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o Direito do Embrião Humano: Mito ou Realidade?, Notas de estudo de Direito

E possível se reconhecer a existência de um estatuto do embrião humano? ... dilema se apoiando sobre a distinção entre embrião e feto. E, deste dilema.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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oDireito do Embrião Humano: Mito ou
Realidade?
Eduardo de Oliveira Leite*
Sumário: Introdução; 1. As diversas concepções de Embrião
Humano; 2. O Embrião Humano como pessoa; 3. O Embrião
Humano como um amontoado de células; 4. O Embrião como
potencialidade de pessoa; 5. A postura Jurídica; 6. Embriões
excedentes e aborto; 7. À Guisa de conclusão.
Introdução
A questão que decidimos abordar não é atual, como se poderia
imaginar, mas sempre preocupou o homem na medida em que o mIstério da
origem da vida no seio da mulher provoca não curiosidade, mas
perplexidade e admiração, ao mesmo tempo que gera problemas
comportamentais concretos.
Hoje, porém, mais que no passado, as indagações em tomo do
embrião humano adquiriram uma atualidade crescente, cada vez mais
visível e tangívet dado ao papel que ele passa a representar no interior de
nossa sociedade e de nossa cultura: o desenvolvimento inimaginável da
medicina e:,em particular, da biotecnologia conduz-nos a interrogar sobre
sua posição no modo ético-jurídico, a nos questionarm'os sobre o estatuto
que ele tem -ou deve ter -entre nós. .
Se a questão foi, constantemente, invocada, hoje ela se manifesta de
maneira infinitamente mais imperativa e urgente, graças ao progresso
extraordinario dos conhecimentos e das possibilidades técnicas adquiridas
pela humanidade. Basta, para tanto, pensar nas procriações artificiais, e na
infinidade de possibilidades daí surgidas, para se poder avaliar a atualidade
da problemática.
O embrião humano - fonte e origem da vida - até então escondido no
* Doutor em Direito Privado.' Professor titular de Direito Civil. Pesquisador do CNPq e
Advogado no Paraná.
Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, a. 29, n. 29, 1996, p. 121-146
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o Direito do Embrião Humano: Mito ou

Realidade?

Eduardo de Oliveira Leite*

Sumário: Introdução; 1. As diversas concepções de Embrião Humano; 2. O Embrião Humano como pessoa; 3. O Embrião Humano como um amontoado de células; 4. O Embrião como potencialidade de pessoa; 5. A postura Jurídica; 6. Embriões excedentes e aborto; 7. À Guisa de conclusão.

Introdução

A questão que decidimos abordar não é atual, como se poderia imaginar, mas sempre preocupou o homem na medida em que o mIstério da origem da vida no seio da mulher provoca não só curiosidade, mas perplexidade e admiração, ao mesmo tempo que gera problemas comportamentais concretos.

Hoje, porém, mais que no passado, as indagações em tomo do embrião humano adquiriram uma atualidade crescente, cada vez mais visível e tangívet dado ao papel que ele passa a representar no interior de nossa sociedade e de nossa cultura: o desenvolvimento inimaginável da medicina e:, em particular, da biotecnologia conduz-nos a interrogar sobre sua posição no modo ético-jurídico, a nos questionarm'os sobre o estatuto

que ele tem - ou deve ter - entre nós..

Se a questão foi, constantemente, invocada, hoje ela se manifesta de maneira infinitamente mais imperativa e urgente, graças ao progresso extraordinario dos conhecimentos e das possibilidades técnicas adquiridas pela humanidade. Basta, para tanto, pensar nas procriações artificiais, e na infinidade de possibilidades daí surgidas, para se poder avaliar a atualidade da problemática. O embrião humano - fonte e origem da vida - até então escondido no

  • Doutor em Direito Privado.' Professor titular de Direito Civil. Pesquisador do CNPq e Advogado no Paraná.

122 Doutrina Nacional

seio da 'mulher protegido pelos segredos da natureza que não permitiam o acesso indiscreto da curiosidade humana, passa a ser examinado, estudado e analisado cada vez melhor, d6sde a concepção, de modo que o "mistério" antigo é revelado com uma precisão técni~a que nos permite ver o caminho e o desenvolvimento no organismo matemo. Os progressos espetaculares da tecnologia, materializados no aperfeiçoamento de procedimentos quase, infalíveis, nos permitem ver o embrião, tocá-Io, avaliá-Io, agindo sobre ele com profundidade inesperada. O antes mistério da vida se revela dado técnico e o ventre 'feminino, 'envolto em nebulosa, toma-se transparente.

