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O conceito de sociedade em Antropologia, Slides de Antropologia

O CONCEITO DE SOCIEDADE EM ANTROPOLOGIA: UM SOBREVÔO1. Eduardo Viveiros de Castro. Os dois sentidos: o geral e o particular. Em sentido geral, a sociedade é ...

Tipologia: Slides

2022

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O CONCEITO DE SOCIEDADE EM ANTROPOLOGIA: UM SOBREVÔO1
Eduardo Viveiros de Castro
Os dois sentidos: o geral e o particular
Em sentido geral, a sociedade é uma condição universal da vida humana. Esta
universalidade admite uma interpretação biológica ou instintual, e outra simbólico-
moral, ou institucional. Assim, a sociedade pode ser vista como um atributo básico,
mas não exclusivo, da natureza humana: somos geneticamente predispostos à vida
social; a ontogênese somática e comportamental dos humanos depende da
interação com seus conspecíficos; a filogênese de nossa espécie é paralela ao
desenvolvimento da linguagem e do trabalho (da técnica), capacidades sociais
indispensáveis à satisfação das necessidades do organismo. Mas a sociedade
também pode ser vista como dimensão constitutiva e exclusiva da natureza
humana, definindo-se por seu caráter normativo: o comportamento humano torna-
se agência social ao se fundar, não em regulações instintivas selecionadas pela
evolução, mas em regras de origem extra-somática historicamente sedimentadas.
A noção de ‘regra’, aqui, pode ser tomada em sentido moral e prescritivo-regulativo
(como no estrutural-funcionalismo) ou cognitivo e descritivo-constitutivo (como no
estruturalismo e na ‘antropologia simbólica’); apesar desta importante diferença,
em ambos os casos a ênfase nas regras exprime o caráter instituído dos princípios
da ação e da organização sociais. Os conteúdos normativos da sociedade humana,
sendo realidades institucionais, variam no tempo e no espaço, mas a existência de
regras é um invariante formal; como tal, ele seria a característica distintiva da
condição social, que deixa aqui de ser uma ‘coisa evolucionária, um dos
componentes centrais do etograma do Homo sapiens (a ‘espécie humana’), e passa
a definir uma forma de existência marcada pela historicidade, a ‘Humanidade’
enquanto entidade ontologicamente única (a condição humana’), composta não
1 Nota do autor. Este texto foi originalmente encomendado por e publicado em Encyclopedia
of Social and Cultural Anthropology, organizada por A. Barnard & J. Spencer (Londres:
Routledge, 1996, pp. 514–522). Mais tarde, foi traduzido e publicado em Teoria & Sociedade
5, junho de 2000, pp. 182-199, e incorporado como capítulo 5 em meu livro A inconstância
da alma selvagem (S. Paulo: Cosac & Naify, 2002). Suas limitações de conteúdo, estilo e
dimensões (da bibliografia inclusive) refletem radicalmente tal origem. Ele não pretende ser
mais que um mapa muito esquemático, de intenção didática, das incidências do conceito de
sociedade na disciplina antropológica. A versão ora publicada traz algumas pequenas mas
muito importantes modificações, e vários acréscimos bibliográficos.
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O CONCEITO DE SOCIEDADE EM ANTROPOLOGIA: UM SOBREVÔO^1

