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Este texto discute o conceito de sistema deliberativo e sua importância na avaliação de processos de debate público em diferentes áreas. O autor aborda a importância dos atores e suas expectativas de participação, além de discutir métodos formais e informais de representação política. Baseado na tese de doutorado 'sistema deliberativo e tensões entre interesses públicos e privados: a criação da empresa brasil de comunicação em debate no congresso e na imprensa', defendida em 2012 na universidade federal de minas gerais.
Tipologia: Resumos
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Não perca as partes importantes!
Edna Miola^1 Rousiley C. M. Maia^2
Resumo: Este trabalho discute o conceito de Sistema Deliberativo com o objetivo de estabelecer indicadores metodológicos dedicados a caracterizar e avaliar processos de debate público em diversas arenas. A partir das categorias (1) Momentos Deliberativos, (2) Atores e (3) Discursos Deliberativos, propõe-se um desenho de pesquisa que confronta aspectos ideais e pragmáticos de cada realidade. Duas esferas diretamente envolvidas na discussão de uma política pública específica (a criação da Empresa Brasil de Comunicação) são analisadas de modo a exemplificar a abordagem aqui proposta. São elas: o Plenário da Câmara dos Deputados e a esfera de visibilidade pública constituída por uma parte da imprensa escrita nacional. Conclui-se que, do embate discursivo entre interesses públicos e privados, submetido a certas condições institucionais, há consequências deliberativas e não-deliberativas. Palavras-chave: Sistema deliberativo; Two track model ; Indicadores metodológicos.
1 Introdução
A teoria deliberacionista, embora relativamente recente, já passou por diversos momentos. Enquanto, inicialmente, o esforço dos pesquisadores consistiu em apresentar, justificar e consolidar os princípios de um novo modelo de democracia, posteriormente, certas clivagens começaram a se destacar. Alguns teóricos concederam ênfases participacionistas ou liberais à deliberação; quanto à esfera de debate, certos autores deram destaque ao papel do Estado enquanto outros enfatizaram o lugar da sociedade civil; alguns programas de investigação produziram reflexões filosóficas e outros, sob a ótica da Ciência Política, buscaram avaliar os potenciais e fraquezas da deliberação. Finalmente, a virada empírica produziu um conjunto de estudos, ora sobre experiências pontuais, ora sobre perspectivas macro- sociológicas. É dentro do espectro dessas pesquisas de teor mais abrangente que o trabalho aqui apresentado se insere.
O conceito de sistema deliberativo, derivado das teorias da democracia deliberativa, reconhece a heterogeneidade e a complexidade das redes discursivas, resgata certas
(^1) Professora Adjunta do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Sergipe. Doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: ednamiola@gmail.com 2 Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Ciência Política pela University of Nottingam, Inglaterra. Contato: rousiley@fafich.ufmg.br
são identificáveis a partir de ferramentas metodológicas, ou, de modo mais primário, definir mesmo quais desses valores são factíveis nesta ou naquela arena (e em que medida o são). Defende-se, neste caso, a importância das dimensões formal e substantiva do debate.
A pesquisa sobre a EBC, que serve de ilustração à abordagem teórico-metodológica aqui apresentada, concentrou-se em duas arenas que contribuem para a formação da opinião pública e produção da decisão política. São elas: (1) o Parlamento e (2) os mass media.
Levando em conta o acima exposto, o trabalho propõe discutir os conceitos relacionados à deliberação pública em sua interpretação sistêmica – ou seja, analisando os principais modelos explicativos sobre o tema. A partir de tal reflexão, elabora-se uma abordagem metodológica para investigação de fenômenos de debate público no sistema deliberativo que leva em conta os aspectos a condicionarem as práticas discursivas nas mais variadas arenas. Como exemplo de abordagem, apresenta-se a investigação realizada acerca da deliberação na esfera legislativa e no âmbito dos media a respeito da criação da Empresa Brasil de Comunicação. Ao final, percebe-se que, do embate discursivo entre interesses públicos e privados, submetido a certas condições institucionais, há consequências deliberativas (que vão dos ganhos epistêmicos ao aprimoramento das decisões) e não-deliberativas (com temas suprimidos da agenda pública a decisões tomadas em acordos a portas fechadas).
