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Este artigo analisa a representação da classe trabalhadora em little caesar, filme de mervyn leroy de 1931. O autor aborda duas temáticas: a concorrência pelo emprego durante a grande depressão e a administração do tempo dentro do crime organizado. O artigo também discute como little caesar estabeleceu padrões para o gênero de filmes de gângsteres e como esses temas foram aproveitados na narrativa do filme.
Tipologia: Notas de aula
Compartilhado em 07/11/2022
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Resumo: Esse artigo tem a finalidade de analisar dois aspectos da representação da classe trabalhadora em Little Caesar, de Mervyn LeRoy, 1931. Em primeiro lugar, a concorrência pelo emprego em meio à Depressão Americana; em segundo lugar, a administração do tempo do trabalho dentro do crime organizado. Por meio da análise de algumas das cenas do filme e da leitura da fortuna crítica sobre a maté- ria histórica envolvida na produção da obra, concluímos que Little Caesar contém um potencial crítico relevante para os Estudos Culturais, uma vez que configura, tanto em sua forma como em seu conteúdo, homologias estruturais entre o crime organizado e o mundo dos negócios.
Palavras-chave: Little Caesar. Filme de gângster. Crime organizado. Classe traba- lhadora. História de Hollywood.
(^1) Doutor em Letras (2016) na área de Literatura e Cinema Norte-Americano pela Universidade de São Paulo (USP), com período de doutorado sanduíche na University of Pennsylvania financiado pelo Programa Capes – Fulbright.
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Abstract: This article aims at analyzing two aspects of the representation of the working class in Little Caesar, Mervyn LeRoy, 1931. Firstly, the competition for jobs in the Depression; secondly, the administration of labor time inside or- ganized crime. Through the analysis of some of the scenes of the film and the reading of the critical fortune regarding the historical substance involved in the production of Little Caesar, we conclude that the film contains a relevant critical potential to the Cultural Studies, as it configures both in form and content struc- tural homologies between organized crime and the business world.
Keywords: Little Caesar. Gangster film. Organized crime. Working class. Holly- wood history.
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pularização da figura do gângster no cinema ao associá-lo no imaginário coletivo a grupos de imigrantes judeus, irlandeses, africanos, asiáticos e, principalmente, italianos. Tal associação ocorreu pela ascendência tanto dos personagens como dos atores, cujos modos de fala característicos ganharam evidência com a sincroniza- ção de som e imagem na tela do cinema. Levando-se em consideração que o cinema era uma das formas de en- tretenimento mais populares e acessíveis à classe trabalhadora norte-americana nas primeiras décadas do século XX, Little Caesar nos oferece a oportunidade de observar uma etapa significativa no processo de representação dos trabalhadores em Hollywood. Nesse âmbito, o filme cumpre uma função dialética, pois permite que o trabalhador se veja em cena – por meio de atores com quem compartilha as- cendências e modos de fala – ao mesmo tempo em que acompanha uma narrativa que criminaliza sua própria classe social. Em outras palavras, Little Caesar inau- gura um ciclo de filmes em que a classe trabalhadora nos Estados Unidos é sujeito em Hollywood ao mesmo tempo em que é associada ao crime organizado. Em vez de se organizar como classe e buscar uma saída mais produtiva coletivamente, os proletários em Little Caesar optam por enfrentar a Depressão através do crime, e passam a utilizar métodos burgueses para chegar ao poder. Dentro dessa perspectiva, o filme de gângster produzido nesse período configura uma tentativa de construir uma representação cultural da classe traba- lhadora organizada qualificando-a como “gangue”, no sentido de “associação de malfeitores”. Todavia, a análise mais detida dessas narrativas nos mostra que elas não se resumem à criminalização do trabalhador. Ao abordarem temas como a crise econômica nos anos 1930, esses filmes estabelecem homologias estruturais entre o crime organizado e o universo do trabalho legal, como a luta pelo emprego em meio à Depressão e a administração do tempo. Tais questões surgem em Little Caesar por força da matéria histórica envolvida nas condições de produção. Nosso objetivo com esse artigo é, por meio da análise de algumas das cenas do filme, demonstrar de que maneira esses temas são aproveitados na narrativa em questão.
