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O CONGRESSO DE VIENA DE 1815 E SUAS ..., Notas de estudo de Direito

Sua atividade tem como objetivos centrais a prosperidade do Reno e do sistema europeu de navegação interior, garantindo um elevado padrão de segu- rança para a ...

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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O CONGRESSO DE VIENA DE 1815 E SUAS
CONTRIBUIÇÕES PARA O DIREITO INTERNACIONAL
PÚBLICO
Elen de Paula BUENO
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Victor ARRUDA PEREIRA DE OLIVEIRA
Sumário: I. Introdução. II. Antecedente histórico: o Tratado de Paris de 1814. III. O Congresso de
Viena (1814–1815). 3.1.O Regulamento de Viena sobre a classificação entre os agentes diplomáticos.
3.2.A declaração das potências sobre a abolição do tráfico negreiro de 8 de fevereiro de 1815. 3.3 A
Comissão sobre a livre navegação dos rios internacionais. VI. Conclusão. Bibliografia.
Resumen: El presente artículo tiene por objeto analizar el Congreso de Viena (1814–1815) y el
derecho internacional en el primer cuartel del siglo XIX, teniendo en cuenta el análisis jurídico intro-
ducido en el contexto del denominado Sistema de Congresos y del Concierto Europeo. Para ello, se
realizó una investigación histórica aliada al estudio de los tratados y textos normativos del Tratado de
París (1814) al Congreso de Viena (1815). La investigación concluyó que, entre los reajustes territo-
riales y el equilibrio de fuerzas, el Congreso dejó importantes legados para el derecho internacional,
especialmente en lo que se refiere a la abolición del tráfico de esclavos, institucionalización y clasifi-
cación de los agentes diplomáticos y la aplicación del principio de la libre navegación de los ríos inter-
nacionales. Se observó también que el Congreso de Viena inició un importante sistema de conferencias
europeas a lo largo del siglo XIX, las cuales colaboraron significativamente para el desarrollo de nor-
mas que rigen las relaciones entre los Estados.
Fecha de recepción del original: 3 de marzo de 2019. Fecha de aceptación de la versión final: 6 de
junio de 2019
Doutora em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Mestre em Integração da América Latina pela USP. Advogada e Bacharel em Relações Internacionais
pela UNESP. Pesquisadora do Grupo de Estudos sobre os BRICS (GEBRICS/USP). Professora no curso
de pós–graduação em Direito Internacional aplicado da Escola Brasileira de Direito (EBRADI).
 Doutorando em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(USP). Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e
mestre em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC). Ad-
vogado, consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Bacharel em Direito pela Fa-
culdade de Direito da USP. Participou como Palestrante do Bicentenário do Congresso de Viena, realizado
em 2014, na Universidade de Viena, Áustri a, no qual analisou os efeitos do Congresso de Viena na Amé-
rica Latina.
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O CONGRESSO DE VIENA DE 1815 E SUAS

CONTRIBUIÇÕES PARA O DIREITO INTERNACIONAL

PÚBLICO 

Elen de Paula BUENO y Victor ARRUDA PEREIRA DE OLIVEIRA

Sumário : I. Introdução. II. Antecedente histórico: o Tratado de Paris de 1814. III. O Congresso de Viena (1814–1815). 3.1.O Regulamento de Viena sobre a classificação entre os agentes diplomáticos. 3.2.A declaração das potências sobre a abolição do tráfico negreiro de 8 de fevereiro de 1815. 3.3 A Comissão sobre a livre navegação dos rios internacionais. VI. Conclusão. Bibliografia.

Resumen : El presente artículo tiene por objeto analizar el Congreso de Viena (1814–1815) y el derecho internacional en el primer cuartel del siglo XIX, teniendo en cuenta el análisis jurídico intro- ducido en el contexto del denominado Sistema de Congresos y del Concierto Europeo. Para ello, se realizó una investigación histórica aliada al estudio de los tratados y textos normativos del Tratado de París (1814) al Congreso de Viena (1815). La investigación concluyó que, entre los reajustes territo- riales y el equilibrio de fuerzas, el Congreso dejó importantes legados para el derecho internacional, especialmente en lo que se refiere a la abolición del tráfico de esclavos, institucionalización y clasifi- cación de los agentes diplomáticos y la aplicación del principio de la libre navegación de los ríos inter- nacionales. Se observó también que el Congreso de Viena inició un importante sistema de conferencias europeas a lo largo del siglo XIX, las cuales colaboraron significativamente para el desarrollo de nor- mas que rigen las relaciones entre los Estados.

Fecha de recepción del original: 3 de marzo de 2019. Fecha de aceptación de la versión final: 6 de junio de 2019 Doutora em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Integração da América Latina pela USP. Advogada e Bacharel em Relações Internacionais pela UNESP. Pesquisadora do Grupo de Estudos sobre os BRICS (GEBRICS/USP). Professora no curso de pós–graduação em Direito Internacional aplicado da Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Doutorando em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC). Ad- vogado, consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Bacharel em Direito pela Fa- culdade de Direito da USP. Participou como Palestrante do Bicentenário do Congresso de Viena, realizado em 2014, na Universidade de Viena, Áustria, no qual analisou os efeitos do Congresso de Viena na Amé- rica Latina.

360 ANUARIO HISPANO–LUSO–AMERICANO DE DERECHO INTERNACIONAL, vol. 24 (2019–2020)

Palabras clave : Congreso de Viena. Derecho Internacional Público. Concierto Europeo. Sistema de Congresos.

