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O Conceito de Estratégia no Pensamento Estratégico-Militar ..., Resumos de Diplomacia

dar e dos generalíssimos”,7 ou então, como alude Sebastião Telles, a estratégia é a. “sciencia positiva da guerra que estuda as diferentes combinações (.

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175
Nação e Defesa
O Conceito de Estratégia
no Pensamento Estratégico-Militar
Português na Era da Guerra Total
Da Grande Guerra à Entrada na NATO – 1919-1958
António Paulo Duarte
Historiador
Resumo
Tem este texto, por mister, dissecar o conceito
de estratégia no pensamento estratégico-militar
português no período da Guerra Total, 1910-1958.
Abarca o texto a época das duas guerras mundiais
e ainda as primeiras fases da Guerra Fria. É uma
época em que a visão da guerra é moldada pelo
impacto da Revolução Industrial e pela mobili-
zação nacional para as guerras entre nações. De
que modo, os teóricos da estratégia portugueses
vislumbraram o impacto da guerra e como esta
transformou o modo de fazer a guerra e a concep-
ção de estratégia é o objectivo deste texto.
A tese que se apresenta ao leitor infere que a con-
cepção de uma mobilização total da sociedade
para a guerra e o alargamento da estratégia a
dimensões não militares foi compreendido tardia-
mente pelos teóricos da estratégia portugueses. De
facto, para estes teóricos, até meados da II Guer-
ra Mundial, a concepção de estratégia, e por
conseguinte, a visão da guerra, reduzia-se à sua
dimensão militar, a despeito da exigência de uma
maior mobilização demográfi ca.
Abstract
The Concept of Strategy in the Portuguese
Military Strategic Thinking in the total War Era
The present text intends to study the impact of Total
War in the military and strategic Portuguese thought
and how this affects the usual conception of strategy.
The Total War Era was a time of national mobilization
based on the Industrial Revolution capabilities. How
the Portuguese military and strategic thinkers view
this time is the purpose of this article.
The thesis of the article says that the Portuguese
military and strategic thinkers understood too late
the impact of the Industrial Revolution and the
technological development in Total War. In their
perspective, only late in World War II, war and strategy
was a military question. The key factor in war was,
as in the Napoleonic wars, the male mobilization to
the armies. Only in the aftermath of World War II,
did understand that war strategy was much more
than a military affair.
Verão 2009
N.º 123 - 4.ª Série
pp. 175-190
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175 Nação e Defesa

O C o n c e i t o d e E s t r a t é g i a

n o P e n s a m e n t o E s t r a t é g i c o - M i l i t a r

P o r t u g u ê s n a E r a d a G u e r r a To t a l

D a G r a n d e G u e r r a à E n t r a d a n a N AT O – 1 9 1 9 - 1 9 5 8

António Paulo Duarte Historiador

Resumo

Tem este texto, por mister, dissecar o conceito de estratégia no pensamento estratégico-militar português no período da Guerra Total, 1910-1958. Abarca o texto a época das duas guerras mundiais e ainda as primeiras fases da Guerra Fria. É uma época em que a visão da guerra é moldada pelo impacto da Revolução Industrial e pela mobili- zação nacional para as guerras entre nações. De que modo, os teóricos da estratégia portugueses vislumbraram o impacto da guerra e como esta transformou o modo de fazer a guerra e a concep- ção de estratégia é o objectivo deste texto. A tese que se apresenta ao leitor infere que a con- cepção de uma mobilização total da sociedade para a guerra e o alargamento da estratégia a dimensões não militares foi compreendido tardia- mente pelos teóricos da estratégia portugueses. De facto, para estes teóricos, até meados da II Guer- ra Mundial, a concepção de estratégia, e por conseguinte, a visão da guerra, reduzia-se à sua dimensão militar, a despeito da exigência de uma maior mobilização demográfica.

Abstract The Concept of Strategy in the Portuguese Military Strategic Thinking in the total War Era The present text intends to study the impact of Total War in the military and strategic Portuguese thought and how this affects the usual conception of strategy. The Total War Era was a time of national mobilization based on the Industrial Revolution capabilities. How the Portuguese military and strategic thinkers view this time is the purpose of this article. The thesis of the article says that the Portuguese military and strategic thinkers understood too late the impact of the Industrial Revolution and the technological development in Total War. In their perspective, only late in World War II, war and strategy was a military question. The key factor in war was, as in the Napoleonic wars, the male mobilization to the armies. Only in the aftermath of World War II, did understand that war strategy was much more than a military affair.