A cena do assassinato de Tony em Little Caesar pode ser vista de duas maneiras complementares. Por um lado, trata-se da reiteração do ambiente agressivo em que a narrativa se desenrola e, mais especificamente, do estabelecimento do gân- gster como um indivíduo violento, que impõe respeito por meio do medo. Tal
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procedimento faz parte do processo de estabelecimento do “sistema de convenções de representação” no cinema para a narrativa do gângster – eliminar um delator já era uma convenção do gênero gângster nos romances, mas era preciso levar essa característica da narrativa para o cinema de maneira aceitável pela censura prati- cada em Hollywood ao longo da década de 1930. É possível verificar essa preocupação do diretor Mervyn LeRoy na forma como o assassinato é filmado: a exemplo da cena de abertura do filme no posto de gasolina, a câmera não registra Rico puxando o gatilho, pois a composição da cena mostra o carro de Otero e Rico passando em frente à igreja em primeiro plano, enquanto Tony sobe as escadas ao fundo. Além de ouvirmos o estampido do tiro, só é possível ver a fumaça saindo da janela oposta do carro e Tony rolando escada abaixo em seguida. A movimentação é rápida e toda a cena dura poucos segundos; entretanto, mesmo sendo muito econômica em termos de violência – como em boa parte do filme –, tal cena foi alvo dos conselhos de censura de Nova Iorque, Massachusetts, Pensilvânia, e Ohio, que solicitaram sua retirada do filme. (LITT- LE CAESAR FILES, 1930) Por outro lado, o assassinato de Tony também pode ser visto como uma homologia estrutural que Little Caesar estabelece entre a eliminação de delatores no crime organizado e a luta intra-classe no período pós-crise de 1929. Do ponto de vista da classe trabalhadora, um dos efeitos mais danosos do período de De- pressão foi a concorrência pelo trabalho. Segundo Howard Zinn, depois do crash : ...a produção industrial caiu em 50%, e em 1933 talvez 15 milhões (ninguém sabe ao certo) – um quarto ou um terço da força de tra- balho – estavam sem emprego. A Ford Motor Company, que na primavera de 1929 havia empregado 128.000 trabalhadores, tinha apenas 37.000 em agosto de 1931. No final de 1930, quase metade dos 280.000 trabalhadores da indústria têxtil da Nova Inglaterra estavam desempregados. (ZINN, 2005, p. 387) As estatísticas de desemprego nesse período, afirma o historiador Sean Dennis Cashman, pareciam números de mortos em uma guerra mundial: “Três anos depois do crash, uma média de 100.000 trabalhadores estavam sendo demitidos toda semana”. Trabalhadores não-espe- cializados, particularmente negros, formavam a tropa de choque, seguidos por trabalhadores administrativos e técnicos. (...) o pro- duto interno bruto caiu de $81 bilhões em 1929 para $68 bilhões em 1930, $53 bilhões em 1931, e $41 bilhões em 1932, o menor nível atingido. Em outras palavras, durante os primeiros três anos
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A paralisia do governo Hoover no primeiro ano após o crash de 1929 pode ser estendida à comunidade intelectual de esquerda da época. Pells argumenta que nem a imprensa liberal, nem a radical – representadas, respectivamente, pe- los jornais New Republic e New Masses – atentaram seus leitores para o perigo da Depressão. Mesmo no inverno de 1930, com as estatísticas de desemprego em crescimento, houve uma reação desses jornais. Ao mesmo tempo em que admitia uma “depressão industrial genuína” nos Estados Unidos, o New Republic apostava em um reaquecimento da economia no verão seguinte – o que nunca ocorreu. (PELLS, 1999, p. 45) Por outro lado, o New Masses , que tinha uma postura bem mais radical do que o New Republic e era conhecido pelos seus leitores por prever anualmente o colapso do capitalismo, não demonstrou qualquer reação quando a crise ocorria de fato. Enquanto isso, os membros do Partido Comunista norte-americano, naquele momento imediatamente após o Crash , estavam mais preocupados em questões doutrinárias e disputas entre suas facções internas do que em atentar para as con- sequências da Crise. Na avaliação de Pells: ...tanto o New Masses como os radicais de esquerda praticamente ignoraram o Crash e deram pouca atenção para a subsequente