Abstract: This article aims to analyze the Congress of Vienna (1814–1815) and the international law in the first quarter of the nineteenth century, taking into account the legal analysis inserted in the context of the so–called Congress System and the European Concert. Thus, a historical investigation was carried out together with the study of the treaties and normative texts of the Treaty of Paris (1814) at the Congress of Vienna (1815). The research concluded that, among territorial relocations and balance of forces, the Congress left important legacies to international law, especially with regard to the abolition of the slave trade, institutionalization and classification of diplomatic agents and the application of the principle of free navigation of international rivers. It was also noted that the Vienna Congress initiated a relevant system of European conferences throughout the nineteenth century – which have contributed significantly to the development of norms governing relations be- tween states.

Keywords: Congress of Vienna. Public International Law. Concert of Europe. Congress System.

I. Introdução

A análise do desenvolvimento do direito internacional no tempo constitui tarefa abrangente e complexa. Como assinala Casella 1 , o tempo, na sua relação com o direito internacional, não se põe como fim em si mesmo, “mas como elemento para a compreensão das mutações do direito internacional, enquanto sistema, ao longo das eras”. As modernas interpretações do direito internacional, além dos debates a respeito do direito natural e do direito positivo, levaram em conta a perspectiva his- tórica e cronológica. Essa abordagem foi preponderante durante o século XIX, na medida em que as relações internacionais se multiplicavam e as conferências e tra- tados aumentavam. Entre as guerras mundiais, a abertura de arquivos dos governos e toda a riqueza de materiais disponíveis estimularam o estudo da história diplomá- tica 2.

Ao longo do século XX, outras teorias influenciaram o estudo do direito interna- cional, passando pelo campo sociológico, filosófico e análises estritamente jurispru- denciais. Como sublinham Fassbender e Peters 3 , depois da virada cultural na histo- riografia, muitos historiadores denunciaram a história da política de poder e da di- plomacia como démodé. No entanto, segundo os autores, o estudo da história cultu- ral e social, bem como a história do poder e dos interesses do Estado, não se torna- ram irrelevantes; ao contrário, são imprescindíveis ao estudo do direito internacional

(^1) P.B. Casella, Direito Internacional no Tempo Moderno de Suarez a Grócio , São Paulo, Atlas, 2014, p. 22. (^2) M. N. Shaw, International Law , Cambridge, Cambridge University Press, 2008, pp. 54–55. (^3) B. Fassbender; A. Peters, “ Towards a global history ofinternational law ”, The Oxford Handbook of the history of international law, Oxford, Oxford University Press, 2012, p.11.

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Guilherme III da Prússia, a pentarquia se completava com a atuação de Castlereagh, representando a Grã–Bretanha e Talleyrand, representante da França.

Após uma série de reuniões preliminares, ficou decidido que o Congresso atuaria através de um diretório, presidido por Metternich, na qualidade de ministro dos ne- gócios estrangeiros do Estado anfitrião. Ademais, contaria com diferentes Comis- sões compostas pelas principais potências europeias, que se reuniriam de acordo com a natureza dos assuntos a serem abordados. Entre as Comissões mais amplas, vale sublinhar a Comissão dos oito,integrada por Áustria, Espanha, França, Grã– Bretanha, Portugal, Prússia, Rússia e Suécia. Já entre as mais restritas, se destacou a Comissão dos quatro, sendo essa formada apenas pelas grandes potências que der- rotaram Napoleão: a Áustria, a Grã–Bretanha, a Prússia e a Rússia. Além das Co- missões de potências, foram criados Comitês temáticos, divididos entre aqueles vol- tados a tratar de assuntos territoriais e os destinados a abordar ‘outras questões’. Entre os Comitês territoriais, os principais foram: o Comitê para os assuntos da Ale- manha , a Conferência sobre a Confederação Germânica e o Comitê para os assuntos da Suíça.Quanto aos Comitêsque trataram de outras questões, se destacaram: a Con- ferência sobre a abolição do tráfico negreiro, a Comissão sobre a livre circulação dos rios, a Comissão sobre a classificação dos agentes diplomáticos, a Comissão estatística e a Comissão de Redação 6.

Tendo em vista o marco histórico do Congresso de Viena e suas repercussões no direito internacional, foi realizada uma investigação histórica aliada ao estudo de tratados e textos normativos do Tratado de Paris (1814) ao Congresso de Viena (1815). A investigação concluiu que, entre os reajustes territoriais e o equilíbrio de forças, o Congresso representou importante legado ao direito internacional, especi- almente no que se refere à abolição do tráfico de escravos, à institucionalização e classificação dos agentes diplomáticos e à aplicação do princípio da livre navegação dos rios internacionais. Outrossim, observou–se que o Congresso de Viena impul- sionou um importante sistema de conferências europeias ao longo do século XIX, as quais colaboraram substancialmente para o desenvolvimento de normas que re- gem as relações entre os Estados.

II. Antecedente histórico: o Tratado de Paris de 1814

Com a derrota das tropas napoleônicas e a restauração bourbônica, foi finalmente celebrado um tratado de paz entre as potências beligerantes. O Tratado de Paz de Paris foi assinado, de um lado, pela França, militarmente derrotada, e, de outro, pela Áustria e seus principais aliados: Grã–Bretanha, Rússia e Prússia. Portugal e Suécia também firmaram o tratado e a Espanha o assinou poucos meses após sua

(^6) T. Lentz, Le Congrès de Vienne. Une refondation de l´Europe 1814–1815 , Paris, Perrin, 2013, p. 124.

