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O Homem que era Quinta-Feira [G K Chesterton], Notas de estudo de Direito

O Homem que era Quinta-Feira [G K Chesterton] ... do campo e da rua dançarem um bailado eterno. Muito mais tarde, já Sy- me era de certa idade, ...

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Picapal_amarelo 🇧🇷

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O Homem que era Quinta-Feira [G K Chesterton]
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O Homem que era Quinta-Feira [G K Chesterton]

O HOMEM QUE ERA QUINTA-FEIRA

Texto integral

EDITORES ASSOCIADOS

TITULO ORIGINAL

The Man Who Was Thursday

TRADUÇÃO DE DOMINGOS AROUCA

CAPA DE

VIVALDO GRAÇA

ESTA EDIÇÃO UNIBOLSO FOI REALIZADA POR ACORDO

COM A PORTUCÁLIA EDITORA, LDA.

vermelho-escuro apartado ao meio, como uma mulher, caindo em vaporosos caracóis, de virgem pré-rafaelita. Porém, desta angélica moldura pro- jectava-se inesperadamente um rosto largo e brutal, de queixo espetado e com ar de desprezo gaiato. Este conjunto excitava e amarfanhava os nervos daquela população de neuróticos. Parecia uma blasfémia viva, um cruzamento de anjo com chimpanzé.

Aquela noite, se não for lá relembrada por mais nada, sê-lo-á pelo es- tranho pôr do Sol. Parecia o fim do Mundo. Todo o céu estava coberto de uma plumagem quase palpável e dir-se-ia que essas penas nos roçavam a cara. Na maior parte eram cinzentas, com os mais estranhos tons de violeta e de malva, de cor-de-rosa e de verde-pálido; mas para ociden- te o conjunto tornava-se indescritível, transparente e vivo, e as úl- timas penas incandescentes escondiam o Sol como coisa preciosa. Tudo aquilo estava perto demais da terra para significar outra coisa que não fosse um segredo violento; o próprio firmamento parecia ser um se- gredo, e exprimia aquela esplêndida pequenez que é a essência do bair- rismo. Até o céu parecia pequeno.

Algumas pessoas lembrar-se-ão, quanto mais não seja por causa do céu opressivo, outras porém recordá-la-ão por ter coincidido com o apare- cimento do segundo poeta de Saffron Park.

O revolucionário da cabeleira vermelha reinara sem rival por muito tempo, mas a sua hegemonia terminou subitamente naquela noite. O novo poeta, que se apresentou com o nome de Gabriel Syme, era um mortal, com ar muito tímido, de barba loira pontiaguda e cabelo amarelo-claro. Mas depressa se generalizou a impressão de que não era tão tímido como parecia. Evidenciou-se logo de entrada por discordar de Gregory, o po- eta estabelecido, acerca de toda a natureza da poesia. Dizia que ele, Syme, era um poeta cumpridor da lei, um poeta de ordem, mais ainda, um poeta da respeitabilidade. Por isso todo o Saffron Park o olhou como se tivesse caído nesse instante daquele céu incrível.

E de facto o poeta anarquista Lucian Gregory relacionou os dois suces- sos.

  • Pode muito bem ser - disse no seu tom lírico

pode muito bem ser que, numa tal noite de nuvens e cores diabólicas, venha à terra semelhante portento, um poeta respeitável. Você diz ser um poeta obediente à lei, eu digo que é uma contradição viva. Só me espanta que não tenha havido cometas e tremores de terra na noite em que você apareceu neste jardim.

O homem dos tímidos olhos azuis e da barba loira, pontiaguda, suportou esta trovoada com certa submissão solene. Rosamond, irmã de Gregory e terceiro elemento do grupo, de tranças, ruivas como o irmão, mas de face mais doce, riu-se com aquele misto de admiração e desacordo que tinha habitualmente para com o oráculo da família.

Gregory resumiu gritando com eloquente bom-humor:

  • Um artista é um anarquista.As duas palavras equivalem-se. Um anar- quista é um artista. O homem que atira uma bomba é artista, porque prefere a tudo um momento culminante. Sente que o brilhar de uma chama e um belo estrondo valem muito mais que os corpos desfigurados de me- ros polícias. Um artista desrespeita todos os governos, suprime todas as convenções. Um poeta só na desordem se sente bem. Se não fosse as- sim, o metropolitano seria a coisa mais poética do Mundo.
  • E é - retorquiu Syme.
  • Tolices! - exclamou Gregory, que era muito racional quando outro qualquer tentava paradoxos. - Por que razão todos os passageiros dos comboios têm um ar triste e cansado, tão triste e tão cansado? Vou di- zer-lhe: é porque sabem que o comboio vai direito ao seu destino, é porque sabem que chegarão à estação para que tomaram bilhete. E porque sabem que a estação a seguir a Sloane Square será Vitória e nenhuma outra senão Vitória. Oli, que alegria louca! Oh, como brilhariam os seus olhos e como as suas almas voltariam ao Paraíso se a próxima es- tação fosse, inexplicavel mente, Baker Street!
  • Quem não é poeta é você - replicou Syme. - Se o que diz dos passa- geiros for verdade é porque são tão prosaicos como a sua poesia. Atin- gir o alvo, eis a coisa rara e estranha; 10