de- pressão até o fim de 1930. Em boa parte desse período, os Marxis- tas Americanos mostraram um talento notável para desconsiderar o país em que viviam. (PELLS, 1999, p. 44) No âmbito cultural, houve duas grandes mudanças tecnológicas signifi- cativas: a implementação das transmissões de rádio comercial e a sincronização de som e imagem no cinema. Tal progresso nos meios de produção cinematográficos resultou no aumento nos custos da aparelhagem (câmeras, estúdios sonoros, cabi- nes de gravação e sistemas sonoros para as salas de cinema). Dessa maneira, esse período histórico também coincidiu com o avançado processo de industrialização do cinema, que excluiu pequenos empresários e estúdios do mercado cinema- tográfico. O cinema se tornou um negócio que envolvia tecnologia avançada e circulação de grandes volumes de capital. A verticalização dos processos de pro- dução, distribuição e exibição solidificou-se, por volta de 1920, no oligopólio dos estúdios hollywoodianos – Columbia, Fox, MGM, Paramount, RKO, Universal e Warner Brothers. O advento do som no cinema também teve como consequência uma mu- dança estética, com os diálogos, efeitos sonoros e a música integrados aos filmes. A quebra da bolsa de Nova Iorque em outubro de 1929 ocorreu no momento
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em que a indústria cinematográfica mais precisava de dinheiro para bancar os custos da introdução do som nos filmes. Dessa forma, o cenário da indústria ci- nematográfica norte-americana em meio à Depressão e à introdução do som era, simultaneamente, de vulnerabilidade financeira e instabilidade estética. Dentro desse panorama, Little Caesar consegue, por meio de uma narrativa de gângster, apresentar diversos temas bastante pertinentes para o contexto norte-americano da época. Como observamos, o relato dos historiadores nos mostra que a década de 1930 foi uma catástrofe econômica sem precedentes na história norte-americana. Foi durante a Depressão que os mitos da mobilidade social, do progresso mate- rial, do excepcionalismo americano e do individualismo encolheram-se diante da devastação que a crise econômica provocou no país. Segundo o historiador Gerald Messadié: Em The Great Crash [O Grande Crash], um economista de renome internacional, John Kenneth Galbraith, recenseou com clareza as cinco causas fundamentais da Grande Crise. A primeira causa se- ria uma distribuição desigual da riqueza nacional, que limitava o mercado dos bens de consumo e restringia tanto os investimentos quanto o comércio de luxo aos happy few , que os submetiam a capri- chos erráticos. Assim, uma variação negativa do índice Dow Jones provoca perigosos abalos nos investimentos e no comércio de luxo. Em segundo lugar, havia as práticas fraudulentas de negócios, que aconteciam com enorme frequência e constituíam o que Galbraith chama de corporate larceny , ou seja, roubo efetuado pelas corporações. Em terceiro lugar, a estrutura bancária era fragmentada demais, e portanto, propícia a comportamentos demasiado otimistas ou até mesmo fraudulentos dos banqueiros; seu principal inconveniente era que, em função dos créditos interbancários, a quebra de um banco amea- çava o equilíbrio de todos os outros, como uma carta que cai e faz desabar todo o castelo. Em quarto lugar, havia a nova posição dos Estados Unidos como grandes credores, que haviam concedido empréstimos imprudentes ao exterior. Isso que resultou, para os países devedores, na impossibilidade total de pagar sequer o serviço de suas dívidas, quanto mais o principal, sem falar dos juros, e de abrir seus merca- dos ou deixá-los abertos para as importações provenientes da Amé- rica. Em quinto lugar, uma pobreza intelectual generalizada entre os economistas. Galbraith desconfia até de uma certa perversidade nos conselhos dos especialistas da época, uma vez que todo parecer econômico nos anos seguintes ao Crash de 1929 só levaram à piora da situação. (MESSADIÉ, 1989, p. 254, grifo nosso)