Depois de ter ficado "milênios escondido ~m uma espécie de mistério inacessível, o embrião humano tende, de todas as formas, a assumir, no meio da sociedade dos humanos, um lugar novo, e original. Um lugar onde, tornando-se visíveli tangível e acessível a todos, ele gera toda uma série de novos problemas".

.E possível se reconhecer a existência de um estatuto do embrião humano? Caso positivo, que estatuto reconhecer ou atribuir a este embrião' humano reduzido, na sua origem, a esta minúscula célula suspensa no seio da mulher ou em um tubo de ensaio, expulsa naturalmente e perdida sem retorno? Como o situar entre nós e no meio de nós?

As questões se sobrepõem ao infinito. E a origem do questionamento parece radicar de duas ordens de razões; de um lado, a curiosidade legítima de s.aber de onde viemos, o que nós fomos, e como se "farão" os novos homens que nós desejamos no futuro; de outro, as preocupações éticas intensas, preocupados que estamos - diante das possibilidades de ação e de

intervenção cada vez mais numerosas que nos oferece a ,ciência - de

discemir entre o bem e o mal, entre aquilo qu'e é razoável, em nome da construção autêntica do Humano, e o que é criticável, porque provoca riscos demais perigosos para a humanidade.. Por isso, nunca uma questão suscitou tanta indagação quanto esta gerada pelo embrião humano, a partir das tentativas desenvolvidas com vistas a,contornar a infertilidade.

ROLLIN, Francis - Présentation des questions, In: "Colloque dustatut de l'embryon humain au seín de Ia communanté concrete des hommes", p. 10.

124 Doutrina Nacional

"pessoa", destinada a se tornar 'tal durante seu desenvolvimento pro gressl vo.

2. O Embrião Humano como pessoa

, Para a teoria concepcionista o embrião humano é, desde o primeiro

instante de sua concepção, uma "pessoa humana", inteira, exatamente igual a qualquer outro indivíduo da coletividade.
A teoria concepcionista, que certamente influencia bastante o mundo jurídico, admite ser o embrião, desde a fecundação, algo distinto da mãe e com uma autonomia genética-biológica que não permite estabelecer nenhuma mudança essencial em sua natureza até a idade adulta.- , '

A propósito, é o atendimento que permite aos adeptos desta posição, inserir "ab initio", esta realidade embrionária em uma categoria nítida e bem éonhecida:a de "pessoa", -que cada um de nós é. '. A nível voc~bular, os representantes desta corrente se recusam a empregar expressões do tipo "potencialidade de pessoa" ou "pessoa potencial" (que; precisamente, sugerem a distância e o caminho a percorrer

. ' entre o embrião e o homem no qual ele se transformará) para empregar, de

forma bastante significativa, a expressão "pessoa" ou "pessoa humana" com um potencial. É nesta perspectiva que o Código Civil brasileiro fala em nascituro, quandono art. 4° dispõe que: '''"Apersonalidade civil do homem começa do nascimento com vidà~ mas a lei põe a salvo, desde a concepção os direitos

do nàscitufo".2 -

"Desde a concepção..." logo o embrião humano goza de proteção jurídica desde o início de sua existência (quer sej a in utero, quer in vitro). Ist.o é, o concepto é considerado sujeito de direito reconhecendo-se-Ihe caráter de pessoa no exato momento da fecundação. (^2) No Brasil são adeptos da corrente concepcionista. Teixeira de Freitas (Consolidação das Leis Civis); Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado, Parte Geral, tomo I); Rubens Limongi França (Manual de Direito Civil); Anacleto de Faria e André Franco Montara (Condição Jurídica do Nascituro no Direito Brasileiro); Ives Gandra da Silva Martins (Fundamentos do Direito Natural à Vida - RT 623); Francisco dos Santos Amaral Neto (O Nascituro no Direito Civil Brasileiro. Contribuição do Direito

Português - RBDC, vaI. 8)- e Silmara J. A. <:::hinelato e Almeida (O Nascituro no Código Civil e o

nosso Direito Constituído, In: O Direito de Família e a Constituição de 1.988 - coord. Carlos alberto Bittar).