falhá-lo é reles e vulgar. Achamos épico que um homem atinja com uma seta um pássaro distante. Não será também épico atingir uma estação distante com uma máquina? O caos é enfadonho porque nele o comboio po- dia, de facto, ir parar a qualquer parte, a Baker Street ou a Bagdad. Mas o homem é um mágico, e a sua magia está nisto: diz Vitória, e eis que é Vitória! Fique-se com os seus livros de mera prosa e poesia, e deixe-me ler, chorando de or- gulho, um guia dos caminhos de ferro. Fique com o seu Byron, que come- mora as derrotas do homem, e dê-me Bradshaw, que comemora as suas vi- tórias. A mim Bradshaw, digo eu!

  • Tem de se ir embora? - perguntou Gregory, sarcasticamente.

-Digo-lhe - continuou Syme, com paixão - que cada vez que chega um comboio sinto como se ele tivesse passado através de baterias de siti- antes, e que o homem ganhou uma batalha contra o caos. Você diz desde- nhosamente que quando se deixa Sloane Square se tem de chegar a Vitó- ria. Digo-lhe que se poderiam fazer mil coisas diferentes, e ao chegar tenho a sensação de ter escapado por pouco. Quando oiço o revisor gri- tar " Vitória!", dou à palavra o seu sentido. Para mim é o grito de um arauto anunciando a conquista. Para mim é de facto "Vitória", a vitó- ria de Adão.

Gregory abanou lentamente a cabeça e sorriu.

  • Mesmo assim, nós, os poetas, perguntamos sempre: e que é a Vitória, afinal? Você pensa que Vitória é como a Nova Jerusalém. Nós sabemos que a Nova Jerusalém apenas será como Vi- tória. Sim, até nas ruas do céu o poeta estará descontente. O poeta está sempre revoltado.

Syme começou a irritar-se.

  • Lá estamos outra vez! Que há de poético em ser-se revoltado? É como se dissesse que estar enjoado é poético. Adoecer é uma revolta. Há o- casiões em que tanto estar doente como estar revoltado é lógico, mas diabos me levem se percebo por que é isso poético. A revolta, em abs- tracto, é revoltante. E apenas um vómito. 11

Ao ouvir esta palavra tão desagradável, a rapariga franziu a testa, mas Syme estava entusiasmado demais para lhe prestar atenção.

  • Poético é as coisas correrem direitas. Por exemplo, as nossas diges- tões decorrendo silenciosa e religiosamente certas, eis o fundamento de toda a poesia. Sim, a coisa mais poética, mais poética do que as flores, mais poética do que as estrelas, a coisa mais poética deste mundo, é não estar doente.

perficiais, no fundo um humilde. E é sempre o humilde que fala de mais, o orgulhoso está constantemente a observar-se. Defendeu a respeitabi- lidade com violênciale exagero, apaixonou-se no elogio do arranjo e do asseio. A sua volta havia sempre um cheiro a violetas.

Ouviu vagamente, por momentos, um harmónio a tocar, em qualquer rua distante, e pareceu-lhe que as suas palavras seguiam, audazes, uma mú- sica vinda dos fins do Mundo.

Esteve a falar e a olhar para a rapariga; julgou, apenas por alguns minutos, que ela o escutava com cara divertida; depois levantou-se, achando que num lugar daqueles os grupos de- 13

viam misturar-se, mas notou com surpresa que o jardim estava deserto. Todos tinham partido há muito, e ele fez o mesmo, dando uma desculpa apressada. Foi-se com a sensação de que bebera champanhe e lhe subira à cabeça, o que mais tarde não conseguiu explicar.

A rapariga não tomou parte alguma nos estranhos acontecimentos que se seguiram, não tornou mesmo a vê-la antes do fim desta história. E no entanto, inexpli cavel mente, ela continuou a aparecer-lhe, como um motivo musical, através de todas as loucas aventuras que se seguiram e a auréola do seu estranho cabelo perpassava como um traço vermelho nessas escuras e imprecisas cenas nocturnas. Porque o que se seguiu era tão incrível que podia muito bem ter sido um sonho.

Quando Syme chegou à rua, iluminada pelas estrelas, encontrou-a momen- taneamente deserta, mas sentiu (sem saber bem porquê) que aquele si- lêncio tinha vida. Mesmo em frente da porta estava um candeeiro, cuja luz punha reflexos na folhagem que ali se debruça sobre a paliçada. Meio metro atrás do candeeiro estava um vulto, quase tão rígido e imó- vel como ele. Tinha chapéu alto e casaco preto; a cara, escondida na sombra, não se distinguia. Apenas uma franja de cabelo, cor de brasa, e também qualquer coisa de agressivo na atitude, denunciavam o poeta Gregory. Parecia um espadachim, de arma em punho, à espera do adversá- rio. Cumprimentou um pouco secamente, e Syme correspondeu com mais cortesia.