Verão 2009 N.º 123 - 4.ª Série pp. 175-

1) Introdução

A subordinação das Forças Armadas ao poder político era um dado adquirido na teoria, quer no período entre-as-guerras, quer após a Segunda Guerra Mun- dial. Não obstante, a forma como esta subordinação teórica aparecia, cambiará de acordo com os efeitos político-estratégicos da Segunda Guerra Mundial. Pode ser questionável uma travessia directa do pensamento estratégico teórico para a realidade política coeva, onde as Forças Armadas tinham um peso político muito específico. É conhecida a afirmação, já antiga, de Douglas Wheeler, de que, pelo menos em “alguns aspectos, o Estado Novo permaneceu uma ditadura militar”, onde a omnipresença das Forças Armadas era um facto político concreto sempre a ter em conta. 1 Sem querer contudo questionar o peso político das Forças Armadas durante o Estado Novo, o modo como elas entendiam o seu papel polí- tico e o seu papel militar, seria um factor de condicionamento da sua acção política. A relação da política com a guerra e a estratégia é teoricamente pouco traba- lhada pelos “estrategistas” nacionais. Considerava-se contudo, de forma simples, que a política subordinava a guerra e a estratégia, pelo que o vector militar devia estar submetido ao governo. No período entre-as-guerras, a política de guerra e a política militar eram emanadas da política e enquadravam e submetiam a estraté- gia. A política militar e a política naval eram definidas pelo governo, ouvidos os respectivos ministros. É preciso salientar que não há uma política específica para as Forças Armadas, mas duas políticas, a militar e a naval, respectivamente para o Exército e para a Armada. De igual modo, cabia à política, através da política de guerra, a definição dos objectivos nacionais que enquadrariam a política militar ou naval, e que, em última análise, configuravam a definição da estrutura de forças, ou seja, dos meios e do equipamento/material de guerra que permitiriam activar de forma efectiva as Forças Armadas. É preciso relevar que a política militar (terres- tre) e naval eram, teoricamente, um complemento da política exterior, suportando nomeadamente a actividade diplomática, o que remete para uma visão clássica de soberania nacional, distinguindo-se muito claramente o que é exterior do que é interior, 2 o que se reflectia também na arquitectura da diplomacia nacional, com

O Conceito de Estratégia no Pensamento Estratégico-Militar Português na Era da Guerra Total

1 Cfr. Douglas Wheeler, A Ditadura Militar Portuguesa, 1926-1933 , Mem Martins, (s/d), p. 13. 2 Segundo Charles Tilly, a construção do Estado moderno e soberano é expressão de uma cada vez maior oposição entre o que é interno e o que é externo. Cfr. Charles Tilly, Coercion, Capital and European States (AD 990-1992) , 4ª Ed., Cambridge, Massachussets, 1994, pp. 70-71.

(aludindo aqui a Moltke). 5 O autor liga directamente a política à estratégia, mas o que significa para ele a Estratégia? L. Ferreira Martins apresenta vários conceitos, nenhum pessoal, mas todos retirados de estrategos e estrategistas conceituados. Assim, diz L. Ferreira Martins, que para Cullman, 6 a estratégia é a “arte de coman- dar e dos generalíssimos”, 7 ou então, como alude Sebastião Telles, a estratégia é a “sciencia positiva da guerra que estuda as diferentes combinações (...) das forças militares”. 8 Na realidade, para o autor, a estratégia mais não é que a actividade operacional das forças militares, ou seja, a condução das forças em campanha. Ele limita a estratégia àquilo a que hoje se denominaria de estratégia operacional, isto é, a parte da estratégia que lida com as operações, com aplicação ou acção das forças combatentes. 9 Ideia similar expressa Tasso de Miranda Cabral ao afirmar que a doutrina estratégica é expressão da política militar. 10 Mesmo os elementos de génese e organização das forças militares estão para lá da Estratégia. O autor não explica bem quem terá de constituir as forças militares, mas pela sua lógica, não poderá deixar de ser a política que se expressa, no que se refere ao meio militar, na política militar.

