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o feiticeiro judeu e a clavícula de salomão, Notas de aula de Latim

E que este estrangeiro havia lhe mostrado um livro de aproximadamente vinte folhas chamado Clavicula Salomonis, escrito em latim. E o dito homem explicou onde ...

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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O FEITICEIRO JUDEU E A CLAVÍCULA DE SALOMÃO
MARCOS SILVA*
NILTON BRUNO FEITOSA SANTANA**
ÍSIS CAROLINA GARCIA BISPO***
RESUMO: O artigo diz respeito à análise histórica, inspirada no paradigma indiciário de
Carlo Ginzburg, do caso de um acusado perante o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, por
nome João Baptista Laroca e membro da colônia italiana existente na capital lusitana no início
do século XVIII, de ser judeu e possuidor de um livro de magia cerimonial. O caso revela os
antagonismos existentes entre os membros dessa comunidade, o conteúdo de um célebre livro
ocultista, rituais para enriquecimento através da invocação de demônios e lança dúvidas sobre
a identidade desse personagem que em meio a um processo confuso pode ter escapado dos
rigores da Inquisição mesmo sendo um criptojudeu e alquimista cabalista.
PALAVRAS-CHAVE: Grimório; Cabala prática; Criptojudaísmo; Inquisição de Lisboa.
INTRODUÇÃO
No início do século XVIII havia em Lisboa uma agitada comunidade italiana.
Originários das mais diversas localidades da Península itálica, eles se reuniam em uma
estalagem para debater assuntos diversos, inclusive religiosos. Alguns personagens e parte do
conteúdo dessas conversas ficaram registrados na história através de um singular processo do
Tribunal do Santo Ofício guardado nos Arquivos da Torre do Tombo, em Portugal.
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Os personagens se envolveram com a Inquisição porque três deles procuraram as
autoridades religiosas para denunciar um conterrâneo que apresentava um comportamento
heterodoxo. Entre o século XVI e início do século XVIII a península itálica era
geopoliticamente dividida em três regiões principais: Os Estados Papais, na área Central; O
Reino das Duas Sicílias, oficialmente pertencente à Espanha, ao Sul; e o Norte da Itália, um
mosaico de cidades-estado independentes.
Os dois principais denunciantes chamavam-se Miguel Mileti e Caetano Barrilaso e
eram naturais da Sicília, ilha localizada ao Sul da Península Itálica. O terceiro denunciante,
Antônio Hugo, era natural de Gênova, cidade estado independente e importante porto
*Universidade Federal de Sergipe. Doutor em História da Educação.
**Universidade Federal de Sergipe. Graduando em História. PIBIC/UFS.
***Universidade Federal de Sergipe. Licenciada em História.
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Processo de João Baptista Laroca - 20/05/1724 - 30/10/1724 - PT-TT-TSO/IL/28/3319.
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O FEITICEIRO JUDEU E A CLAVÍCULA DE SALOMÃO

MARCOS SILVA *

NILTON BRUNO FEITOSA SANTANA**

ÍSIS CAROLINA GARCIA BISPO***

RESUMO: O artigo diz respeito à análise histórica, inspirada no paradigma indiciário de Carlo Ginzburg, do caso de um acusado perante o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, por nome João Baptista Laroca e membro da colônia italiana existente na capital lusitana no início do século XVIII, de ser judeu e possuidor de um livro de magia cerimonial. O caso revela os antagonismos existentes entre os membros dessa comunidade, o conteúdo de um célebre livro ocultista, rituais para enriquecimento através da invocação de demônios e lança dúvidas sobre a identidade desse personagem que em meio a um processo confuso pode ter escapado dos rigores da Inquisição mesmo sendo um criptojudeu e alquimista cabalista.

PALAVRAS-CHAVE : Grimório; Cabala prática; Criptojudaísmo; Inquisição de Lisboa.

INTRODUÇÃO

No início do século XVIII havia em Lisboa uma agitada comunidade italiana. Originários das mais diversas localidades da Península itálica, eles se reuniam em uma estalagem para debater assuntos diversos, inclusive religiosos. Alguns personagens e parte do conteúdo dessas conversas ficaram registrados na história através de um singular processo do Tribunal do Santo Ofício guardado nos Arquivos da Torre do Tombo, em Portugal.^1 Os personagens se envolveram com a Inquisição porque três deles procuraram as autoridades religiosas para denunciar um conterrâneo que apresentava um comportamento heterodoxo. Entre o século XVI e início do século XVIII a península itálica era geopoliticamente dividida em três regiões principais: Os Estados Papais, na área Central; O Reino das Duas Sicílias, oficialmente pertencente à Espanha, ao Sul; e o Norte da Itália, um mosaico de cidades-estado independentes. Os dois principais denunciantes chamavam-se Miguel Mileti e Caetano Barrilaso e eram naturais da Sicília, ilha localizada ao Sul da Península Itálica. O terceiro denunciante, Antônio Hugo, era natural de Gênova, cidade estado independente e importante porto