2 Sistema Deliberativo: dos princípios normativos da Deliberação à realização do debate público
A tematização pública dos problemas que afetam a vida dos indivíduos de modo a torná-los objeto de regulação, assim como a dimensão discursiva da produção de políticas públicas, é parte do processo de legitimação do qual depende o bom funcionamento das democracias contemporâneas. Esse processo pode se dar discursivamente, mas também guarda espaço para práticas como a representação de interesses, as barganhas ou a simples prevalência da vontade da maioria. Afinal, atores da esfera política e da esfera civil perseguem seus interesses – sejam eles públicos ou privados – lançando mão de todos esses mecanismos de disputa de poder. Essas estratégias, no entanto, somente podem ser consideradas legítimas se respeitarem o Estado de Direito e forem publicamente defensáveis.
As democracias contemporâneas têm visto o surgimento de novas modalidades de engajamento e mobilização e, consequentemente, crescentes demandas por abertura do sistema político aos discursos emergentes na sociedade civil – amplificados em grande medida pelo amplo acesso e distribuição de conteúdo através do sistema mediático.
Em paralelo, cientistas políticos e filósofos vêm discutindo essas transformações, fundamentalmente tendo em vista o aperfeiçoamento das teorias democráticas naqueles que seriam seus pontos fracos: ora um déficit de legitimidade que tem origem na refração à participação; ora a incapacidade de lidar com as características de uma sociedade de massa onde a representação política é fundamental para a eficiência do sistema político; sem deixar de lado as conquistas no âmbito dos direitos e liberdades individuais.
Da tentativa de sanar esses problemas um conjunto de filósofos e investigadores da Teoria Política passou a discutir aquele que viria a ser um modelo discursivo de democracia, que congregaria valores defendidos por diferentes ênfases democráticas. São destacadas as contribuições do filósofo norte-americano John Rawls, e sua pretensão de reformar o modelo de democracia liberal; e do alemão Jürgen Habermas (1995), que, em seu modelo de democracia deliberativa que tentou conciliar aspectos das tradições liberal e republicana, propunha um rearranjo dos princípios e procedimentos democráticos de modo a assegurar uma influência mais acentuada da esfera civil na condução dos negócios públicos.
Como explica James Bohman (1998, p. 400), a defesa da democracia deliberativa partiu das concepções de cidadania participativa e da ideia de bem comum que marcam especialmente a esfera da sociedade civil e se expandiu para a admissão das tradicionais instituições democráticas como locus da razão pública. Desde os anos 1990, quando as discussões teóricas sobre o tema se adensaram, diferentes correntes de pensamento tornaram mais complexo o deliberacionismo: “[a] Democracia deliberativa, definida em sentido lato, consiste de uma família de concepções segundo as quais a deliberação pública de cidadãos livres e iguais é a fonte de legitimidade política dos processos de decisão e autogoverno”^4.
Dentre os valores e princípios defendidos por estudiosos do tema, destaca-se, primeiramente, o entendimento do procedimentalismo como fonte de legitimação (Benhabib, 1992; Cohen e Arato, 1992; Habermas, 1997; Bohman, 1998 , 2 004 ), que ora entra em tensão, ora é complementado pelas visões substantivas da deliberação (Gutmann e Thompson, 1996; Young, 2001 ).
Outra discussão importante trata-se da percepção de que a publicidade, em suas dimensões de visibilidade (Gomes, 2008, p. 119), pode favorecer processos de accountability discursiva (Parkinson, 2006 ; Warren 2007 ), mas também constranger certos atores, dificultar a construção de entendimentos e favorecer uma postura performática dos representantes
(^4) Todas as traduções para o Português foram feitas pelas autoras a partir das obras originais.