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celebração. O Tratado de Fontainebleau garantiu a abdicação de Napoleão. Era che- gada a hora de estabelecer a paz com uma França restaurada sob Luís XVIII e com fronteiras similares às de 1792 7.

O Tratado de Paz de Paris estabeleceu a paz entre a França, já governada por Luís XVIII, e a Áustria e seus aliados 8. De igual maneira, determinou a conservação da integridade do território francês, tal como este existia em 1º de janeiro de 1792, com alguns acréscimos territoriais em regiões belgas, alemãs e italianas.

Para o direito internacional, o Tratado de Paz de Paris de 1814 possui relevância por encerrar as guerras napoleônicas e redefinir as fronteiras francesas como as exis- tentes em 1792, com alguns acréscimos territoriais. Ademais, estabeleceu a liber- dade de navegação no Rio Reno, e previu o futuro estabelecimento de princípios que, respeitados os direitos dos Estados ribeirinhos, garantissem a liberdade de na- vegação dos rios internacionais da forma mais favorável ao comércio de todas as nações. Outrossim, aumentou os territórios da Holanda, garantiu o respeito à inde- pendência da Suíça, estabeleceu a independência dos Estados alemães, ligados por um vínculo federativo, bem como reconheceu a soberania dos Estados italianos que não fizessem parte da Áustria 9.

Especificamente em relação à livre navegação dos rios internacionais, o Tratado de Paris de 1814 pode ser considerado como um marco histórico importante, em um sentido mais amplo e completo 10. Recorda Casella que “durante muito tempo, os Estados ribeirinhos de rios como o Reno pretenderam reservar–se, em relação a tais rios, o exercício da navegação. A regulamentação da navegação no Reno se enceta em 1804. Esta se definirá no Tratado de Paris de 30 de maio de 1814, cujo artigo 5º proclamava que a navegação no Reno, desde o ponto em que este se tornava nave- gável, até o mar, e vice–versa, seria livre, de tal modo que não poderia ser proibida a ninguém. Segundo esse dispositivo, o rio Reno ficaria, assim, aberto, obrigatoria- mente aos navios de todas as nações” 11.

(^7) A. Zamoyski, Ritos de Paz. A queda de Napoleão e o Congresso de Viena, Rio de Janeiro, Record, 2012, p.13. (^8) C. D´Angeberg, Le Congrès de Vienne et les Traités de 1815. Précédé et suivi des actes diploma- tiques qui s'y rattachent , Paris, Amyot Éditeur, 1863. (^9) Comte D´Angeberg ( op. cit. 1863, p. 165). “Article 6_. La Hollande, placée sous la souveraineté de la Maison d'Orange, recevra un accroissement de territoire. Le titre et l'exercice de la souveraineté n'y pourront, dans aucun cas, appartenir à aucun Prince portant ou appelé à porter une couronne étrangère. Les États de l'Allemagne seront indépendants, et unis par un lien fédératif. La Suisse, indépendante, con- tinuera de se gouverner par elle–même. L'Italie, hors des limites des pays qui reviendront à l'Autriche, sera composée d'États souverains_ .” (^10) H. Hajnal, The Danube. Its historical, political and economic importance, Haia: Martinus Nijhoff, 1920, p. 39. (^11) P.B. Casella, Direito Internacional dos espaços , São Paulo: Atlas, 2009, p. 329.

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anteriormente existentes, protegendo antigos bonapartistas de perseguições na nova or- dem que se instaurava 13. Finalmente, o Artigo 32 do Tratado de Paris forneceu a base legal para a celebração do Congresso de Viena, ao estipular que, no prazo de dois meses, todas as potências que foram engajadas de uma parte e de outra nas guerras napoleôni- cas, enviariam seus plenipotenciários a Viena, para regulamentar, num congresso ge- ral, os entendimentos que deveriam completar as disposições do Tratado de Paris 14.

III.O Congresso de Viena (1814–1815)

O Congresso de Viena, além de encetar uma nova tentativa de regulação interna- cional, que pretendeu suplantar mais de duas décadas de instabilidade e conflitos na Europa, deixou importantes legados para o direito internacional 15. Os artigos de seu Ato Final, e seus anexos, redefiniram as fronteiras europeias, trataram da abolição do tráfico de escravos, institucionalizaram a classificação dos agentes diplomáticos e abordaram a livre navegação dos rios internacionais. Igualmente, conforme interpreta Pellegrino 16 , tem início um processo de codificação do direito internacional: resultado das disposições assumidas no Congresso de Viena, de 1815, as nações deram curso ao compromisso de instalar, a partir de então, um processo de codificação do direito internacional. Apesar dos entraves burocráticos, por envolver a acomodação de inte- resses imediatos das partes concernidas, ainda assim foi possível colher os primeiros resultados desse esforço, com o lançamento de um estatuto sobre a precedência entre os agentes diplomáticos, o regime jurídico de alguns rios internacionais e a abolição do tráfico de escravos. Com esta evolução técnico–jurídica, o direito ganhou maior eficiência, passando a intervir em distintos segmentos das relações humanas.