*Universidade Federal de Sergipe. Doutor em História da Educação. **Universidade Federal de Sergipe. Graduando em História. PIBIC/UFS. ***Universidade Federal de Sergipe. Licenciada em História. 1 Processo de João Baptista Laroca - 20/05/1724 - 30/10/1724 - PT-TT-TSO/IL/28/3319.

mediterrânico do Noroeste da Itália. O denunciado foi João Baptista Laroca, da região do Piemonte, no Noroeste da Itália. O primeiro denunciante é tratado como “Dom” Miguel Mileti e era sacerdote do hábito de São Pedro que trabalhava em Lisboa, trinta anos de idade. O segundo denunciante era natural da cidade de Palermo, solteiro, de vinte e nove anos de idade, fabricante de cordas, que encontrou o denunciado em uma viagem de navio e que também utilizava a referida estalagem como local de negócios. O terceiro denunciante, Antônio Hugo, era homem de negócios, da idade de sessenta e cinco anos e vizinho da casa onde João Baptista Laroca morava, no Beco das Tábuas, freguesia de São Paulo, em Lisboa.

PERFIL DO DENUNCIADO E MOTIVOS DA DENÚNCIA

Dentre outros crimes, João Baptista Laroca foi acusado pelo padre Miguel Mileti e por Caetano Barrilaso de ser judeu e fugitivo dos cárceres da Inquisição na Ilha de Ceuta. O genovês sexagenário, após ver o vizinho ser preso pelos representantes do Santo Ofício, se dirigiu ao Tribunal para entregar uns papéis que encontrou nos aposentos do acusado. Nada mais acrescentou sobre ele. Para entender os bastidores da denúncia que os dois sicilianos fizeram contra o piemontês é necessário levar em consideração as especificidades e diferenças entre essas regiões. Historicamente, a relação dos estados italianos do norte com os judeus foi bastante diferente da relação que os territórios do sul mantinham com os mesmos. A partir da formação do Reino das Duas Sicílias, em 1442, a região esteve sob domínio Espanhol. Até que o Tratado de Utrecht, em 1713, determinou que a Sicília deixasse de pertencer à Espanha e passasse ao domínio do Piemonte. Dessa forma, quando em 1492 os Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, expulsaram os Judeus do território espanhol, a comunidade judaica da Sicília também foi desalojada. No norte e centro da Itália a situação era diferente. As cidades, constituídas em Estados, preservando sua independência através do governo de famílias nobres locais, mantinham interesses comerciais que implicavam numa política de maior tolerância para com os judeus.

"Representa ter trinta e quatro annos, alto de corpo, magro, feio de rosto e negro, barba negra, cabello preto e comprido, mal vestido."^3 Porém, chama a atenção a ênfase constante à sua ocupação. Via de regra, ele foi descrito como sendo “artilheiro” em um veleiro que viajava para a ilha de Córsega. Quando o próprio João Baptista Laroca foi interrogado na sessão de Genealogia, ele pôde esclarecer que trabalhava nos navios da “Companhia de Córsega”. A esse respeito, uma informação importante aparece na denúncia do padre Miguel Mileti. Ele afirmou que João Baptista Laroca era “contratador” em um Navio para a ilha de Córsega. Eis um indício que merece ser explorado. Ao considerar-se o principal local das viagens de João Baptista Laroca, a ilha de Córsega, está se tratando de uma região geopolítica complexa, chamada por Fernand Braudel de “mundo tirreno”. Na sua análise, o Mar Tirreno sempre foi sujeito às influencias dos “mundos vizinhos” e às contingências de uma história movimentada. Com portos importantes, nunca foi dominado, de forma exclusiva, por um poder político ou civilização, excetuando a hegemonia romana na antiguidade. (BRAUDEL, 1995: 138, 139). Em um caso específico a hegemonia foi secular, ainda nos tempos modernos. No período compreendido entre o século XIII e meados do século XVIII a Córsega esteve sob o domínio da cidade estado italiana de Gênova, que transformou a ilha numa zona de produção de cereais. Ora, além da proximidade geográfica de Gênova com o Piemonte, região de origem de João Baptista Laroca, e de suas viagens de trabalho à ilha de Córsega, outros detalhes revelados no Processo da Inquisição ligavam João Baptista Laroca à Genôva e à sua possessão insular. Percebe-se que os laços de João Baptista Laroca com Gênova não são propriamente casuais. A relação se intensifica quando se estuda a história da cidade e se descobre que Gênova foi administrada durante os tempos modernos pela Casa de San Giorgio (1407-1805), banco controlado pelas famílias genovesas Grimaldi e Serra e que, segundo Fernand Braudel, “foi o organismo de crédito mais aperfeiçoado que a Idade Média conheceu”. (BRAUDEL, 1995: 359)