Aspectos como a publicidade, a legitimidade, o uso da razão e a participação nos processos deliberativos constituem as questões-chave para a avaliação da deliberação pública em suas várias manifestações. É importante, ainda, lembrar que essas dimensões nem sempre são plenamente satisfeitas e são frequentemente conflitantes: tal como acima exposto, a garantia da publicidade pode diminuir ou aumentar a qualidade das razões; e a abertura à participação individual nem sempre garante a representação de todos os pontos de vista disponíveis. Complementarmente, é salutar a consideração de Bohman, que diz o seguinte:
Se um procedimento é avaliado apenas em termos da qualidade de seu resultado, então a deliberação tem apenas valor instrumental em relação a determinados fins morais ou epistêmicos, tais como a justiça ou a segurança. Além disso, se tentarmos acomodar os diferentes aspectos ou dimensões de deliberação, poderemos não ser capazes de capturá-los todos em um único conjunto de princípios. Na verdade, a democracia deliberativa pode demandar muitos princípios diferentes que estão em tensão uns com os outros e, portanto, fornecer apenas um explicação muito geral da justificação política (Bohman 1998:403).
Da articulação desse conjunto de requisitos e o aperfeiçoamento da própria teoria ao longo das últimas duas décadas de reflexões passou-se a uma nova fase na qual a ideia de sistema deliberativo incorporou as críticas e propôs avanços para a aplicação empírica do modelo. Essas contribuições são, na sequência, discutidas.
Desdobramentos da teoria: a ideia de sistema deliberativo
Uma abordagem mais abrangente da teoria veio contribuir para a reavaliação dos processos discursivos de modo a reconhecer as diversas manifestações da deliberação pública. Uma importante contribuição para isso foi a introdução da ideia de sistema deliberativo^5 (Mansbridge 1999). O conceito de sistema deliberativo, que reconhece a heterogeneidade e a complexidade das redes discursivas, esclarece certas contribuições das discussões Habermasianas equivocadamente questionadas e, principalmente, agrega as contribuições críticas feitas ao modelo teórico de modo a viabilizar a comprovação empírica de sua validade. Mansbridge (1999, p. 213) explica que, “[e]m todo o processo de deliberação cidadã, as diferentes partes do sistema deliberativo influenciam-se mutuamente de modo que não é fácil distingui-las”. Como aponta Maia (2007), as dimensões discursivas dedicadas a
(^5) A autora, quando denomina sistema deliberativo a profusão de experiências de debate público que podem ocorrer nas variadas arenas da sociedade, não pretende fazer relação qualquer ao termo associado à ideia de sistematização que implicaria supor que essas esferas deliberativas funcionassem de forma mecânica ou perfeitamente previsível em sua relação umas com as outras (Mansbridge, 1999, p. 228).
promover o debate sobre os negócios públicos não podem ser tomadas isoladamente, dada sua interdependência e influência mútua.
A ideia de sistema deliberativo permitiu uma abordagem mais abrangente dos diversos fenômenos que podem ser objeto da teoria deliberativa. De modo sucinto, pode-se citar a compreensão de que a deliberação pública pode envolver diferentes formas discursivas e variadas arenas. Isso é especialmente importante, pois, a partir de então, abriu-se a possibilidade de estudar os fenômenos do debate público de modo integrado, uma vez que as conversações cotidianas, os mass media e as esferas participativas organizadas passaram a ser interpretadas como dinâmicas comunicativas que se relacionam com os processos de produção da decisão política (Habermas, 1997; Neblo, 2005; Goodin, 2005; Hendriks, 2006; Parkinson e Bavister-Gould, 2009). As principais contribuições metodológicas relativas ao conceito de sistema deliberativo são avaliadas a seguir.
O modelo de circulação de poder em duas vias e suas consequências
Um exame das principais noções associadas ao conceito de sistema deliberativo leva a uma retomada das contribuições Habermasianas em Direito e Democracia ([1992]1997). Os pressupostos do conceito de sistema deliberativo perpassam o modelo de circulação do poder político em duas vias (o two track model ) exposto nesta obra e podem ser localizados na seguinte síntese: um sistema de esferas com funções políticas específicas que, por meio de processos comunicativos, regulam o poder no Estado de direito. O esquema de circulação de poder em duas vias organiza-se como um sistema concêntrico, onde “os processos de comunicação e de decisão do sistema político constitucional são ordenados no eixo centro- periferia”. De acordo com a explicação de Habermas,
O núcleo do sistema político é formado pelos seguintes complexos institucionais, já conhecidos: a administração (incluindo o governo), o judiciário e a formação democrática da opinião e da vontade (incluindo as corporações parlamentares, eleições políticas, concorrência entre os partidos, etc.). (…) No interior do núcleo, a “capacidade de ação” varia, dependendo da “densidade” da complexidade organizatória. O complexo parlamentar é o que se encontra mais aberto para a percepção e a tematização de problemas sociais; porém, comparado ao complexo administrativo, ele possui uma capacidade menor de elaborar problemas (Habermas, 1997, p. 86-7).