5 Cfr. L. Ferreira Martins, “Prefácio”, in Tasso de Miranda Cabral, Conferências de Estratégia. Estudo Geo-Estratégico dos Teatros de Operações Nacionais , Lisboa, EME, 1932, I Vol., pp. 10-11. O autor referido é por demais conhecido. Trata-se de Helmuth Von Moltke (1800-1891), também conhecido como Moltke, o Velho. Um dos maiores estrategos e estrategistas do século XIX, Moltke foi Chefe do Estado-maior General Prusso-Alemão, de 1857 até quase à sua morte. As vitórias militares prussas nas guerras prusso-austríaca de 1866 e prusso-francesa de 1870- devem-lhe imenso. Teórico puro e prático da estratégia, foi responsável por inúmeras inovações no campo da estratégia militar. 6 Tratar-se-á de um estratego, possivelmente de origem francesa. Não se conseguiu obter refe- rências sobre este autor, nem na Porbase da Biblioteca Nacional, nem no Google , edição norte- -americana ou francesa. 8 Idem, p. 10. Sebastião Telles (1847-1921) foi um dos mais importantes estrategos e estrategistas portugueses do século XIX, autor de relevantes tratados de estratégia coevos. Foi, efemeramente, Presidente do Conselho no fim da Monarquia Constitucional. 9 A Estratégia Operacional é um dos elementos do conceito geral de estratégia. A Estratégia Operacional está relacionada com a utilização ou aplicação prática, operativa da força. É a acção de aplicação da Estratégia Total no afrontamento das forças. A Estratégia Operacional não se esgota contudo na dimensão militar. A Estratégia Operacional pode implicar a acção das forças económicas, nomeadamente com o controlo e venda de bens a um potencial inimigo ou aliado de um inimigo, com as forças científicas, com as forças culturais ou com as forças militares. Neste sentido, a definição de L. Ferreira Martins é também uma redutora perspectiva da Estratégia Operacional, mas lembremo-nos que, de acordo com as concepções coevas, a noção de Estratégia se aproximava daquilo a que hoje denominaríamos de Operações. Sobre a definição geral de Estratégia seguimos o pensamento inscrito na Escola Portuguesa de Estratégia, em especial a sua obra mais canónica, Cfr. Abel Cabral Couto, Elementos de Estratégia , 2 Vols., Lisboa, IAEM, (s/d). 10 Cfr. Tasso de Miranda Cabral, Conferências de Estratégia. Estudo Geo-Estratégico dos Teatros de Operações Nacionais , Lisboa, EME, 1932, I Vol., p. 19.

O Conceito de Estratégia no Pensamento Estratégico-Militar Português na Era da Guerra Total

Para Fernando Santos Costa, numa das suas intervenções, no I Congresso da União Nacional, compete ao governo a definição das bases da política militar 11 e a fixação das normas gerais que presidiriam a organização do exército. Aos organis- mos militares, em especial ao Estado-Maior do Exército, cabe a execução das ordens do governo e a fixação dos detalhes técnicos da organização. 12 De acordo com o texto do artigo, a arquitectura organizacional e as bases da organização militar são fundadas pela política militar, que é definida pelo governo, ou seja, ao governo cabe a definição global e geral da organização militar, ficando tão só os detalhes para a estrutura militar propriamente dita. Neste sentido, a estrutura militar está claramente subordinada ao governo por intermédio da política militar, que não é apanágio dos militares, mas sim do governo em si, conquanto aqueles possam sobre ela serem consultados. O parecer de 1935 de Abílio de Passos e Sousa, então Ministro da Guerra, se- gue a mesma perspectiva teórica. À política militar caberia definir os princípios de organização e preparação da força militar, quer no caso do exército, quer no caso da Armada. O ministro avisa contudo que a política militar deve ter em conta a política de guerra, que definiria a missão das forças militares, e permitiria de forma muito mais eficiente organizar os corpos marciais. 13 O parecer de Abílio de Passos e Sousa acrescenta à política militar a política de guerra, como definidora dos ob- jectivos militares da Nação. No mesmo sentido segue o parecer de F. Santos Costa, que complementa o texto anteriormente citado. À política de guerra cabe a definição da finalidade da força armada, permitindo delimitar um número de directrizes que determinariam a sua potência, possibilitando por seu turno estruturar a sua cons- tituição e organização, naquilo a que vulgarmente se chama a política militar. 14 A política de guerra não é mais, segundo estes textos, que a objectivação da finalidade para a qual se deve organizar um exército. A política militar, por sua vez, estrutura essa organização de um ponto de vista teórico e de um ponto de vista prático. Em 1936, Luis Pinto Lello retoma o tema numa conferência pronunciada na Sociedade de Geografia. Para o autor, a política de guerra define os fins gerais