Eduardo Viveiros de Castro Os dois sentidos: o geral e o particular Em sentido geral, a sociedade é uma condição universal da vida humana. Esta universalidade admite uma interpretação biológica ou instintual, e outra simbólico- moral, ou institucional. Assim, a sociedade pode ser vista como um atributo básico, mas não exclusivo, da natureza humana: somos geneticamente predispostos à vida social; a ontogênese somática e comportamental dos humanos depende da interação com seus conspecíficos; a filogênese de nossa espécie é paralela ao desenvolvimento da linguagem e do trabalho (da técnica), capacidades sociais indispensáveis à satisfação das necessidades do organismo. Mas a sociedade também pode ser vista como dimensão constitutiva e exclusiva da natureza humana , definindo-se por seu caráter normativo: o comportamento humano torna- se agência social ao se fundar, não em regulações instintivas selecionadas pela evolução, mas em regras de origem extra-somática historicamente sedimentadas. A noção de ‘regra’, aqui, pode ser tomada em sentido moral e prescritivo-regulativo (como no estrutural-funcionalismo) ou cognitivo e descritivo-constitutivo (como no estruturalismo e na ‘antropologia simbólica’); apesar desta importante diferença, em ambos os casos a ênfase nas regras exprime o caráter instituído dos princípios da ação e da organização sociais. Os conteúdos normativos da sociedade humana, sendo realidades institucionais, variam no tempo e no espaço, mas a existência de regras é um invariante formal; como tal, ele seria a característica distintiva da condição social, que deixa aqui de ser uma ‘coisa‘ evolucionária, um dos componentes centrais do etograma do Homo sapiens (a ‘espécie humana’), e passa a definir uma forma de existência marcada pela historicidade, a ‘Humanidade’ enquanto entidade ontologicamente única (a ‘condição humana’), composta não (^1) Nota do autor. Este texto foi originalmente encomendado por e publicado em Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology , organizada por A. Barnard & J. Spencer (Londres: Routledge, 1996, pp. 514–522). Mais tarde, foi traduzido e publicado em Teoria & Sociedade 5, junho de 2000, pp. 182-199, e incorporado como capítulo 5 em meu livro A inconstância da alma selvagem (S. Paulo: Cosac & Naify, 2002). Suas limitações de conteúdo, estilo e dimensões (da bibliografia inclusive) refletem radicalmente tal origem. Ele não pretende ser mais que um mapa muito esquemático, de intenção didática, das incidências do conceito de sociedade na disciplina antropológica. A versão ora publicada traz algumas pequenas mas muito importantes modificações, e vários acréscimos bibliográficos.

mais de indivíduos, mas de sujeitos que são simultaneamente criadores e criaturas do mundo das regras. Em sentido particular, (uma) sociedade é uma designação aplicável a um grupo ou coletivo humano dotado de uma combinação mais ou menos densa de algumas das seguintes propriedades: territorialidade; recrutamento principalmente por reprodução sexual de seus membros; organização institucional relativamente auto-suficiente e capaz de persistir para além do período de vida de um indivíduo; distintividade cultural. Aqui a noção pode ter como referentes principais o componente populacional, o componente institucional-relacional, ou o componente cultural-ideacional da realidade coletiva. No primeiro caso, o termo é usado como sinônimo de ‘(um) povo’, visto como uma fração individualizada da humanidade. No segundo, em que é equivalente a ‘sistema’ ou ‘organização’ social, ele destaca o quadro sociopolítico da coletividade: sua morfologia (composição, distribuição e relações dos subgrupos da sociedade enquanto ‘grupo’ máximo), o corpo de normas jurais (noções de autoridade e cidadania, regulação do conflito, sistemas de status e papéis), e as configurações características das relações sociais (relações de poder, formas de cooperação, modos de intercâmbio). No terceiro caso — em que ‘sociedade’ é freqüentemente substituída por ‘cultura’ — visam-se os conteúdos afetivos e cognitivos da vida do coletivo: o conjunto de disposições e capacidades inculcadas em seus membros através de meios simbólicos variados, bem como os conceitos e práticas que conferem ordem, significação e valor à totalidade do existente. Uma das formas de administrar a relação entre os dois sentidos de ‘sociedade’ foi pela divisão da antropologia em um aspecto etnográfico ou descritivo-interpretativo, voltado para a análise do particular e privilegiando as diferenças entre as sociedades, e um aspecto teórico ou comparativo-explicativo, que procura formular proposições sintéticas válidas para toda sociedade humana. Apesar das tentativas de defini-los como etapas metodologicamente complementares, a tendência histórica tem sido a de uma polarização epistemológica entre ‘etnografia’ e ‘teoria’. A perspectiva universalista predominou na fase formativa da antropologia, com sua ênfase no ‘método comparativo’ e na definição de grandes tipos de sociedade; em seguida, o culturalismo e o funcionalismo marcaram o período áureo do método etnográfico, usado polemicamente para a demolição de tipologias especulativas (Boas) ou como via de acesso direto ao universal (Malinowski); os estruturalismos de Radcliffe-Brown e Lévi-Strauss e os neo-evolucionismos americanos (L. White, J. Steward), por sua

