Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

O Código Justiniano e as estratégias do poder imperial, Notas de estudo de Direito

Corpus Iuris Civilis;. Direito Romano;. Justiniano. Keywords: Corpus Iuris Civilis;. Roman Law;. Justinian. Recebido em: 22/09/ ...

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Michelle87
Michelle87 🇧🇷

4.7

(23)

224 documentos

1 / 13

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 14, p. 87-99, 2019. ISSN: 2318-9304.
O Código Justiniano e as estratégias do
poder imperial
The ‘Justinian Code’ and the strategies of the imperial power
Lyvia Vasconcelos Baptista*
Resumo: Justiniano assumiu o poder em 527 e governou o Império Romano
do Oriente até 565. Suas ações militares são conhecidas principalmente por
meio da atuação dos generais Belisário e Narses no norte da África e na
Península Itálica. O imperador também empreendeu um laborioso projeto
jurídico, publicando um conjunto de livros – Codex, Digesto, Institutiones
e Novellae – denominado posteriormente Corpus Iuris Civilis, por meio do
qual muitos especialistas investigam o Direito Romano. O objetivo deste
artigo é discutir a produção legal do imperador como mecanismo de
poder e estratégia política de governo.
Abstract: Justinian assumed power in 527 AD and ruled the Eastern Roman
Empire until 565. His military actions are known mainly through the actions
of generals Belisario and Narses in North Africa and the Italian Peninsula.
The emperor also undertook a laborious legal project, publishing a set
of books - Codex, Digesto, Institutiones and Novellae - later called Corpus
Iuris Civilis, through which many specialists investigate Roman law. The
purpose of this article is to discuss the legal production of the emperor as
a mechanism of power and political strategy of government.
* Professora Adjunta de História Antiga e Medieval da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Palavras-chave:
Corpus Iuris Civilis;
Direito Romano;
Justiniano.
Keywords:
Corpus Iuris Civilis;
Roman Law;
Justinian.
Recebido em: 22/09/2019
Aprovado em: 04/10/2019
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd

Pré-visualização parcial do texto

Baixe O Código Justiniano e as estratégias do poder imperial e outras Notas de estudo em PDF para Direito, somente na Docsity!

O Código Justiniano e as estratégias do

poder imperial

The ‘Justinian Code’ and the strategies of the imperial power Lyvia Vasconcelos Baptista Resumo:* Justiniano assumiu o poder em 527 e governou o Império Romano do Oriente até 565. Suas ações militares são conhecidas principalmente por meio da atuação dos generais Belisário e Narses no norte da África e na Península Itálica. O imperador também empreendeu um laborioso projeto jurídico, publicando um conjunto de livros – Codex, Digesto, Institutiones e Novellae – denominado posteriormente Corpus Iuris Civilis , por meio do qual muitos especialistas investigam o Direito Romano. O objetivo deste artigo é discutir a produção legal do imperador como mecanismo de poder e estratégia política de governo. Abstract: Justinian assumed power in 527 AD and ruled the Eastern Roman Empire until 565. His military actions are known mainly through the actions of generals Belisario and Narses in North Africa and the Italian Peninsula. The emperor also undertook a laborious legal project, publishing a set of books - Codex, Digesto, Institutiones and Novellae - later called Corpus Iuris Civilis , through which many specialists investigate Roman law. The purpose of this article is to discuss the legal production of the emperor as a mechanism of power and political strategy of government.

  • (^) Professora Adjunta de História Antiga e Medieval da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Palavras-chave: Corpus Iuris Civilis ; Direito Romano; Justiniano. Keywords: Corpus Iuris Civilis ; Roman Law; Justinian. Recebido em: 22/09/ Aprovado em: 04/10/

_________________________________________________________________________________

88 O Código Justiniano e as estratégias do poder imperial Toda lei cria, antes de mais nada, um espaço no qual ela vale, e esse espaço é o mundo em que podemos mover-nos em liberdade. O que está fora desse espaço, está sem lei e, falando com exatidão, sem mundo; no sentido do convívio humano é um deserto (ARENDT, 1999, p. 123).

