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Indianismo na Literatura Brasileira: Origens e Desenvolvimento, Provas de Literatura

Este artigo especula sobre as manifestações pós-românticas do indianismo na literatura brasileira. Embora a historiografia literária creditasse fontes românticas europeias pela inspiração do desenvolvimento da corrente indianista no brasil, este texto sugere que as manifestações literárias proto-indianistas devem ser relacionadas primeiro à atmosfera cultural receptiva ao simbolismo indígena presente na vida brasileira desde meados do século xviii. O artigo discute a importância da obra de autores como borges de barros, gonçalves de magalhães e joaquim norberto na história da literatura brasileira e o impacto de obras francesas dedicadas à questão do índio brasileiro na literatura romântica brasileira.

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Picapal_amarelo 🇧🇷

4.6

(169)

224 documentos

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Curitiba,!Vol.!7,!nº!13,!jul.-dez.!2019!!!!!!!!!!!ISSN:!2318-1028!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!REVISTA (VERSALETE!
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SOUZA,!R.!A.!de..!O!indianismo!e!a...!
287!
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O!INDIANISMO!E!A!BUSCA!DA!IDENTIDADE!BRASILEIRA:!
INFLUXOS!EUROPEUS!E!RAÍZES!NACIONAIS*!
THE$INDIANISM$AND$THE$SEARCH$FOR$THE$BRAZILIAN$IDENTITY:$
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Roberto!Acízelo!de!Souza
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RESUMO:! O! ensaio! procura! demonstrar! que,! para! a!constituição! da! corrente! indianista! do! nosso!
romantismo,! contribuíram,! além! das! fontes! europeias!usualmente! admitidas,! também! elementos!
presentes!na!cultura!e!na!formação!social!brasileiras.!Sugere,!ainda,!que!o!indianismo!romântico!no!
Brasil! se! desdobrou! em! duas!orientações:! uma! delas,! majoritária,! viu! na! chegada! dos! europeus! à!
América! um! encontro! providencial! entre! povos;! a! outra,! no! entanto,! interpreta! o! mesmo! evento!
histórico! como! um! choque! trágico! de! civilizações.! Por! fim,! o! artigo! especula! sobre! possíveis!
desdobramentos!pós-românticos!do!indianismo!na!literatura!brasileira.!
Palavras-chave:!indianismo;!indianismo!romântico!no!Brasil;!desdobramentos.!
ABSTRACT:! The! essay! aims! at! demo nstrating!that,! in! addition! to! the! usually! admitted! European!
sources,! also! elements! present! in! Brazilian! culture! and! social! formation! contributed! to! the!
constitution!of!the!Indianist!current!of!our!romanticism.!It!also!suggests!that!romantic!Indianism!in!
Brazil!has!unfolded!in! two!directions:!one!of!them,!the!majority,!saw! in! the!arrival! of! Europeans!in!
America! a! providential! encounter! between! peoples;! the! other,! however,! interprets! the! same!
historical! event! as! a! tragic! clash! of! civilizations.! Finally,! the! article! speculates! on! possible! post-
Romantic!ramifications!of!Indianism!in!Brazilian!literature.!
Keywords:!Indianism;!romantic!Indianism;!ramifications.!
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*Parte! deste! ensaio,! que! aqui! se! apresenta! revisada! e! retocada,! foi! objeto! de! duas! publicações!
anteriores,! no! v.! 21,! n.! 2! do! periódico! O$ Eixo$ e$ a$ Roda$ (UFMG,! Belo! Horizonte,! 2012)! e! no! livro!
Variações$ sobre$ o$ mesmo$tema$ (Ed.! Argos,! Chapecó,! SC,! 201 5).! Na! íntegra,! com! adaptações! para!o!
público! estrangeiro,! foi! publicado! numa! versão! em! inglês:!COUTINHO,! Eduardo! F.! (Ed.).! Brazilian$
literature$as$world$literature.!New!York:!Bloomsbury,!2018.!p.!71-96.!
Agradeço!ao!colega!Fábio! Almeida!de!Carvalho!pela!substanciosa!resposta!à!minha!consulta!sobre!o!
conceito!de!literatura!indígena.!
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O INDIANISMO E A BUSCA DA IDENTIDADE BRASILEIRA:

INFLUXOS EUROPEUS E RAÍZES NACIONAIS

THE INDIANISM AND THE SEARCH FOR THE BRAZILIAN IDENTITY:

EUROPEAN INFLUXES AND THE NATIONAL ROOTS

Roberto Acízelo de Souza^1 RESUMO : O ensaio procura demonstrar que, para a constituição da corrente indianista do nosso romantismo, contribuíram, além das fontes europeias usualmente admitidas, também elementos presentes na cultura e na formação social brasileiras. Sugere, ainda, que o indianismo romântico no Brasil se desdobrou em duas orientações: uma delas, majoritária, viu na chegada dos europeus à América um encontro providencial entre povos; a outra, no entanto, interpreta o mesmo evento histórico como um choque trágico de civilizações. Por fim, o artigo especula sobre possíveis desdobramentos pós-românticos do indianismo na literatura brasileira. Palavras-chave: indianismo; indianismo romântico no Brasil; desdobramentos. ABSTRACT : The essay aims at demonstrating that, in addition to the usually admitted European sources, also elements present in Brazilian culture and social formation contributed to the constitution of the Indianist current of our romanticism. It also suggests that romantic Indianism in Brazil has unfolded in two directions: one of them, the majority, saw in the arrival of Europeans in America a providential encounter between peoples; the other, however, interprets the same historical event as a tragic clash of civilizations. Finally, the article speculates on possible post- Romantic ramifications of Indianism in Brazilian literature. Keywords: Indianism; romantic Indianism; ramifications. *Parte deste ensaio, que aqui se apresenta revisada e retocada, foi objeto de duas publicações anteriores, no v. 21, n. 2 do periódico O Eixo e a Roda (UFMG, Belo Horizonte, 2012) e no livro Variações sobre o mesmo tema (Ed. Argos, Chapecó, SC, 2015). Na íntegra, com adaptações para o público estrangeiro, foi publicado numa versão em inglês: COUTINHO, Eduardo F. (Ed.). Brazilian literature as world literature. New York: Bloomsbury, 2018. p. 71-96. Agradeço ao colega Fábio Almeida de Carvalho pela substanciosa resposta à minha consulta sobre o conceito de literatura indígena. (^1) UERJ.

Embora a historiografia literária usualmente credite a fontes românticas europeias os estímulos para o desenvolvimento da corrente dita indianista nos quadros do romantismo brasileiro, o fato é que a escolha do indígena como símbolo de diferenciação do Brasil em face da Europa apresenta antecedentes que parecem provir de impulsos internos ao próprio país. Vejamos. A prática de se adotarem nomes indígenas como alarde nativista já se observa no século XVIII. O frade franciscano autor do conhecido poema “Descrição da Ilha de Itaparica” (1769) assinava-se Manuel de Santa Maria Itaparica , acolhendo assim no seu próprio nome religioso a palavra indígena que designava o lugar de seu nascimento; o jesuíta Francisco de Faria, e certo doutor Manuel Tavares de Siqueira e Sá, por sua vez, adotaram respectivamente os pseudônimos de Cové Xenheenga e Anhé Pai Abaré , de inspiração indígena, sob os quais assumiram a direção do ato acadêmico conhecido como “Academia dos Seletos”, celebrado em 1752 em homenagem ao capitão-general Gomes Freire de Andrada. (cf. SILVA, 2002, p. 272). Por outro lado, já nas solenidades políticas do Brasil joanino, o índio aparece representando o país (CANDIDO, 1971, v. 2, p. 18), e, com a independência, amplia-se sua celebração nativista, num simbolismo que conheceu diversas manifestações: nos painéis e estátuas que ornamentavam casas nobres; nos nomes de jornais políticos do tempo — O Tamoio (1823), O Caramuru (1832), O Carijó (1832), O Indígena do Brasil (1833), O Tamoio Constitucional (1833); em pseudônimos da Maçonaria (D. Pedro I era Guatimozim, e José Bonifácio, Tibiriçá); na ala de caboclos que, a partir de 1826, dramatizava a vitória brasileira sobre os portugueses na célebre batalha do 2 de julho, nos desfiles comemorativos tradicionalmente promovidos na Bahia. (CALMON, 2002, p. 221-223).