  • Estava à sua espera - disse Gregory. - Pode dar-me duas palavras?
  • Decerto. Sobre o quê? - perguntou Syme, um tanto admirado.

Gregory apontou com a bengala para o candeeiro, depois para a árvore.

  • Sobre isto e sobre aquilo. Acerca da ordem e acerca da anarquia. Ali está a sua preciosa ordem, aquele candeeiro de ferro, feio e estéril, e aqui está a anarquia, rica, viva, fértil; eis a anarquia, magnífica, em ouro e verde. 14

-- No entanto - retorquiu Syme pacientemente - você, neste momento, vê a,árvore porque o candeeiro a ilumina. Admirar-me-ia muito se conse- guisse ver o candeeiro à luz da árvore. - E depois de fazer uma pausa:

  • Mas não me diga que esteve aqui à espera, no escuro, só para recome- çar a nossa discussão. -
  • Não! gritou Gregory numa voz que se ouviu em toda a rua. Não estou aqui para recomeçar a discussão, mas sim para a acabar de uma vez para sempre.

Fez-se de novo silêncio, e Syme, que continuava a não perceber nada do que se passava, esperou, instintivamente, por qualquer coisa de sério.

Gregory começou, em voz pausada e com um sorriso desconcertante:

  • Sr. Syme - disse -, o senhor fez esta noite uma coisa muito extraor- dinária. Fez o que nenhum outro homem tinha, até hoje, conseguido.
  • Deveras?
  • Quer dizer, já houve alguém que o conseguiu (se bem me lembro), o capitão de um navio em Southend. O senhor irritou-me.
  • Lamento muito - retorquiu Syme gravemente.
  • Receio que a minha ira e o seu insulto sejam demasiado graves para se poderem apagar com desculpas. Nem com um duelo, nem mesmo que eu o matasse. Mas há uma forma de apagar o insulto, e é essa que escolho. Vou provar, possivelmente com o sacrificio da minha vida e da minha honra, que se enganou no que disse.
  • Mas que disse eu?
  • Que o meu anarquismo não é sério.
  • Há graus de seriedade - replicou Syme. - Nunca duvidei de que fosse absolutamente sincero no sentido de ter pensado que valia a pena dizer o que disse, de ter pensado que um paradoxo pudesse despertar os ho- mens para uma verdade abandonada.

Gregory fitou-o dolorosamente. 15

  • E é apenas nesse sentido que me julga sério? Pensa que sou umflâ- neur, que por vezes diz uma verdade. Não me julga sério num sentido mais profundo, mais violento?

Syme bateu de rijo com a bengala nas pedras da rua.

  • Sério! - gritou. - Meu Deus! Será séria esta rua? Serão sérias estas malditas lanternas chinesas? Será séria toda esta bambochata? Chega-se aqui, diz-se uma porção de baboseiras e também coisas acertadas, à mistura, mas eu teria em muito pouca conta quem não tivesse na vida nada mais sério do que todo este paleio, alguma coisa mais séria, seja religião ou apenas bebedeira.
  • Muito bem - disse Gregory, num tom misterioso vai ver coisa mais sé- ria do que religião ou bebedeira.

Syme ficou à espera, com o seu ar habitual de complacência, que Gre- gory recomeçasse.

  • Falou mesmo agora em religião. Na verdade tem alguma?
  • Oh! - exclamou Syme, sorrindo abertamente. Nós agora somos todos católicos.
  • Então posso pedir-lhe que jure, por quaisquer deuses ou santos da sua religião, que não revelará a ninguém, e especialmente à Polícia, o que lhe vou dizer. Jurará? Se fizer essa terrível abnegação, se con- sentir em mortificar a alma com um voto que nunca deveria ter feito e com o conhecimento daquilo em que nem deveria ter sonhado, prometo-lhe em troca...
  • Que me promete em troca?

algum dia vieram ao mundo.

  • Nós, quem? - perguntou Syme, esvaziando a taça de champanhe.
  • É muito simples, nós, os anarquistas sinceros, em quem você não a- credita.
  • Oh! Tratam-se bem no que respeita a bebidas.
  • De facto, somos sérios em tudo - disse Gregory e, depois de uma pau- sa, acrescentou: - Se daqui a pouco a mesa começar a andar à roda, não atribua isso ao gasto que fez de champanhe, não quero que se julgue mal.
  • Pois bem, se não estou bêbado, estou doido - retorquiu Syme, perfei- tamente à vontade -, mas espero que, em qualquer dos casos, me saiba portar como um gentleman. Posso fumar?
  • Pois não? - disse Gregory, puxando da charuteira. Experimente um dos meus. Syme tirou um, cortou-lhe a ponta com um corta-charutos que tra- zia na algibeira do colete, pô-lo na boca, acendeu-o e soprou uma grande fumaça. Abona muito em seu favor o ter efectuado todas estas operações com a máxima compostura, pois, momentos antes de as começar, a mesa a que estava sentado começara a girar, primeiro devagar, depois rapidamente, como numa cena mágica. 19
  • Não se preocupe - disse Gregory -, é uma espécie de parafuso.
  • Deveras, uma espécie de parafuso?! - comentou Syme calmamente. - Que simplicidade!