Em torno desse núcleo, cuja função primordial é a formação democrática da opinião e da vontade (tendo como competência a produção da decisão), localiza-se uma periferia interna , que, na explicação de Habermas,
(…) abrange instituições variadas, dotadas de tipos diferentes de direitos de auto- administração ou de funções estatais delegadas, de controle ou de soberania (universidades,
A partir da última década, nota-se um evidente esforço por uma interpretação mais ampla dos processos deliberativos – associada à virada empírica que marcou a teoria deliberativa nos anos 2000 (Bächtiger et al., 2009). Carolyn Hendriks (2006) dá seguimento ao tema e desenvolve o modelo de Habermas, ao sistematizar as pesquisas em deliberação sob a ótica do lugar que elas reservam à sociedade civil.
Na tentativa de defender um modelo de deliberação integrada , que acomodaria a sociedade civil em diversos espaços de discussão (na micro-deliberação, de Joseph Bessette, Joshua Cohen e John Elster, e na macro-deliberação, de Seyla Benhabib, John Dryzek e Jürgen Habermas), Hendriks advoga uma interpretação mais ampla dos processos de debate público. Ao apresentar seu projeto, a autora explica que a deliberação integrada reconhece que o debate ocorre em uma variedade de espaços, os quais ela denomina “esferas discursivas” – um local onde o discurso público, com a exposição e discussão de diferentes pontos de vista, aconteça^6. Um sistema deliberativo “saudável”, a autora propõe, contém uma ampla gama de esferas discursivas. A variação ocorre quanto ao seu grau de formalidade, o tipo de discurso predominante, sua estruturação, a inclusão e o engajamento dos atores (Hendriks, 2006 , p. 499 - 500).
Michael Neblo e o ciclo macro-deliberativo
Michael Neblo busca preservar a dimensão normativa da deliberação, ao estabelecer as variáveis empíricas, a fim de observar e analisar os processos deliberativos. Mas, de modo diverso a alguns autores, o esforço do autor é por escapar do círculo vicioso de procurar a confirmação para a teoria sem que haja padrões independentes de avaliação.
Em termos gerais e formalmente falando, a deliberação deve tipicamente (a) ter efeitos observáveis sugeridos pela teoria deliberativa e que sejam coerentes com objetivos normativos desta; e (b) ser compatível com o que se sabe sobre o funcionamento real ou potencial das instituições e sobre a capacidade e o comportamento dos atores políticos (Neblo, 2005, p. 6).
Neblo produz seu próprio esquema para ilustrar a circulação do poder político-discursivo : o ciclo macro-deliberativo. Apoiando-se nas distinções entre esferas públicas fraca e forte, Neblo propõe que a circulação ideal do poder comunicativo remete à deliberação na sociedade civil, que define uma agenda ampla e a transmite às instituições formais do
(^6) A autora inclui aqui os parlamentos, as reuniões de comissões, de partidos, de interessados, de especialistas, os fóruns na comunidade, os seminários públicos, eventos de grupos religiosos, entre outros (Hendriks, 2006, p. 499).
Governo; estes desenvolvem políticas concretas que interpretam e implementam a agenda, e assumem a responsabilidade de convencer o público fraco da adequação que produziram entre a agenda e as políticas públicas. Sob certas circunstâncias especiais, explica o autor, a formação da opinião ou da vontade podem envolver diretamente a deliberação entre públicos.
É esperado que esse ciclo ocorra recursivamente e seus fluxos tomem outros caminhos de acordo com as variações nos processos políticos – quando, por exemplo, acontecem referendos, ou a revisão da agenda ou políticas já propostas. Permanece nesse esquema, porém, certa delimitação entre o que é espaço da sociedade e o que é espaço de decisão, o que gera dificuldades para acomodar certas situações discursivas e determinadas experiências de deliberação. Este esquema não admite, por exemplo, que atores de ambas as esferas constituam um espaço híbrido de deliberação (Avritzer e Pereira 2005; Hendriks 2006), onde sociedade civil e representações do Estado partilhem o poder comunicativo e decisório.