Doutrina Nacional^125

Entre o direitos que lhe são reconhecidos se inscreve, certamente, o direito à existência, no sentido de que, assim como ninguém, em nenhuma circunstância, não pode interromper a vida de um indivíduo, da mesma forma e pela mesma razão, ninguém tem o direito de interromper, du-eta e voluntariamente a vida de um embrião humano, desde sua concepção e desde que ele começou a existir. A posição é radical e não admite outras interpretações, de forma que, quaisquer que forem as razões invocadas ou as circunstâncias apresentadas, a postura é extremamente clara: a interrupção desta vida é homicídio, passível de reparação penal. Evidentemente, os adeptos desta posição reprovam todas as formas de fecundação artificial, já que o recurso artificial à fecundação atinge a dignidade pessoal do embrião. "Dignidade" porque as práticas reduzem o embrião a nível.. de objeto de uma tecnologia científica, expondo-o à situações inadmissíveis tais como, "ser congelado e conservado no frio", "ser utilizado a fins científicos ou terapêuticos", ou "ser destruído". Todas as possibilidades invocadas atingiriam frontalmente os direitos fundamentais da pessoa humana. Embora esta postura tenha sido determinadora da posição legislativa do Código Civil (art. 4°), acima invocada, e apresente a grande vantagem

. da clareza e robustez capaz de solucionar todos o~ problemas práticos

encontrados atualmente (aborto, fecundação artificial, experiências, diagnóstico pré-natal, etc...) ela apresenta aspectos frágeis que precisam ser considerados, sob risco de se faltar com a honestidade exigida pela ciência.

A primeira crítica que se pode levantar à concepção é de ordem "científic~f', ou seja: o fato das primeiras células ~mbrionárias possuírem um patrimônio genético humano é suficiente, por si só, para concluir que elas já constituem u~a "pessoa" no sentidp mais amplo do termo? Mas não

é só. A c,!>nsistênciaprópria e o papel do. "tomar-se embrionário" (de

embrião em pessoa humana) são suficientes levados em consideração? Não bastassem estes questionamentos, resta a considerar que o fato de valorizar e direcionar a atenção, quase exclusivamente, sobre o embrião, nos faz

esquecer. e negligenciar outra categoria. de interesses - igualmente

verdadeiros e nobres - que são os interesses da mãe e da família, mesm"o

nos casos trágicos onde Qcorre conflito entre uns e outros.

Revista da Faculdade ~e Direito da UFPR, Curitiba, a: 29, n. 29, 1996, p. 121-

Doutrina Nacional^127

Para os desenvolvimentistas antes de se falar em pessoa há uma seqüência de fases ou etapas que, de tão elementares, não geram qualquer possibilidade ou prerrogativa capaz de gerar direitos. Assim, antes da pessoa há o zigoto, mórula, embrião e feto. Vale lembrar que, para ~sta corrente, o fa~o de afirmar a ausência de direitos do embrião não implica em desconhecê-Ios nenhuma dimensão ética. Ou seja, os desenvolvimentistas estão preocupados com os direitos d~ "criança a nascer". E se, efetivamente, esta criança deve nascer, esta corrente não aceita qualquer gesto ou ato, durante a gestação, que possa comprometer o futuro humano da criança que é, naturalmente, o termo da

. longa gestação.

Mas é igualmente em nome desta convicção dos direitos prioritári~s da criança a nascer que eles afirmarão, sem vacilar, a legitimidade e o dever moral de interromper Um desenvolvimento embrionário que não assegurasse a esta criança a perfeição mínima que se espera para sua sobrevivência e desenvolvimentos normais.

Assim, enquanto a postura concepcionista não aceita, sob qualquer hipótese (mesmo. de anomalia congênita) a interrupção da gravidez, priorizando a noção de direito, em detrimehtode uma dignidade contestável (qual a dignidade de um monstro, ou de uma criança sem cérebro?) a postura desenvolvimcntista favorece o direifo da criança a nascer e, por isso, legitima toda e qualquer interferência médica que, atuando sobre o embrião (material bjológico ) garante a viabilidade da criança. Nesta ótica, uma vez assegurados os direitos da criança anascer, as diferentes práticas possíveis, relativas ao embrião, sobre o plario ético, são perfeitamente aceitáveis. Não é sem razão, que a posturadesenvolvimentista (ou genético desenvolvimentista, como pretendem alguns) sempre foi a mais aceita pelo

(^4) Zigoto (é o óvulo que acaba de ser fecundado por um espermatozóide); mórula (quando no zigoto se processa um certo' número de divisões celulares que, através de segmentações sucessivas cria a "mórula"); embrião (quando existe um botão embrionário, isto -é, todo o desenvolvimento situado entre o aparecimento do boião embrionário e o término do surgimento de todas as partes do corpo, no final do segundo mês) e, finalmente, feto, da fase antecedente(2° mês) até o parto (9° mês). ,

Revista da Faculdl\de de Direito da UFPR, Curitiba, a. 29, D. 29, 1996, p. 121-

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128 Doutrina^ Nacional

corpo médico 5 e, igualmente, adotado pelo célebre Relatório Wamock, na ' Grã-Bretanha.