Oh, que sonho, oh, que sonho eu tive nesta Feliz, ditosa, sossegada sesta! Eu vi o Pão d’Açúcar levantar-se, E no meio das ondas transformar-se Na figura do Índio mais gentil, Representando só todo o Brasil. (PEIXOTO, 19 51 , p. 44). Capistrano de Abreu chega mesmo a sustentar que o indianismo teria profundas raízes populares, tendo emergido de um fundo folclórico: O indianismo é um dos primeiros pródromos visíveis do movimento que enfim culminou na independência: o sentimento de superioridade a Portugal. Efetivamente era necessária grave mudança nas condições da sociedade, para que a inspiração se voltasse para as florestas e íncolas primitivos, que até então evitara, mudança tanto mais grave quanto o indianismo foi muito geral para surgir de causas puramente individuais. A verdadeira significação do indianismo é dada pelos contos populares. [...] Esses contos, tendo por herói eterno o caboclo e o marinheiro, são os documentos mais importantes para a nossa história. [...] Nos contos satíricos facilmente se reconhecem três camadas. Na primeira, o marinheiro aparece em luta contra a Natureza brasileira [...]; na segunda aparece o caboclo em luta contra a civilização [...]. Nestas duas correntes antagônicas pode-se ver [...] sintomas e resíduos de lutas e rivalidades. [...] Na terceira camada o herói é ainda o caboclo; mas o ridículo como que está esfumado, e através, sente-se não só a fraternidade como o desvanecimento. É a estes últimos contos que se prende o indianismo, cujo espírito levou [os dominados] a adotarem, vangloriando-se, o nome com que os tentaram estigmatizar. (ABREU, 1931, p. 93-95). Parece-nos assim aceitável, à vista dos indícios aqui apresentados, a hipótese de que a eleição do índio como símbolo heroico da nação precedeu — e parece mesmo ter preparado — a consagração literária dessa ideia por intermédio da corrente do romantismo brasileiro conhecida como indianismo. Caberia assim, por conseguinte, fato de ele ter nascido em Portugal (Gonzaga, seu contemporâneo, também era português, o que, como se sabe, nunca foi obstáculo para o pleno reconhecimento de sua cidadania literária brasileira), mas pela circunstância de ter servido à repressão colonialista, proferindo sentenças condenatórias contra colegas seus — pois também poetas e bacharéis em direito — que lutavam pelos interesses do Brasil: Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Silva Alvarenga.

relativizar a concepção segundo a qual o indígena teria ganhado espaço na literatura do país exclusivamente pela exortação de vozes estrangeiras, a mais explícita das quais provavelmente terá sido a do brasilianista avant la lettre Ferdinand Denis: O Novo Mundo não poderá passar sem tradições respeitáveis [...]. A sua idade das fábulas misteriosas e poéticas serão os séculos em que viveram os povos que exterminamos e que os surpreendem por sua coragem, e que retemperam talvez as nações saídas do Velho Mundo [...]. O maravilhoso, tão necessário à poesia, encontrar-se-á nos antigos costumes desses povos, como na força incompreensível de uma natureza constantemente mutável em seus fenômenos [...]. (DENIS, 1978, p. 36). A fórmula, então, seria simples, segundo a recomendação de Denis: caberia aos escritores brasileiros, no empenho de construir uma literatura genuinamente nacional, caprichar na chamada cor local , produzindo obras literárias em que avultassem os traços mais representativos da brasilidade, que seriam um par de elementos perfeitamente integrados: a natureza tropical e os primitivos habitantes da terra, ditos índios , pelo equívoco histórico que bem se conhece. No entanto, embora em moldura conceitual relativamente distinta, o consórcio desses elementos já encontramos na citada passagem de Alvarenga Peixoto, que figura a compertinência entre a natureza e o índio, a ponto de aquela — o Pão de Açúcar — transmutar-se neste, tomado, por seu turno, como o representante por excelência de “todo o Brasil”. O indianismo, assim, a nosso ver, não seria produto simplesmente do influxo de concepções do romantismo europeu — particularmente francês — no cenário sócio- cultural brasileiro do início do século XIX; se tais influxos certamente ocorreram, o fato é que encontraram no Brasil um ambiente que favoreceu a sua acolhida, preparado pela transformação do indígena, desde meados do século XVIII, em verdadeira alegoria do país.