natureza’, que ela nega e transcende. De inspiração universalista e formalista, esta concepção tem como modelo metafórico (e geralmente causa final) o Estado constitucional e territorial, e como problema típico os fundamentos da ordem política. A segunda se funda na idéia de um todo orgânico preexistente empírica ou moralmente a seus membros, que dele emanam e retiram sua substância: a sociedade é uma unidade corporada orientada por um valor transcendente; ela é um ‘universal concreto’ onde a natureza humana se realiza. De inspiração particularista e substantivista, seu modelo metafórico (e às vezes causa eficiente) é o parentesco como princípio natural de constituição de pessoas morais coletivas, e seu problema típico é o da integração cultural de um povo enquanto Nação. As grandes imagens modernas para estas duas concepções são respectivamente o contrato (ou seu negativo, o conflito ) e o organismo , que persistem na antropologia do século XX sob avatares múltiplos, o mais recente sendo o contraste entre ‘teorias da ação’ e ‘teorias da estrutura’. A universitas está associada a um horizonte pré-moderno dominado pelo pensamento de Aristóteles; a societas, aos teóricos do jusnaturalismo, de Hobbes a Hegel. Mas deve-se recordar que a Antiguidade conheceu sociologias artificialistas com os sofistas e Antístenes, e que o nominalismo medieval preparou o terreno para as teorias modernas do contrato. Por sua vez, o modelo holista e organicista da universitas ressurgiu com vigor na reação romântica ao Iluminismo, desempenhando um papel fundamental no desenvolvimento da imagem ‘antropológica’ da sociedade como constituindo uma comunidade étnica de origem, que partilha um mundo de significados tradicionais legitimados pela religião. De outro lado, boa parte da antropologia vitoriana e de sua descendência pode ser vista como herdeira tardia do Iluminismo. Tipicamente, a antropologia tem sido descrita como uma empresa intelectual que administra, com sucesso variável, essa dupla e contraditória herança: a iluminista, que lhe legou o postulado da universalidade objetiva da natureza (e portanto da socialidade) humana, e a romântica, que lhe transmitiu o compromisso com a diversidade das culturas (e portanto das formas de atualização subjetiva da condição social). Uma das manifestações da polaridade societas / universitas é a concorrência entre ‘sociedade’ e ‘cultura’ como rótulos englobantes para o objeto da antropologia, que opôs as duas tradições teóricas dominantes entre 1920 e 1960. A noção de sociedade, característica da ‘antropologia social’ britânica, deriva da ‘sociedade civil’ dos jusnaturalistas, dos racionalismos francês e escocês do séc. XVIII e, mais proximamente, das sociologias de Comte, Spencer e Durkheim. A noção de cultura, emblema da ‘antropologia cultural’ americana, deita suas raízes

no Romantismo alemão, nas escolas histórico-etnológicas da primeira metade do séc. XIX, e mais diretamente na obra de Franz Boas. Isto não significa que se possa derivar univocamente a antropologia social do individualismo da societas e a antropologia cultural do holismo da universitas. Sob certos aspectos, as coisas se passam ao inverso. Maine ou Durkheim, por exemplo, ao mesmo tempo em que assimilaram os esquemas progressistas do séc. XVIII, reagiram ao artificialismo e utilitarismo a eles associados, em nome de concepções essencialistas e organicistas que irão inspirar a antropologia de Radcliffe-Brown e seguidores. De seu lado, Boas, embora herdeiro do idealismo e do historicismo alemães, entreterá uma concepção nominalista da cultura, concebendo o indivíduo como único locus real da integração cultural. Mas não há dúvida que se encontram marcas do utilitarismo racionalista em várias tendências da antropologia social, particularmente no funcionalismo de Malinowski ou Leach e no componente spenceriano do pensamento de Radcliffe-Brown; é igualmente claro que as preocupações ‘configuracionais’ de antropólogos americanos como Kroeber, Benedict ou Geertz derivam do paradigma romântico da sociedade como organismo espiritual. As duas antinomias: imanência e transcendência ‘Sociedade’ e ‘cultura’ vieram ainda dividir o campo estruturado pela oposição jusnaturalista entre ‘(estado de) natureza’ e ‘sociedade (civil)’, com a diferenciação das duas antinomias basilares das ciências humanas, que lhes circunscrevem o campo discursivo e lhes fornecem os problemas característicos: ‘natureza/cultura’ e ‘indivíduo/sociedade’. Ambas remetem para o mesmo dilema de fundo, a saber, o de decidir se as relações entre os termos opostos são de continuidade (solução ‘reducionista’) ou de descontinuidade (solução ‘autonomista’ ou ‘emergente’). A cultura é um prolongamento da natureza humana, exaustivamente analisável em termos da constituição biológica da espécie, ou ela é uma ordem suprabiológica que ultrapassa dialeticamente seu substrato orgânico? Da mesma forma, a sociedade é a soma das interações e representações dos indivíduos que a compõem, ou ela é sua condição supraindividual, e como tal um ‘nível’ específico da realidade? Os cruzamentos entre as duas polaridades são complexos, pois além de serem freqüentemente subsumidas uma na outra, com ‘sociedade’ ou ‘cultura’ opondo-se a ‘indivíduo’ e ‘natureza’, estas duas últimas noções são abundantissimamente polissêmicas. ‘Indivíduo’ possui no mínimo um sentido