Cumpre salientar que a iniciativa de convocação de grandes congressosinterna- cionais remonta a uma longa tradição congressual europeia, que antecede o Con- gresso de Viena em vários séculos e que também o sucede 17. Essa tradição se de- senvolveu, desde a Idade Média, com a celebração dos concílios da igreja católica. A necessidade de soluções racionais e juridicamente ordenadas para dirimir confli- tos levou à frequente convocação de congressos no encerramento das principais

(^13) M. Jarrett, The Congress of Vienna and its legacy: war and great power diplomacy after Napoleon, New York: I.B.Tauris, 2014, p. 65. (^14) C. D´Angeberg, op. cit ., 1863, p. 170. (^15) H. Accioly, G. E. Nascimento e Silva; P. B. Casella, Manual de Direito Internacional Público , 22ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 80. (^16) C.R. Pellegrino, Estrutura Normativa das Relações Internacionais , Rio de Janeiro, Editora Forense, 2008, p. 9. (^17) G. R. Flassan, Histoire du congrès de Vienne par l’auteur de l’Histoire de la diplomatie française , Paris, Treuttel et Wurtz, 1829, p. 124.

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guerras europeias, como ocorreu com os congressos de Münster, Osnabrück 18 , Nij- megen, Ryswijck, Utrecht, Cambrai, Soissons e Aix–la–Chapelle e como voltaria a ocorrer no século XX 19.

As duas décadas de revoluções internas e guerras externas, com as consequentes injustiças e violências praticadas, fortaleceram o desejo do restabelecimento de uma ordem jurídica internacional. Quanto mais triunfava externamente a força sobre o direito, mais se fortalecia a crença íntima na necessidade e dignidade do direito na vida dos povos. Era necessário reintroduzir nas relações internacionais o espírito do direito 20. Dessa forma, o Congresso de Viena encerra o conturbado período belige- rante antecedente e inaugura novo sistema internacional.

As negociações do congresso se iniciaram em setembro de 1814. Oficialmente, seus trabalhos foram inaugurados em 1º de novembro de 1814, sendo seu Ato final firmado em 9 de junho de 1815. Dentre os principais temas discutidos no Congresso de Viena, destacam–se seu Regulamento sobre a classificação e a precedência entre os agentes diplomáticos, a declaração sobre a abolição do tráfico de escravos e a livre navegação dos rios internacionais.

1. O Regulamento de Viena sobre a classificação entre os agentes diplomáticos

O desenvolvimento da diplomacia se relaciona com a atividade internacional dos Estados que, durante séculos, representou sobretudo a consecução dos interesses nacionais, delineada no âmbito da política externa e executada alhures mediante re- presentações consulares e diplomáticas 21. A diplomacia, desde a mais remota Anti- guidade, constituiu importante instrumento de promoção dos interesses dos Estados e se consolidou como relevante mecanismo de solução pacífica de controvérsias 22

(^18) Sobre a relevância dos tratados de Münster e Osnabrück, “Le droit public de l'Europe ou jus publi- cum Europaeum, appelé aussi, notamment par les publicistes germaniques, “droit des gens de l'Europe” (europäisches Völkerrecht), a été la base du droit international “classique”, qui est resté en vigueur prati- quement jusqu'à la première guerre mondiale. Ses assises furent posées par la Paix de Westphalie (1648), non seulement parce que les traités de Munster et d'Osnabrück convertirent la constitution de l'Empire en affaire européenne, mais encore parce qu'ils furent le point de départ de toute une série de traités ultérieurs qui s'y rattachent et s'enchaînent expressément les uns aux autres, formant un véritable corpus iuris gen- tium européen.” A. Truyol y Serra, “ L'expansion de la société internationale aux XIXe et XXe siècles” , RCADI , 1965, vol. 116, p. 105. (^19) Jarrett, op. cit , 2014, p. 122. (^20) G. Stadtmüller, Historia del Derecho Internacional Publico , parte I, Hasta el Congreso de Viena (1815), Madrid, Aguilar, 1961, pp. 233–237. (^21) H. Hildebrando, Tratado de direito internacional público , São Paulo, Quartier Latin, 2009, p. 531. (^22) P. B. Casella, Direito internacional no tempo antigo , São Paulo, Atlas, 2012, p. 270.

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motivo de sérias desavenças entre as cortes 26. As normas adotadas pelo Regula- mento de Viena sobre a classificação de agentes diplomáticos relativas à precedên- cia chegaram aos nossos dias e se acham reproduzidas, mutatis mutandi , nos artigos 14 e 16 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961 27.

O Regulamento de Viena sobre a classificação entre os agentes diplomáticos foi firmado em 19 de março de 1815 por representantes da Áustria, Espanha, França, Grã–Bretanha, Portugal, Prússia, Rússia e Suécia. As oito potências europeias con- tratantes visavam prevenir os embaraços frequentemente apresentados entre os di- ferentes agentes diplomáticos, adequando juridicamente a questão.

O direito diplomático e, mais exatamente, a questão dos privilégios e garantias dos representantes de certo Estado junto ao governo de outro, constituíram o objeto do primeiro tratado multilateral de que se tem notícia: o Règlement de Viena, de 1815, que deu forma convencional às regras até então costumeiras sobre a matéria 28.

A existência de um Regulamento se fazia necessária diante dos frequentes con- flitos que ocorriam quando um embaixador de um determinado Estado era recepci- onado por um soberano com preferência em relação a um embaixador de outro Es- tado 29. A ordem de precedência, juridicamente acordada, visava padronizar o trata- mento, evitando–se a ocorrência de conflitos 30 futuros.