No plano da pesquisa erudita, Borges de Barros esboça a primeira caracterização do português brasileiro, nas suas diferenças em relação ao de Portugal, inventariando palavras de origem indígena usadas somente na variante brasileira da língua portuguesa (1826),^4 enquanto Gonçalves de Magalhães e Joaquim Norberto, respectivamente no “Ensaio sobre a história da literatura brasileira” (1836) e nas “Considerações gerais sobre a literatura brasileira” (1844), salientam o papel decisivo que deveria representar o elemento ameríndio para a constituição no Brasil de uma cultura literária verdadeiramente nacional. No plano da poesia, registram-se as composições: Niterói, metamorfose do Rio de Janeiro (1822), de Januário da Cunha Barbosa; “Metamorfose original: Moema e Camarogi” e Paraguaçu (1833), de Ladislau dos Santos Titara; “Nênia...” (1837), de Firmino Rodrigues Silva; “O filho do prisioneiro” (1844), de Joaquim Norberto; “Cântico do Tupi”, “Imprecação do índio” e “Prisioneiro índio” (1844), de Cardoso de Meneses. Cabe ainda registrar a contribuição do grupo que Antonio Candido (1971, v. 1, p. 279 - 286) caracterizou como representante de um “pré-romantismo franco-brasileiro”, constituída por obras de autores franceses dedicadas ou relacionadas à questão do índio brasileiro e da natureza, que exerceram influência sobre os nossos primeiros românticos: Élegies brésiliennes (1823), de Édouard Corbière; “Les Machacalis”, novela inserida nas Scènes de la nature sous les tropiques et de leur influence sur la poésie (1824), de Ferdinand Denis; “Résumé de l’histoire littéraire du Brésil”, de Ferdinand Denis; Caramuru, ou La découverte de Bahia, roman-poème brésilien (1829), tradução do poema de Santa Rita Durão, por Eugène de Monglave; Jakaré-Ouassou, ou Les Tupinambas (1830), novela de (^4) Trata-se de um depoimento sumário feito por Domingos Borges de Barros, o barão — depois visconde — da Pedra Branca, por solicitação de Adrien Balbi, destinado a figurar no volume introdutório do seu Atlas etnographique du globe, ou Classification des peuples anciens et modernes d’après leur langues (1826). A passagem se estende da p. 172 à 175 da obra, achando-se assim individualizada no índice do volume: “Observation de M. le Baron de Pedra Branca, ambassadeur de l’empereur du Brésil après de la cour de la France, sur la langue portugaise et sur les différences offertes par le dialecte brésilien compare au dialecte du Portugal”.

Daniel Gavet e Philippe Boucher; Idylles brésiliennes (1830), de Théodore Taunay, escritos em latim, com tradução paralela para o francês por Felix Émile Taunay. 3 Somente, contudo, a partir de 1846, com a publicação dos Primeiros cantos , de Gonçalves Dias, é que o indianismo se consolida, mantendo-se vigoroso até em torno de 1865 (ano da publicação de Iracema ), quando começa a declinar, processo que se estende até por volta de 1875, ano em que aparece uma das últimas realizações dentro do seu espírito, o volume de poesia Americanas , de Machado de Assis. No âmbito da epopeia, seu único projeto verdadeiramente consumado, porque concluído, foi o poema A confederação dos Tamoios , de Gonçalves de Magalhães, publicado na íntegra em 1856. A obra, no entanto, tornou-se alvo de uma verdadeira demolição crítica, promovida pelo então jovem José de Alencar, entre cujos argumentos contrários à concepção figurava com destaque a ideia de que a epopeia, gênero clássico e europeu, seria inteiramente imprópria nos quadros de uma literatura que pretendesse constituir-se sob o signo da originalidade nacional.^5 Por acaso ou não, o fato é que as tentativas posteriores de poemas épicos indianistas malograram, todas aparentemente abandonadas por seus autores, tendo redundado tão somente na publicação dos fragmentos que chegaram a ser produzidos. É o caso de Os Timbiras , de Gonçalves Dias, de que se publicaram quatro cantos em 1857, e até, ironicamente, de uma produção do próprio Alencar — Os filhos de Tupã — , datada de (^5) A crítica foi publicada no próprio ano de lançamento do poema (1856), no jornal Diário do Rio de Janeiro , sob a forma de uma série de artigos simulando cartas dirigidas a um amigo, reunidas no mesmo ano num pequeno volume intitulado Cartas sobre “A confederação dos Tamoios”. As “cartas”, pela contundência crítica de que se revestiram, suscitaram respostas enérgicas por parte dos defensores do poeta, o que configurou ruidosa polêmica, em que interveio, escrevendo sob pseudônimo em defesa de Magalhães, até o imperador Pedro II, que aliás patrocinara a luxuosa primeira edição da obra.