tendências ditas ‘materialistas’ que concebem a cultura como instrumento e resultado de um processo de adaptação ‘ecológica’. A antropologia social britânica, em troca, orientou seu eixo problemático pela polaridade clássica entre ‘indivíduo’ e ‘sociedade’ e pelos conceitos (herdados do organicismo romântico) que a exprimiam: ‘estrutura’ e ‘função’. Para Malinowski, o conceito de função referia-se ao papel desempenhado pelas instituições sociais na satisfação das necessidades básicas dos organismos individuais. Para Radcliffe- Brown, ele designava a contribuição destas instituições na manutenção das condições de existência do organismo coletivo, definição que responde ao problema central da chamada teoria estrutural-funcionalista, o dos fundamentos e modos de permanência de uma dada forma social. Rebatizado de ‘reprodução’, tal problema foi retomado pelo marxismo antropológico difundido a partir dos anos 70, que pode assim ser considerado como uma variante tardia do estrutural-funcionalismo. Radcliffe-Brown avançou tanto definições natural-interativas como moral- regulativas de ‘estrutura social’, hesitando entre a imagem de uma rede de relações interindividuais e a de um arranjo normativo de relações intergrupos. A imagem preponderante, entretanto, foi a da estrutura como codex ‘jural’ que aloca personalidades sociais a indivíduos ou coletividades, definindo sua posição relativa em termos de direitos e deveres. Esta concepção, aprofundada sobretudo por Fortes, conheceu sua grande época de hegemonia nos anos 40 e 50. Mas a orientação individualista e utilitarista, que teve em Malinowski seu grande campeão antropológico, começou a voltar ao primeiro plano com a reação de Leach ao estrutural-funcionalismo, e em seguida floresceu em diversas alternativas transacionalistas (a dita ‘Escola de Manchester’, F. Barth) ao paradigma durkheimiano, todas insistindo na diferença entre código normativo e organização empírica, a sociedade oficial e a sociedade real, e privilegiando as ‘estratégias’ ou o ‘processo’ contra as ‘normas’ ou a ‘estrutura’, a ‘ação’ contra a ‘representação’ e o ‘poder’ contra a ‘ordem’. Estes contrários conceituais manifestam o dilema clássico da antropologia britânica, a disjunção entre as ‘normas’ e a ‘prática’, que por sua vez traduz a persistência (outros diriam, renitência) da antinomia sociedade / indivíduo nesta tradição teórica. Lévi-Strauss, de seu lado, herdou dos boasianos a questão da relação entre universais psicológicos e determinismos culturais, o interesse pela dimensão inconsciente dos fenômenos sociais, e a linguagem conceitual organizada pela oposição ‘natureza/cultura’. Mas seu tratamento desta última oposição evoca, antes, as tentativas clássicas de fornecer uma gênese ideal da sociedade a partir do estado de natureza, e sua ‘cultura’ guarda muitas analogias com a noção de