Robert Goodin e a deliberação sequenciada
Robert Goodin (2005) pretende desconstruir a concepção de que a deliberação tem natureza unidimensional e episódica. Segundo o autor, é mais provável encontrar as virtudes deliberativas quando se leva em consideração o fator da sequencialidade. A deliberação sequenciada (também denominada distributiva ) é aquela que envolve vários componentes espaciais e temporais, além de incluir diferentes atores no processo. Goodin evidencia que diferentes expectativas concernentes à deliberação são acionadas segundo o potencial deliberativo de cada um desses “momentos”. A síntese do argumento é que a adoção de uma abordagem mais abrangente aumenta a probabilidade de os pesquisadores fazerem um diagnóstico das experiências deliberativas como “suficientemente boas”.
Goodin ilustra sua proposta com uma análise dos processos de discussão nos parlamentos. Uma observação criteriosa dessas esferas evidencia que há dinâmicas diferenciadas nos âmbitos das comissões e do Plenário. Partindo da premissa de que os debates nas comissões e em Plenário constituem momentos deliberativos, e, portanto, desempenham diferentes “tarefas” (ou “missões”) o autor propõe que enquanto o discurso nas comissões preliminares procura “refinar as propostas”, o debate na assembléia tem por objetivo “racionalizar a aceitação ou a rejeição” da mesma (Goodin, 2005, p. 188). Com as expectativas ajustadas
O conjunto de pesquisas aqui examinadas proporcionam um panorama das iniciativas contemporâneas da discussão metodológica de mensuração e avaliação dos processos deliberativos. Os autores elencados oferecem, na variedade de seus diagnósticos e na riqueza de suas propostas, opções para o refinamento das pesquisas empíricas, para que se compreenda a mobilidade dos agentes, a interpretação dos diferentes potenciais dos momentos discursivos e, por fim, a percepção das múltiplas dimensões da deliberação. Na seção seguinte deste artigo, buscamos traduzir as contribuições teóricas acima exploradas em uma agenda de pesquisa.
3 Caracterizando os processos deliberativos: Operadores analíticos
A partir das contribuições acima apresentadas é possível sugerir um modo de lidar com as características que marcam diferentes episódios ou arenas de debate nesse sistema deliberativo. O que se quer dizer é que, ao se avaliar a deliberação de uma perspectiva sistemática, devem ser definidos indicadores comuns a momentos bastante diferentes. Mas tais operadores analíticos só fazem sentido se forem ser adequados às particularidades de cada objeto de pesquisa.
No caso aqui exposto, o objeto da investigação foi o debate público em torno da criação de uma empresa de radiodifusão pública, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC). A EBC foi criada em 2007, por iniciativa do Governo Lula, e reuniu todas as emissoras de rádio e televisão sob o controle da União. Fazem parte desse sistema, por exemplo, a TV Brasil (antiga TVE Brasil) e a Radiobrás.
Embora especialmente elaboradas para a investigação do caso em tela, as dimensões da deliberação abaixo apresentadas constituem um desenho de pesquisa que pode vir a ser adaptado na análise de outras experiências de natureza discursiva.
Momentos deliberativos: Fases e lugares dos processos discursivos
Aborda-se, em primeiro lugar, a importância da contextualização temporal e espacial dos processos de debate público – o que se configura no conceito de momentos deliberativos. Os momentos deliberativos definem não apenas quando ocorrem os debates (em que fase do processo político-discursivo), mas também quais são as marcas institucionalizadas dos espaços nos quais ocorrem os debates.
