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O CORPO DO XAMÀ E A PASSAGEM DE CARLOS ..., Notas de estudo de Antropologia

a antropologia de Carlos Castaneda vem abalar a explicação científica da magia ... Esta versão foi impressa a partir de um arquivo em PDF cedido pelo autor.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Havaianas81
Havaianas81 🇧🇷

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Ana Maria Ramo y Affonso
O CORPO DO XAMÃ E A PASSAGEM DE
CARLOS CASTANEDA
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG
2008
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Ana Maria Ramo y Affonso

O CORPO DO XAM√ E A PASSAGEM DE

CARLOS CASTANEDA

Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e CiÍncias Humanas da UFMG 2008

Ana Maria Ramo y Affonso

O CORPO DO XAM√ E A PASSAGEM DE

CARLOS CASTANEDA

DissertaÁ„o apresentada ao Curso de Mestrado em Antropologia da Faculdade de Filosofia e CiÍncias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito para a obtenÁ„o do tÌtulo de Mestre em Antropologia. ¡rea de ConcentraÁ„o: Antropologia Social Linha de Pesquisa: Etnologia IndÌgena. Orientador: Prof. Dr. Ruben Caixeta de Queiroz

Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e CiÍncias Humanas da UFMG 2008

A Don Juan Matus

AGRADECIMENTOS

Esta dissertaÁ„o que eu assino foi realizada com o apoio de v·rias pessoas que n„o quero deixar de notar. AgradeÁo a todas elas em comum, e a cada uma em particular.

Ao meu orientador, Ruben Caixeta, por ter confiado em mim e ter me permitido escolher o modo de realizar este trabalho.

¿ prof™ LÈa Freitas Perez, pelas suas aulas que s„o para mim verdadeiras festas antropolÛgicas.

Ao prof. Leonardo Figoli, pela sua paciÍncia e seu bom humor.

Ao prof. Eduardo Vargas, por ter me influenciado tanto, mesmo sem sabÍ-lo.

Ao prof. AndrÈ Prous, por ter me iniciado nos meandros da arqueologia.

¿ prof™ DÈbora Magalh„es Lima, por estar sempre disposta a responder ‡s minhas variadas perguntas.

Ao prof. Eduardo Viveiros de Castro, pelo seu afeto.

¿s minhas amigas, Maria JosÈ, Raquel e Fernanda, por serem as companheiras das minhas divagaÁıes (matÈria bruta deste texto).

¿ minha querida Raquel Las Casas, por ter me lembrado tantas coisas importantes.

¿ SÙnia, pela atenÁ„o na revis„o.

¿ Marcia, pela sua disponibilidade.

Aos meus pais, por terem me ajudado tudo o que podiam, e um pouco mais.

Aos meus irm„os, pelo apoio moral que me mantÈm em pÈ.

Ao Ricardo, por ter me salvado da desistÍncia nesses momentos crÌticos que toda mestranda j· conhece.

Aos que n„o cito aqui, mas que reconheÁo.

Obrigada a todos e a todas. Espero que gostem deste trabalho que lhes dedico.

ABSTRACT

RAMO Y AFFONSO, Ana Maria. The Shaman¥s body and the Carlos Castaneda Passage. 2008. 91 f. Dissertation (Master in Anthropology) ñ College of Philosophy and Human Sciences, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.

In the present dissertation, we reflect about the anthropological practice and the impact of Carlos Castaneda¥s work in the relation between science and magic that anthropology (among other things) represents. Castaneda knows the impossibility to explain don Juan¥s knowledge, the shaman that is his ìinformantî (and his master), out of his own terms, and this is why the Carlos Castaneda¥s anthropology comes to shake the scientific explanation of magic. Don Juan¥s words overflow Castaneda¥s anthropologic text and come to us with a strength that has enchanted thousands of readers, inside and outside anthropology. But, what do they say? What is the message that Castaneda passes and that had so much impact when published his books? In the context of a reflection about magic, shamanism, witchcraft or sorcery, we will try to render an academic tribute to whom has changed the anthropological knowledge and practice in the seventies: don Juan Matus.

Keywords: Shamanism. Anthropology. Ways of Knowlodge. Ethnology. Transformation.

SÛlo como guerrero se puede sobrevivir en el camino del conocimiento ñ dijo ñ. Porque el arte del guerrero es equilibrar el terror de ser hombre con el prodigio de ser hombre. Castaneda (VI: 365)

INTRODU«√O

O AUXÕLIO DA MAGIA

DespuÈs de aÒos de lucha por mantener intactos los limites de mi persona , estos lÌmites cedieron (Castaneda 2000b: 34).