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Em Little Caesar, no crime organizado e no capitalismo – especialmente em um momento de crise –, todas as relações são instáveis. A agressividade comercial configurada no “comportamento fraudulento” de uma organização em relação a outra, especialmente em um período de reces- são no mundo dos negócios, em que o grande capital sobrevive se alimentando e destruindo o pequeno capital, é registrada no filme por meio da violência que permeia a relação entre as gangues. A crise econômica é o momento em que a ten- dência genética monopolista do capital se acirra, e é possível observar esse com- portamento na própria indústria cinematográfica durante a Depressão. Segundo o historiador Tino Balio, Na indústria cinematográfica, falências e concordatas ocorreram nas subsidiárias de exibição das grandes empresas, e não nos setores de produção e distribuição, o que resultou em batalhas ferozes pelo controle das salas de cinema do país no fim da década de 1920. Durante 1929, “eram raras as semanas em que uma ou duas das grandes empresas não estavam se fundindo ou absorvendo umas às outras”, segundo a Variety. Paramount, Warners, e RKO eram par- ticularmente agressivas e construíram ou adquiriram centenas de salas de exibição, o que resultou em milhões de dólares em dívidas. Quando o boom acabou em 1931, os cinemas luxuosos construídos numa época gloriosa a custos imprudentemente extravagantes, tornaram-se elefantes brancos, ao menos durante a Depressão. Em resumo, as grandes empresas não conseguiram honrar seus compro- missos financeiros, o que significava que elas não tinham dinheiro para pagar suas hipotecas, seus compromissos de curto prazo, e os pesados encargos sobre suas dívidas. (BALIO, 1993, p. 16) Essa mesma agressividade do capital em momentos de crise é registrada no filme – não de forma direta ou denotativa, mas de forma conotativa – por meio da violência entre as gangues e da instabilidade das posições dos seus chefes, como Vettori, Little Arnie e Pete Montana. A queda paulatina de cada um deles, além do apetite monopolista e expansionista do pequeno César, figura a crise nos termos do gangsterismo. Por meio da representação das relações entre gangues, o filme mostra o funcionamento do capital monopolista em épocas de crise e regis- tra a movimentação do capital como atividade criminosa.
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Logo após a cena inicial do filme em que a câmera mostra um latrocínio em um posto de gasolina, vemos outro plano geral bem rápido, dessa vez de um pequeno restaurante à beira de uma estrada. Em seguida, a câmera mostra um close da mão de Rico atrasando o relógio do restaurante a fim de criar um álibi em sua defesa caso seja acusado pelo crime que vimos na cena anterior. O gesto de atrasar o relógio é emblemático para a narrativa de Little Caesar porque representa uma tentativa de Rico de controlar o tempo que, para o gângster, é sempre curto, pois ele sabe que a qualquer momento pode ser preso ou morto. Suas ações são cuida- dosamente planejadas, com dia, hora e local combinados, e devem ser executadas da maneira mais rápida e eficiente possível. De acordo com o historiador Richard Pells, Rico não luta por poder ou propriedades: ...mas pela imortalidade. Quando o público o vê pela primeira vez ele está atrasando os ponteiros de um relógio, em parte para criar um álibi, mas também para representar seu medo do tempo. (PE- LLS, 1973, p. 272) Assim, na medida em que luta pela imortalidade, o gângster teme pela sua vida, pois o ritmo frenético de seu cotidiano e os riscos que ele corre em nome dos seus objetivos são resultados de sua tentativa de “viver a vida em sua plenitu- de”. Desse modo, “relógios têm uma presença constante ao longo do filme, mar- cando o fluxo e o declínio da vida de Rico, zombando do seu desejo de ser alguém, chamando-o cedo para a morte”. A análise que Pells realiza sobre a cena no restaurante deixa de lado um aspecto de ordem materialista sobre as condições de produção de Little Caesar: a introdução do tema do tempo no filme o coloca em sintonia com as discussões crí- ticas mais avançadas sobre a relação entre tempo e trabalho, uma vez que a: Civilização industrial/capitalista é dominada, de maneira crescente desde o século XIX, pelo tempo do relógio de bolso ou de pul- so, passível de uma medida exata e estritamente quantitativa. As páginas de O Capital são cheias de exemplos terríveis da tirania do relógio sobre a vida dos trabalhadores. Nas sociedades pré- capitalistas, o tempo era carregado de significados qualitativos, que foram progressivamente substituídos, durante o processo de industrialização, pelo tempo único do relógio de pulso. (LÖWY, 2007, p. 125)