Tendo em vista especialmente os processos de tomada de decisão a respeito de políticas públicas (como é o caso da criação da EBC), julga-se importante delimitar quais são as fases que contemplam a deliberação pública^8. O marco para uma pesquisa que gravita em torno de uma decisão política deve ser a própria tomada de decisão. A proposta da pesquisa que origina este artigo foi, então, analisar (1) o debate sobre a radiodifusão pública que antecedeu a criação da EBC, (2) o período em que a formatação da política estava na pauta dos Poderes Executivo e Legislativo e, finalmente, (3) os desdobramentos que a produção da decisão provocou nas esferas política e mediática. Convertendo tal intenção em reflexão teórico-metodológica, trata-se da caracterização das fases de Tematização (antecedente), Implementação (intermediária) e Avaliação (posterior).
A fase de Tematização , ou problematização da questão, e contempla aquele momento em que, para Neblo (2005), é a definição da agenda ampla. A tematização está relacionada ao momento anterior ao debate na esfera do Estado, quando a agenda ainda está sendo discursivamente construída e os discursos ainda se localizam predominantemente no âmbito da sociedade. Esta fase tem características visivelmente associadas à periferia do sistema de circulação do poder^9 e pode abranger um período indeterminado de tempo – tanto quanto for necessário para a formulação de demandas e o acolhimento destas pela esfera política. No caso do debate sobre a radiodifusão pública nacional, compreende a fase marcada pelo engajamento de representantes políticos isolados ou movimentos sociais em torno do tema, com pouca ou nenhuma repercussão no repertório dos cidadãos em geral, nos media e na produção de políticas.
A fase de Implementação delimita, como classificariam Parkinson e Bavister-Gould (2009), a tradução da agenda pública em projetos (de políticas e leis) a serem decididos pelo centro do poder político. No processo descrito por Neblo (2005), trata-se do desenvolvimento de políticas concretas a partir da interpretação e implementação da agenda. Supõe-se que é nesse momento que se dá de forma mais intensa a deliberação no âmbito do Parlamento e também nos media : enquanto os agentes políticos debatem, aperfeiçoam, negociam os projetos de lei, o campo da informação dá visibilidade à questão, discute aspectos do projeto, reporta as atividades dos políticos, e, eventualmente, toma partido. A criação da EBC
(^8) A título de ilustração, o estudo realizado por Ferree e seus colegas (2002) abrangeu um período bastante longo de tempo (mais de três décadas), dentro do qual acontecimentos de diversos tipos influenciaram o volume e o conteúdo do debate público. 9 É importante dizer que alguns projetos partem de formulações próprias do centro político, mas, usualmente, são aqueles que estão no domínio da administração do Estado (tais como a regulação dos processos internos e a criação de impostos).
caso da conversação política informal, das assembleias, dos eventos patrocinados pelo mundo acadêmico ou da deliberação circunscrita aos mass media. Nota-se que há lugares por definição mistos, pois reúnem atores de diferentes esferas e têm atribuições tanto de formação da vontade quanto de produção da decisão, as instituições híbridas tais como os minipúblicos (Avritzer e Pereira, 2005; Fung, 2003; Hendriks, 2006).
O segundo aspecto trata de uma clivagem mais profunda dentro desta primeira categoria. Há diferentes papeis desempenhados pela deliberação no espaço de decisão e na esfera pública. Mas, adicionalmente, há diferenciações internas de acordo com a natureza de cada espaço. É pertinente um paralelo com as contribuições de Goodin (2005) e a deliberação sequenciada: dentro dos parlamentos (uma das instituições do centro do sistema) há debate nas comissões, nas audiências públicas e no Plenário. Isso também se aplica aos media se consideradas as diferentes características dos debates televisivos, das notícias ou da propaganda política (Maia, 2012; Marques e Miola, 2010; Marques et al., 2009).
A partir do caso da EBC, pode-se identificar diversos espaços a contribuírem no debate ampliado sobre a radiodifusão pública. Pode-se destacar (1) as assembleias e campanhas organizadas por associações de classe, coletivos, movimentos, com o objetivo de discutir a democratização da comunicação; (2) os eventos acadêmicos, a reunirem pesquisadores em grupos de trabalho dedicados à acumulação de conhecimento e formulação de propostas relativas ao tema; (3) os espaços mediáticos especificamente envolvidos na crítica dos media (a exemplo dos programas “Observatório da Imprensa na TV”, produzido pela TVE Brasil, e “Ver TV”, da TV Câmara); (4) os eventos organizados por sindicatos patronais e entidades ligadas aos interesses dos empresários da comunicação de massa; (5) os fóruns políticos daqueles partidos que incluem em sua pauta diretrizes para a regulação da comunicação eletrônica; (6) na esfera institucional, as reuniões das comissões parlamentares, a exemplo da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, na Câmara dos Deputados, e da Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática, no Senado Federal^10.