Nesta dissertaÁ„o, minha intenÁ„o inicial era falar do xamanismo, mas me deparei com um paradoxo: como falar do que foge ‡s palavras e ‡ raz„o que elas traduzem? O conhecimento antropolÛgico È de fato (e de valor) um instrumento afinado de traduÁ„o, uma ponte entre modos diversos de dizer as coisas, uma mediaÁ„o possÌvel entre diferenÁas. PorÈm, nem tudo pode ser explicado nas suas linhas. Tentar falar do que foge ‡s palavras È uma empreitada aparentemente absurda, mas quem sabe n„o o seria tanto se fal·ssemos da prÛpria fuga e, portanto, dos limites conceituais das palavras e suas razıes, suas explicaÁıes e interpretaÁıes, seus entendimentos e traduÁıes. Os antropÛlogos ocidentais inscrevemos a nossa pr·tica no papel, possibilitando que nossas palavras traduzam um ìpensamento cheio de esquecimentoî para uma duraÁ„o de certos axiomas aparentemente imut·veis e imÛveis (como disseram um xam„ e um antropÛlogo em um desses poÈticos encontros que promovem tanto o xamanismo como a antropologia) (Viveiros de Castro 2007: 06).^1 A antropologia È um modo de conhecimento, um modo de falar das coisas que abre uma fissura no discurso ocidentalmente organizado pela qual penetram outros modos de conhecimento; modos que o texto antropolÛgico se esforÁa por digerir. Por isso, na busca de minha formaÁ„o em antropologia quis percorrer suas linhas e entrelinhas e, neste caminho, tive como guia um xam„: don Juan, o bruxo que transbordou as entrelinhas do texto antropolÛgico e se apoderou deste veÌculo 2 atravÈs do qual Carlos Castaneda

(^1) Estou aqui e ao longo desta dissertaÁ„o citando uma vers„o provisÛria do texto ìFloresta de cristaisî. Esta vers„o foi impressa a partir de um arquivo em PDF cedido pelo autor. Tal artigo foi publicado na revista ìCaderno de Campoî (USP), como referenciado na bibliografia ao final desta dissertaÁ„o. 2 … de fundamental import‚ncia esclarecer este ponto, posto que, como afirmo adiante, a antropologia de Castaneda foge aos padrıes acadÍmicos de sua Època na medida em que, ao invÈs das interpretaÁıes do antropÛlogo, s„o as falas de don Juan, suas explicaÁıes e conceitos, que

preenchia freneticamente seus cadernos, que eram seus escudos, suas fachadas, seus limites ñ seu ponto de vista. A antropologia È um veÌculo de mediaÁ„o, de dialÈtica entre culturas e naturezas, mundos e pensamentos, e nela cada ponto de vista È um compÍndio de pontos de vista diversos e diferentes (o que a aproxima ainda mais do xamanismo). O campo deste trabalho È tambÈm uma revis„o bibliogr·fica de alguns dos m˙ltiplos pontos de vista que se encontram, se chocam e se alteram, nas aulas de antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais. S„o poucos os autores que dialogam entre si neste trabalho para definir o ponto de vista do homem e seu conhecimento, pois a quest„o È t„o vasta quanto os prÛprios conceitos que a enunciam, e a limitaÁ„o È o que permite o meu ponto de vista ñ escolhas s„o necess·rias na definiÁ„o de lugares ou centros de percepÁ„o. A invenÁ„o de Roy Wagner, o homem de Michel Foucault, o mundo pensado por LÈvi-Strauss, a diplomacia de Bruno Latour, a festa de Jean Duvignaud, as entrelinhas de Marcel Mauss, a perspectiva de Eduardo Viveiros de Castro, a diferenÁa de Gabriel Tarde e o devir de Gilles Deleuze e FÈlix Guattari se fundem e se confundem ao dialogar com a antropologia de Carlos Castaneda. 3 Por isso mesmo È que, com freq¸Íncia, ao longo da dissertaÁ„o, procuramos cruzar as ìfrasesî, os ìdizeresî ou os ìpensamentosî destes autores, atÈ o ponto de poder caracterizar este trabalho como exemplo da bricolagem que nos permite o texto antropolÛgico. Fazemos autores de diferentes Èpocas e de diferentes filiaÁıes teÛricas ou paradigm·ticas se comunicarem, atravÈs dos escritos de Castaneda e dos ensinamentos de seu Mestre, Don Juan, sempre na busca de uma janela para aquilo que ficou fora da raz„o ocidental, mas que, pelo menos numa certa antropologia, permaneceu nas margens, numa forÁa latente, ‡ espreita da oportunidade de aparecer, ou melhor, do antropÛlogo se fazer desaparecer com a forÁa de sua forma e de sua raz„o, e, como por arte de magia, fazer