Embora esta postura seja antagônica à precedente, as críticas que lhe podem ser endereçadas são, praticamente as mesm"as,ou sej a, tudo gira em torno da questão do discemimento:, "Até que momento, nesta hipótese, pode-se considerar o embrião humano como um simples conjunto de células? A partir deqrie momento deve-se considerar o embrião já próximo do estatuto da pessoa? De acordo com que critérios e definidos por quem? E a partir deste momento, o que fazer? Que comportamentos adotar em

relação ao embrião?", são as questões colocadas por Rolin 6 e que; ainda não

foram respondidas," conduzindo-nQs, então, à apreciação da terceira postura.\ , , -

4.0 Embriãocomo potencial idade de pessoa

Os representantes desta terceira corrente, embora reconhecendo aspectos de verdade em cada uma das posições anteriores, entendem que elas são insuficientes quando afirmadas isoladamente. Dentro de uma linha eclética, esta tendência procura recompor e completar os ponto~ que lhes parecem contraditórios naquelas duas posições, sem incorrer nos "erros, ou-. equívocos, que se lhes revelam graves.

Sem classificar o embrião na categoria "humana", nem tampouco negar sua possibilidade de tornar-se "humano", a terceira tendência visualiza no embrião um estatuto específico e irredutível que lhe é próprio. O embrião humano é dotado, desde o primeiro momento de sua existência, de autonomia, mas que não é "humana", como pretende a corrente concepcionista, nem "biológico", como querem os desenvolvimentistas, mas uma autonomia "embrionária"..

Na ótica desta corrente ecIética o embrião, enquanto categoria original não pode se confundir nem com a característica humana (que implica na ocorrência de um ser dotado de personalidade), nem com a - meramente celular (na medida em que seu desenvolvimento conduz, inexoravelmente, à categoria "humana"). Enquanto embrião, o início da (^5) A Comissão Warmock considera embrião o ser que se desenvolve da data da fecundação até o 14° dia, ou seja, duas semanas. Este prazo, certamente, foi fixado em função de certos imperativos de pesquisa e temendo que as experiências se tornassem impossíveis, se não se admitisse um prazo durante o qual se pudesse agir. Logo, tem uma conotação eminentemente médica. (^6) ROLLIN, F. Obra citada, p. 18.

130 Doutrina^ Nacional

deste novo ser. E que nos levou a reafirmar, em diversas oportun'idades,a necessidade de priorizar, na procriação, o "projeto parental".7 Um papel, reafirma-se, que, independ~nte de ser um simples instrumento da natureza, revela-se na plenitude de sua dimensão "pró-criadora", envolvendo pai e mãe quer no aspecto espiritual quant~ no corporal. Papel e responsabilidade "procriadora", no sentido mais intenso da palavra, que não se esgota na mera concepção (como quer' a corrente concepcioni~ta), nem na gênese biológica deste novo ser huniano (como pretendem) os desenvolvimentistas, mas que se aperfeiçoa no direito e no dever de "gerar" o embrião de forma autenticamente responsável. Pode-se imaginar o quanto tal concepção vaioriza e prioriza o papel dos pais. Não se trata mais de afirmar, como fizeram alguns juristas, que "no colo das mães se forj am os homens de amanhã (como se a responsabilidade materna fosse exclusiva e unilateral) mas sim, de reafirmar que, no útero materno, o amor de pai e mãe decide a existência de um ser em formação. Frenal já afirmava que "Em oposição à maternidade, que é uma experiência sensorial, a paternidade resulta de um processo de pensamento" (Moisés e o monoteísmo). A paternidade é uma operação mental e sua aquisição é independente do processo de nascimento. O acesso à paternidade (e isto o Direito tem dificuldade de aprender) não se faz através de um registro de nascimento, mas pelo processo de adoção pelo pai do seu próprio filho. Adoção que pode começar muito antes do nascimento. .Quando o filho em potencial, ain~a é mero embrião. Adoção que se manifesta (concretamente) nas palavras ou nas canções que banham a vida uterina do embrião .ou os primeiros tempos de sua vida aérea. Adoção que se expressa no toque (carregado' de sensações) do ventre feminino e que para a criança significam "É a tua pequena mão, eu sinto tua cabeça...".