A partir da localização espacial e temporal oferecidas pelas categorias fase e lugar da deliberação, é possível pensar em uma distribuição da deliberação marcada por características bem distintas. O conceito funciona como se espaço (os lugares da deliberação)
(^10) Às comissões parlamentares cabe avaliar e discutir propostas em fase inicial de tramitação. Há muitos projetos de lei que relacionados à radiodifusão pública e à regulação da comunicação “pairando” sobre a pauta das Casas. Por falta de interesse dos líderes, ou por não entrarem na ordem de prioridades do Congresso, tais projetos não vão além das próprias comissões.
e tempo (as fases de Tematização, Implementação e Avaliação) constituíssem duas dimensões que definem as condições nas quais se dá a deliberação.
Um esquema dessa proposta é apresentado na Tabela 1, onde a variável tempo (fases) é representada por algarismos, 1, 2 e 3; e a variável espaço (os lugares ou situações) é representada por letras, A, B, C e assim por diante. Cada momento seria assim representado: momento 1A, momento 2A, momento 3A, de acordo com as situações de debate público.
Exemplificando: quando se toma o momento 1B (o Poder Legislativo na fase de Tematização) pode-se inferir que os debates sobre determinado tema se caracterizarão por pouca participação, uma vez que ele não faz parte da ordem do dia (não está em debate um projeto de lei tratando da questão) e os discursos sobre a questão irão se misturar com uma miríade de outros discursos^11. Quando avaliado o momento 2B, a situação se altera, pois, tendo um projeto de lei em debate, há razões para os discursos e o envolvimento dos parlamentares serem mais intensos. Acredita-se que essas alterações acontecerão em cada um dos momentos deliberativos, variando de acordo com aquilo que Goodin (2005) denominou tarefa da deliberação.
Momentos Deliberativos Esferas Situações Fase 1: Tematização^ Fase 2: Implementação^ Fase 3: Avaliação
Esfera do Estado
A
Governo (Reuniões no âmbito da Presidência, de ministérios e secretarias etc.)
1A 2A 3A
B Parlamento (Plenário, comissões, audiências) 1B 2B 3B
C
Poder Judiciário (Plenários de Tribunais e Ministério Público)
1C 2C 3C
D Conselhos de Autarquias, empresas públicas etc. 1D 2D 3D
Instituições Intermediárias (participação híbrida)
E
Minipúblicos (Conselhos, orçamentos participativos, audiências públicas, fóruns etc).
1E 2E 3E
F Convenções de Partidos políticos* 1F 2F 3F
Esfera da Sociedade
G
Mass media (Jornalismo, debates televisionados, narrarivas ficcionais, HGPE, fóruns online etc.)
1G 2G 3G
H Assembléias, fóruns 1H 2H 3H
(^11) Quando o tema não faz parte da ordem do dia (período da sessão legislativa em que se discutem os projetos em tramitação) ele é debatido nas sessões não deliberativas ou nos Expedientes que antecedem ou sucedem a ordem do dia. No capítulo que trata da deliberação parlamentar, esse tema será melhor abordado.
parecem resolver satisfatoriamente este problema. Primeiramente, é interessante a busca de um equilíbrio de representação dos diversos atores interessados na questão em debate, que simule condições igualitárias de acesso de diferentes grupos sociais. Em segundo lugar, há que se verificar a configuração de uma “constelação de discursos” (Dryzek 2001, p. 657), ou seja, se os discursos disponíveis sobre o tema são adequadamente representados pelos atores que têm acesso à fala.
Ambas as tarefas dependem de um inventário e de uma caracterização dos atores envolvidos (porque afetados ou porque praticam a advocacia de uma causa relacionada) com os temas em disputa, assim como a identificação dos argumentos que se relacionam com a questão. Uma atenção especial deve ser dada, porém, à representação daqueles grupos ou perspectivas tradicionalmente alijados dos processos políticos ou mesmo tratados desigualmente (Bächtiger et al., 2009).