‘sociedade civil’. Ao definir a proibição do incesto e a troca matrimonial como condição transcendental da socialidade humana, o autor concebe a passagem entre as ‘ordens’ da natureza e da cultura em termos sociopolíticos diretamente inspirados na teoria da reciprocidade de Mauss — teoria que já foi lida como resposta alternativa ao problema hobbesiano da emergência da ordem social a partir do estado natural de guerra, com o Dom e a troca postos como o análogo primitivo do Estado e do contrato (M. Sahlins). Mas Lévi-Strauss irá também se reclamar de Boas e de Saussure para explorar um novo grande modelo analógico para os fenômenos socioculturais, a linguagem. Ao contrapor à tese durkheimiana sobre as origens sociais do simbolismo o tema dos fundamentos simbólicos do social, ele vai derivar tanto a cultura como a sociedade do mesmo substrato, o ‘inconsciente’, espécie de não-lugar onde se anulariam as antinomias natureza/cultura e indivíduo/sociedade. O modelo da linguagem subjaz à concepção lévi-straussiana de estrutura como código , isto é, como um sistema de signos dotados de valores posicionais. O problema organicista da função dá aqui lugar ao problema semiótico do sentido , deslocamento que, entre outras coisas, responde pela pouca importância concedida pelo estruturalismo à noção de estrutura social. Após seu livro sobre o parentesco, onde ainda se acham empregos de ‘estrutura’ próximos aos significados morfológicos tradicionais, Lévi-Strauss concentrou-se em complexos classificatórios e mitológicos, isto é, em estruturas mais propriamente ‘culturais’. Ao proclamar, em uma página famosa, que a etnologia era uma psicologia, o antropólogo francês terminou de dissolver a distinção entre sociedade e cultura; com isto, o estruturalismo contribuiu indiretamente para a dominância recente (falamos dos anos 70-90) do conceito de cultura sobre o de sociedade na cena antropológica. Mas é esta mesma ênfase nos aspectos taxonômicos e cognitivos da vida social que tem sido apontada, nas avaliações contemporâneas, como sintoma de uma das limitações maiores do estruturalismo: sua dificuldade em dar conta da ‘passagem’ entre significação e ação, as ordens concebidas e as ordens vividas, a ‘estrutura’ e a ‘história’. Este diagnóstico levou a antropologia contemporânea a experimentar uma variedade de novas abordagens, em geral adjetivadas de ‘fenomenológicas’, ‘históricas’ e/ou ‘processuais’.

  • pensamento selvagem / domesticado (Lévi-Strauss)
  • oral / escrito (Goody) Estas dicotomias evocam certos valores da oposição natureza/cultura, com o primeiro termo de cada dicotomia representando um estado mais ‘natural’ (em vários sentidos do termo). Evocam também valores da oposição indivíduo/sociedade, mas aqui a polaridade como que se inverte: os primeiros termos das dicotomias denotam formas sociais onde prevalece o ‘grupo’ como unidade básica, enquanto os segundos apontam para uma forma social onde o ‘indivíduo’ ganha preeminência. Por fim, elas ecoam a divisão tradicional do trabalho teórico, com a antropologia estudando as sociedades simples, tradicionais, fundadas no parentesco, com uma economia do dom, holistas, ao passo que a sociologia se encarregaria das sociedades modernas, industriais, individualistas, complexas — e, originalmente, ocidentais. As dicotomias acima podem ser interpretadas nos termos de um dualismo ontológico que opõe essências sociais irredutíveis, mas também como um contraste sobretudo heurístico, que exprime a predominância de um pólo sobre o outro no interior de cada tipo social. A tendência recente tem sido uma profunda desconfiança perante formulações sugestivas de qualquer ‘grande divisor’, em particular formulações que validem a imagem de ‘sociedade primitiva’ estabelecida pelos pensadores vitorianos, a qual teria servido de referência matricial para a antropologia. Argumenta-se que a ‘sociedade primitiva’ é uma mera projeção invertida da imagem, constituída a partir do séc. XVIII, da sociedade burguesa moderna, e que ela é carregado de conotações etnocêntricas e de fantasias ideológicas (negativas ou positivas). Seja como fôr, a antropologia não parece poder passar facilmente sem tais dicotomias. Se elas arrastam consigo uma pesada bagagem ideológica, não deixam ao mesmo tempo de sugerir uma série de diferenças entre a maioria das sociedades tradicionalmente estudadas pela antropologia e a sociedade capitalista moderna —ou, talvez mais acuradamente, diferenças entre a ‘velha matriz antropológica’ (Latour) da humanidade, na qual todos banhamos, e uma certa imagem de sociedade (e de natureza) associada à era moderna, da qual estamos agora nos afastando. A história da antropologia registra diferentes modos de conceber a relação entre os termos das dicotomias acima. Os evolucionistas clássicos interpretaram-na (^2) A triparticão clássica selvagens / bárbaros / civilizados foi recuperada e radicalmente