figurada como verdadeira catástrofe. Assim, o poema “O canto do Piaga” consiste na narrativa, por um sacerdote indígena, de um pesadelo que tivera, em que lhe aparece certa Visão malfazeja a profetizar a invasão estrangeira de suas terras. Sua reação é de horror e espanto, e o cenário, longe do que a historiografia imperial descreveu com a suavidade da expressão “descoberta do Brasil”, antes se configura como um choque trágico de civilizações: Pelas ondas do mar sem limites Basta selva, sem folhas, i vem; Hartos troncos, robustos, gigantes; Vossas matas tais monstros contêm. Traz embira dos cimos pendente — Brenha espessa de vário cipó — Dessas brenhas contêm vossas matas, Tais e quais, mas com folhas; é só! Negro monstro os sustenta por baixo, Brancas asas abrindo ao tufão, Como um bando de cândidas garças, Que nos ares pairando — lá vão. Oh! quem foi das entranhas das águas, O marinho arcabouço arrancar? Nossas terras demanda, fareja... Esse monstro... — o que vem cá buscar? Não sabeis o que o monstro procura? Não sabeis a que vem, o que quer? Vem matar vossos bravos guerreiros, Vem roubar-vos a filha, a mulher! Vem trazer-vos crueza, impiedade — Dons cruéis do cruel Anhangá; Vem quebrar-vos a maça valente, Profanar Manitôs, Maracás. Vem trazer-vos algemas pesadas, Com que a tribo tupi vai gemer; Hão de os velhos servirem de escravos, Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!

Fugireis procurando um asilo, Triste asilo por ínvio sertão; Anhangá de prazer há de rir-se, Vendo os vossos quão poucos serão. Vossos deuses, ó Piaga, conjura, Susta as iras do fero Anhangá. Manitôs já fugiram da taba, Ó desgraça! ó ruína! ó Tupá! (DIAS, 1959, p. 107-108). A outra versão, ao contrário, interpretou a “descoberta” como um feliz encontro de civilizações, caracterizado por uma pronta aceitação pelos “selvagens” da superioridade dos brancos. Veja-se, nesse sentido, cena emblemática de O Guarani : o herói indígena acaba de salvar a vida de Cecília, a filha do aristocrata português D. Antônio: Por fim D. Antônio passando o braço esquerdo pela cintura de sua filha, caminhou para o selvagem e estendeu-lhe a mão com gesto nobre e afável; o índio curvou-se e beijou a mão do fidalgo. — De que nação és? perguntou-lhe o cavalheiro em guarani. — Goitacá, respondeu o selvagem erguendo a cabeça com altivez. — Como te chamas? — Peri, filho de Ararê, primeiro de sua tribo. — Eu sou um fidalgo português, um branco inimigo de tua raça, um conquistador de tua terra; mas tu salvaste minha filha; ofereço-te a minha amizade. — Peri aceita; tu já eras amigo. (ALENCAR, 1958, p. 136). Segue-se a narrativa do índio de como e por que decidiu consagrar sua vida à proteção da moça branca Cecília, e assim se inicia o segmento final do capítulo: O índio terminou aqui sua narração. Enquanto falava, um assomo de orgulho selvagem da força e da coragem lhe brilhava nos olhos negros, e dava certa nobreza ao seu gesto. Embora ignorante, filho das florestas, era um rei: tinha a realeza da força. Apenas concluiu, a altivez do guerreiro desapareceu; ficou tímido e modesto; já não era mais do que um bárbaro em face de criaturas civilizadas, cuja superioridade de educação o seu instinto reconhecia. (ALENCAR, 1958, p. 139).