E

m geral, o Direito Romano é exemplar nos discursos sobre a importância da segurança jurídica numa sociedade. Os juristas, principalmente, costumam pontuar e analisar os elementos da lei romana que influenciaram os ordenamentos jurídicos e políticos brasileiros. Destaca-se, por exemplo, a herança das ideias sobre a centralidade da liberdade do indíviduo, o respeito à propriedade privada, a igualdade de tratamento entre acusador e acusado, o onus da prova como responsabilidade do autor do processo, entre outras. De forma geral, não é difícil encontrarmos referências para pontuar as heranças que o Direito Romano deixou na formação dos códigos jurídicos modernos. Hannah Arendt, em 1950, ao refletir sobre as consequências da crise das instituições, sobre a violação dos direitos humanos e sobre a relação precária entre legalidade e legitimidade no contexto dos regimes autoritários, não consegue deixar de evocar a importância do pensamento político e jurídico romano nas legislações das nações ocidentais modernas.^1 Também a compilação de Cambrigde sobre o pensamento político medieval, datada de 1988, elenca um conjunto considerável de influências diretas que a lei romana teve na formação da cultura política dos séculos subsequentes. Em outro exemplo mais recente, Aurelia Vargas Valencia (2013) destacou como os textos do Direito Romano foram utilizados por autores novo-hispanos, no século XVI, para fundamentar o debate sobre a dignidade dos indígenas.^2 Se o Direito Romano é tomado como unidade e transformado em bastião da organização racional da sociedade moderna, a obra elaborada durante o governo do imperador Justiniano, que governava a parte oriental do Império Romano entre 527 e 565, é ainda mais exemplar. Edward Gibbon (1830, p. 752) ampliou a importância da obra jurídica imperial ao afirmar que enquanto as vitórias de Justiniano poderão ser desintegradas em pó e esquecidas, o renome do imperador como legislador ficará inscrito num justo e eterno monumento.^3 Na década de 1980, Stephan Kuttner (1982, p. 299) (^1) Para a autora, “uma lei é algo que liga os homens entre si e se realiza não através de um ato de força ou de um ditado, mas sim através de um arranjo ou um acordo mútuo […]. Teria sido com os romanos que a atividade legisladora e com isso a própria lei caíram no âmbito da verdadeira coisa política” (ARENDT, 1999, p. 113). (^2) Segundo a autora, os textos das Institutiones , que oferecem elementos que hoje poderíamos relacionar aos princípios de direitos humanos (liberdade, tolerância, igualdade etc), tiveram repercussão entre os pensadores novo-hispânicos do século XVI. Não por acaso, por ocasião da “conquista espanhola”, houve autores que debateram questões “sobre a dignidade dos indígenas e, apoiados com frequência nos textos do Corpus Iuris , defenderam os nativos da América. Assim, o pensamento daqueles homens é determinante na conformação da cultura jurídica que chega até nossos dias” (VARGAS VALENCIA, 2013, p. 117). (^3) Em 1788, os últimos volumes da obra de Edward Gibbon foram publicados com um capítulo específico sobre a jurisprudência romana (quarto volume).

_________________________________________________________________________________

90 O Código Justiniano e as estratégias do poder imperial (constituições imperiais de Adriano a Diocleciano) e o Codex Hermogenianus (coleção suplementar de constituições imperiais do governo de Diocleciano).^5 A partir de 438 teria circulado o Codex Theodosianus , contendo três mil constituições promulgadas de 312 a 438, organizadas em 16 livros, divididos por tópicos de assuntos diferentes. Todo esse material fora incorporado explicitamente na elaboração do Corpus Iuris , cuja composição considerou ao mesmo tempo a grande massa de leis promulgadas, os escritos clássicos dos juristas e as constituições imperiais. As obras anteriores citadas tinham considerado apenas um ou outro desses elementos. Desta forma, pode-se dizer que a especificidade da obra de Justiniano foi o favorecimento de uma recepção do Direito Romano, que transformara o pensamento jurídico ocidental e o Direito vigente. A codificação de Justiniano, ao sistematizar e abstrair o direito, teria criado um verdadeiro “Direito de juristas”, como ressaltou Max Weber (1996, p. 634), ao invés de pensar nos leigos ou preoupar-se com as possibilidades de compreensão dos seus elementos. Essa característica foi favorecida pela própria estrutura interna do material, bastante sistematizado e profundamente teórico. Logo nos primeiros anos de governo, Justiniano, que havia assumido o trono depois da morte do seu tio, Justino, em 527, iniciou a elaboração do material jurídico, ressaltando a importância da composição frente à situação caótica em que se encontravam as leis, jurisconsultos e constituições imperiais emitidas até aquele momento. Intentava-se, desta forma, produzir uma obra compreensiva e sistematizada, baseada na herança legal do período clássico, que, certamente, conseguiu se transformar numa autorizada fonte de informação do Direito Romano.^6 O processo de elaboração foi trabalhoso e envolveu diferentes etapas. Em 529, foi elaborada a primeira parte do material, o Codex , contendo uma compilação de excertos dos pronunciamentos imperiais, desde o governo de Adriano (117-138 d.C). Esse material incluía principalmente as epístolas imperiais (cartas), ofícios individuais ou endereçados a províncias específicas e às cidades de Roma e Constantinopla. Em 533, Justiniano divulgou as Institutiones e o Digesto. As Institutiones funcionavam como introdução ou princípios básicos do Direito Romano (do verbo instituere , um dos sentidos é ensinar). Na introdução, Justiniano dedica a obra à juventude ávida do estudo (^5) Constituições imperiais são medidas legislativas editadas pelo imperador. Classificam-se em: editos, rescritos, decretos e mandatos. (^6) Pelo menos essa era a opinião de grande parte dos juristas do século XI, que trataram a obra como objeto de estudo acadêmico e consagraram a validade dos seus pressupostos nos sistemas jurídicos na Europa continental. Segundo Mousourakis (2007, p. 191), “a redescoberta do Digesto de Justiniano, em 1070, – provavelmente na abadia de Montecassino na Italia central, contribuiu para uma renovação do estudo e da prática do Direito Civil Romano. Os textos de Justiniano permaneceram como última autoridade da Roma imperial. Os glosadores do Digesto recriaram a ciência racional da lei”.