Há diferentes abordagens para a caracterização dos atores envolvidos na deliberação. A diferenciação proposta por Fraser (1992) entre “públicos fortes” e “públicos fracos” – que avalia os atores de acordo com seu poder de tomada de decisão – parece se relacionar mais com o momento deliberativo (conforme definido aqui) do que com o tipo de participantes (Maia, 2009, p. 179)^12. Ainda assim, distinções entre atores do centro do poder político e da periferia do sistema são importantes.
Outra proposta para identificar certos papeis ou lugares de fala nos processos deliberativos é apresentada por Peters (2008). O autor lista um conjunto de atores a tomar parte do debate público: os jornalistas; os representantes políticos; os intelectuais; os especialistas; e os empreendedores morais.
Para Ferree e seus colegas (2002), os atores são organizados de acordo com as arenas que ocupam (essas arenas podem ser os media , as instituições religiosas, a academia, os movimentos sociais organizados, o Parlamento, entre outros). Os pesquisadores citam, por exemplo, os atores coletivos; os jornalistas; os indivíduos ou “comunidades imaginadas”.
(^12) Na investigação da criação da Empresa Brasil de Comunicação, um momento de deliberação relacionado ao tema que pode ser citado é a realização do I Fórum Nacional de TVs Públicas (I Fórum..., 2006, 2007), que reuniu atores de diferentes esferas sociais (tais como radiodifusores do campo público e movimentos pela democratização da comunicação) e integrantes do Governo (a exemplo do Ministro da Comunicação e do Secretário de Comunicação Social), mas que não constituiu um público forte, uma vez que não teve o poder de tomar qualquer decisão.
Consideramos que muitos papeis podem ser assumidos simultaneamente pelos atores participantes de um embate argumentativo e o que define o lugar do ator em um debate é a identidade que se assume no processo discursivo.
Adicionalmente, identificar os atores pode não ser satisfatório a depender do momento deliberativo. Há que se ter em vista, por exemplo, o exercício de uma representação discursiva. Isso quer dizer que agentes do campo Político ou mesmo outros atores podem exercer uma representação de determinados discursos não vocalizados por atores diretamente envolvidos com a questão^13. Com isso, pretende-se afirmar que a existência de eventuais mecanismos formais de seleção e a análise dos atores presentes nas arenas discursivas não é suficiente para que se determine o caráter público do acesso ao debate. Na realidade, o que pode contribuir para o diagnóstico da deliberação no que concerne aos atores, além de identificar quem participa, é avaliar (1) as barreiras institucionais de entrada nas arenas discursivas (2) a reprodução interna de hierarquias no acesso à fala.
É de fundamental importância a articulação entre o exame dos atores presentes no debate e dos discursos tornados disponíveis. Isso porque, só com a enunciação de todos os interesses e argumentos pertinentes ao tema em debate é possível compensar a inviabilidade da participação universal.
Discursos deliberativos
Por fim, a última dimensão a caracterizar os processos de debate público são os discursos deliberativos. Aqui cabem, novamente, certas escolhas dos pesquisadores de modo a operacionalizar os princípios deliberativos em uma análise empírica – por exemplo, definir quais valores fundamentais da ética do discurso são identificáveis a partir de ferramentas metodológicas, ou, de modo mais primário, definir mesmo quais desses valores são factíveis neste ou naquele debate (e em que medida o são).
Fundado nas premissas da ação comunicativa de Habermas (que previam um discurso racionalmente justificado, sinceridade e construção do consenso), Steiner et al. (2004) se dedicaram a desenvolver um índice de deliberatividade – o Discourse Quality Index. Os autores, ao explicar sua mensuração da racionalidade e justificação dos discursos, sugerem que deve haver uma explicitação da relação entre as premissas e a conclusão e, quanto maior
(^13) Exemplos desse aspecto podem ser encontrados na defesa de interesses de determinados grupos por parlamentares em sua atuação individual ou no próprio discurso mediático, quando certos veículos adotam posicionamentos públicos e encampam bandeiras outrora assumidas por movimentos sociais (Maia, 2009b).