Figura entre os mais jovens da nossa primeira geração romântica,^8 e professou com entusiasmo o nacionalismo político e literário característico de sua época. Basta dizer que adotou vez por outra em seus escritos o pseudônimo Fluviano (de fluvius , rio, alusivo pois à sua cidade natal, o Rio de Janeiro), e aderiu à moda dos nomes próprios de apelo indígena ou nativista, utilizando-os no batismo de seus quatro filhos homens: Artur Niteroíno , Oscar Guanabarino , Armando Fluviano e João Sapucaíno. Não poderia, pois, ter ficado alheio à sedução do indianismo literário, que praticou como crítico literário, historiador e poeta. Examinemos a seguir suas produções indianistas em cada um desses gêneros. 5. Em 1844, numa época em que a literatura brasileira estava ainda longe de ter a sua primeira história sistemática, Norberto já se inscreve entre os pioneiros desse esforço, publicando, num periódico romântico do Rio de Janeiro, a Minerva Brasiliense , o ensaio intitulado “Considerações gerais sobre a literatura brasileira”. Todo o longo primeiro parágrafo do texto, bordado com o exotismo sonoro das palavras de origem tupi ( muremurés , membis , tabas , pajés , Anhangá , Juruparis , Tupaberaba , Tupaçununga , etc.), é consagrado a uma caracterização dos índios — “um povo heroico que merece de ser cantado” (SILVA, 2002, p. 331) —, com base nos cronistas coloniais romanticamente reinterpretados. Em seguida, propõe-se uma periodização não muito clara, que estabelece três fases para a história e a literatura pátrias: a pré-cabralina, a colonial e a do presente pós-independência, caracterizado este como “pobre e mesquinho, [...], de transição”, porém promissor de um “futuro [...] rico e infinito como a ideia de Deus.” (SILVA, 2002, p. 337). Por outro lado, o ensaísta valoriza a cultura indígena como manancial a ser explorado pela emergente literatura brasileira: (^8) Nasceu em 1820, quando Gonçalves de Magalhães, por exemplo, é de 1811.

[Os índios] representavam no meio das florestas os primitivos tempos de inocência e singeleza [...]. Seus costumes, suas usanças, suas crenças forneceram o maravilhoso tão necessário à poesia [...]. (SILVA, 2002, p. 332). Não temos [castelos feudais, justas, torneios, lidas e combates de ricos homens], mas possuiremos a idade desses povos primitivos [os índios] com todas as suas tradições, costumes, usanças e crenças cheias de um maravilhoso verdadeiramente poético [...]. Possuímos igualmente a nossa idade média [...]. (SILVA, 2002, p. 334-335). Anos mais tarde, num momento em que o indianismo já se afirmara plenamente, tanto no registro que deplorava a tragédia da conquista (Gonçalves Dias) quanto no que a celebrava como aurora da civilização brasileira (Alencar), Norberto voltaria ao assunto, em textos que publicou no ano de 1859. Além de tocá-lo de passagem no primeiro capítulo do longo preâmbulo teórico de sua História da literatura brasileira^9 — “Introdução histórica sobre a literatura brasileira” —, dedicou-lhe, nesse mesmo preâmbulo, dois capítulos inteiros. O primeiro, na mesma linha do estudo de 1844, se intitula “Tendências dos selvagens brasileiros para a poesia”, tendo por ementa: “Tribos que mais se avantajaram na cultura da poesia. Poesias dos selvagens brasileiros”. Fora transcrições de longas passagens dos cronistas coloniais, que pretendiam resumir mitos e costumes indígenas, defende uma tese — digamos assim — “simplesinha”, segundo a qual, conforme o título do ensaio, os selvagens do Brasil, e em especial os Tamoios, teriam pronunciada “tendência” para a poesia: (^9) A obra, aliás, teria sido a primeira do gênero, não fosse a circunstância de o autor, por razões que não são bem conhecidas, ter abandonado o projeto. Chegou a publicar apenas os capítulos correspondentes grosso modo ao preâmbulo teórico, todos na Revista Popular , de 1859 a 1862. Somente no início do século XXI tais capítulos seriam recolhidos e publicados em volumes, nas edições mencionadas nas Referências, respectivamente de 2001 e 2002.