(^26) Mesmo durante os debates no Congresso de Viena, não houve consenso inicial entre os plenipoten- ciários das diferentes potências europeias. Zamoyski ( op. cit , 2012, p. 406) anota, a respeito das tratativas para a elaboração do Regulamento, as objeções suscitadas pelo conde de Palmela (Portugal) e pelo mar- quês de Labrador (Espanha) sobre a questão: “Palmela e Labrador sugeriram que todas as unidades polí- ticas fossem classificadas em duas categorias, de acordo com seu status de poder, argumentando que era um absurdo tratar o embaixador de um pequeno principado como se ele estivesse no mesmo patamar que o da Rússia ou o da Inglaterra. Tampouco eles pensavam que as repúblicas deveriam gozar da mesma consideração que reinos antigos”. (^27) G.E. Nascimento e Silva, Convenção sobre Relações Diplomáticas: a codificação do direito inter- nacional (Viena 1961), Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989, p. 533. (^28) F. Rezek, Direito Internacional Público – Curso Elementar , São Paulo, Saraiva, 2011, 13ª. ed., p.

(^29) J–A.Sédouy, Le concert européen. Aux origines de l´Europe 1814–1914 , Paris, Fayard, 2009. (^30) Um exemplo de conflito envolvendo a questão de precedência diplomática ocorreu em Portugal, durante o período pombalino, por ocasião do casamento da princesa do Brasil: “ Pombal, Prime Minister of Portugal, in 1760, on the occasion of the marriage of the Princess of Brazil, caused a circular to be addressed to the foreign representatives, announcing the ceremony, and acquainting them that ambassa- dors at the court of Lisbon, with the exception of the papal nuncio and the imperial ambassador, would thenceforth rank, when paying visits or having audiences granted to them, according to the date of their credentials. Choiseul, the French minister for foreign affairs, when the matter was referred to him, main- tained that ‘the King would not give up the recognised rank due to his crown, and his Majesty did not think that the date of credentials could in any case or under any pretext weaken the rights attaching to the dignity of France.’ He added that though kings were doubtless masters in their own dominions, their power did not extend to assigning relative rank to other crowned heads without the sanction of the latter. ‘In fact,’ said he, ‘no sovereign in a matter of this kind recognises powers of legislation in the person of other sovereigns. All Powers are bound to each other to do nothing contrary to usages which they have

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O Artigo 1º do Regulamento dividiu os agentes diplomáticos em três classes: (i) a dos embaixadores, legados ou núncios; (ii) a dos enviados, ministros ou outros acreditados perante os soberanos; e (iii) a dos encarregados de negócios, apenas acreditados perante os ministros dos negócios estrangeiros. Já o Artigo 2º definiu que somente os embaixadores, legados e núncios possuiriam caráter representativo. Foi negada a atribuição de uma categoria superior aos agentes diplomáticos em mis- são extraordinária (Artigo 3º) e definiu–se que os agentes diplomáticos teriam pre- cedência dentro de cada classe conforme a data de notificação oficial de sua chegada (Artigo 4º), evitando–se assim preferências causadoras de conflitos, pela adoção de um critério cronológico e racional^31.

O Regulamento também determinou que cada Estado deveria adotar um sistema uniforme para a recepção dos agentes diplomáticos de cada classe (artigo 5º) e que os laços de parentesco, as alianças de família ou alianças políticas entre as cortes não concederiam maior hierarquia aos seus agentes diplomáticos (artigo 6º), en- quanto a ordem de assinatura em instrumentos multilaterais deveria ser aleatória (artigo 7º). Sua formulação definitiva seria dada em 1818, durante o Congresso de Aix–la–Chapelle ( Aachen ) 32.

no power to change. […] Pre–eminence is derived from the relative antiquity of monarchies, and it is not permitted to princes to touch a right so precious. […] The King will never, on any pretext, consent to an innovation which violates the dignity of his throne.’ Nor did Spain accord a more favourable reception to this new rule of etiquette, while the court of Vienna, though the imperial rights had been respected, replied to Paris that such an absurdity only deserved contempt, and suggested consulting with the court of Spain in order to destroy the ridiculous pretension of the Portuguese minister.” E. Satow, A guide to diplomatic practice , Londres, Longmans, 1932, p. 27. (^31) Comte D´Angeberg (op. cit., 1863, p. 939). Reglement du 19 mars 1815 sur le rang entre les agents diplomatiques.Pour prévenir les embarras qui se sont souvent présentés, et qui pourraient naître encore des prétentions de présence entre les différents agents diplomatiques, les Plénipotentiaires des Puissances signataires du traité de Paris sont convenus des articles qui suivent, et ils croient devoir inviter ceux des autres Têtes Couronnées à adopter le même règlement. Art. 1er. Les employés diplomatiques sont partagés en trois classes : Celle des ambassadeurs, Légats ou Nonces; Celle des Envoyés, Ministres ou autres accrédités auprès des Souverains; Celle des Chargés d'affaires, accrédités auprès des Ministres chargés des Affaires Etrangères. Art. 2. Les Ambassadeurs, Légats ou Nonces ont seuls le caractère représentatif. Art. 3. Les employés diplomatiques en mission extraordinaire n'ont, à ce titre, aucune supériorité de rang. Art. 4. Les employés diplomatiques prendront rang entre eux dans chaque classe, d'après la date de la notification officielle de leur arrivée. Le présent règlement n'apportera aucune innovation relativement aux représentants du Pape .” (^32) D. Gaurier, Histoire du droit international. Auteurs, doctrines et développement de l´Antiquité à l´aube de la période contemporaine , Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2005, p. 397, recorda que, após a revisão realizada em Aix–la–Chapelle (1818), foi acrescentada uma nova terceira classe, a dos ministros residentes, enquanto a quarta classe foi destinada aos encarregados de negócios: “ Un appendice, annexé par le Protocole d´Aix–la–Chapelle de 1818 à l´Acte final régulait le rang des agents diploma- tiques d´une façon qui a virtuellement duré jusqu´à aujourd´hui. Existent quatre groupes: le premier in- clut des ambassadeurs et les légats pontificaux ou nonces, tous considérés comme disposant d´un