BAPTISTA, Lyvia Vasconcelos

_________________________________________________________________________________

91 das leis ( cupidae legum Juventuti ). Era, acima de tudo, um livro pequeno para iniciantes. Embora os textos de Gaio,^7 Ulpiano, Marciano e Florentino tenham servido como base na composição, o material contém várias inovações advindas da reforma jurídica empreendida pelo imperador. O Digesto ou Pandectas é o trabalho mais longo e preserva os escritos dos juristas clássicos. O livro está dividido em 50 seções, informando o nome do jurista e o trabalho do qual os excertos foram retirados. O Digesto é, basicamente, uma antologia de excertos. É nesse período também que o material passa a gozar oficialmente de lugar privilegiado no ensino. Em dezembro de 533, uma das constituições (segundo prefácio do Digesto ), dirigida a oito professores de escolas de Direito de Beirute e Constantinopla, estabeleceu uma legitima scientia , determinando os fundamentos do novo currículo acadêmico (NACATA JUNIOR, 2011/2012, p. 679). Triboniano e dois professores (de Beirute e Constantinopla) foram encarregados de esboçar o texto endereçado aos “jovens entusiastas da lei”. Os estudantes de Direito do primeiro ano foram chamados de “novos justinianos” ( Digest Const. Omnem , 2). Importa destacar que, a longo prazo, essa reforma no ensino do Direito acabou desencadeando uma reforma geral do sistema educativo, pois, para a efetivação plena das mudanças no ensino da lei, era necessário, por exemplo, superar o problema de ensinar a literatura jurídica, em latim, para estudantes de língua grega, entre outros desafios estruturais. Em 534, a segunda versão do Codex foi divulgada. Da primeira edição (529) para a segunda (534), algumas mudanças são notáveis. Só a segunda sobreviveu. As diferenças podem ser detectadas por meio do P. Oxy 1814 , um papiro que conserva partes do livro 1 da primeira edição. Esse documento revela detalhes sobre o processo de adição, subtração e substituição das constituições.^8 Em 565, após a morte de Justiniano, a última parte do Código é divulgada, as Novellae. Trata-se de um conjunto tardio de pronunciamentos do imperador feitos após o trabalho de compilação ser completado com a segunda versão do Codex. No texto introdutório encontra-se escrito: “Nós não apenas melhoramos as condições das antigas leis, mas também promulgamos novas” ( Const. Summa , pr.). Muitos destes decretos estão em grego, mas a língua principal do Código Justiniano é o latim. O Corpus Iuris Civilis (^7) No século II, Gaio elabora um esquema de categorização da lei que influenciará o Código Justiniano , pois “[...] oferece uma narrativa descritiva da posição legal das três categorias do fenômeno legal: ele faz uma tentativa de definir ou caracterizar a pessoa, a coisa e a ação (STEIN, 1983, p. 153). Um arranjo tripartido. (^8) Segundo Simon Corcoran (2011, p. 434-435), “evidências diretas do conteúdo da primeira edição são conhecidas desde 1922, quando houve a publicaçãoo do P. Oxy. 1814. [...] O papiro é uma folha fragmentada do Códex escrita dos dois lados. Com um index sumário, ele contém somente os títulos numerados em rubricas, então, não podemos comparar todas as emendas da segunda edição, entretanto, tendo o papiro o formato em index, isso nos fornece o geral de alguns títulos num só espaço”.