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de como realizá-lo. “Esse controle agora está sob o comando de quem pode ‘pagar’ pelo estudo [do trabalho], a fim de conhecê-lo melhor do que os próprios traba- lhadores conhecem sua atividade de vida”. (BRAVERMAN, 1998, p. 78-80) O passo seguinte no controle do capitalista sobre o processo de produção industrial foi dado por Henry Ford e sua linha de produção em série, com a “co- locação do objeto de trabalho num mecanismo automático que percorresse todas as fases produtivas” (PINTO, 2010, p. 35). Tal sistema teve resultados impres- sionantes: a fábrica de Henry Ford produzia um Modelo T a cada 15 segundos, e foi capaz de fabricar mais carros em 3 meses do que toda a Europa em um ano (PINTO, 2010, p. 37). Com o sistema fordista, ...buscou-se estrangular ao máximo os poros da jornada de trabalho, de modo que todas as ações realizadas pelos trabalhadores estives- sem, a cada instante, agregando valor aos produtos. Se a “raciona- lização” taylorista permitia uma significativa intensificação do tra- balho humano através do controle pela cronometragem dos tempos de operação parciais, no sistema fordista é a velocidade automática da linha de série (do objeto de trabalho, portanto) que impõe ao trabalhador (o sujeito do trabalho) a sua condição de disposição para o labor, estabelecendo, dentro de limites cada vez mais estreitos de tempo, a “melhor maneira de trabalhar”. (PINTO, 2010, p. 38) Se o taylorismo provocou a cisão entre a concepção e execução do trabalho, o fordismo adicionou a essa equação a submissão ao ritmo ditado pela máquina e instaurou a “tirania do relógio sobre a vida dos trabalhadores”. Em última instân- cia, o próprio ser humano torna-se mecanizado, pois: ...o princípio que rege as investigações sobre o trabalho é a visão do ser humano em termos mecânicos. Como os administradores não estão interessados no trabalhador em si, mas em como ele é utili- zado no escritório, fábrica, armazém, estoque, ou no processo de transporte, essa visão é, do ponto de vista da administração, não só eminentemente racional, mas a base de todo o cálculo. (...) A ten- tativa de conceber o trabalhador como uma máquina de propósito geral operada pela gerência é um dos diversos caminhos tomados com o mesmo objetivo: o deslocamento do trabalho como elemento subjetivo do processo de trabalho e sua transformação em um obje- to. (BRAVERMAN, 1998, p. 124) Dois aspectos sobre o processo de “aceleração do tempo” merecem ser destacados. Um deles é de ordem material: tal aceleração visa a melhora da produ- tividade da força de trabalho, ou a “melhor maneira de trabalhar”, e, consequen-
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temente, o aumento da taxa de extração de mais-valia absoluta pelo capitalista. O outro aspecto é imaterial, pois está ligado à aceleração de acumulação de capital fictício por meio do sistema de crédito. Tanto a aceleração material – o incremen- to da produtividade do trabalho causa a superprodução – quanto a imaterial – o aumento de capital fictício gera inchaço no sistema de crédito – desenvolveram-se de maneira coordenada e ambas contribuíram para o processo que culminou na quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929. O Crash acelerou ainda mais a deterio- ração das condições de trabalho na década de 1930 e, por consequência, contri- buiu para o avanço do gangsterismo que vemos em Little Caesar como alternativa para a classe trabalhadora em meio à crise. Uma análise mais atenta do gangsterismo nos mostra que ele próprio é um tipo de prática social cuja finalidade é a aceleração temporal – por meio do gangsterismo é possível galgar os degraus da escala social sem passar pelos mean- dros do trabalho alienado. Em The Great Gatsby , de F. Scott Fitzgerald, por exem- plo, o protagonista recorre ao gangsterismo porque percebe que não pode passar pelo caminho interminável do trabalho legal se quiser acelerar o processo de reto- mada da conquista amorosa, que, na avaliação do próprio protagonista, depende