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Dinamarca em 1814 e obteve o compromisso pessoal de Guilherme d´Orange de que os Países Baixos não mais participariam no comércio de escravos. Desde o iní- cio de 1815, Castlereagh passou a pressionar seus pares no Congresso de Viena para que a questão fosse especificamente debatida, resultando em um compromisso eu- ropeu pela abolição. Nesse sentido, sugeriu a criação de um comitê internacional para tratar exclusivamente da supressão do tráfico de escravos. Caberia aos repre- sentantes das principais potências europeias a indicação de plenipotenciários para esse comitê, que inclusive continuaria a atuar após o término do Congresso de Vi- ena, na tarefa de supervisionar a proibição. Em 20 de janeiro de 1815 foi realizada uma conferência particular para deliberar sobre a abolição do tráfico negreiro. Con- tando com a presença das denominadas oito potências cristãs – Áustria, Espanha, França, Grã–Bretanha, Portugal, Prússia, Rússia e Suécia – a conferência não obteve os resultados esperados pela diplomacia britânica. Talleyrand, Labrador e Palmela se opuseram a uma abolição imediata do tráfico, como queria a Grã–Bretanha. A França, entretanto, concordava com a abolição em um prazo de cinco anos, en- quanto Espanha e Portugal prometiam se esforçar para abolir o tráfico de escravos em um prazo de oito anos 35.

Diante do impasse que se formou, Castlereagh lançou mão de sua capacidade diplomática e de instrumentos de pressão econômica para contornar a objeção ibé- rica à abolição. Dessa forma, a Grã–Bretanha firmou um tratado em separado com Portugal, em 22 de janeiro de 1815, no qual este consentia com a abolição do tráfico de escravos ao norte da linha do Equador, em troca do perdão de uma dívida de 600 mil libras 36. O governo português se liberou de um empréstimo contraído com a Grã–Bretanha e ainda resguardou o direito de continuar a traficar escravos de suas colônias localizadas abaixo da linha do Equador para o Brasil, enquanto a Grã–Bre- tanha isolou a Espanha, garantindo apoio quase consensual para a abolição do tráfico negreiro, ainda que essa abolição fosse geograficamente limitada ao hemisfério norte.

No encontro dos Oito (Áustria, Espanha, França, Grã–Bretanha, Portugal, Prús- sia, Rússia e Suécia) de 4 de fevereiro de 1815, Castlereagh sugeriu o estabeleci- mento de uma comissão permanente para promover a causa, mas Labrador protestou afirmando que a questão era interna para cada país e lembrou aos presentes que o

(^35) T.Lentz, Le Congrès de Vienne. Une refondation de l´Europe 1814–1815 , Paris, Perrin, 2013, pp. 301–317. (^36) O Tratado de 22 de janeiro de 1815 teve a denominação oficial de “ Tratado de abolição do traffico de escravos em todos os lugares da Costa da África ao Norte do Equador, entre os muito altos, e muito poderosos senhores o Principe Regente de Portugal, e El–Rei do Reino Unido da Grande Bretanha e Irlanda: feito em Vienna pelos Plenipotenciarios de huma e outra Corte em 22 de janeiro de 1815, e ratificado por ambas ”. Está disponível para consulta na coleção de livros raros da biblioteca digital da Câmara dos Deputados da República Federativa do Brasil, no seguinte endereço eletrônico: http://bd.ca- mara.gov.br/bd/handle/bdcamara/1764. Acesso em 16 de setembro de 2016.

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congresso não havia sido convocado para decidir questões como aquela ou discutir a moralidade. Castlereagh levantou a possibilidade de trocar sanções para mercado- rias produzidas pelo trabalho escravo, o que, nas entrelinhas da linguagem diplomá- tica na qual as minutas são redigidas, provocou algumas respostas malcriadas. Na reunião seguinte, 8 de fevereiro, todas as potências assinaram uma declaração con- cordando que o comércio de escravos era repugnante e imoral. Eles declararam a intenção de erradicá–lo e seu comprometimento em trabalhar para esse fim com zelo e perseverança. Não se tratou de uma grande vitória para Castlereagh, mas foi o melhor que ele pôde fazer considerando–se as circunstâncias 37.

A declaração das potências sobre a abolição do tráfico negreiro de 8 de fevereiro de 1815, firmada por Áustria, Espanha, França, Grã–Bretanha, Portugal, Prússia, Rússia e Suécia, inicia afirmando que “o comércio conhecido pelo nome de tráfico de negros da África sempre foi considerado pelos homens justos e esclarecidos de todos os tempos como contrário aos princípios de humanidade e da moral univer- sal” 38. Igualmente, faz referência à opinião pública de todos os países cultos, que então demandava a supressão o mais brevemente possível do tráfico de escravos.