predominam nos quatro primeiros livros de Castaneda (2000, 2001a, 2001b, 2001c). Mesmo aparecendo o nome deste ˙ltimo nas citaÁıes deste trabalho, uma vez que È ele o autor das obras, os conceitos e conhecimentos com os quais trabalhamos provÍm do mestre e n„o do aprendiz, ou seja, de don Juan e n„o de Castaneda. Nas citaÁıes que aparecem recuadas, coloquei aspas quando se trata de transcriÁıes literais das palavras de don Juan. O leitor fica, com esta nota, avisado: estamos dialogando com o conhecimento de don Juan Matus, ìhomem de conhecimentoî que pertence ‡ linhagem dos xam„s do MÈxico antigo, conhecimento transcrito por Carlos Castaneda, antropÛlogo que se esforÁou ao m·ximo para reportar com fidelidade aquilo que estava aprendendo. 3 Nesta dissertaÁ„o utilizo apenas os quatro primeiros volumes (publicados) de Carlos Castaneda (2000, 2001a, 2001b, 2001c), dado que o que me interessa È o di·logo do autor com don Juan e ele aparece fundamentalmente nestes volumes. Originalmente os livros de Castaneda foram publicados em inglÍs, mas eu uso as versıes em espanhol publicadas pelo ìFondo de Cultura EconÛmicaî, pelo fato de que conheÁo melhor esta lÌngua que a original e tambÈm melhor que o portuguÍs (alÈm do mais, todas as conversas entre Castaneda e don Juan foram em espanhol (Castaneda, 2001a:12)). Quando as citaÁıes aparecem em portuguÍs, a traduÁ„o È de minha autoria.

Don Juan conhece Castaneda tanto de jure como de facto a partir de seu ponto de vista xam‚nico, o que inverte a relaÁ„o que costuma se estabelecer entre antropÛlogos e informantes. S„o as palavras de don Juan, e n„o os argumentos de Castaneda, que sobressaem no que poderia ter sido mais um desses debates entre magia e ciÍncia que a antropologia promove. A ciÍncia e a magia s„o modos diferentes de conhecimento, de poder, de transformaÁ„o, cuja traduÁ„o implica traiÁ„o. A humildade da antropologia de Castaneda se verifica quando ele assume a impossibilidade de compreender e julgar o conhecimento de don Juan a partir de seu prÛprio ponto de vista e dos sentidos que este produz. … in˙til explicar a magia pela ciÍncia, apesar de nossa insistÍncia em ìver o desconhecido em termos do conhecidoî (Castaneda apud Sam Keen 1977: 84). Carlos Castaneda È o informante: um perceptor que reporta um sistema de aprendizagem que n„o consegue categorizar 8. Um antropÛlogo que È capaz de fazer com que ìas palavrasî do bruxo ìfalem por si mesmasî (Castaneda 2001b: 16), h· de ser um guerreiro, um aprendiz, um praticante (dado que na magia ìa pr·tica ocupa o lugar centralî (Paz 2000: 21)). Don Juan n„o estava t„o interessado em praticar com o pensamento como o estava Castaneda: tudo o que o mestre fazia tinha como interlocutor o corpo do antropÛlogo (Castaneda apud Keen 1977: 91). Seria por isso que tal corpo foi pouco a pouco virando outra coisa? A ìalianÁa intelectualî com os conceitos dos bruxos da linhagem de don Juan, com os seus modos de cogniÁ„o (Castaneda 2000b: 32), requer mudar o ponto de vista e, portanto, transformar o corpo. N„o se trata de deixar de ser antropÛlogo para virar nativo, ou bruxo; tambÈm n„o se trata de evitar virar nativo ou bruxo para continuar sendo um antropÛlogo ñ neste trabalho sobre guerreiros e homens comuns 9 queremos abrir m„o de oposiÁıes definidas entre termos (sejam elas quais forem). Trata-se de ser menos antropÛlogo perante a possibilidade de ser bruxo, e vice-versa; de n„o ser um nem ser outro depois de ter aprendido a ser ambos, depois de ter percebido que h· m˙ltiplas possibilidades de ser. Passar por entre as v·rias realidades, por entre m˙ltiplas dimensıes, eis a finalidade, a funcionalidade do guerreiro.