Desgraçadamente houve o maior descuido em recolher esses cantos e traduzi-los na nossa língua; perderam-se no meio das florestas, como um brado misterioso, e os poucos fragmentos que nos restam não satisfazem a nossa avidez, não dizem se eles pertenciam a um povo decrépito, como quer Martius, ou saídos recentemente das mãos de Deus, como pretende Montaigne. (SILVA, 2002, p. 169). Os jesuítas [...], que substituíram esses cantos de guerra, essas epopeias da tradição e essas poesias do amor pelos cânticos religiosos, ou se descuidaram de conservá-los ou, se os conservaram, existem esquecidos sob a poeira das bibliotecas dos mosteiros, se é que já se não têm desencaminhado. (SILVA, 2002, p. 193). Desse modo, essa por assim dizer protoliteratura brasileira constituída pelos cantos indígenas, de riqueza desproporcional aos documentos que poderiam atestá-la, sofreria do mesmo mal que acometeu a produção colonial, pujante e diversificada, porém na maior parte desaparecida, perdidos que teriam sido tantos originais destinados à impressão na Europa, por saques de piratas, incêndios, naufrágios, de modo que — eis a fantástica conclusão do autor — teríamos uma literatura cujo “catálogo das obras perdidas [é] mais extenso que o das existentes.” (SILVA, 2002, p. 42). O segundo capítulo de sua História da literatura brasileira dedicado à questão do índio se intitula “Catequese e instrução dos selvagens brasileiros pelos jesuítas”. Sua ementa sintetiza bem o conteúdo: “Cultivo da língua pelos jesuítas. Composições feitas pelos padres. Introdução do teatro como meio civilizador: comédias, dramas pastoris, tragicomédias e alegorias dramáticas.” (SILVA, 2002, p. 207). Descreve e exalta o trabalho missionário dos padres durante o período colonial, e insiste na ideia do extravio ou desaparecimento dos textos representativos de tamanha e tão meritória empresa:

Infelizmente esses sermões, esses compêndios, essas comédias, esses dramas pastoris, que reunidos em corpo constituiriam uma literatura apropriada a essas tribos semicivilizadas, mas ainda vivendo rodeadas da lembrança da sua existência bárbara, ou desapareceram com o sequestro dos bens da Companhia de Jesus na sua extinção, ou existem debaixo da poeira dos anos por esses arquivos que tão mal revolvidos têm sido; e apenas uma ou outra composição têm chegado aos nossos dias, para atestar os esforços desses missionários, sua dedicação e instrução. (SILVA, 2002, p. 228). Ainda em 1859, na mesma Revista Popular , mas não como parte de sua História da Literatura Brasileira e sim como artigo autônomo, Norberto publicou um quinto texto em que, no âmbito da crítica literária, se dedicava a tema indianista. Trata-se de um breve comentário a fragmentos de poesia indígena revelados pelos naturalistas alemães Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, como frutos de suas pesquisas em viagem pelo Brasil. Os poemas coletados constituem um corpus reduzidíssimo: não mais do que dois, cada qual com duas quadras. Norberto reproduz os textos em língua indígena e a tradução em alemão, acrescentando versões em português, supostamente dele próprio, ao que parece a partir dos originais, uma vez que não consta que conhecesse o alemão. Seu comentário é mínimo, e elogioso, considerando “interessantes” e “originais” os poemas. Naturalmente — o que o autor terá talvez lamentado intimamente —, o corpus é exíguo demais para fornecer-lhe alternativa à teoria do desaparecimento das fontes que permitissem acesso pleno à poesia dos selvagens. 5. No campo da história, Norberto dedicou uma extensa monografia à questão dos indígenas e sua inserção na vida nacional. Trata-se da “Memória histórica e documentada das aldeias de índios da província do Rio de Janeiro”, publicada no ano