BAPTISTA, Lyvia Vasconcelos

_________________________________________________________________________________

93 A energia empreendida por Justiniano nos primeiros anos de seu governo, para organizar e padronizar a matéria jurídica, fez parte, portanto, desse esforço maior de construção da unidade territorial e conformidade religiosa. A abertura de um dos textos introdutórios do Código Justiniano confirma essa ideia, afirmando que “a suprema proteção do Estado deve se apoiar em dois elementos: nas armas e nas leis, [...] uma vez que os assuntos militares são salvaguardados pelas leis e as leis protegidas pelas armas” ( De Iustiniano codice confirmando ). A vinculação entre o exercício bélico e a promoção da “segurança jurídica” levou Max Weber a comparar muito superficialmente o impulso de elaboração do Corpus de Justiniano ao de Gengis Khan no reino mongol ( Coleção de la Yasa ), uma vez que estruturas políticas etnicamente mescladas exigia a fixação de um Direito forte; e a estrutura militar seria um facilitador do processo formal da execução da justiça. Além disso, o Corpus de Justiniano teria servido como uma das fontes para a Siete Partidas , obra jurídica elaborada durante o governo do rei Afonso X (1252-1284). Segundo Weber (1996, p. 632), os dois materiais exprimem um forte interesse político na ideia de segurança jurídica criada pela codificação e a necessidade de prestígio dos monarcas que promoveram as obras. A reflexão de Max Weber e as avaliações de Edward Gibbon e Stephan Kuttner, citadas anteriormente, reforçam a ideia de que o governo de Justiniano se tornou uma espécie de “pivô histórico”, para usar a imagem criada por Caroline Humfress (2005, p. 162). O período é analisado pelos classicistas interessados nas realizações de uma Roma essencialmente republicana como um simples resultado de uma série de desdobramentos importantes; os medievalistas e modernistas, por sua vez, olham adiante, compreendendo o conjundo de contribuições legadas, principalmente destacando a recepção do Direito Romano nos códigos jurídicos modernos. E o material do VI século vai se tornando, assim, um imenso “supermecado”, onde juristas e historiadores pegam aquilo que convêm, sem se dedicarem, de fato, à compreensão do Corpus Iuris Civilis como um produto cultural do seu tempo (HUMFRESS, 2005, p. 162).^12 Desse modo, para além da importância do Corpus , forjada ao longo dos séculos e consagrada pela erudição acadêmica, importa também perguntar o que esse material jurídico e os contemporâneos de Justiniano teriam a nos dizer sobre o modelo de segurança jurídica fornecido no século VI. Relatos de autores que trataram diretamente dos acontecimentos de seu governo disponibilizam um grande aparato de informações e possibilidades interpretativas sobre Justiniano.^13 Dentre esses autores, podemos citar Agapito que, objetivando fornecer (^12) Caroline Humfress (2005) esclarece que a metáfora do supermecado foi colhida em Stein (1999, p. 2). (^13) Os contemporâneos de Justiniano fornecem descrições e julgamentos muito ambínguos sobre a figura do imperador, o que resulta diretamente em avaliações contrastantes sobre o seu governo, embora sua importância histórica seja sempre