(^3) Processo de João Baptista Laroca - 20/05/1724 - 30/10/1724 - PT-TT-TSO/IL/28/3319.

Assim, a poderosa Casa de San Giorgio^4 , tornou Gênova “a primeira cidade financeira do Mundo”^5 e, a partir de uma aliança celebrada com a Espanha em 1528, conseguiu transformar o século XVI, no “século de Gênova”. No século XVII, o Banco se envolveu no comércio marítimo, competindo com as duas principais Companhias das Índias Orientais, a Holandesa e a Inglesa. Percebe-se então que João Baptista Laroca, empregado como artilheiro e “contratador” da Companhia da ilha de Córsega, segundo a versão dos denunciantes, em última instância, trabalhava para uma das instituições financeiras mais poderosas da época Moderna, controladora da cidade de Gênova, e que emprestava dinheiro aos principais monarcas da Europa. Poderia esse fato interferir no andamento do processo movido contra João Baptista Laroca em função das denúncias feitas pelos dois sicilianos, aparentemente xenófobos, Miguel Mileti e Caetano Barrilaso? Contrariando esse perfil de João Baptista Laroca como um judeu profissionalmente definido desenhado pelo padre siciliano, um genovês por nome Desiderio de Vecchio, comerciante de vinho e morador do mesmo Beco das Tábuas na Freguesia de São Paulo, em Lisboa, referido no processo pelo acusado e convocado a depor pelo Santo Ofício, traçou um perfil do acusado bastante distinto. Além disso, por meio da sessão de Genealogia, realizada em 24 de Outubro de 1724, é possível descobrir a representação que o próprio João Baptista Laroca apresentou de si ao

(^4) A Casa de San Giorgio surgiu em 1407, servindo para um maior controle das finanças públicas por credores das ricas famílias da cidade. Seu capital era dividido em ações denominando os acionistas como collonanti, por conta de suas ações serem anotadas em colunas de forma escritural. Foi confiada à Casa de San Giorgio a arrecadação de impostos em Gênova. O banco emprestou parte dos seus fundos ao governo e recebeu em troca propriedades na Ligúria, na Ilha de Córsega, no Mar Negro e no Mar Mediterrâneo. (DURANT, 2002: 144). 5 Seja por conta dos vultuosos empréstimos que os genoveses concediam aos líderes cruzados em troca de ordens de pagamento, e que em cada câmbio as famílias genovesas faziam fortuna por causa do acréscimo dos juros do empréstimo. Um exemplo dessas primeiras transações bancárias é a estadia do rei francês Luís IX e a sua troca comercial que, por conta dos juros, em cada empréstimo Gênova ganhava 20% a mais do que havia concedido, descontando do tesouro da França. Outro motivo foi o fato de que Gênova estava entre as cidades italianas que prestavam auxílio com suas frotas navais ao transportar os cruzados à Terra Santa, tais auxílios acabaram resultando em privilégios jurídicos e comerciais. (MORRISON, 2009: 94). A ideia de uma moeda sólida era imprescindível para a acumulação de capital de modo sistêmico, a moeda genovesa tornou-se padrão em todas as transações comerciais tanto do governo quanto das instituições particulares. Tal reforma monetária foi de grande impulso para que as empresas e a própria cidade crescessem de forma gigantesca. Articulando-se à Espanha financiou a expansão ultramarina e em troca recebeu a proteção dos exércitos espanhóis. (MARTINS, 2002: 45).