(^8) ìEl sistema en aprendizaje me era incomprensible; asÌ que la pretensiÛn de hacer algo m·s que reportar sobre Èl serÌa engaÒosa e impertinente. Yo, como perceptor, registrÈ lo que percibÌ, y en el momento de registrarlo me propuse suspender todo juicioî (Castaneda 2001a: 23). 9 Neste trabalho, os homens comuns somos todos aqueles que nos comprometemos com uma descriÁ„o especÌfica, com um modo de percepÁ„o, em oposiÁ„o aos guerreiros que aprendem a se libertar desse compromisso. ¿ medida que o trabalho for se desenvolvendo, espero, estes conceitos ficar„o mais claros.

O primeiro passo para esta incrÌvel faÁanha È se comprometer com diversos modos de descriÁ„o. H· mais de um modo do tempo, pois o tempo m·gico n„o È o tempo ordin·rio (Castaneda apud Keen 1977: 86); o ˙ltimo È uma categoria do modo da dobra, do intervalo, enquanto que o primeiro È uma categoria do modo da passagem. VitÛria da magia na antropologia (Paz 2000: 11), da poesia ou da arte na erudiÁ„o da ciÍncia, vitÛria de outros modos do saber. Bruno Latour nos alerta contra a falta de tato que ‡s vezes caracteriza a antropologia (1999: 340), mas n„o falta tato na antropologia de Carlos Castaneda; talvez justamente por isso ele foi banido dela, por n„o poder mais se comprometer com um modo de relaÁ„o que usurpa a criatividade alheia, transformando, como diria Roy Wagner, a invenÁ„o da realidade em um conjunto de sÌmbolos catalog·veis (Wagner 1981: 144). Os bruxos ìdevolveram a vistaî ao antropÛlogo (Paz 2000: 22), pois este aceitou se tornar outro, variar, ser alterado. E com ele se poderia alterar a prÛpria pr·tica antropolÛgica, o que n„o era desej·vel para aqueles que tinham se comprometido com o jogo da mesmificaÁ„o. Castaneda foi banido da antropologia acadÍmica apÛs ìser devoradoî pelo modo de conhecimento de don Juan (Castaneda apud Fort 1995: 115). Ser· este o perigo de tornar-se nativo? Nativo ou antropÛlogo, Carlos Castaneda era um homem comum que variou seu modo de estar no mundo, concentrando-se cada vez mais na qualidade de sua presenÁa, na apropriaÁ„o de sua percepÁ„o, aperfeiÁoando o modo de aÁ„o do guerreiro para o qual don Juan o preparava. A raz„o alerta e insone de Carlos Castaneda foi derrotada e voltou ao lugar que lhe correspondia: ser um ìinstrumento do corpoî (Castaneda apud Keen 1977: 92). A bruxaria de don Juan ensinou a Castaneda que o conhecimento n„o È uma prerrogativa da raz„o, pois ìconhecemos com o corpo inteiroî (Castaneda apud Keen 1977: 83). O mundo È um sentir e o corpo pode estar mais ou menos afinado, ser um melhor ou pior receptor; o guerreiro se esforÁa por equilibrar e afinar o seu corpo, o seu instrumento de percepÁ„o do mundo ou, em outras palavras, a prÛpria percepÁ„o. Para isto o guerreiro conta com a ajuda da melhor das conselheiras: a morte, aquela que n„o o deixa esquecer que ele est· sÛ passando, e que n„o adianta fugir e teimar em durar projetando-se incansavelmente em objetos, pois a ˙nica coisa que estes fazem È nos tornar pesados em demasia. Considero que esta È a grande liÁ„o da bruxaria de don Juan traduzida na antropologia de Castaneda: para os bruxos da linhagem de don Juan, a morte n„o È uma descriÁ„o, um jogo simbÛlico e metafÌsico, e sim uma presenÁa fÌsica que se pode sentir por meio da percepÁ„o (Castaneda apud Keen 1977: 90). De nada adianta neg·-la, pois ela È o incontorn·vel, inclusive para os guerreiros mais poderosos que se tornam homens de