de sua ascensão à upper class. Dessa maneira, a base do romance, assim como de Little Caesar , é a aceleração do enriquecimento por meios ilegais. Esse processo é o mesmo do enriquecimento por meio da oferta de crédito. Sendo assim, podemos dizer que a ascensão social tanto de Rico como de Jay Gatsby é rápida, acelerada, tal qual se dá o acesso ao crédito – a estrutura de funcionamento do capital finan- ceiro torna-se também uma das estruturas do enredo do filme de gângster. Na avaliação de Guy Debord, embora o tempo do trabalhador tenha se tornado propriedade da burguesia, o proletariado ainda carrega o potencial de reivindicar para si o “tempo histórico”: A burguesia mostrou e impôs à sociedade um tempo histórico ir- reversível, mas lhe recusa o uso desse tempo. “Houve história, mas já não há”, porque a classe dos possuidores da economia, que não pode romper com a história econômica , deve rechaçar como ameaça imediata qualquer outro emprego irreversível do tempo. A classe dominante, feita de especialistas da posse das coisas – que, por isso, são eles mesmos possuídos pelas coisas –, deve ligar seu destino à manutenção dessa história reificada, à permanência de uma nova imobilidade na história. Pela primeira vez o trabalhador, na base da sociedade, não é materialmente estranho à história , porque ago-
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a administração do tempo de trabalho faz parte do inconsciente político de Little Caesar. É possível chegar a um aproveitamento crítico sobre essa questão obser- vando-se o ritmo do filme. Há na narrativa um constante senso de urgência do protagonista, que o faz “correr contra o tempo” durante todo o filme: Rico exige precisão no horário do roubo ao Bronze Peacock , apressa-se na eliminação de Tony antes que ele fale com o padre McNeil, corre da polícia para não ser capturado. Entretanto, ao con- trário do que pode parecer num primeiro momento, Rico está sim, de certa forma, submetido à temporalidade que caracteriza a vida da classe trabalhadora. Essa característica surge em Little Caesar de duas formas: na banalidade e repetição de determinadas ações – como o jogo de paciência que Sam Vettori usa para passar o tempo e as repetidas reuniões da gangue para planejar seus próximos atos – e na impossibilidade de Rico fazer o que bem entende no momento em que melhor lhe convir. O protagonista descobre, ainda no início do filme, que acima de Pete Montana – sobre o qual ele havia lido no jornal na primeira cena do filme – há ainda mais um chefe (Big Boy) na hierarquia das gangues. Sendo assim, se quiser chegar ao topo, assim como em qualquer empresa, Rico precisa de tempo para trabalhar e conquistar seu espaço. A diferença, como já apontamos anteriormente, está na velocidade em que o gângster consegue acumular capital por meios ilegais e a possibilidade real de ascensão social que esse acúmulo lhe proporciona – dois privilégios que a classe trabalhadora não tem. O que mascara a submissão de Rico ao tempo no filme são dois clichês do filme de aventura. Em primeiro lugar, o ritmo é propositalmente acelerado para manter o espectador atento à narrativa. É possível observar esse procedimento no tempo que Rico leva para galgar os degraus da hierarquia das gangues depois de assumir a liderança do grupo de Vettori. Da cena do banquete em homenagem a Rico ao encontro com Big Boy passam-se somente vinte minutos, cerca de um quarto do filme. Em segundo lugar, há diversos momentos distribuídos na nar- rativa que criam um aumento de tensão no espectador: a cena de assassinato do comissário McClure, a discussão entre Vettori e Rico pela partilha do dinheiro do roubo ao Bronze Peacock , a aproximação de Tony à igreja para delatar Rico, entre outros. Dessa maneira, é possível ler o filme sob duas perspectivas diferentes. Ao mesmo tempo em que há a mobilização do filme em torno da convenção do
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clichê aventuresco existe uma demanda da matéria histórica que exige uma outra leitura: o mesmo ritmo que faz parte da convenção do filme de aventura, nesse momento histórico também fala sobre o ritmo do trabalho submetido a uma exigência temporal, um ritmo externo ao personagem, não o ritmo de sua subje- tividade.