11 O autor refere-se de facto especificamente à política militar terrestre. Não obstante, à época, e existindo igualmente o conceito de política naval, era todavia a noção de política militar, conceptualizada como a política para todos os ramos das forças bélicas. 12 Cfr. Fernando Santos Costa, “Algumas Considerações relativas à organização do Exército”, in I Congresso da União Nacional , Lisboa, 1935, p. 163. 13 Cfr. Abílio de Passos e Sousa, “Plano de Rearmamento do Exército Metropolitano”, in Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista, Correspondência de Santos Costa para Oliveira Salazar (1934-1950) , 1º Vol., Mem Martins, 1988, p. 373. 14 Cfr. Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista, Correspondência de Santos Costa Para Oliveira Salazar (1934-1950) , 1º Vol., Mem Martins, 1988, pp. 58-59.

António Paulo Duarte

militar e à guerra em acto. 17 É uma interpretação talvez excessiva, na medida em que a política de guerra é fundamentalmente um acto político, onde se define os objectivos nacionais a alcançar com a guerra, é certo, tendo em conta o inimigo, mas de onde está ausente ou quase totalmente apartado uma das expressões fundamentais do acto estratégico, o sentido do duelo, a lógica da dialéctica de vontades, do jogo de forças morais e materiais. É que não pode subsumir a estratégia a uma mera expressão de hostilidade, visto que alargaria o conceito a dimensões da realidade humana inusitadas e despropositadas. É imprescindível, na estratégia, agremiar o duelo à hostilidade, a conflitualidade à dialéctica agónica. A dimensão do duelo, a expressão do jogo dialéctico, é um elemento fundamental e “essencial” da guerra e da Estratégia. 18 A política de guerra enquanto expressão da política na definição dos objectivos da guerra é produto da hostilidade existente nas relações internacionais, mas a política de guerra não operacionaliza depois essa hostilização em acções específicas, facto que é fundamentalmente deixado à estratégia militar, através da política militar, e à diplomacia, na entabulação de um diálogo profícuo para a resolução do conflito, não gerindo posteriormente o duelo entre os Estados. Reduz, assim, toda a política de guerra a uma mera pirâmide de objectivos, afastando-se efectivamente da concepção contemporânea de estratégia, a dialéctica da hostilidade e do duelo entre entidades colectivas entitárias. Por último, não se pode igualmente subsumir a política de guerra à estratégia Total, na medida em que, como o nome do conceito indica, a sua focalização é a guerra ou no máximo, a agregação da preparação e execução da guerra, e não uma noção mais alargada de Ambiência Agónica, que possa indiciar formas não paroxís- ticas de hostilidade ou conflitualidade agónica. Quanto à política militar, expressão da política de guerra, e fundamento da estratégia, ela fixa a racionalidade desta última disciplina à função estritamente militar, e subsume tudo o que é estratégico à execução da actividade da força armada. É por isso, que neste campo particular, a estratégia significava a utilização da força militar visando os objectivos definidos pela política no Teatro de Operações, 19 tendo por isso uma definição estritamente