(^7) Ver, nesse sentido, nosso trabalho "Procriações artificiais e o Direito": "... a criança deve se desenvolver na atmosfera familiar com um pai e uma mãe (..) deseja-se crianças felizes, não se pode pensar em crianças decorrentes de famílias monoparentais, onde, ,desde o. início, só há um representante, o pai, ou a mãe (...) o interesse de criança impõe seu nascimento num lar, onde existe uma relação heterossexual estável e afetuosa;em conseqüência, a concepção de uma criança por uma mulher ou homem que não participa de tal relação é moralmente e psicologicamente condenável" (p. 140); "Toda a criança tem direito a um pai e a uma mãe (...) É fácil reconhecer nelas uma vocação natural e legítima de ter pai e mãe e, por eles ser educada (p. ISO) (...) Se a família que o legislador tem interesse de garantir à criança é formada por pai e mãe, a possibilidade de mulheres solteiras recorrerem à procriação artificial fica excluída" (p. 151).


Doutrina Nacional^131

Adoção que evita a brutal ruptura da passagem do mundo líquido para o

meio aéreo, se existe uma continuid,adede informações sensoriais. 8

O estudo do desenvolvimento dos processos interativos mãe-criança na vida intra-uterina desencadeou toda investigação científica9 tendente a valorar este relacionamento.

A partir desta perspectiva, centrada sobre a responsabilidade dos pais, não há mais que se falar em "direitos do embrião", mas, antes de "direitos" específicos, adaptados ao estatuto do ser embrionário. /.. - O agigantamento da responsabilidade parental nos conduz a encarar diferentemente as situações problemáticas que podem surgir neste terreno: "O que pensar - em uma perspectiva de responsabilidade mútua - de um processo de procriação que se iniciasse contra a vontade profunda da mulher (estupro ou seus equivalentes morais e psicológicos)? O que fazer se, iniciada uma gravidez, percebe-se que, por uma ou outra razão (risco vital, físico ou psíquico) o custo "risco" é desmesurado para a mãe, ou para a família já constituída? O que fazer se, iniciada a gravidez revela-se claramente que o processo desencadeado não atingirá o resultado esperado (caso de monstruosidade ou de anoJIlalia irreversível)? O que fazer diante de um embrião "in vitro" que, por uma ou outra razão, não se encontra mais inscrito em. um projeto parental concreto? Que articulações estabelecer

entre a responsabilidade dos pais, a dos médicos - e pesquisadores e a

sociedade? O fato de tlm processo embrionário ter começado é suficiente 8 -

por si próprio e independentemente - de qualquer vontade humana - para tomá-Io humano e moralmente irresistível? Ele é suficiente para criar a obrigação moral de, custe o que custar, e quaisquer que forem as (^8) Querleau demonstrou que os bebês recém nascidos reagem espeérficamerite à voz de sua mãe diferenciando-a dé outras vozes femininas, e assim agem só recorrendo à condição, como única fonte de informação (Congres de psycho-pophylaxie obstétricale. Paris, novembro de 1.983). A tese exclui a hipótese de precocidade de um aprendizado neonatal e reforça a hipótese das aquisições pré-natais. ou da ocorrência de uma sensorialidade pré-natal. A título de exemplo citaríamos os trabalhos de MARSHALL H. KLAUS e JOHN H. KENNEL. que centraram suas pesquisas sobre a importância. toda especial. dos prÍDieiros momentos que se seguem ao nascimento (Maternal-Infant Bonding: "The impact of early separation or Loss on family

development" - Saint Louis. Mosby. 1.976). de W. S Condon e L. W. Sander, para quem, a palavra da

mãe determina e ritma os movimentos do recém nascido ("Neonatal movement is syncroilized with adult speech: interactional participation and language acquisition" :-Science, 1.974, 183, ,99-101) e ainda o trabalho de A. N. Meltzoff e M. K. Moore. segundo os quais, através de uma metodologia rigorosa, comprovaram que os..recém-nascidos, com apena$ 12 e 21 dias, são capazes de reproduzir

as mímicas feitas pelos seus pais ("Imitation of Facial and Manual Gestures by human Noenates" -

Science, 19/7, 198,75-78).

9


Doutrina Nacional 133

que espera e chama, para passar ao ato (mesmo sob uma forma ainda latente)

um desenvolvimento orgânico suficiente".