109). Para o alcance de tal meta, o autor expõe o procedimento que adotará, tendo em vista o diagnóstico que faz das fontes de que se serviu na pesquisa: A incerteza que reina nas crônicas antigas, as dúvidas suscitadas pelos modernos viajantes, as ambiguidades existentes nos documentos que li, examinei ou revolvi, dão lugar a muita confusão. Para conhecer todas essas tribos errantes, que mudavam de habitação, ou por sua própria vontade, ou expelidas à força pelos seus inimigos, ou compelidas pelas devastações dos europeus, é necessário caminhar com os conquistadores, seguindo essas bandeiras , que penetravam pelos sertões para os fatais descobertos ou descimentos , marchando par a par com a civilização que os foi aldear. Neste caso a geografia e a cronologia, como olhos da história, mostrarão melhor os sítios que dominavam, quando tratar da narração peculiar do estabelecimento de cada aldeia, objeto fundamental desta memória. (SILVA, 1854, p. 128-129). Não se pode dizer, contudo, que seu esforço de reduzir a “confusão” que encontrou nos registros sobre o tema tenha sido bem-sucedido. Muito pelo contrário, as generalidades de que se ocupa no primeiro capítulo não passam de uma sequência de informações apresentadas sem ordem, em que o autor nada consegue esclarecer, por exemplo, sobre as relações étnicas e históricas entre os vários grupos indígenas mencionados. Para se ter uma ideia das imprecisões em que incorre, veja-se, como ilustração, a passagem em que tenta caracterizar esses grupos, que se estende da página 122 à 127 do texto. Começa falando dos Tamoios, que diz descenderem dos Tupis; a seguir, menciona os Goianases, Goitacases ou Guarulhos, que por seu turno seriam aliados dos Tupinambás, os quais teriam chegado ao Rio de Janeiro antes dos Tupiniquins; prossegue referindo os Tuminós ou Tupiminós, e depois introduz os Coropós, os Coroados e os Puris, apresentados como prováveis descendentes dos Goitacases; cita em seguida certos Tapanases, inimigos dos Goitacases, e acrescenta que estes últimos se dividiam em três “cabildas”: Goitacamopi, Goitacaguaçu e Goitacajacoritó; não esquece dos Sacurus, e então, quando o leitor mais paciente e tolerante já se teria perdido, arremata com menção aos Aimborés ou Aimorés, ditos também Boticudos ou Gamelas.

Num assomo de autocrítica, no entanto, reconhece que as suas “Considerações gerais” mais não fizeram senão reduplicar a confusão que criticara: É tempo já de concluir esta tão longa quão mal esboçada introdução: pertence à história o seu desenvolvimento, e só nela se poderá expor com ordem e método o que tão confuso e sem nexo aqui aparece. É tempo pois de entrar na história das aldeias de índios da província do Rio de Janeiro [...]. (SILVA, 1854, p. 158). Observe-se que, nesta passagem, o autor reitera a convicção de que a “Memória”, se tiver algum valor, será muito mais pelas exposições factuais dos capítulos dedicados à história de cada aldeia^13 do que por sua força reflexiva e capacidade de propor conceitos propriamente críticos. Com efeito, para dizer pouco, são muito singelas as “ideias” que se podem extrair da obra. Façamos um esforço para identificá- las e descrevê-las. Em primeiro lugar, encontramos uma espécie de comedida defesa sentimental dos aborígenes, contra seus detratores: “[...] por mais ferozes que os pintem os historiadores, não eram, nem são, destituídos da mais bela inteligência (SILVA, 1854, p. 128)”; “Com exageradas cores pintam-nos alguns cronistas como ingratos, refalsados e pérfidos [...]. (SILVA, 1854, p. 133).” Ao contrário — argumenta —, os índios — “joviais por demais, [...] notáveis pela firmeza de seu caráter, pela franqueza de sua alma” (SILVA, 1854, p. 128) — teriam “tão favoráveis disposições [que] não era por certo difícil chamá-los ao grêmio do cristianismo, tornando-os de rudes e selvagens homens civilizados e laboriosos.” (SILVA, 1854, p. 133). E, então, para explicar por que isso não se passou com a naturalidade de se esperar, apela para categorias por assim dizer psicológicas e morais: a ação dos colonizadores teria sido comprometida pela “cobiça” ou “avidez” e pela “imprudência”, que não lhes permitiu conviver com o senso de “liberdade” essencial no indígena, e desse modo o drama da conquista se reduz a uma espécie de mal-entendido: “Assim a cobiça dos (^13) E — acrescentamos nós — por sua “Parte documentada”.