17 Cfr. António Horta Fernandes, O Homo Strategicus ou a ilusão de uma razão estratégica? , Lisboa, Edições Cosmos, IDN, 1998, p. 53. 18 É dessa forma lapidar que começa a definição de guerra de Clausewitz. O que é a guerra, ques- tiona-se, e depois responde, lapidarmente, que é um duelo, que toda a “essência” da guerra se resume ao duelo. Cfr. Karl Von Clausewitz, On War , Princeton, Princeton University Press, 1984, p. 75. Observe-se, igualmente, que todo o texto de Sun Tzu, joga no paradoxo. Na verdade, toda a acção bélica, em Sun Tzu, é o paradoxo levado ao paroxismo. Lemos, neste caso, a obra de Sun Tzu em Sun Tzu, A Arte da Guerra , Lisboa, Sílabo, 2006 e cotejámo-la com o texto de Sun-Tzu, The Principles of Warfare, “The Art of War”, in www.sonshi.com. Consultada em 17-7-2008. 19 Segundo o Capitão Elias da Costa, a batalha era o termo da fase estratégica, ou seja, a Estratégia focalizava-se na batalha. Cfr. Elias da Costa, Análise Táctica da Batalha, com um discurso sobre a preparação do soldado para a guerra , Leiria, 1936, pp. 227-228.

António Paulo Duarte

Operativa (ou no máximo, uma noção restrita e pura de Estratégia Operacional) da actividade militar na guerra. Facto idêntico se passava com a Armada. Em 1935 F. Pereira da Silva efectua uma conferência na Escola Central de Oficiais. As definições nela apresentadas têm o valor de sê-lo para os colegas de armas do Exército, e por isso, reflectirem uma visão quase doutrinal. Assim, para o autor, a política está relacionada com a estratégia, considerando que a potência dos estados se mede pelo valor combativo das suas Forças Armadas. 20 Observe-se que a mediação entre a política e a estratégia é efectuada pela força armada, ou seja, a estratégia é subsumida ao facto militar, mesmo que, pela lógica de F. Pereira da Silva, aquela possa ligar-se directamente ao facto político. A política subordina a estratégia, por isso as Forças Armadas agem na sequência da política. 21 Assim, tal como há uma estratégia una, mas subdividida em três dimensões, a estratégia militar (terrestre), a estratégia naval (e marítima) e a estratégia aérea, também a política respectiva aos três Ramos se deve decompor em política militar (terrestre), política naval e política aérea. 22 Repare-se como F. Pereira da Silva distingue o militar (terra) do naval, salientando a especificidade do primeiro e do segundo, facto menos comum no Exército, onde se costumava açambarcar a política naval à política militar. Este cuidado é ainda mais de relevar quando o texto presente era feito para oficiais do Exército. No entanto, num ponto, o Exército e Armada parecem estar de acordo, o da subordinação das Forças Armadas no seu todo à política, com a consequente subordinação da estratégia à política. A visão mais abrangentemente moderna de A. Botelho de Sousa não renega, só reforça estes princípios. Também para ele, a política naval, o sistema de princípios que regem o desenvolvimento, a organização e a operacionalidade de uma mari- nha, é dimanada da política geral, entendida como a ciência do Estado. 23 Quanto à estratégia, esta é a ciência que define os objectivos militares, prepara e organiza os meios da guerra. 24 Assim, para o autor, a política subordina, quer a política na-

20 Cfr. F. Pereira da Silva, Política Naval e Política Nacional Naval, Boletim da Escola Central de Oficiais , Caxias, Nº 23-24-25, 24-25, Julho, Agosto e Setembro de 1935, p. 6. 21 Idem, p. 6-7. 22 Idem, Ibidem, pp. 7-8. Ressalve-se o facto de nos anos 30 não existir o Ramo aeronáutico, pelo que na prática deveria tão só existir uma política militar e uma política naval, incluindo ambas uma política aérea específica para as suas funções militares. 23 O conceito da política como ciência do Estado também aparece em F. Pereira da Silva. Cf. F. Pereira da Silva, “A Defesa do Nosso Império Ultramarino”, Revista Militar , Nº 7/8, Julho/Agosto de 1934, pp. 438-439. Neste texto o autor volta a referir a clara subordinação da estratégia à política. 24 Cfr. A. Botelho de Sousa, “Política Naval Nacional: Necessidade e Vantagens em Defini-la”, Anais do Clube Militar Naval , Nº 7 e 8, Julho-Agosto de 1930, pp. 91-92 e 94.