como uma sucessão histórica objetiva: a sociedade primitiva, antiga ou tradicional seria uma universitas ; a sociedade moderna, uma societas. Tal solução, note-se, é dominada pela perspectiva da societas , a qual aparece como a causa final de um movimento progressivo envolvendo todas as sociedades humanas, e portanto como a ‘verdade’ latente do mundo da universitas. Despido eventualmente de suas conotações teleológicas, este modelo ecoa nas tendências teóricas contemporâneas que privilegiam supostos condicionantes universais da ação (escolha racional, vontade de maximização do valor) e que consideram as categorias sociológicas geradas por e para a sociedade moderna (como o indivíduo, o poder, o interesse, a economia, a política) como aplicáveis a qualquer sociedade, visto que a oposição entre os tipos é antes de grau que de natureza. A posição alternativa, que enfatiza a diferença qualitativa entre os termos, tende a privilegiar a perspectiva da universitas. Esta última é vista como a forma normal ou ‘natural’ da sociedade, a societas moderna revelando-se uma singularidade histórica e/ou uma ilusão ideológica: o Ocidente é um acidente.^3 Aqui, a oposição entre os dois tipos de sociedade manifestaria sobretudo a diferença entre duas concepções sociocosmológicas globais — e uma destas, a holista, revelaria a ‘verdadeira natureza’ do social. Tal idéia, que lança suas raízes imediatas na sociologia da religião durkheimiana e no ‘determinismo cultural’ dos boasianos, sofreu desenvolvimentos bastante diferentes entre si nas mãos de autores como Dumont, Sahlins, Schneider ou Wagner. Na medida em que muitos antropólogos concebem sua atividade como sendo primordialmente a de empreender uma crítica (para outros, uma desconstrução) político-epistemológica da razão sociológica ocidental, esta posição ocupa um lugar central na disciplina. A valorização de algo como a universitas pode ser entrevista talvez mesmo naqueles autores que observam a implicação mútua e necessária entre concepções holistas e individualistas, em vista de sua comum derivação da tradição ocidental, recusando assim ambas como etnocêntricas, em nome das sociologias imanentes a outras sociedades (M. Strathern). A fixação na sociedade primitiva como objeto legou à antropologia uma quase-identidade entre seu conceito de sociedade e o tema do parentesco. As críticas de Maine e Durkheim ao utilitarismo de Bentham e Spencer; a descoberta por Morgan das terminologias ‘classificatórias’ ameríndias e sua inserção em um reinventada nos anos 70 por Deleuze & Guattari em um livro célebre, O Anti-Édipo. (^3) O que, como os antropólogos sabem desde pelo menos Raça e História, é efetivamente o caso, mas em outro sentido: o mega-dispositivo capitalista moderno é o resultado de um encontro contingente de contingências, de uma cumulação de acasos, e não a culminação histórica necessária de um ímpeto intrínseco à sociedade humana.

teóricas, sendo assim melhor falar em preponderâncias relativas. O esquema evolucionista, ao projetar na diacronia a oposição entre o mundo coletivista ‘primitivo’, fundado no parentesco grupal e nas relações normativas de status , e o mundo ‘individualista’ moderno, organizado na base da contigüidade local, do contrato individual e da liberdade associativa, já propunha um compromisso conceitual decisivo. Tal esquema, porém, serviu de contraste crítico para quase toda a antropologia social posterior, em particular as várias correntes funcionalistas, que se dedicaram a mostrar a operação simultânea de ambas as orientações, o princípio do status e o do contrato, no interior das sociedades ‘primitivas’. Neste contexto, uma solução muito comum foi a divisão sincrônica do campo social em dois aspectos complementares, um mais ‘social’, o outro mais ‘individual’, partição que se exprime em várias análises famosas, a começar pelo contraste trobriandês entre ‘direito materno’ e ‘amor paterno’ (Malinowski), passando pelo papel do irmão da mãe nas sociedades patrilineares (Radcliffe- Brown), e desembocando em oposições como ‘descendência’ versus ‘filiação complementar’ (Fortes), ‘descendência’ versus ‘parentesco' (Evans-Pritchard), ‘estrutura social’ versus ‘organização social’ (Firth), ‘estrutura’ versus ‘communitas’ (Turner), e outras. Uma vez estabelecidas tais polaridades, porém, o esforço analítico dos antropólogos foi em boa parte dedicado, algo paradoxalmente, a mediatizá-las, isto é, a determinar os mecanismos institucionais de articulação entre os laços grupais e os laços interpessoais, a ordem doméstica do parentesco e a ordem política da sociedade global, o componente normativo ou ‘obrigatório’ das relações sociais e seu componente optativo ou ‘estratégico’. Para dizê-lo de um modo algo cínico, tem-se a impressão que a antropologia funcionalista passou seu tempo procurando resolver os problemas que ela própria criou. Interiorização e mediatização das dicotomias, então. Pode-se dizer que a imagem de sociedade primitiva vigente na fase clássica da antropologia social internalizou um contraste que havia sido usado anteriormente para opor globalmente sociedades, ou concepções globais da sociedade. E por mais que deva muito de sua inspiração à tradição ‘aristotélica’, há um aspecto da modernidade ‘hobbesiana’ a que a antropologia não ficou imune: trata-se da idéia de que a sociedade, mesmo se é uma condição ‘natural’, por consubstancial à humanidade, não deixa por isso de ser uma condição problemática, isto é, algo que exige explicação , senão mesmo justificação. Isto se deve por sua vez à idéia (analisada, notadamente, por M. Strathern) de que a sociedade se constitui real ou formalmente a partir de indivíduos associais , que devem ser ‘socializados’, isto é, constrangidos pela inculcação de representações normativas a se comportarem de