Que há vida, e uma vida organizada, capaz de reprodução (isto é, de divisão celular) todos estão de' acordo. O problema continua sendo o de saber a partir de que momento há "estatuto pessoal". É aí que a idéia de gradualidade, ou de potencialidade humana se impõe já que, no início, o que há é um conjunto de células que são ainda totipotentes, mas, certamente, não se trata de um (ser) "ser estruturado", e é apenas, progressivamente, que ele vai adquirir esta "estrutura". Em que momento pode-se considerar esta "estrutura" suficientemente desenvolvida para que exista - ainda que de maneira latente

- pessoa humana? 14 dias .respondeu o corpo médico, posição reafirmada

por Lefevre nos debates do Colóquio sobre o estatuto do embrião humano:

"... nós dispomos de um certo número de dados que nos proíbem - ou, ao

menos, nos desaconselham - supor esta 'personalidade' enquanto o zigoto não se tornou um indivíduo. Pois, para que haja 'personalidade' é necessário que, ao menos, nele haja 'individualidade'. Ora, esta última não pode se constituir enquanto os fenômenos gemelares e de fusão embrionária podem ainda ocorrer. Há aí, para mim, uma indicação de ordem negativa, que me impede. de pensar que possa aí ocorrer uma 'individualidade' e pois, com

maIS f^ orte razao, uma pessoa.-^ " 12^ '

5. A postura Jurídica

A análise das diversas posições a respeito do embrião humano nos condl;lz a um dilema sem solução: se o embrião não é uma pessoa, mesmo potencial, tudo é permitido e não há nenhuma necessidade da lei se referir ao seu estat~to, assim como redunda ilógico proclamar que ele não é isto °lI aquilo. S~, ao contrário, o embrião é uma pessoa, sujeito de direito, nada é possível, a lei mesmo sendo - impotente para autorizar o comércio e a destruição do ser humano. 7'

11 LEFEVRE. Charles. Le constitutif de Ia personne humaine; In: "Colloque du statut de r embryon humain au sein de Ia coh1munanté concrete des hommes". p. 37. 12 LEFEVRE. Charles. Obra citada, p. 55. -

(^134) Doutrina Nacional

o dilema evoca um conflito de valores entre o interesse médico de um projeto de pesquisa e o respeito de embrião,cõmo "ser", como "pessoa",

passível de toda a proteção..

Por isso, a Comissão Wamock, através de uma tendência que Meulders-Klein chamou de "pragmatismo controlado",13 admitiu que um embrião humano possa ser utilizado como sujeito de pesquisa até o 14° dia após a fecundação (porque, antes desta data, não há nem el~boração do sistema nervoso, nem inteligência, nem sensações), mas somente sob autorização e vigilância do organismo oficial de controle criado pelo legislador. Fora destas condiçqes, todo emprego do embrião para fins de. pesquisa constituiria um delito. O rigorismo inicial previsto pelá Comissão não nos deve iludir pois, a própria Comissão acabou admitindo a possibilidade de criação de embriões, especificamente, com vistas à pesquisa e a fecundação entre espécies. Quando a Comissão assim agiu, abstendo o conceito utilitarista de pré-embrião (da fecundação até o 14° dia) tinha em vista facilitar sobre o

mesmo, revelando a ligação entre a qualificação e a utilização. 14

. Apesar da posição bastante clara (e literal) da Grã-Bretanha na

delicada matéria, os argumentos que mais se ouvem, como afirma Mémeteau,15 são que "nós estamos na presença de seres completos", que "a criança não deve ser tratada como um produto, como um objeto...", que "o essencial é proteger o embrião", que "não se pode dizer que o embrião começa sendo um objeto para se tornar um sujeito".

Ainda que a çonclusão nos cause incômodo - e daí decorre a principal

razão da acirrada discussão em torno do tema - sempre somos compelidos

a concluir que o embrião, desde sua concepção é uma pessoa humana; desde o seu surgimento ele é, potencialmente, um indivíduo, e um dia, se tornará um ser humano completo cujo destino biológico encontra-se inscrito no. ADN..

13 MEULDERS-KLEIN, Marie - Thérese. Le droit de l'enfantface ou droit à l'enfant et les pocréations médicalement assistés - In: Revue trismetrielle de Droit Civil, 1.988, p. 661. 14 O conceito de "pré-embrião" parece proceder das reflexões do comitê de ética da AMERICAN FERTILITY SOCIETY (sept. 1986,§ 26 s, 45, 53, 56) cf. LABRUSSE - RIOU - "Servitude, servitudes", in: "L'homme, Ia nature et le droit," C. Bourgois, 1.988, p. 332. Sobre as pesquisas relativas ao pré-embrião ver as recomendações de FleTO, in: Gynécologie internationale, 2/1 O déc, 1.993,322... e art. 15 do projeto de Convenção Ética do Conselho da Europa (julho 1.994). , 15 MÉMETEA U, Gérard. L' embryon législatif. In: Recueil Dalloz Sirey, 1.994, 44 cahier, p. 361.