O fumo do charuto, que pairava no quarto em espirais caprichosas, su- biu rapidamente, como o da chaminé de uma fábrica, e ambos, com cadei- ras e mesa, mergulharam através do sobrado, como se o chão os tivesse engolido. Desceram aos solavancos uma espécie de chaminé, com a rapi- dez de um elevador desarvorado, e chegaram ao fundo com um baque brus- co. Mas quando Gregory abriu uma porta e deixou entrar uma luz verme- lha, subterrânea, Syme continuava a fumar, de perna traçada, e sem que um cabelo lhe tivesse bulido.

Gregory conduziu-o através de um corredor baixo, ao fundo do qual es- tava a luz vermelha. Era uma enorme lanterna encarnada, quase tão grande como um fogão, suspensa sobre uma pequena e pesada porta de ferro, como uma espécie de escotilha, a que Gregory bateu cinco vezes. Uma voz pesada, com sotaque estrangeiro, perguntou quem era, ao que ele deu a surpreendente resposta: "Mr. Joseph Chamberlain." Os pesados gonzos começaram a mover-se; era, sem dúvida, uma senha.

Para além da porta, o corredor brilhava como se estivesse forrado de aço. Vendo melhor, Syme reparou que o brilho provinha de filas e filas de espingardas e revólveres, arrumados ou ensarilhados, muito juntos.

  • Peço-lhe que me perdoe todas estas formalidades disse Gregory. - A- qui temos de ser muito severos.
  • Por favor, não peça desculpa, conheço o seu amor à lei e à ordem - observou Syme; e penetrou no corredor forrado de armas de aço. Ao a- travessar aquela brilhante rua de morte, com o seu cabelo louro e com- prido e o fraque ajanotado, a sua figura tinha um ar bastante amanei- rado e frágil.

Percorreram vários corredores semelhantes e chegaram por fim a uma e s- tranha câmara de aço, com paredes curvas, quase esférica, mas que pa- recia, com as suas filas de bancos, 20

um anfiteatro científico. Neste quarto não havia espingardas nem pis- tolas, mas pendiam das paredes objectos ainda mais terríveis e duvido- sos, que pareciam bolbos de plantas de ferro ou grandes ovos metáli- cos. Eram bombas, e o próprio quarto parecia o interior de uma bomba. Syme apagou o charuto de encontro à parede e entrou.

  • E agora, meu caro Syme - pronunciou Gregory, atirando-se expansiva- mente para um banco sob a maior das bombas -, agora que estamos con- fortavelmente instalados, vamos falar a sério. Não há palavras humanas que lhe possam dar uma ideia da razão por que o trouxe aqui. Foi uma dessas emoções perfeitamente arbitrárias, como a de saltarmos de um penhasco ou apaixonarmo-nos. Basta dizer que você foi inconcebivelmen- te irritante e, faça-sé-lhe essa justiça, continua a sê-lo. Eu era ca- paz de quebrar vinte juras só pelo prazer de o rebaixar. A maneira que você tem de acender um charuto faria um padre trair o segredo da con- fissão. Pois bem, disse-me que estava convencido de que eu não era um anarquista a sério. Este lugar parece-lhe sério?
  • Parece-me que, com toda a sua alegoria, tem uma moralidade - concor- dou Syme. - Mas permite-me que lhe faça duas perguntas? Não deve rece- ar dar-me informações porque, se bem me lembro, você, muito ajuizada- mente, extorquiu-me a promessa de nada dizer à Polícia, e esteja certo de que a cumprirei. É, pois, mera curiosidade que me leva a fazer es- tas perguntas. Em primeiro lugar, para que é realmente tudo isto? Que- rem abolir o Governo?
  • Queremos abolir Deus! - pronunciou Gregory, abrindo uns olhos de fa- nático. - Não queremos apenas derrubar alguns despotismos e regulamen- tos policiais; essa espécie de anarquistas existe de facto, mas não passa de um ramo do não conformismo. Nós cavamos mais fundo e queremos fazê-los ir pelos ares mais alto. Negamos todas essas distinções con- vencionais entre vício e virtude, honra e traição, em que os simples rebeldes se baseavam. Os sentimentalistas tolos da Revolução Francesa falavam nos Direitos do Homem. 21

Nós odiamos o Direito do mesmo modo que o Erro. Acabámos com o Direito e o Erro.