de Mouros”. Ele teria se dirigido a Argel, onde se declarou judeu. Depois, viajou para Portugal. Além dos precedentes, de ser fugitivo do degredo em Ceuta e haver se declarado judeu, os denunciantes acrescentaram uma informação que se tornou o principal aspecto investigado pelo Tribunal do Santo Ofício no processo instaurado contra João Baptista Laroca (Rocaforte): O réu afirmara que possuía um livro intitulado “Carcanho de Adamo”, o qual continha, por artes diabólicas, o segredo de alguns tesouros, como o de fazer a “pedra filosofal”. No restante do processo o Livro é referido como sendo a Clavícula Salomonis , o Grimório^6 , livro de magia cerimonial, mais conhecido no mundo ocultista Ocidental, originado por volta do século XII da era comum. O livro contém a descrição de rituais, gráficos com símbolos místicos, fórmulas mágicas e astrológicas. Os denunciantes descreveram o ritual que João Baptista Laroca (Rocaforte) teria protagonizado. Segundo eles, o réu executava a cerimônia lendo o livro, do qual não se recordava o nome, e em seguida proferia-se uma missa em nome do Espírito Santo, pondo ao lado do Evangelho um pergaminho no qual estivesse escrito o que cada um dos participantes desejava, havendo também um pouco de água benta do Sábado Santo e óleo dos enfermos. É digno de nota que o rito, segundo a narração dos denunciantes, requeria poucos materiais. Evidentemente não se tratava de um ritual difícil de ser executado por conta de seus aparatos. Em seguida, saía ao campo e, metendo-se no círculo com o livro na mão, lhe aparecia o demônio em forma de mulher, depois em forma de Leão e por último, de homem. A partir de então podia pedir o que quisesse que teria seu almejo atendido. O segundo denunciante, Caetano Barrilaso, disse que a cerimônia era tão eficaz que todos que a praticavam conseguiam aquilo que pretendiam, e acrescentou que o círculo na terra era feito uma hora antes de amanhecer, assim como todos os procedimentos. E que o “demônio” apresentava-se para atender aos pedidos. É possível inferir pelas acusações que para a perfeita execução do ritual havia dia, hora, vestes e símbolos precisos. O fato de ser celebrado uma hora antes de amanhecer pode

(^6) De acordo com o dicionário Houaiss um “grimório” é um “livro de fórmulas mágicas usado por feiticeiros”. Segundo a etimologia da palavra, a partir do francês grimoire (XIII) 'id.', alt. de grammaire 'gramática', especificamente a gramática latina, ininteligível para o povo.

significar, como sugere a Clavícula de Salomão, que aquele horário do dia é especial para a invocação de espíritos, ou outras forças intangíveis tais como os Arcanjos. Aquele seria o momento exato para que o seu poder fosse absoluto e, por consequência, o ritual seria melhor sucedido. Pois, existem as horas mágicas diurnas e noturnas. Se, por um lado, para fazer o ritual eram exigidos poucos materiais, por outro, os seus métodos e procedimentos eram extremamente complicados por conta do nível de detalhamento. A Clavícula Salomonis expõe os arcanjos regentes de cada dia da semana. Seus nomes eram colocados dentro do círculo no qual o celebrante também se localizava. Os arcanjos regentes presentes no manuscrito são: Rafael, Gabriel, Samael, Miguel, Saquiel, Anael ou Haniel e Cassiel. Eles estão associados a um planeta regente e a um dia da semana. Cada um vem acompanhado de um nome oriundo da escrita usada somente pelos magos cerimoniais, que é baseada no idioma hebraico. Nota-se, assim, a influência judaica sobre a magia cerimonial. Em função disso, após ser consultado pelo Tribunal de Lisboa, o Santo Ofício de Sevilha enviou uma Carta à Inquisição portuguesa dizendo que João Baptista Laroca não se encontra nos seus registros. Em outras palavras, o denunciado não era um reincidente da Inquisição. De certo modo, não era verdadeira a acusação dos sicilianos, pois essa foi a primeira vez que João Baptista se defrontou com a Inquisição. Em 28 de Junho de 1724, o Inquisidor Phellipe Maciel mandou vir perante si a João Baptista Laroca (Rocaforte), o qual, como já foi visto, declarou ser cristão-velho, ou seja, não ter ascendência judaica. Portanto, tratava-se de um homem que sabia o que estava se passando consigo, ao menos aparentava ter noção dos Estatutos de Pureza de Sangue vigentes em sua época. Se fosse realmente um descendente de judeu estava escondendo tal fato e, se não o fosse estava tentando reforçar que a sua ascendência, os seus antepassados, não possuíam sangue “impuro”. João Baptista Laroca (Rocaforte) afirmou que não havia seis meses encontrara no Reino de Múrcia um estrangeiro, “de nação”, chamado Caetano o qual “tratou com familiaridade de amigo”. E que este estrangeiro havia lhe mostrado um livro de aproximadamente vinte folhas chamado Clavicula Salomonis, escrito em latim. E o dito homem explicou onde ficava cada nota, os círculos e as figuras que representavam os astros.