,

136 Doutrina Nacional

6. Embriões excedentes e aborto

o processo de fecundação "in vitro" acaba criando, razges de ordem- técnica, mais embriões do que é necessário, para satisfazer os pedidos dos casais estéreis. Chegado o momento de transplantar os embriões na mulher, duas situações podem se apresentar: a) ou há apenas um só embrião apto a ser transplantado~ b) ou há diversos embriões disponíveis, o que garante à

mulher melhores chances de ficar grávida. A segunda hipótese yera o grave problema dos embriões excedentes, ou "supranumerários". 9 Como a prática médica tende- a não transplantar, simultaneamente, mais de três embriões, para limitar o risco de""gravidezes múltiplas, dispõe-se, regularmente, de embriões excedentes. A constatação de que a técnica atual da fecundação "in vitro" produz, necessariamente, a existência de embriões excedentes nos obriga a encarar a questão destes embriões.

Que destino dar a estes embtlões? Quando a fecundação "in vitl"o" é coroada de êxito, o que fazer dos embriões restantes? Guardá-Ios para uma nova gravidez do mesmo casal? Destruí-Ios, em nome do respeito que se deve a estas pessoas "potenciais", a estes seres humanos dos quais não se tem mais necessidade? Utilizá-Ios em proveitos de outros casais estéreis? Servir-se deles para experiências destinadas a fazer progredir a pesquisa sobre o tratamento da esterilidade, as doenças genéticas ou câncer? Qualquer que for a dificuldade daí decorrente é impossível contornar este problema sem resolvê-Io inicialmente. A partir do momento em que duas células germinais fusionam começa a se desenvolver um processo

contínuo - que não mais se presta à definição, sobre bases de um critério

científico - de início da vida humana..

Do ponto ~~vista estritamente ético, em nenhum dos estágios de uma vida "in vitro", o embrião pode ser tratado como uma coisa (como pretendem as legislações mais liberais). Ao contrário, a partir do momento em que duas células se encontram e passam a se multiplicar, quer queiramos ou não, já nos encontramos diante de um novo ser, diante de uma nova vida.

É esta vida que a ética pretende proteger~é esta vida que, independente de qualquer consideração meramente científica, o Direito sente vocação e obrigação de proteger.

19 Ver, nesse sentido, nosso trabalho "Procriações artificiais e o Direito", especialmente capítulo I (Aspectos Médicos) e IV (Aspectos éticos).

Doutrina Nacional 137

"A produção de embriões em número superior às possibilidades médicas ou aos desejos parentais de transplantação com vistas ao nascimento de crianças coloca de forma aguda e imediata o problema da transformação destes embriões e de sua eventual utilização. Esta, pode assumir diversas formas: transplante com vistas a um segundo projeto parental; doação a um outro casal a fim de lhe possibilitar a realização de

seu desejo de ter filhos; enfim, utilização para pesquisas"?O.

Se o embrião é um ser humano em formação, ou melhor, um ser vivo em projeto, protegido pelo Direito desde sua concepção, não pode ser tratado como coisa. Daí decorre um priQleiro primado ético com intensa repercussão na ordem jurídica: a utilização industrial e comercial dos' embriões "in vitro" deve ser terminantemente proibida. A proibição, para surtir efeito, precisa ser prevista em lei e o desrespeito a norma legal deve ser sancionado penalmente. A utilização de embriões para fins de pesquisa comporta uma dupla resposta: se se trata de pesquisa capaz ,de provocar progressos do diagnóstico ou da terapêutica, a negativa não pode se impor sob risco de negarmos a evolução da ciência médica; se, ao contrário, os embriões são provocados sem objetivo terapêutico, tal revelar-se-ia contrária à deontologia. A retirada de embriões de uma. mulher fecundada, bem como a fecundação artificial de embriões que não /fossem destinados a uma futura

implantação com vistas" a um nascimento constituíram um atentado à.

integridade física da paciente e, portanto, sem fim terapêutico, contrárias à ética e ao Direito. ".""..

Como um embrião representa, em toda sua expressão, uma pessoa humana potencial, ficariam proibi"das todas as experiências suscetíveis de atingir uma modificação artificial do genoma humano21 transmissível à descendência, bem como as pesquisas científicas e moralmente condenáveis, como por exemplo, a realização de uma gestação completa "in vitro" (ectogênese), a partenogênese e a produção de organismos anormais. O objetivo desta proibição absoluta nãp é somente de salvaguardar a espécie

20 De l' éthique au Droit. Etude du Conseil d'Etat, p. 81. 21 Genoma - conjunto dos gens dos cromossomas que contém informações genéticas. O genoma da espécie humana compreende 23 cromossomas.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba. a. 29, n. 29. 1996. p. 121-

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Segundo ajurista francesa: "o fato dos embriões estarem disponíveis de maneira incidente, ou que eles sejam concebidos para a pesquisa, tem pouco importância, pois, nos dois casos, eles não têm nenhuma oportunidade de vida, já que não mais destinados a serem transplantados no útero". A pesquisa, segundo esta jurista, "é indispensável para conhecer os mecanismos da fecuI1dação, a formação de anomalias, e mesmo, para obter informações sobre o câncer, e talvez, até para conhecer as causas dos abortos espontâneos,,? É a postura assumida, no Brasil, pela Resolução n° 1358/92 do conselho Federal de Medicina que, relativamente à criopreservação de

gametas ou pré-embriões, assim se manifestou:.