um modo determinado, e que resistem a esta constrição por uma manipulação egoísta das normas ou pela regressão imaginária a uma liberdade original. Tal idéia se encontra, com nuances variadas, em Durkheim como em Freud, em Lévi-Strauss como em Malinowski, em Fortes como em Leach ou Bourdieu. O Homo sapiens pode bem ser um animal social , mas para a modernidade esta expressão sempre sugeriu um inquietante oxímoro, que está na raiz da busca incessante pela antropologia de soluções que transcendessem as antinomias dele decorrentes. Crítica e crise: declínio e queda do império da sociedade A representação antropológica clássica de (uma) sociedade, precipitada pelas tradições funcionalista e culturalista, é a de uma mônada que exprime à sua maneira o universo humano: um povo etnicamente distinto, vivendo segundo instituições específicas e possuindo uma cultura particular. A coincidência ideal dos três componentes constituiria uma totalidade individual, dotada de organização e de finalidade internas. A ênfase funcionalista é no aspecto ‘total’ e sistêmico; a culturalista, no aspecto ‘individual’ e expressivo. Mas esta imagem, ainda que continue a funcionar, de modo mais ou menos evidente no imaginário antropológico, como a sociedade ideal (no duplo sentido do adjetivo), já vem sendo questionada há bastante tempo. No plano teórico, Lévi- Strauss, por exemplo, sempre insistiu que o estruturalismo não é um método de análise de sociedades globais, sugerindo ademais que uma ‘sociedade’ é um complexo contraditório onde coexistem estruturas de diferentes ordens, e que a ‘ordem das ordens’, ou a totalização inteligível destas estruturas, é um problema mais reflexivo que analítico, remetendo ao ‘modelo nativo’ antes que ao modelo do antropólogo. No plano etnográfico, a monografia exemplar de Leach sobre os Kachin demonstrou a inanidade de modelos epistemologicamente ‘bem- comportados’, que não levem em conta os contextos históricos e políticos de inscrição das estruturas sociais. Nos anos mais recentes, tem sido crescentemente observado que a noção de sociedade como totalidade autocontida deriva de categorias e instituições características do Ocidente moderno, não podendo assim almejar à universalidade ‘antropológica’ do conceito, mas meramente à particularidade ‘etnográfica’ de uma concepção cultural. Argumenta-se, por exemplo, que a idéia de uma humanidade dividida em unidades étnicas discretas, social e culturalmente singulares, deriva da ideologia do Estado-nação, imposta aos povos não-ocidentais pelo colonialismo,