Considerou ainda a declaração que, sucessivamente, todas as potências que pos- suíssem colônias nas diferentes partes do mundo deveriam reconhecer, por leis, por tratados e por outros empenhos formais, a obrigação e a necessidade de extinguir o tráfico de escravos. A matéria já havia sido regulada por um artigo em separado do Tratado de Paris de 1814, de acordo com o qual a Grã–Bretanha e a França deveriam unir seus esforços no Congresso de Viena para “convencer todas as potências da cristandade a decretar a proibição universal e definitiva do comércio de negros”. A declaração considerou o tráfico de escravos contrário ao espírito da época, devendo, portanto, ser abolido por todas as potências europeias o mais brevemente possível. De igual modo, sustentou que o objetivo da declaração somente seria alcançado com uma abolição geral do tráfico negreiro.

Em que pese suas limitações, a declaração das potências sobre a abolição do trá- fico negreiro, de 8 de fevereiro de 1815, anexo XV ao Ato final do Congresso de Viena, significou o relevante entendimento de Estados europeus sobre a necessidade de acabar com o odioso comércio de escravos. Suas limitações eram condizentes com o direito internacional existente à época, na qual muitos Estados levantavam como argumento a soberania nacional para se negar a aceitar a abolição, considerada prejudicial aos seus interesses econômicos. Foi essa a posição sustentada no Con- gresso por Espanha e Portugal. De qualquer forma, afirmar em uma declaração in- ternacional, no início do século XIX, que a escravidão era repugnante aos princípios

(^37) A. Zamoyski, op. cit , 2012, p. 400. (^38) Comte d´Angeberg ( op. cit ., 1863, p. 726), do original em francês: “[...] le commerce connu sous le nom de Traite des nègres d'Afrique a été envisagé par les hommes éclairés de tous les temps, comme répugnant aux principes d'humanité et de morale universelle. ” (tradução nossa).

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Áustria, da França, da Grã–Bretanha, da Prússia, dos Países Baixos, da Baviera e de pequenos Estados alemães. Foram realizadas treze reuniões plenárias, obtendo–se o acordo sobre os princípios consagrados nos artigos relativos à liberdade de navega- ção fluvial, expressos no Ato final de Viena.

O conceito jurídico utilizado em Viena para definir os rios internacionais abran- gia aqueles que, no seu curso navegável, separam ou atravessam diferentes Estados. No mesmo sentido a classificação hodierna da doutrina internacionalista pátria, que classifica os rios internacionais em contíguos , quando correm entre os territórios de dois ou mais Estados; ou sucessivos , quando atravessam os territórios de dois ou mais Estados 44.

O Artigo 108 do Ato final do Congresso de Viena estipulou que os Estados que se encontram separados ou atravessados por um mesmo rio navegável se obrigam a regular, de comum acordo, as questões relativas à navegação do rio em questão. Para tanto, deveriam nomear comissários que se reuniriam, no prazo máximo de seis meses após o término do congresso, devendo adotar, como base de seus traba- lhos, os princípios estabelecidos nos artigos seguintes 45. Por seu turno, o Artigo 109 estabeleceu a plena liberdade de navegação de todo o curso dos rios internacionais europeus, desde o ponto em que cada um fosse navegável, até a respectiva emboca- dura. A navegação passou a ser inteiramente livre a qualquer pessoa, vedando–se qualquer proibição relativa à navegação comercial. Igualmente, a administração e o poder de polícia relativos à navegação dos rios internacionais deveriam seguir um modo uniforme para todos, sendo o mais favorável possível ao comércio de todas as nações. Percebe–se que, dada a tecnologia existente à época, a única utilização atribuída aos rios internacionais era a própria navegação, que adquiria relevância sobretudo comercial. Ainda não se discutiam outros usos e fins diversos dos de na- vegação, como veio a ocorrer posteriormente, com a utilização das águas fluviais para a geração de energia elétrica, atividades industriais, entre outros usos 46 .Outras questões normatizadas foram os direitos de cobrança das casas aduaneiras (Artigo 112), os trabalhos de conservação nos leitos dos rios, a serem realizados pelos Es- tados ribeirinhos, a fim de manter a navegabilidade dos rios (Artigo 113) e a veda- ção de entraves alfandegários ao direito de livre navegação (Artigo 115). Por fim, os regulamentos particulares anexos definiram a circulação nos rios Reno, Necar, Meno, Mosela, Meuse e Escalda (Artigo 117).

Um dos efeitos diretos do anexo XVI do Ato final do Congresso de Viena foi a criação da Comissão Central para a Navegação do Reno (CCNR), na qual

(^44) P.B. Casella, op.cit ., 2009, p. 307. (^45) C. d´Angeberg, op. cit ., 1863, p. 1396. (^46) A regulação internacional para fins diversos aos de navegação é definida pela Convenção sobre o direito relativo à utilização dos cursos de água internacionais para fins diversos dos de navegação , ado- tada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 21 de maio de 1997.

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participariam representantes dos Estados ribeirinhos, visando garantir a eficácia do princípio da liberdade de navegação. Com sede atualmente em Estrasburgo 47 , a CCNR atua continuamente para garantir a liberdade de navegação do Reno em seus aspectos físicos, administrativos, tributários e regulatórios. Visa também assegurar um tratamento igualitário através do sistema unificado de regulação para a navega- ção do Reno. Sua atividade tem como objetivos centrais a prosperidade do Reno e do sistema europeu de navegação interior, garantindo um elevado padrão de segu- rança para a navegação e o meio ambiente.