real ou modo de aÁ„o, com a ajuda de Bruno Latour (2004), Roy Wagner (1981), Foucault (1999), Deleuze (1982) e LÈvi-Strauss (1996, 2002, 2003, 2004). O que percebemos atravÈs destes autores È que a nossa pr·tica de sentido, ou seja, o nosso modo de significar o mundo e, portanto, de compreendÍ-lo e experiment·-lo, passa necessariamente pelo estabelecimento do intervalo, da oposiÁ„o entre os termos. Trata-se de um acordo necess·rio ‡ construÁ„o de significado, ‡ determinaÁ„o de lugares para termos, conceitos e idÈias. Enquanto Roy Wagner se concentra no intervalo entre aÁ„o e motivaÁ„o, e nos descreve o modo de aÁ„o prÛprio dos ìatoresî, ou seja, daqueles comprometidos com um estilo de criatividade determinado, Bruno Latour enfatiza a influÍncia que exerce na pr·tica cientÌfica, polÌtica e filosÛfica a separaÁ„o entre fatos e valores. LÈvi-Strauss, por sua vez, afirma a import‚ncia da oposiÁ„o como forma de pensar e ordenar o mundo. Este modo dicotÙmico de estar no mundo responde ‡ vontade de permanecer, de durar, como vemos em Foucault e suas an·lises a respeito da ìfinitudeî e das ìpositividadesî que a possibilitam. Ao finalizar o primeiro capÌtulo, percebemos ent„o que nosso modo de aÁ„o se concentra na invenÁ„o e manutenÁ„o dos limites que permitem o sentido e a sua comunicaÁ„o. Mas, o que mostram estes autores (assim como os outros) È que os limites s„o necess·rios na medida em que as relaÁıes e interpenetraÁıes entre os termos s„o anteriores ‡ sua separaÁ„o. H· sempre uma possÌvel passagem! PorÈm, pelo temor de uma relativizaÁ„o extrema, tal virtualidade povoada de infinitas possibilidades de atualizaÁ„o È controlada e reduzida, o que se consegue por meio da aÁ„o do homem comum, do ator, da pessoa: aquele que se compromete com um determinado modo de estar no mundo, com um determinado modo de percepÁ„o e de invenÁ„o do real. Modo que na presente dissertaÁ„o È o contraponto do modo de aÁ„o do guerreiro explicitado por don Juan nas obras de Castaneda. Don Juan ensina o antropÛlogo a mudar de um para o outro, ou seja, a se transformar em guerreiro. E È justamente essa transformaÁ„o o ìproblemaî que nos interessa aqui; transformaÁ„o de modos: de aÁıes, de percepÁıes, de pontos de vista, de agenciamentos, de corpos. Considero, e postulo, que existem diversos ìmodosî e que a antropologia È (no mundo ocidental) a testemunha deste fato, e, por isso, tentei transformar este trabalho, esta antropologia que pratico, experimento e imagino, em um espaÁo onde diferentes autores, com seus respectivos diferentes modos de entendimento, afetam uns aos outros; mais ainda, um espaÁo no qual o modo de conhecimento de don Juan facilita a compreens„o dos modos dos demais autores em quest„o. Para isso, tomo como conceito de referÍncia o ìTonalî, e o compreendo como o compÍndio de todos os modos de que falamos aqui. Don Juan tenta convencer Castaneda