V. 2. "O número total de pré-embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidas a fresco, devendo o excedente ser criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído.

  1. No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento. .de um deles ou de ambos, e quando desejam dQfÍ-Ios".

Como se depreende da leitura da Resolução num primeiro momento, proíbe-se o descarte e a destruição dos embriões excedentes para, em seguida, atribuir-se ao casal, a prerrogativa de decidir sobre o "destino" dos mesmos. Estranho raciocínio daquele legislador. Se o direito à integridade física é do nascituro, como ressaltou sem vacilações, Silmara Chinelato e Almeida, e não da mãe, "não é lícito a ela opor-se a tal.direito, (...) não cabe à mãe dispor do direito à saúde que não é seu, mas sim, do filho nascituro,,?4 Logo, não há que se falar em manifest~ção de vontade da mãe, ou do casal (como quer a Resolução brasileir~). O ovo humano, fecundado ou não "não pertence a ninguém, e também não é propriedade de seus pais; o indivíduo tem o poder de utilizar suas faculdades procriadoras, conforme a natureza lhe permite; é uma liberalidade fundamental do ser humano, de dar ou de não dar a vida. C..)Se os gametas são, no plano jurídico, forças genéticas do indivíduo, eles não

23 RUBELLIN-DEVICHI, J. Obra citada, p. 474. 24 ALMEIDA, Silmara J. A. C. e. Obra citada, p. 27.

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podem ser objeto nem de uma doação, nem de.uma venda; e eles escapam da vontade individual: o mesmo ocorre com o ovo humano fecundado, quer

se trate de uma doação com vistas à pesquisa ou a um outro casal estéril". 25

A quem caberia, pois, a determinação do destino dos embriões excedentes? Parece-nos que a solução encontrada por Rubellin-Devichi é a mais plausível: na medida em que o casal confia sua sorte, ou a sorte de sua eventual progenitura, à uma equipe científica competente, ele deve confiar nesta equipe. Cabe aos médicos do centro de reprodução decidir <?que fazer dos embriões excedentes. Se a equipe considera necessário ouvir a opinião dos pais, esta é uma excelente regra ética que só os honra, mas, tudo indica, que não lhes deve ser imposta. Mesmo porque pareceria estranho, se não cruel, colocar a mãe (ou casal) face à alternativa de destruição, ou da doação, de uma criança já existente e biol~gicamente do casal. Além disso, pareceria sempre paradoxal considerar que o interesse maior da criança conduzisse a suprimir a existência da mesma (talvez por isso, na seção V, n° 2,. a Resolução vedou a possibilidade de descarte ou de' destruição do embrião ).

Quanto à possibilidade de utilizar os embriões excedentes em experiências, as posições se dividem de forma radical e inconciliável. Se o ovo fecundado não é, "ab initio" uma pessoa passível de proteção jurídica (conforme se viu) esta atitude permitiria, sem incoerência, escolher o momento a partir do qual não mais seria possível fazer experiências sobre o embrião, não mais em função do respeito e da dignidade da pessoa humana,. 26 mas em função dos sofrimentos que se poderia infligir a um ser VIVO.

Os direitos do nascituro são tutelados desde a concepção, logo, o embrião, ainda que "in vitro" também se insere nesta proteção; isto é, o concepto é considerado sujeito de direito reconhecendo-se-Ihe caráter de pessoa no exato momento da fecundação. Mas a questão não é pacífica.

25 RUBELLIN-DEVICHI,J. Obra citada, p. 476. 26 Ver neste sentido, a postura de G. R. Dunstan: "We have to choose. Uterine life must be protected at some point. If we put that point toa early, forbidding observation and experimental use of pre-implantation embryos in the early stages of cell division, we shall inhibit much useful research of potential human benefit, including the improvement of the chances of successful pregnancy for lack of which many extra embryos are sacrificed at present". ("The moral status of the human embryo: a tradition recalled", In: Joumal ofmedical ethics, 1.984, 1,38 - 44).