  • E espero que também com o Direito e o Esquerdo. Fazem-me muita con- fusão.
  • Falou numa segunda pergunta - disse Gregory asperamente.
  • Com todo o prazer - recomeçou Syme. - Em todos os seus actos presen- tes e no ambiente que o circunda, nota-se uma tentativa científica de -dissimulação. Tive uma tia que morava por cima de uma loja, mas é a primeira vez que encontro gente que goste de viver por baixo de uma taberna. Têm uma pesada porta de ferro, que não podem transpor sem a humilhação de se intitularem Mr. Chamberlain, cercam-se de instrumen- tos de aço que tornam o sítio, permita-me o termo, mais imponente do que familiar. Pergunto porque, depois de todo este trabalho em se bar- ricarem nas entranhas da terra, você exibe o seu segredo, falando em anarquismo a toda a mulher tola de Saffron Park?

Gregory sorriu.

  • O Conselho Central Anarquista compõe-se de sete membros, que tomam os nomes dos dias da semana. Ele é Domingo, alguns admiradores chamam- lhe Domingo Sangrento. É curioso que você falasse nisso, porque nesta mesma noite em que aqui veio parar (permita-me a expressão), a nossa secção de Londres, que se reúne neste quarto, tem de eleger o seu de- legado para preencher uma vaga no Conselho. O homem que ultimamente ocupou, com zelo e aplauso geral, o lugar de Quinta-Feira, morreu su- bitamente e, em consequência disso, convocámos uma reunião para esta noite a fim de eleger o sucessor.

Levantou-se e começou a passear, sorrindo com ar embaraçado.

  • Oiça, Syme, não sei porque sinto que você é como se fosse a minha mãe, sinto que lhe posso fazer todas as confidências, visto que me prometeu não dizer nada a ninguém, e de facto vou-lhe confiar uma coi- sa que não seria capaz de dizer aos anarquistas que dentro de uns dez minutos entrarão aqui. É claro que haverá uma votação, mas não me im- porto de lhe dizer que praticamente o resultado já é conhecido. - Bai- xou os olhos por um momento, com modéstia, e prosseguiu:
  • É coisa quase assente que eu serei Quinta-Feira.
  • As minhas felicitações, meu caro amigo - disse Syme calorosamente. - Espera-o uma brilhante carreira.

Gregory sorriu, enleado, e continuou a passear e a falar rapidamente.

  • A dizer a verdade está tudo preparado para me eleger e a cerimônia deve ser o mais curta possível.

Syme aproximou-se da mesa e viu que sobre ela se encontravam uma ben- gala, que depois verificou ser das de estoque, um grande revólver Colt, um pacote de sandes e uma formidá- 24

vel garrafa de brandy. Junto à mesa, sobre uma cadeira, estava uma pe- sada capa.

Gregory continuou a falar com grande animação:

  • E apenas acabar este simulacro de eleição, depois pego nesta capa e na bengala, meto as outras coisas na algibeira, saio por uma porta que existe nesta caverna e que vai dar ao rio, onde já está uma lancha a vapor à minha espera, e depois ... oh, depois, a louca alegria de ser Quinta-Feira! - e dizendo isto apertava as mãos uma na outra.

Syme, que se sentara mais uma vez com a sua habitual languidez inso- lente, ergueu-se com uma hesitação que não lhe era vulgar.

  • Porque será que o acho um tipo bastante fixe? Porque será, Grègory, que gosto deveras de si? - Fez uma pequena pausa e acrescentou com um ar de curiosidade atrevida. Será por você ser um asno tão grande?

Calou-se de novo, pensativo, e depois exclamou:

  • Diabos levem tudo isto! É a situação mais engraçada em que me tenho encontrado, e vou proceder de acordo com ela. Gregory, antes de aqui entrar fiz-lhe uma promessa, que não quebrarei nem que me torturem. Será você capaz de, para minha segurança, me fazer um juramento seme- lhante?

Gregory ficou admirado.

  • Um juramento?
  • Sim - confirmou Syme, muito sério. - Um juramento. Eu jurei perante Deus não revelar o seu segredo à Polí cia; será você capaz de jurar,

pela Humanidade, ou lá pelas coisas em que acredita, não revelar o meu segredo aos ànarquistas?

  • O seu segredo? Você tem um segredo?
  • Tenho, sim. - E, após uma pausa: - Jura? Gregory encarou-o por mo- mentos, depois disse abruptamente:
  • Você por certo me enfeitiçou, o caso é que sinto uma grande curiosi- dade por si. Pois bem, juro não dizer aos anarquistas nada a seu res- peito, mas avie-se porque eles chegarão 25

dentro de mOmentos. Syme levantou-se e enfiou as mãos brancas e com- pridas nas profundas algibeiras das calças cinzentas. Quase ao mesmo tempo cinco pancadas na porta exterior anunciaram a chegada do priMei- ro conspirador. 1 - Pois bem - pronunciou Syme vagarosamente - a maneira mais rápida de lhe dizer a verdade parece-me que é declarar-lhe que o seu expedi- ente de se disfarçar de poeta errante não é só conhecido de si ou do seu Presidente. Há muito que usamos essa manha na Scotland Yard.

