que o co- lonizador de certa forma faz renascer nos seus domínios, baseado no antigo modo de produção escravista que a Europa ha- via substituído pelo feudalismo e este, no século VXI já se apresentava em período de transição para o capitalismo, portanto, na contramão de sua própria história.
A configuração do poder que as nações co- lonizadoras nesse período da história uni- versal exerciam sobre as suas possessões é determinada, portanto pelo modo de produção capitalista na fase embrionária, cuja placenta foi composta essencialmente pelos territórios hoje formadores do vasto continente americano assim constituinte do alicerce da economia capitalista mun- dial. Segundo Mignolo (2003) tal alicerce foi estabelecido pela expansão da dimen- são geográfica do mundo, pelo desenvol- vimento de métodos variados de controle de trabalho para diferentes zonas e produ- tos e pela criação de um maquinário esta- tal relativamente forte nos estados centrais da economia mundial. Mignolo (2003) ainda assinala “a relevância das Américas e do século XVI” partindo dos registros de Quijano e Wallerstein em 1992, dando destaque ao conceito de colonialidade e a “articulação da modernidade/colonialida- de”, pois para os autores: O moderno sistema mundial nasceu no longo século XVI. As Américas, como construto so- cial, nasceram no longo século XVI. A criação dessa entidade geossocial, as Américas, foi o ato constitutivo do sistema mundial moderno. As Américas não foram incorporadas a uma economia ca- pitalista mundial já existente. Não poderia ter havido uma economia capitalista mundial sem as Améri- cas (QUIJANO e WALLERSTEIN apud MIGNOLO, 2003, p. 84).
Indiscutivelmente, o caráter hegemônico da ocupação colonial europeia veio a se refletir no plano cultural das populações que emergiram no processo inicial de for- mação do povo brasileiro baseado na união de diferentes raças, onde o aspecto embrio- nário da divisão de classe numa sociedade que insurge assentada numa economia de mercado também em fase de constituição, como já mencionado, rapidamente dá lugar a indivíduos que vem a compor uma classe obreira a partir da experiência forjada na utilização dos povos pertencentes às na- ções indígenas locais, e que posteriormen- te vem influenciar na formação da classe trabalhadora subalternizada pela elite eco- nômica e política da nação brasileira, por longo tempo de gestação.
A colonialidade do poder na opinião de Mignolo (2003) sublinha a organização geoeconômica do planeta, a qual articu- la o sistema mundial colonial/moderno e gerencia a diferença colonial e permi- te a Quijano (2003) ligar o capitalismo, através da colonialidade, ao trabalho e à raça (e não apenas à classe). Também o conhecimento possibilita a leitura e o en- tendimento sobre a herança europeia na América Latina e suas consequências eco- nômicas, políticas e socioculturais com forte influência ainda nos dias de hoje. Para Quijano (2003): La colonialidade del poder y la dependência histórico-estructu- ral, inplican ambas la hegemonia del eurocentrismo como perspec- tiva do conocimiento [...] em el contexto de la colonialidade del poder, las poblaciones dominadas de todas las nuevas identidades fueron tambien sometidas a la he- gemonia del eurocentrismo como manera de conocer, sobre todo em la medida que algunos de sus sec- tores pudieron aprender la letra de los dominadores (apud MIG- NOLO,2003, p. 85).
Importa assim observar alguns desdo- bramentos desse processo inter-étnico, tendo em vista as mudanças que atingem outros aspectos culturais relativos à cria- ção e a educação das sucessivas gerações advindas dessa interação, como produ- to das relações de interesses meramente economicistas e, portanto, dissociadas de
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jesuítas e seguida pelo apoderamento das missões por parte dos colonos que historica- mente lutavam contra certa liberdade consentida pelos missionários, vêm a representar as cicatrizes que a colonialidade perpetuou na memória e história da formação do povo e da nação brasileira, e que precisa ser revista no discurso oficial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Pode-se admitir que a realidade econômica vivenciada pela sociedade brasileira em for- mação no período colonial foi determinante de outras realidades, como a social, tendo em vista o alcance e a dimensão do processo de exploração dos recursos naturais da terra descoberta que influenciaram diretamente na composição étnico-racial da população a par- tir da síntese biológica entre o elemento europeu e o indígena propiciado pela prática do cunhadismo, bem como nas concepções de ordem cultural, naturalmente herdadas tanto da sucessão e convivência natural entre pais e filhos frutos dos relacionamentos inter-raciais quanto do hibridismo católico-pagão advindo da interação entre o padre e o gentio.
Em outras palavras, o interesse econômico e o consequente aproveitamento da mão de obra indígena para tal fim levaram o projeto colonial português a dimensões imprevisí- veis do ponto de vista sócio-cultural: de um lado a catequese aculturadora, que remete os índios e descendentes a novos horizontes culturais e ao trabalho subserviente, e de outro, o cunhadismo que da mesma forma permite o labor servil do povo gentílico, encontrando dentro da cultura indígena as diferenças de gênero como campo fértil para sua expansão e solidificação, tendo em vista a função de matrizes genéticas exercida pelas mulheres na geração de machos necessários à vida econômica do explorador bem como a disponibi- lização daqueles ao seu redor.
A relevância do papel da mulher, inicialmente a indígena, vai além de ventre gerador de tamanho número de brasileiros e brasileiras, pois também está associada à construção dos pilares de sua cultura popular desenvolvida no extenso período de suas gestações por todo o território e atravessada pelas trocas culturais de firmamento mítico e religioso herdados e configurados nos produtos culturais presentes nas manifestações populares até os dias atuais.
Observa-se portanto, que o cunhadismo e a catequese funcionaram como relevantes ve- ículos de condução do habitante indígena para a gênese e caldo cultural de formação do povo brasileiro, de maneira involuntária e servil, constituindo expressiva fração do con- tingente da força de trabalho e assim subalternizada, posta à margem ou pouco provida de direitos fundamentais, como no início até os dias atuais.
A arte teatral erudizada introduzida pelo jesuíta e assimilada pelos índios nos aldeamen- tos e nas vilas, foi certamente também herdada pelas populações miscigenadas que os sucederam e, portanto, capazes de apreensão e reprodução de uma nova cultura com as naturais ressignificações, em algum momento presentes na origem de manifestações de cunho popular, principalmente daquelas associadas ao chamado catolicismo popular san- teiro, entendidas como parte do repertório cultural da empobrecida camada da população subalternizada e de ascendência direta da matriz gentílica.
E finalmente, com base nas pertinentes ponderações desenvolvidas neste artigo, deve- -se também reconhecer a relevância de se avançar nos estudos sobre a colonialidade partindo-se do modelo europeu de colonização mundo afora, em particular o português e o espanhol, diferenciados dos outros no que tange às questões de raça, etnia e gêne- ro, trazendo-se à discussão sob a ótica dos Estudos Culturais configuradas na gênese das emergentes nações latinas americanas que deram sustentação ao sistema econômico mundial desde a sua fase inicial até hoje, com o intuito de se esclarecer e se entender a ‘perpetuação’ da desigualdade social e cultural entre e intra povos e na perspectiva de redução e imposição de limites na reprodução da dominação cultural e econômica das nações ricas sobre as demais.
REFERÊNCIAS
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