para tentar vender o livro de magia cerimonial. Mas, que nunca acreditara nem fizera uso da Clavícula de Salomão com a intenção de enriquecer e se o fez era por obra do Demônio. Afirmou que chegando a Lisboa ficou alojado na casa de outro italiano chamado Desiderio de Vecchio, localizada no Beco das Tábuas, na freguesia de São Paulo, como já foi visto anteriormente. Dando continuidade aos depoimentos da peça inquisitorial, em dezessete de Outubro do mesmo ano foi chamado para depor Estevão Pusolo Cordeiro. Que havia sido mencionado por Desiderio de Vecchio como sendo vizinho de João Baprtista Laroca (Rocaforte). Esse também era natural do norte da Itália, uma cidadela chamada São Pedro de Area. Estevão declarou que somente poucas vezes havia visto o réu e que não tinha conhecimento de sua procedência, que Desiderio de Vecchio tinha um armazém de Vinhos sendo cliente da sua venda. E com frequência via João Baptista Laroca (Rocaforte) acertando as contas do seu alojamento com o mesmo. Em 26 de Outubro o réu foi chamado pelo inquisidor Phelipe Marciel para um exame de consciência. Desta vez João Baptista Rocaforte concordou com tudo o que dissera o Santo Ofício a respeito da fé Católica e dos pecados que havia cometido. No dia trinta do mesmo mês assinou o Termo de Segredo. Foi solto pela Inquisição após admitir suas culpas, porém, sem nenhuma penitência, a não ser pagar as custas do processo.

CONCLUSÃO

Em Portugal e na Espanha, o contato cultural com a Contra-Reforma, uma série de medidas tomadas pelo Catolicismo Romano para conter a propagação da religião Protestante, principalmente a definição da doutrina Católica no Concílio de Trento e o surgimento do estilo barroco, mantiveram a Península Ibérica em certa dissonância com o restante da Europa, onde novas ideias floresciam. Havendo cada vez mais intimidade entre o poder político da nobreza e o poder religioso da Igreja. Foi nesse ambiente cultural, com uma inquisição fortalecida e temerária que os cidadãos da colônia italiana de Lisboa se opuseram em torno de um personagem de perfil dúbio, João Baptista Laroca (Rocaforte). Nitidamente as versões dos italianos meridionais (sicilianos) tinham o objetivo de incriminar o denunciado, enquanto os genoveses, do norte da

Itália, em seus depoimentos apresentaram uma versão que corroborou as palavras da confissão do réu. Qual a versão verdadeira? A análise do processo de João Baptista Laroca (Rocaforte) nos fornece indícios para suspeitarmos de uma realidade diferente da que foi aventada pelos dois grupos. Uma terceira possibilidade. O denunciado não seria judeu, como afirmaram Miguel Mileti e Caetano Barrilaso, nem “apostólico romano”, como declarou Desiderio de Vecchio. Mas, um cristão- novo judaizante praticante da Cabala. Vários estudos já demonstraram como o norte da Itália, durante os tempos modernos, representou um ambiente propício para os sefarditas desenvolverem sua cultura peculiar. Os principais aspectos dessa permanência cultural estão representados pela literatura, pela manutenção de instituições e o ressurgimento do ladino^7 , mantendo os laços com a Península Ibérica. (BONFIL, 1996). Porém, além desses aspectos da sobrevivência da cultura sefardita no norte da Itália, destacou-se a importância que a Cabala, com a publicação de duas edições do Zohar ainda em meados do século XVI, desempenhou no ambiente cultural italiano, a ponto de influenciar não somente as comunidades judaicas, mas, também pensadores renascentistas. Um vestígio interessante presente nas denúncias contidas no processo é a informação de que João Baptista Laroca (Rocaforte) afirmara que o livro “carcanho de Adamo” “continha o segredo de alguns tesouros, fazer a pedra philosofal”, “fazendo quimia”. Nesse particular, o processo demonstra uma relação histórica que poucos estudiosos foram capazes de estabelecer. Qual seja, a influência da Cabala judaica sobre o desenvolvimento do método alquímico. Raphael Patai, em obra de fôlego, demonstrou como grandes cabalistas durante a Idade Média e o Renascimento também eram alquimistas, caracterizando-se por uma

especial predileção por dar um sabor místico a suas anotações alquímicas, insistindo repetidamente em que essa ou aquela observação ou descoberta era ‘um grande segredo’ – e foi precisamente por fazer isso que eles chegaram a uma fusão ou, pelo menos, uma combinação entre a alquimia e a Cabala. (PATAI, 2009: 556).

(^7) O ladino é um prolongamento do espanhol do século XV, e corresponde à língua falada por judeus de origem ibérica.

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