Gregory tentou erguer-se de um salto, mas por três vezes oscilou.

  • Que diz?- perguntou numa voz que não era.humana. Syme pronunciou com simplicidade:
  • Sim, é verdade. Sou um agente da Polícia. Mas parece-me que Oiço os seus amigos chegarem.

À porta murmuraram "Mr. Joseph Chamberlain". Repetiu-se duas, três, trinta vezes, e sentia-se a multidão de Josephs Chamberlain (a visão é solene) avançando pelo corredor. 26

CAPíTULO III

O HOMEM QUE ERA QUINTA-FEIRA

Antes que aparecesse à porta algum dos recém-chegados, já Gregory se refizera da surpresa, saltara para junto da mesa, rugindo como um le- ão, pegara no revólver Colt e apontara-o a Syme.

Este não pestanejou, mas ergueu a mão, pálido e cortês.

  • Não seja idiota - disse com a dignidade efeminada de um cura. - Não vê que não vale a pena, não vê que estamos ambos a bordo do mesmo bar- co, sim, e na verdade muito enjoados?

Gregory estava incapaz de falar e de disparar também.

  • Não vê que demos ambos xeque-mate um ao outro? exclamou Syme. - Eu não -posso dizer à Polícia que você é anarquista, você não pode dizer aos anarquistas que eu sou polícia. Eu apenas posso vigiá-lo, sabendo quem você é, você apenas me pode vigiar, sabendo quem eu sou. Resumin- do, é um duelo singular e intelectual, a minha inteligência contra a sua. Eu sou um agente privado do auxílio da Polícia; você, meu pobre amigo, um anarquista privado de lei e organização, tão necessárias à anarquia. Há apenas uma diferença, e essa em seu favor: você não está cercado por polícias curiosos. Eu não o posso denunciar, mas posso de- nunciar-me. Verá como o farei com elegância.

Gregory baixou vagarosamente a pistola, continuando a 27

Dirigiu-se para o grupo de anarquistas, que já se estava espalhando pelos bancos.

  • Acho que é tempo de começarmos, a lancha a vapor já está à espera no rio. Proponho que o camarada Buttons assuma a presidência.

Ergueram-se mãos, aprovando a proposta, e o homenzinho dos papéis to- mou a cadeira presidencial.

  • Camaradas - começou ele, em tom seco como um tiro de pistola -, a nossa reunião de hoje é importante, se bem que não necessite de ser demorada. Este núcleo tem tido sempre a honra de eleger Quinta-Feira para o Conselho Central Europeu, e já elegeu muitos e magníficos. To- dos lamentam a triste morte do heróico obreiro que até à semana passa- da ocupou o posto; os seus serviços à causa foram, como sabem, notá- veis. Organizou o grande atentado dinamitista de Brighton que, se as circunstâncias tivessem sido mais felizes, teria morto todos que esta- vam no cais. Como também sabem, a sua morte foi uma prova de abnegação tão grande como a sua vida, pois morreu devido à sua confiança numa mistura higiéni- 29

ca de giz e água que tomou em substituição do leite, pois considerava esta bebida bárbara, por ser uma crueldade para a vaca. Sempre o re- voltou tudo que fosse crueldade ou que com ela se parecesse. Mas não foi para proclamar as suas virtudes que nos reunimos, e sim para rea- lizar uma tarefa mais árdua. E difícil apreciar devidamente as suas qualidades, mas mais difícil ainda substituí-las. É a vós, camaradas, que esta noite incumbe escolher, de entre os presentes, aquele que se- rá Quinta-Feira. Se algum camarada sugerir um nome, pô-lo-ei à vota- ção, senão, apenas poderei dizer a mim mesmo que o querido dinamitista arrancado ao nosso convívio levou para abismos desconhecidos o último segredo da sua virtude e da sua inocência.

Houve um murmúrio de aprovação, quase imperceptível, como às vezes su- cede na Igreja. Em seguida, um velho robusto, de barba branca, compri- da e venerável, talvez o único verdadeiro operário presente, levantou- se e disse:

  • Proponho que seja eleito Quinta-Feira o camarada Gregory - e tornou a sentar-se.
  • Há alguém que não aprove? - perguntou o presidente.

Um homenzinho de casaco de veludo e barba pontiaguda sugeriu:

  • Antes de pôr à votação este assunto, peço ao camarada Gregory que faça uma declaração.