clássica entre os níveis micro- e macro- dos fenômenos sociais caminha rapidamente para a desaparição); de outro, a percepção de que a sociedade não pode ser uma espécie de indivíduo porque o indivíduo ele próprio já é uma sociedade (aqui, a redescoberta de Gabriel Tarde vem sendo fundamental). Mas aqui já avançamos até os desenvolvimentos mais recentes da antropologia. Voltando um pouco atrás na história, pode-se observar que uma etapa da dissolução do conceito de sociedade na antropologia foi o abandono generalizado das concepções estruturais de sociedade em favor de pragmáticas da agência social capazes, em teoria, de promover uma recuperação do sujeito ou agente sem cair no subjetivismo ou no voluntarismo. As várias teorias da ‘prática’, da ‘ação comunicativa’ ou da ‘estruturação’; a insatisfação com a alternativa entre concepções interativo-naturalistas e regulativo-culturalistas de sociedade; a crítica unânime ao que se poderia chamar, por analogia com a célebre ‘hipótese Sapir- Whorf’, de ‘hipótese Saussure-Durkheim’, que conceberia a ação como atualização passiva de um conjunto de regras localizado na consciência coletiva ou no aparelho mental da espécie; o retorno multiforme de abordagens ‘fenomenológicas’ — este foram os sinais de que a intencionalidade e a consciência, antes descartadas como mero epifenômeno de estruturas que encerravam em si a inteligibilidade e a eficácia da sociedade (senão mesmo denunciadas como obstáculos epistemológicos à determinação destes princípios explicativos), tornaram-se por algum tempo não apenas aquilo que devia ser urgentemente explicado, mas a própria essência (quando não a verdadeira explicação) da socialidade. Em suma: crise da ‘estrutura’, retorno do ‘sujeito’. Tal retorno pôde se mostrar teoricamente alerta, como nas propostas que parecem estar desembocando em uma auspiciosa superacão das antinomias socio-cosmológicas do Ocidente. Mas ele significou também, em não poucos casos, uma retomada nostálgica de várias figuras em boa hora rejeitadas pelos estruturalismos das décadas recém-passadas: filosofia da consciência, celebração da criatividade infinita do sujeito, retranscendentalização do indivíduo etc. Recordando que cada teoria social já vinda à luz acreditou um dia deter a chave da síntese entre os pólos das antinomias da razão sociológica ocidental, apenas para ser mais tarde acusada de favorecer escandalosamente um destes pólos, resta a ver se as neopragmáticas contemporâneas terão de fato escapado de serem mais um mero momento da oscilação perene entre o nominalismo subjetivista da societas e o realismo objetivista da universitas. A crítica contemporânea atinge a noção antropológica de sociedade por todos os lados: a sociedade primitiva como tipo real; a sociedade como objeto empiricamente delimitado; a sociedade como suporte objetivo das representações

coletivas, entidade dotada de coerência estrutural e de finalidade funcional. Tal crise conceitual deriva, em primeiro lugar, de uma crise histórica. O fim do colonialismo político formal e a aceleração dos processos de mundialização dos fluxos econômicos e culturais, a transnacionalização das identidades e a generalização da condição ‘diaspórica’ como experiência cultural, tornaram mais evidente o caráter desde sempre ideológico e artificial de algumas das idéias em questão: a mônada primitiva não era primitiva, e nunca foi monádica. Mas tal crise histórica reflete também uma mudança na apercepção social ocidental, isto é, uma crise cultural. O objeto ideal da antropologia, a ‘sociedade primitiva’, dissolveu-se menos pela (ainda bastante relativa) globalização objetiva dos mundos primitivos, ou pelo (algo duvidoso) progresso das luzes antropológicas, e mais pela falência da noção de ‘sociedade moderna’ que lhe serviu de contra-modelo. Cresce a convicção de que o Ocidente abandonou seu período ‘moderno’, fundado na separação absoluta entre o domínio dos fatos e o domínio dos valores — separação que permitia atribuir, por um lado, transcendência objetiva ao mundo natural e imanência subjetiva ao mundo social, e, por outro lado, instrumentalidade passiva aos objetos e agência coercitiva aos valores. Resta a ver se ingressamos (e este ‘nós’ inclui todas as sociedades do planeta) em uma fase pós-moderna onde não mais funciona tal separação, o que de fato nos transporta para uma situacão histórica radicalmente nova, outra. Se assim o fôr, então mais que nunca carecemos de (a ambiguidade do verbo é proposital) conceitos capazes de iluminar eficazmente a condição social de um ponto de vista verdadeiramente universal, isto é, e necessariamente, um ponto vista multiversal , capaz de gerar e desenvolver a diferença e a multiplicidade. Bibliografia BOBBIO, N. 1993. Thomas Hobbes and the Natural Law Tradition (trans.) D. Gobetti. Chicago: The University of Chicago Press. BOURDIEU, P. 1972. Esquisse d'une théorie de la pratique (précédé de trois études d'ethnologie kabyle). Genève: Librairie Droz. DELEUZE, G. & F. GUATTARI. 1972. L’Anti-Œdipe. Capitalisme et schizophrénie I. Paris: Minuit. DELEUZE, G. & F. GUATTARI. 1980. Milles Plateaux. Capitalisme et schizophrénie II. Paris: Minuit.

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