O Conceito de Estratégia no Pensamento Estratégico-Militar Português na Era da Guerra Total

estratégia”, tal deve-se à reduzida verticalização que ele faz da noção de estratégia, tão só hierarquizada entre a estratégia superior geral e as estratégias parcelares, todas no mesmo patamar, assim se pode deduzir do breve texto do autor. Neste sentido, a perspectiva do Eduardo Pires não é muito distinta da conceptualização anglo-saxónica, da distinção simples entre grande estratégia de carácter mais po- lítico, e a estratégia, que considerando outros elementos não militares, tem uma forte componente militar. O artigo de João de Sá Nogueira, não destoando do de Eduardo Pires, é contudo, mais complexo na sua abordagem. Para o autor, os Estados definem os objectivos políticos, que os comandantes-chefes fazem corresponder a uma estratégia. 28 O comandante-chefe recebe as directrizes da política e arquitecta o plano de manobra estratégica, fixando os objectivos e as missões estratégicas. 29 A coordenação das acções dos sistemas políticos e dos sistemas militares implica a existência de um organismo coordenador superior que lide com a “estratégia geral”. A estratégia geral encontra-se numa zona de transição do político para o militar, traduzindo a necessidade de coordenação de todas forças que suportam um Estado (militares e não militares). 30 A função da estratégia geral expressa-se na definição das finalidades políticas da guerra e na coordenação das forças de uma coligação. Igualmente na coordenação de todos os recursos indispensáveis para a consecução do esforço de guerra. 31 Em suma, a estratégia geral têm um carácter político-estratégico. 32 A abordagem de João de Sá Nogueira reconhece igualmente a subordinação da estratégia à política, mas sobrepuja a política militar ao considerar a emergência, fruto da “guerra total”, da estratégia geral que tem por objectivo a definição das finalidades da guerra, ou seja, a perspectivação da paz futura, e a coordenação e aplicação de todos os recursos nacionais para o concebimento do esforço de guerra. É a necessidade de mobilização total da nação, reflexo da experiência da Segunda Guerra Mundial, que explica esta “estrategização” da política, este imperiosidade de elevar a estratégia à dimensão da governabilidade política.

marcial ou pelo menos à lógica do embate na guerra no senso duro do termo. Do ponto de vista da concepção de estratégia que seguimos, está-se face a uma estratégia militar directa (uso pri- macial das Forças Armadas) com a aplicação de uma estratégia operacional (aplicação da força) indirecta. Sobre a concepção de “aproximação indirecta”, cfr. Liddell Hart, As Grandes Guerras da História , São Paulo, Instituição Brasileira de Difusão Cultural, 1991 (1954), pp. 17-22. 28 Cfr. João de Sá Nogueira, “Acerca do conceito moderno de Estratégia”, Revista Militar , Nº 4, Abril de 1950, p. 139. 29 Idem, p. 142. 30 Idem, Ibidem, pp. 143-144. 31 Idem, Ibidem, pp. 145-146 e 148. 32 Idem, Ibidem, p. 149.

O Conceito de Estratégia no Pensamento Estratégico-Militar Português na Era da Guerra Total