Gregory levantou-se, entre grande ruído de vozes. Tinha a cara tão pá- lida que, por contraste, a sua estranha cabeleira ruiva parecia quase escarlate, mas sorria e estava perfeitamente à vontade. Já se resolve- ra, e via diante de si, como uma estrada lisa, a política a seguir. O melhor jogo seria fazer um discurso brando e ambíguo, tal que desse ao detective a impressão que a comunidade anarquista era, no fim de contas, uma coisa muito modera- da. Acreditava no seu trabalho literário, na sua capacidade para suge- rir tons apropriados e escolher palavras perfeitas. Pensou que, com cuidado, conseguiria dar, apesar de todos que o rodeavam, uma ideia subtil e deli- 30

cadamente falsa da instituição. Syme já pensara que os anarquistas, apesar de toda a sua bravata, estavam a armar aos pássaros. Seria ele capaz de, na hora do perigo, fazer Syme pensar de novo o mesmo?

  • Camaradas - principiou Gregory, em voz baixa mas penetrante - não tenho necessidade de lhes dizer qual é- a minha política, pois é a vossa também. A nossa crença tem sido caluniada, tem sido desfigurada, tem sido completamente confundida e encoberta, mas nunca foi alterada. Esses que falam do anarquismo e dos seus perigos vão buscar as suas informações a toda a parte, excepto a nós, excepto à origem. Conhecem os anarquistas através de novelas baratas, conhecem os anarquistas a- través de jornais de comerciantes, conhecem os anarquistas através do AIly Sloper Ha11-Holiday e do Sporting Times. Nunca conheceram os a- narquistas através dos anarquistas. Não têm possibilidades de negar as calúnias monumentais que de uma ponta à outra da Europa se amontoaram sobre as nossas cabeças. Quem diz que somos pragas vivas nunca ouviu a nossa resposta. Sei que a não ouvirá esta noite, mesmo que eu grite até fender o tecto. Porque aos perseguidos só é permitido reunirem-se debaixo do solo, como os cristãos nas catacumbas. Mas, se eu pergun- tasse a alguém, que sempre nos tivesse compreendido mal, e que, por um acaso inacreditável, se encontrasse aqui esta noite: "Quando esses cristãos se reuniam nas catacumbas, qual era a sua reputação nas ruas que passavam por cima? Que histórias contavam uns aos outros os Roma- nos educados acerca das suas actividades?" Suponha (é o que lhe diria) suponha que estamos apenas repetindo esse ainda misterioso paradoxo da história; suponha que parecemos tão inocentes como eles, suponha que parecemos tão loucos como os cristãos porque de facto somos tão bran- dos como eles.

As aprovações que tinham saudado as primeiras frases foram diminuindo de intensidade e as últimas palavras fizeram-nas acabar de todo. O si- lêncio súbito foi quebrado, em voz de falsete, pelo homem do casaco de veludo.

  • Eu não sou brando! Gregory recomeçou:
  • O camarada Witherspoon diz que não é brando. Como se conhece mal! A sua fala é de facto extravagante, o aspecto feroz e até, para gostos vulgares, pouco atraente. Só um olhar amigo, tão sensível e penetrante como o meu, pode ver que no fundo dele existe uma sólida brandura. Tão fundo que ele não consegue ver. Mas nós somos, repito, como os cris- tãos primitivos, a diferença é que chegámos tarde de mais. Somos sim- ples como eles, vejam o camarada Witherspoon; somos modestos como e- les, olhem para mim; somos misericordiosos.
  • Nunca, nunca! - gritou Witherspoon, o do casaco de veludo.
  • Digo que somos misericordiosos - repetiu Gregory furioso - como o eram os cristãos primitivos, e no entanto isto não evitava que fossem acusados de comer carne humana. Nós não comemos carne humana.
  • É uma vergonha! - gritou Witherspoon. - Porque não?
  • O camarada Witherspoon deseja saber - continuou Gregory, com ironia febril - qual a razão porque ningué m o come (risos). Pelo menos na nossa sociedade, que o estima sinceramente, que é baseada no amor ...
  • Nunca, nunca, abaixo o amor!
  • Que é baseada no amor - insistiu Gregory, rangendo oS dentes. - Não

dos os Governos da Europa, porque o anarquista que se entrega ao seu ideal esquece tanto a modéstia como o orgulho (aplausos). Não sou um homem, sou uma causa (aplausos repetidos). Sou contra o camarada Gre- gory tão impessoal e calmamente como se fosse àquele armário, ali na parede, escolher um 'a pistola em vez de outra, e prefiro propor-me a ser eleito, do que ter o camarada Gregory e os seus métodos açucarados no Supremo Conselho.

A última frase foi abafada por uma revoada ensurdecedora de palmas. As caras que, à medida que a tirada se ia tornando cada vez mais intran- sigente, se tornavam mais e mais ferozes, estavam agora distendidas em sorrisos de expectativa ou fendidas por gritos de satisfação. Quando anunciou que estava pronto a propor-se para o posto de Quinta-Feira, levantou-se um rugido de excitação e assentimento, que se tornou indo- mável, e ao mesmo tempo Gregory ergueu-se de salto, espumando da boca, e gritando contra a gritaria.