A leitura de Little Caesar sob o viés dos temas abordados nesse artigo – a disputa pelo emprego em tempos de crise e a administração do tempo – nos mostra como o filme de gângster estabelece relações contraditórias com a classe trabalhadora que frequentava as salas de cinema no início da década de 1930. Como dissemos anteriormente, embora o trabalhador se visse em cena por meio de atores com quem compartilhava ascendências e modos de fala, ele também acompanha uma narrativa que criminalizava sua própria classe social. A caracterização de Rico é um bom exemplo dessa contradição. O protagonista é caracterizado como um indivíduo que rouba, mata, faz ameaças, pratica extorsões e, além de tudo, tenta interromper o romance entre Joe e Olga. Tais ações impedem que o protagonista crie uma adesão emocional com o público. A caracterização de Rico, entretanto, não é livre de ambiguidades, pois, ao mesmo tempo em que aprende a direcionar sua violência para o gângster, o espectador de Little Caesar também percebe, logo na primeira cena do filme, que a motivação para as ações criminosas e antiéticas do protagonista vem do receituário da ideologia do self-made man norte-america- no, como a livre iniciativa, o empreendedorismo, o acúmulo de capital, e o desejo de reconhecimento público do sucesso conquistado – características todas muito caras aos verdadeiros responsáveis pela Depressão. Esse aspecto da narrativa abre um precedente para o questionamento so- bre os limites entre o mundo dos negócios e o crime organizado, e o público apreende que Rico não é, como o crítico Fredric Jameson diz, “uma aberração criminosa desviante da norma”, mas, sim, “a própria norma” (1995, p. 32). Tal constatação permite ao espectador mais atento deixar de lado as considerações e julgamentos éticos, e se aproximar de uma análise política e histórica por meio do estabelecimento de homologias estruturais entre o crime organizado, o mundo dos negócios e o enredo do filme. Sob tal perspectiva, a análise das ações de Rico nos mostra que ele está muito mais próximo da individualidade burguesa do que
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Fiction. New York: Palgrave Macmillian, 2002, p. 11.
MESSADIÉ, Gerard. A crise do mito americano – Réquiem para o super- homem. São Paulo: Ática, 1989, p. 254. Grifo nosso.
PELLS, Richard H. Radical Visions and American dreams: culture and social thought in the Depression years. New York: Harper&Row, 1973 , p. 43.
PINTO, Geraldo Augusto. A organização do trabalho no século 20: taylorismo, fordismo, toyotismo. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 35.
SHERLOCK Jr. Direção: Buster Keaton. Estados Unidos: Buster Keaton Productions, 1924. (49 min.) P&B.
TEMPOS Modernos. Direção: Charles Chaplin. Estados Unidos: Charles Chaplin Productions, 1936. (87 min) P&B.
ZINN, Howard. A People’s History of the United States. New York: HarperCollins Publishers, 2005, p. 387.