de que o Tonal pode ser mais ou menos fluido, mas o segundo est· distraÌdo demais com seu conjunto de problemas conceituais e epistÍmicos. Segundo don Juan, o verdadeiro problema do antropÛlogo È que ele crÍ dispor de muito tempo. Todos nÛs, homens comuns, temos o mesmo problema. O Tonal n„o quer assumir que o seu reinado È passageiro, e por isso nos apegamos a nossa duraÁ„o. NÛs, Tonais Individuais, estamos presos ao Tonal de nosso Tempo. Sejamos ainda mais enf·ticos: nÛs ocidentais estamos presos ‡ idÈia de tempo ñ assim como ‡ idÈia de espaÁo, de eu, de corpo, de alma, etc.... de nosso Tonal Coletivo. Compreender que idÈias s„o essas e como elas s„o inventadas, ou seja, elucidar o modo pelo qual o Tonal de nosso Tempo se inventa a si mesmo È uma das aspiraÁıes deste trabalho. Empreitada difÌcil, pois o Tonal n„o È um conceito f·cil de experimentar, dado o seu car·ter tautolÛgico. PorÈm, n„o devemos esquecer que a pretens„o de don Juan, na qual nos espelhamos, n„o È a de abarcar epistemologicamente a ìverdadeî do mundo e obrigar o seu aprendiz a fazer o mesmo ñ nada mais longe de suas intenÁıes. Ele mesmo afirma que tudo quanto diz a Castaneda ìserve sÛ para indicar uma direÁ„oî (Castaneda 2001c: 160). Seguimos os conselhos do mestre tambÈm aqui neste trabalho, num esforÁo constante de humildade e aceitando que qualquer pensamento, entendimento, explicaÁ„o, an·lise, dissertaÁ„o ou tese s„o modos diferentes de falar das coisas ñ modos pelos quais o Tonal se experimenta a si mesmo ñ e, pois, convidamos a antropologia a falar nesta assemblÈia que ela mesma promove. No segundo capÌtulo, lanÁo m„o da antropologia de Viveiros de Castro, da sociologia de Gabriel Tarde, das an·lises de Gilles Deleuze e das reflexıes de Jean Duvignaud, junto com os autores anteriores (e sempre tendo como referÍncia os conceitos de don Juan), no intuito de mostrar como o jogo do duplo serve ‡ vontade de durar e se revela um modo de mascarar a transformaÁ„o constante dos termos em relaÁ„o. A dobra cria o lugar do intervalo e È nesse e desse lugar que conseguimos pensar a forma, ou seja, È nele e por ele que estabelecemos e definimos interiores e exteriores ñ que fixamos limites. Este modo de aÁ„o determina a nossa experiÍncia da matÈria como solidez, a transformaÁ„o de nossos h·bitos em essÍncias dur·veis e imut·veis. E o que h· de mais habitual em nÛs (alÈm de nÛs mesmos) que nossa relaÁ„o com os objetos que nos circundam? Estamos rodeados de m·quinas produzindo objetos que sirvam de espelhos onde possamos nos deleitar com essa essÍncia permanente e imut·vel que acreditamos possuir. Podemos pensar o sentido em lugar de sentir o poder, e È isso o que fazemos. Mas n„o esqueÁamos que ìsentidoî È um particÌpio passado e que o verbo que serve de

dos possÌveis veÌculos que s„o os corpos dos xam„s: muito antes instrumentos de comunicaÁ„o que sujeitos ou objetos de interpretaÁ„o ou representaÁ„o.

CAPÕTULO 1

REALIDADE E ORDEM

Cruzaron una mirada furtiva. Don Juan dijo a don Genaro, en voz alta, que mi razÛn era peligrosa, y que podÌa matarme si no le daban la razÛn. ñ °Por Dios santo! ñ exclamÛ don Genaro con voz rugiente ñ. °Dale la razÛn a su razÛn! Dieron de saltos riendo, como dos niÒos. Don Juan me hizo sentar bajo la linterna y me dio mi cuaderno. (Castaneda RP: 135).

O que È a ordem, a organizaÁ„o do mundo? Ser· que depois de tanto tempo nos questionando a seu respeito podemos afirmar que È hoje em dia uma quest„o definitivamente esclarecida? N„o creio. PorÈm, como afirmar que os inumer·veis esforÁos para descrever e determinar esse crucial ponto de interrogaÁ„o tenham sido em v„o? Longe de nÛs essa pretens„o. A proposta neste capÌtulo, no entanto, È considerar tal idÈia, noÁ„o ou conceito, tal fato ou realidade, se preferirem, nos termos de uma das explicaÁıes dadas, a explicaÁ„o dos bruxos^11 do MÈxico antigo que Castaneda atentamente escuta de seu mestre; e assim fazemos deste ˙ltimo tambÈm o nosso mentor. Eis a nossa escolha conceitual. A essa tarefa principal, segue outra: mostrar como essa explicaÁ„o pode nos ajudar a compreender melhor o nosso modo ìcientÌficoî, antropolÛgico e filosÛfico, de lidar com o assunto, enfatizando as resson‚ncias entre estes dois modos diferentes de conhecimento. Falar da ordem em nossos termos È, em princÌpio, uma tarefa filosÛfica. Michel Foucault (1999: XVI) nos esclarece o seu sentido:

A ordem È ao mesmo tempo aquilo que se oferece nas coisas como sua lei interior, a rede secreta segundo a qual elas se olham de algum modo umas

(^11) O termo ìbruxoî È usado na traduÁ„o espanhola editada pelo Fundo de Cultura EconÛmica, que seguimos aqui. Na traduÁ„o para o portuguÍs publicada pela Editora Nova Era, o termo usado È ìfeiticeiroî. Na introduÁ„o de ìViaje a Ixtlanî, Castaneda esclarece que utiliza o termo ìbruxoî por ser este utilizado pelo prÛprio don Juan. No presente trabalho consideramos que ìbruxosî e ìfeiticeirosî s„o xam„s.