_________________________________________________________________________________

94 O Código Justiniano e as estratégias do poder imperial conselhos ao imperador, afirmou ter Justiniano “[…] uma dignidade acima de qualquer outra honra, […], essa honra – além de todos os outros – Deus, que te dignificou. Pois foi à semelhança do reino celestial que ele te deu o cetro do governo terreno” ( Conselhos ao imperador Justiniano, 1). Paulo Silenciário (membro dignitário do corpo do exército), num panegírico contendo a descrição da Santa Sofia, elogiou o imperador por ter reconstruído a igreja e também “[...] por ter conquistado os domínios da terra, e ampliado os imensuráveis espaços de seu trono para além das fronteiras ultra periféricas” ( Descrição da igreja de Santa Sofia , 135-150). Flávio Coripo informou que, quando Justiniano morreu, não mudou de cor, “mas continuou brilhando com a sua luminosidade usual. A morte impressionante do homem mostrava por meio de sinais claros que ele tinha conquistado o mundo” ( In laudem Iustini Augusti minoris , I, 240). João Malalas, cujos escritos são frequentemente associados à divulgação da ideologia imperial, apresentou o governo de Justiniano a partir das suas guerras, (re) construções arquitetônicas e elaboração jurídica. A sua obra menciona alguns casos em que o prefeito da cidade recebia uma demanda específica jurídica, emitia um parecer que era imediatamente transformado numa lei, de ordem mais geral, pelo próprio imperador (como exemplos envolvendo casos de homossexualidade e propriedade dos magistrados). João Malalas (XVIII, 20) informa que Justiniano renovou muitas leis decretadas pelos antigos imperadores e teria elaborado muitas outras, emitindo-as para cada uma das cidades do Império. Particularmene interessante é a visão que outro autor, Procópio de Cesareia, projeta sobre a atividade legal de Justiniano na sua História secreta. A renovação das leis é apresentada a partir de uma perspectiva negativa. Diferentemente daquilo que as outras obras do mesmo autor destacam, a História secreta (XI, 1) afirma que “assim que Justiniano assumiu o poder, tudo ficou caótico, pois o que antes estava proibido por lei foi restaurado e os costumes que sempre regeram a vida em sociedade foram erradicados”. Pior ainda, afirma o historiador, As decisões dos magistrados pareciam inúteis e fracas, pois tinham seu juízo cativo de um único homem; os que julgavam tomando decisões sobre as partes enfrentadas, votavam não naquilo que parecia justo e adequado à lei, mas em função das relações de amizade ou de hostilidade (Procopius, Historia Arcana , VII, 32). Essa avaliação foi feita por causa de um caso específico que gerou um ambiente de grande instabilidade social naquelo momento: a revolta de grupos da população contra o bastante destacada. Sua relação com Teodora, uma antiga atriz, também inspirou romancistas e historiadores, e, até mesmo “do paraíso”, a alma de Justiniano conta a história do Império ao poeta da Divina Comédia (4, 10-27), de Dante Alighieri.

_________________________________________________________________________________

96 O Código Justiniano e as estratégias do poder imperial projeto jurídico como um todo, o que nos ajuda também a construir o cenário da fase de preparação da obra. Exemplar para a compreensão da extrema flexibilidade no trato do Direito que acompanhava as atividades de composição do Código Justiniano é o texto da Constitutio Haec (intitulada De novo codice componendo ), datada de 528, poucos meses depois que Justiniano assumiu integralmente a responsabilidade imperial, e incluída no próprio Código. Endereçado ao Senado, a constituição estabelecia a comissão, de funcionários e especialistas na teoria e prática do direito, para compilar o Código Justiniano (João, Leonce, Focas, Basílio, Tomas, Triboniano, Constantino Teófilo, Dióscuro e Presentino). Essa comissão poderia e deveria selecionar e atualizar o que já era conhecido em matéria jurídica por meio dos códigos precedentes, Gregoriano , Hemogeniano e Teodosiano , com o objetivo de “reduzir o grande número de leis” ( Const. Haec , 1). O poder da comissão de edição do texto jurídico, como previsto pela constituição, era significativo. Talvez por esse motivo a qualificação dos membros é ressaltada no momento da apresentação dos nomes. De forma geral, o texto afirma, eram “homens capazes de realizar um empreendimento tão grandioso, bem como de lhe dar todo o cuidado necessário” ( Const. Haec , 1). A eles era permido remover preâmbulos e contradições, suprimir repetições, adicionar ou excluir expressões e palavras, reduzir várias constituições a uma única lei e deixá-las mais claras ( Const. Haec , 2). O objetivo de Justiniano era único e grandioso, do ponto de vista da atividade legal: reformular e suplantar as constituições imperiais existentes, por meio de um grande projeto para tornar coerente toda a matéria legal disponível. O imperador pretendia criar um código que fosse chamado pelo seu nome. Um empreendimento que, segundo as linhas introdutórias da Constitutio Haec, parecia necessário a vários imperadores que antecederam Justiniano, mas que nunca tinha sido realizado com êxito. Para Simon Corcoran (2011, p. 426-428), o resultado foi de fato radical, se comparado ao de outros códigos. O nível de emendas no Código Justiniano é muito maior do que no Código Teodosiano , por exemplo. Além do amálgama de textos desconectados e interpolações de frases de constituições diferentes, em alguns casos os textos eram editados para significar justamente o oposto do que o original dizia. De qualquer forma, não parecia causar incômodo ao imperador o fato de que uma maior racionalização da lei poderia levar a uma diminuição da autonomia e, consequentemente, do seu poder. Pelo contrário, mais importante era a convicção de que, apresentando-se como patrono das leis, como o codificador que incorporou ao seu os códigos dos seus precedentes, Justiniano se transformaria num legislador maior que o outros (HARRIES, 2004, p. 9), o que levou Michael Maas (1992, p. 12-13) a afirmar que