No mesmo timbre surge a teoria de Júlio Botelho Moniz. A guerra total produz uma mutação na concepção de estratégia. A guerra total, ao exigir a mobilização geral de toda a nação, transplanta a estratégia para áreas que não são militares, com vista a travar a guerra, e aqui surge em toda a sua dimensão, os limites da teoria de Júlio Botelho Moniz. Porque, como afirma o autor, a estratégia geral tem por questão central o problema do potencial de guerra. É imprescindível preparar desde tempo de paz as forças marciais, nutri-las com os meios com que terão de fazer a guerra. À guerra total respondem várias estratégias parcelares, militares e não militares, tendo por finalidade a lide bélica. A estratégia, continua o autor, subordina-se à política, que põe em equidade a acção bélica e diplomá- tica, visão, que espelha bem, quanto a modernidade de Júlio Botelho Moniz se mescla com um prisma clássico de relações internacionais, tão arquetipicamente oitocentista. 33 Mas ninguém foi tão longe na perspectiva que evidencia como A. Pereira da Conceição. Para o autor, a estratégia nos gregos era uma ciência social de aplica- ção do Estado, responsável pela política e pela direcção de guerra. 34 Após a sua redução à dimensão militar no século XIX, a estratégia retoma a sua definição mais clássica com a Segunda Guerra Mundial, por causa da conflagração ter sido levada a todos os campos da vida humana. 35 Conclui-se, então, que a “estratégia é a ciência sistemática da segurança do Estado e do povo”. 36 É igualmente uma “ciência social da condução do Estado”. 37 A ciência divide-se em estratégia geral, a ciência do chefe do Estado e do comandante-chefe, e em estratégias parcelares, militares, económicas e políticas. 38 Para o autor, a estratégia sobrepuja claramente a guerra e o militar para se tornar um coadjuvante “científico” do Estado, ou seja, do governo, ou da governabilidade. Ela não está subordinada à política, mas coadjuva a própria política, transformando-se num suporte fundamental desta. A tese de A. Pereira da Conceição não vingou nos anos 50, mas ela reflectia no seu excesso uma nova abordagem da estratégia por parte dos militares, uma nova abordagem que aproximava mais os militares, no seu mester específico, da acção política.

33 Sobre a visão de Júlio Botelho Moniz, Cfr. Visões Estratégicas no Fim do Império. Conduta de Ope- rações Coloniais – 1944. Lições de Estratégia – 1953. Lisboa, Tribuna da História, 2006, pp. 199- -203. 34 Cfr. A. Pereira da Conceição, A Estratégia nunca foi uma ciência puramente militar, Separata da Revista Militar , 1952, p. 8. 35 Idem, pp. 9 e 11. 36 Idem, Ibidem, p. 12. 37 Idem, Ibidem, p. 16. 38 Idem, Ibidem, pp. 17 e seguintes.

António Paulo Duarte

tores relacionam a guerra e a estratégia. A estratégia existe porque há a guerra. Não obstante, a relação da estratégia com a guerra variará ao longo do período em questão. Enquanto no período entre-as-guerras, a estratégia é fruto da política militar, expressão da política de guerra, e reduz-se à condução das operações em combate, com a experiência da II Guerra Mundial, dá-se um salto qualitativo, fruto da compreensão mais alargada do papel do pensamento estratégico na gestão do embate bélico, nomeadamente, pela maior atenção dada ao papel dos recursos materiais e à necessidade da sua maciça mobilização. A questão industrial e técnica, a impressionante dimensão da “guerra do mate- rial”, da materialschlacht , no expressão dos teóricos teutónicos, obriga os pensadores militares portugueses a conceber uma nova concepção de estratégia, mais próxima da política, porque mais latas são as imposições com que aquela tem de lidar. A estratégia já não se pode resumir a conduzir as operações de combate bélico, tem de se preocupar com a mobilização das sociedades e dos seus recursos humanos e materiais, e assegurar a sua vontade de perdurar na tormenta do conflito, pelo que se torna imprescindível o desenvolvimento de estratégias parcelares relacionados com o aproveitamento dos meios e com a resiliência das comunidades em agónica, tudo em articulação mútua. Este facto aproxima-a da política. Esta contextura dá-lhe uma muito maior dimensão política. Emerge a estratégia de meios (económica) e a estratégia política (de propagan- da), ao lado da clássica estratégia (dita agora) militar. A despeito desta evolução, ainda só se vislumbra o salto que a Guerra Fria e a Guerra Colonial estimulariam: a sobrepujação da guerra como eixo do discurso e do pensamento estratégico. De facto, a estratégia continua fixada e focalizada na guerra. A Guerra Total obrigou a estratégia a ampliar-se. Deixou de ser uma mera condutora de operações bélicas, para passar a gerir as sociedades nos conflitos, sempre sob a batuta da política. Mas ainda não foi capaz de dar o salto, de romper com a lógica e a racionalidade da guerra, o que lhe agrilhoa o pensamento e as suas potencialidades de análise. Foi preciso a sedimentação da experiência da Guerra Fria e da Guerra Colonial para que a estratégia ganhasse a sua alforria da guerra.

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O Conceito de Estratégia no Pensamento Estratégico-Militar Português na Era da Guerra Total