A partir da regulação internacional conferida pelos artigos do Congresso de Vi- ena relativos à livre navegação dos rios internacionais, foi consolidado o princípio da liberdade de navegação dos cursos d´água que atravessam o território de mais de um Estado. Esse princípio, utilizado incialmente para o rio Reno e para os demais rios que figuram no Anexo XVI do Ato final de Viena, serviu, nas décadas seguin- tes, de embasamento e inspiração para o estabelecimento da liberdade de navegação em outros rios europeus e em rios americanos e africanos 48.

IV. Conclusão

O estudo do direito internacional não significa a história enquanto história, mas a compreensão do direito internacional, tal como este se modifica, enquanto sistema, ao longo do tempo 49. O Congresso de Viena (1814–1815) representou uma tentativa de organização do sistema internacional, em especial o europeu, fundado no equilí- brio de poder e numa série de princípios de direito internacional que, sobretudo no primeiro quartel do século XIX, entrelaçaram–se mutuamente.

O Congresso de Viena manteve a lógica de contenção da pretensão hegemônica napoleônica, inaugurando um período de transição pautado no equilíbrio de poder e nas novas tentativas de regulação internacional. Entre remanejamentos territoriais e equilíbrio de forças, o Congresso deixou importantes legados para o direito interna- cional, especialmente no que diz respeito à abolição do tráfico de escravos, institu- cionalização e classificação dos agentes diplomáticos, aplicação do princípio da li- vre navegação dos rios internacionais e proteção da minoria judaica nos Estados alemães.

Como vimos, o término do Congresso de Viena e as subsequentes assinaturas do Tratado da Santa Aliança e do Tratado da Segunda Paz de Paris, além da formação da Quádrupla Aliança, deram início ao funcionamento do denominado Concerto

(^47) A primeira sede da CCNR foi a cidade de Mainz. Em 1861 a sede foi transferida para Mannheim, onde permaneceu até 1919, quando o Tratado de Versalhes transferiu a sede para Estrasburgo. (^48) H. Hajnal, op.cit ., 1920, pp. 52–53. (^49) P.B.Casella, op.cit ., 2012, p. 12.

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internacionalizado através da expansão dos impérios europeus, tornou–se menos universalista na concepção e mais, teoricamente e na prática, um reflexo dos valores europeus.

O Ato final de Viena também foi inovador ao ser um tratado coletivamente assi- nado por potências europeias. Nos períodos anteriores a 1815, tratados multilaterais eram a exceção, sendo a regra a assinatura de tratados bilaterais. A partir do Con- gresso de Viena os tratados multilaterais se multiplicaram. Outrossim, a forma de tratado como um ato geral , a exemplo do Ato final de Viena, passaria a ser utilizada em importantes conferências internacionais posteriores, como a de Paris de 1856, as de Berlim em 1878 e em 1885, a de Bruxelas em 1890 e a de Algeciras em 1906 54.

Como ressalta Shaw 55 , o Congresso de Viena contribuiu para a proliferação de conferências europeias ao longo do século XIX – as quais contribuíram significati- vamente para o desenvolvimento de normas que regem as relações entre os Estados. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha, fundado em 1863, ajudou a promover as Convenções de Genebra a partir de 1864. Posteriormente, as Conferências de Haia de 1899 e 1907, estabeleceram a Corte Permanente de Arbitragem. Várias ou- tras conferências, convenções e congressos enfatizaram a expansão das normas de direito internacional, ao mesmo tempo em que aumentavam os estudos de direito internacional por especialistas.

O Sistema de Congressos pode ser interpretado como um experimento audacioso. Foi precursor no estabelecimento de mecanismos institucionais responsáveis por re- gular as relações entre Estados soberanos com o objetivo da manutenção da paz e da estabilidade internacional. Consistiu em um período no qual foi desenvolvida uma nova forma de coexistência internacional visando moderar os conflitos arma- dos e suprimir movimentos revolucionários que ameaçassem o princípio da legiti- midade. Embora não tenha perdurado, marcou um passo decisivo na evolução das instituições internacionais, servindo como precursor direto das conferências diplo- máticas do fim do século XIX, da Sociedade das Nações e das Nações Unidas, assim como de cúpulas diplomáticas contemporâneas que tratam dos mais variados temas do sistema internacional 56.

(^54) “ The peace settlement of Cateau–Cambrésis, Vervins, Utrecht and Versailles, were concluded in the form of bilateral treaties. Even the peace of Westphalia with the double treaties of Münster and Os- nabrück and the special Hispano–Dutch peace treaty did not involve collective treaties in the true sense. In the First Peace of Paris (30 May 1814) and the Second Peace of Paris (20 November 1815) several – albeit identically worded – treaty instruments were still used between the various parties. Only from the Congress of Vienna onwards did the collective treaty, usually in the form of a General Act, become the rule rather than the exception. […] This form of treaty – the General Act – was used again and again by the great conferences of the nineteenth century: in Paris in 1856, Berlin in 1878 and in 1885, Brussels in 1890 and Algeciras in 1906. ” W. G. Grewe, op. cit , 2000, p. 513–514. (^55) M. N. Shaw, op.cit ., 2008, p. 28. (^56) M. Jarret, op. cit , 2014, pp. 353–354.

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