BAPTISTA, Lyvia Vasconcelos

_________________________________________________________________________________

97 uma das formas com as quais Justiniano promoveu a sua autoridade foi se apresentando como nomos empsychos ou a “lei viva”. A codificação da lei era um projeto prestigioso para os imperadores (HARRIES, 2004, p. 9), mas a “segurança jurídica” não estava ligada à imobilidade dos elementos legais, muito menos ao distanciamento político. No caso do Código Justiniano , a confusão e a ambiguidade do sistema contribuiram diretamente para o exercício do patronato, seja porque caracterizavam, de fato, o sistema jurídico, possibilitando ao imperador literalmente “manusear” a lei; seja porque a sua negação fez parte de um discurso de legitimação da produção imperial, transformando a lei romana em excelente estratégia política de governo. Referências Documentação textual AGAPETO. Advice to the emperor Justinian. In. BELL, P. N. Three poltitical voices from the Age of Justinian. Liverpool: University Press, 2009, p. 99-122. ALIGHIERI, D. A divina comédia. São Paulo: Editora 34, 1998. CORIPO. Juánide. Panegírico de Justino II. Introducciones, traducción y notas de Ana Ramírez Tirado. Madrid: Gredos, 1997. JOHN MALALAS. Chronicle. Translated by Elizabeth Jeffreys, Michael Jeffreys and Roger Scott. Melbourne: Australian Association for Byzantine Studies, 1986. JUSTINIAN. Institutiones. Translated by Peter Birks and Grant McLeod. New York: Cornell University, 1987. JUSTINIAN. Corpus Juris Civilis. Translated by S. P. Scott. Cincinnati: Central Trust Company,

PAULO THE SILENTIARY. Description of the Church of Hagia Sophia. In. BELL, P. N. Three political voices from the Age of Justinian. Liverpool: Liverpool University Press, 2009, p. 189-212. PROCOPIUS. History of the war. Translated by H. B. Dewing. Cambridge: Harvard University Press, 2006. PROCOPIUS. Buildings. Translated by H. B. Dewing. Cambridge: Harvard University Press,

PROCOPIUS. Secret History. Translated by H. B. Dewing. Cambridge: Harvard University Press, 1935.

BAPTISTA, Lyvia Vasconcelos

_________________________________________________________________________________

99 RADDING, C. M.; CIARALLI, A. The Corpus Iuris Civilis in the Middle Ages : manuscripts and transmission from the sixth century to the juristic revival. Leiden: Brill, 2007. SCHELTEMA, H. J. L’enseignement de droit des antécesseurs. Leiden: Brill, 1970. SCHIPANI, S.; ARAUJO, D. B. dos S. G. (Org.). Sistema jurídico romanístico e subsistema jurídico latino-americano. São Paulo: FGV, 2015. STEIN, P. Roman Law in European History. New York: Cambridge University Press, 1999. STEIN, P. The development of the institutional system. In: STEIN, P. G.; LEWIS, A. D. E. (Ed.). Studies in Justinian´s Institutes in memory of J. A. C. Thomas. London: Sweet & Maxwell, 1983, p. 151-163. STOLTE, B. Justice: legal literature. In: JEFFREYS, E.; HALDON, J.F.; CORMACK, R. (Ed.). The Oxford Handbook of Byzantine Studies. Oxford: University Press, 2008, p. 691-698. TAKÁCS, S. A., The construction of authority in Ancient Rome and Byzantium : the rhetoric of Empire. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. VARGAS VALENCIA, A. Principios de derechos humanos en las Instituciones de Justiniano. In. CERQUEIRA, F. et al_. Saberes e poderes no Mundo Antigo_ : estudos ibero-latinos- americanos. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, p. 117- 128. WEBER, M. Economia y sociedade. México: Fondo de cultura econômica, 1996.