  • Parem, seus loucos malditos! - berrou numa voz que lhe rasgava a garganta. - Parem, seus ...

Mas, mais alto que os gritos de Gregory, mais alto do que o berreiro que ia no quarto, ouviu-se a voz de Syme, falando ainda em tom de tro- vão sem piedade:

  • Não vou para o Conselho rebater a calúnia que nos 34

chama assassinos, vou merecê-la (grandes e prolongados aplausos). Ao padre que diz que estes homens são inimigos da lei, ao gordo parlamen- tar que diz que são inimigos da ordem e da moral públicas, responde- rei: sois falsos reis mas profetas verdadeiros, vim para vos destruir e para cumprir as vossas profecias.

O rumor tinha-se atenuado a pouco e pouco, mas ainda não acabara e já Witherspoon se erguera, com a barba e a cabeleira desgrenhadas, e dis- sera:

  • Proponho, em aditamento, que o camarada Syme seja eleito.
  • Acabem com isto, já lhes disse - gritou Gregory frenético. - Acabem, é tudo ...

A voz do presidente, em tom frio, cortou-lhe o discurso:

  • Alguém aprova o aditamento? Viu-se levantar, lentamente, no último banco, um homem alto, cansado, com olhos melancólicos e pêra à ameri- cana. Já há algum tempo que Gregory estava a berrar, agora houve uma mudança no tom da sua voz mais chocante que qualquer grito.
  • Vou acabar com isto! - gritou em voz pesada como pedra. - Este homem não pode ser eleito, é um ...
  • Então- disse Syme, sem pestanejar-, é o quê? Gregory engoliu em seco duas vezes, o sangue refluiu lentamente à sua face cadavérica, e dis- se:

É uma pessoa sem nenhuma experiencia do nosso trabalho - e sentou-se pesadamente.

Antes que acabasse de o fazerjá o homem comprido e esgalgado, o da barba à americana, se levantara de novo e repetia com agudo sotaque yankee:

  • Aprovo a eleição do camarada Syme.
  • O aditamento será, conforme o costume, posto primeiro à votação. Propõe-se o camarada Syme.

Gregory levantou-se de novo, espumando:

  • Camaradas - gritou -, eu não sou um louco. - Oh! Oh! - fez Witherspoon. 35
  • Não sou um louco - insistiu Gregory, com uma sinceridade tão tremen- da que por momentos fez vacilar a assistência - mas vou-lhes dar um conselho, que chamarão louco, se quiserem. Não, não é um conselho, porque vos não posso dar qualquer justificação para ele, é uma ordem. Chamem-lhe uma ordem louca, mas cumpram-na. Batam-me, mas oiçam! Ma- tem-me, mas obedeçam! Não elejam esse homem.. A verdade, mesmo acor- rentada, é tão terrível que, por um momento, a ténue e disparatada vi- tória de Syme oscilou como um vime.

Mas não se via isso nos seus olhos azuis. Apenas disse:

  • O camarada Gregory ordena ... O encanto quebrou-se e um dos anarquistas gritou para Gregory:
  • Quem julga que é? Você não é Domingo. E outro acrescentou em voz mais pesada:
  • Você nem sequer é Quinta-Feira.
  • Camaradas - gritou Gregory, com uma voz de mártir que, no êxtase da dor, tivesse passado além dela -, tanto me faz que me detestem como tirano ou como escravo. Se não obedecerem à minha ordem aceitem a mi- nha degradação. Ajoelho aos vossos pés e imploro-vos: não elejam esse homem.
  • Camarada Gregory - disse o presidente depois de uma pausa dolorosa -, isso não é digno.

Pela primeira vez no decorrer destes acontecimentos houve alguns se- gundos de silêncio autêntico. Gregory deixou-se cair na cadeira, pros- trado, e o presidente repetiu, como um relógio a que se tivesse de no- vo dado corda:

  • Propõe-se que o camarada Syme seja eleito para lugar de Quinta-Feira no Conselho Geral.

O rumor levantou-se como o mar, os braços ergueram-se como uma flores- ta e três minutos depois Gabriel Syme, do Serviço Secreto da Polícia, era eleito para o lugar de Quinta-Feira no Conselho,Geral dos Anar- quistas Europeus.

Todos os presentes pareciam sentir a lancha à espera no 36

rio, o -estoque e o revólver à espera na mesa. Assim que a eleição findou e se tornou irrevogável e que Syme recebeu o documento que pro- vava a sua nomeação, todos se levantaram e os grupos incendiados des- locaram-se e misturaram-se. Syme encontrou-se, não se sabe bem como, face a face com Gregory, que ainda o fitava atordoado de raiva. Duran- te longos minutos mantiveram-se em silêncio.

  • Você é um diabo - proferiu Gregory por fim.
  • E você um cavalheiro -replicou Syme gravemente.