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Este documento discute os desafios atuais na área da cirurgia acadêmica e as responsabilidades do cirurgião acadêmico dentro da universidade. Aborda a importância da seleção de docentes, o desempenho na prática clínica, pesquisa e ensino, e a interação entre a academia e o cirurgião acadêmico.
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Tipologia: Provas
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372 - Acta Cirúrgica Brasileira - Vol 18 (5) 2003
Hossne WS
A análise da literatura revela crescente preocupação com os aspectos acadêmicos em todas as áreas da medicina, com ênfase maior, porém, na área da cirurgia. O número de publicações nessa área é maior, existindo, inclusive, há 35 anos, nos EUA, uma sociedade específica, a Association for Academic Surgery (A.A.S.). Não consegui saber se há sociedade se- melhante para outras áreas da medicina.
Existe alguma razão, para este quadro? Não sei – Podem ser aventadas algumas hipóteses. Seria a área cirúrgica mais problemática no campo acadêmico? Estariam os cirurgiões mais preocupados com a questão? Estaria o campo da cirurgia necessitando se firmar melhor no campo acadêmico?
Quando se analisam as publicações referentes à cirurgia acadêmica, sofre-se um impacto. O título das publicações é instigante. Assim, CONTER (1988) dá à sua mensagem presidencial da abertura do Congresso (da A.A.S.) o seguinte título, sob forma de interrogação. “The Death of Academic Surgery? (Morte da Cirurgia Acadêmica?)
Diz que é chegado o tempo de se admitir que, embora, a aparência seja sadia, resta uma “malignidade” que continua a crescer e que ameaça a própria existência da cirurgia acadêmica.
Em seu artigo, conclama os jovens cirurgiões a enfrentar o desafio; recorre ao conto de Alice no país das maravilhas para equacionar a questão: se você não sabe para onde está se dirigindo não faz diferença o caminho por onde você está indo. Pode não ter feito diferença para Alice, mas aqui não se trata de um conto de fadas. Isto deve fazer diferença para nós.
Em 2001 LEVAL, na Inglaterra publica artigo com título também instigante: “From art to Science: A FAIRY TALE? The future of Academic Surgery”. (Da arte à ciência: Um conto de fadas? O futuro da Cirurgia Acadêmica). O autor não responde à pergunta. Nem eu, mas vou meter minha colher, indiretamente, mais adiante. Já em 2000, a mensagem presidencial (Association for Acadenic Surgery) de BERGER tem um título também instigante: The Association for Academic Surgery, an Idea Whose time has come? (Associação de Cirurgia Acadêmica: uma idéia cujo tempo chegou?) Outros artigos trazem em seu título a expressão “desafios à cirurgia acadêmica” (BLAND – 2000, FISHER – 2000, GADACZ – 2000, GREENFIELD –
1 – ARTIGO ESPECIAL
William Saad Hossne^2
1 Aula Magna – 8º Congresso Nacional da SOBRADPEC – Cirurgia 2003, Maio – Belo Horizonte. 2 Prof. Emérito da Faculdade de Medicina de Botucatu – Universidade Estadual de São Paulo (Unesp).
Acta Cirúrgica Brasileira - Vol 18 (5) 2003 - 373
O cirurgião acadêmico
No mundo atual busca-se como resposta a “verdade científica”; quando não possível, elabora-se uma teoria ou uma hipótese à guisa de resposta para pergunta não respondida.
Quando nem isso é possível, apela-se para a semântica, utilizando-se expressões já existentes, agora com novo sentido, ou criando-se um neologismo.
O mesmo mecanismo é utilizado quando o ser humano “capta” uma situação nova, ainda difícil de caracterizar, mas que o angustia. Assim devem ter surgido expressões como “globalização”, “desenvolvi- mento”, “choque e pavor” (guerra do Iraque), que, depois de criadas vão buscar sua nova conceituação e ou caracterização.
Quando nem isso é possível, retorna-se a talvez um dos mais antigos mecanismos que o ser humano, no alvorecer de sua humanidade, utilizou. Apela-se para as lendas, as fábulas, os totens, os tabus, os fetiches, os mitos.
De certo modo creio que é isso que está aconte- cendo com a “cirurgia acadêmica”.
A angustia, suscitada por algo profundo, está buscando como válvula de escape esse tipo de mecanismo. Conto de fadas ou mito?
Há semelhanças entre os mitos e os contos de fadas; há, porém, diferenças inerentes.
Tomo emprestadas as palavras de BETTELHEIM
“No mito, na aparência, existem alternativas, mas implica sempre numa opção já definida. “O conto de fadas nunca nos confronta diretamente, ou diz-nos francamente como devemos escolher “O sentimento dominante que um mito transmite é: isto é absolutamente singular, não poderia acontecer com nenhuma outra pessoa; os acontecimentos são grandiosos, inspiram admiração e não poderiam possivelmente acontecer a um mortal comum como você ou eu”.
Em contraste, embora as situações nos contos de fada sejam como freqüência inusitadas e improváveis, são apresentadas como comuns, algo que poderia acontecer a você ou a mim”.
Uma diferença ainda mais significativa é o final; nos mitos, é quase sempre trágico enquanto é sempre feliz nos contos.
No mito podemos apreciar e sentir a grandiosidade, vibrar com acontecimentos épicos, mas podemos sucumbir à tragédia imbuída que o mito traz.
No conto de fadas (e também na fábula) precisa- mos não fugir da realidade, mas sabemos que há sempre um herói e uma fada madrinha com a qual podemos nos identificar para vencer a bruxa e o vilão e, sobretudo
podemos nos confortar com os acontecimentos pois no final “foram todos felizes para sempre”. Conto de fadas, fabulas, mitos. E a cirurgia acadêmica com isso tudo? Creio que isso tudo está indicando a existência de uma “angustia” profunda e está também sinalizando para a necessidade de enfrentá-la e compreendê-la. Julgo que vivemos um momento que está a exigir de um lado a elaboração dessa angústia, explorando sua gênese e sua fisiopatologia, e de outro lado, criati- vidade, para traçar novos rumos e paradigmas, com humildade, honestidade e serenidade, mas sem medo e sem amarras. Não será desta palestra, principalmente porque me falta competência, “engenho e arte” para tanto, que sairão os rumos. Acresce que essa tarefa é para muitos e exige profunda reflexão e maturação para ser executada. Contudo, penso que um primeiro passo para tal tarefa seja o de desenhar um pano de fundo que não se perca em detalhes, mas que contemple alguns tópicos que devem vir desde a origem da Academia, chegando aos dias de hoje. Não há espaço para abordar todos os tópicos e nem esgotá-los em seu conteúdo. Escolhi alguns e dentro deles, algumas características. Quando falamos de cirurgia acadêmica, na verdade estamos juntando quatro grandes componentes: a academia, a cirurgia, o médico e o paciente. A academia tem seu nascimento ligado à mitologia. Em 387 a.C. Platão funda uma escola de inves- tigação científica e filosófica, em Atenas, num local arborizado e banhado por fontes, o Jardim consagrado ao herói grego Akademus; daí o nome de Academia. Akademus virou herói por ter revelado o esconderijo de Helena raptada. A Academia durou cerca de 1 000 anos (fechada por Justiniano) em 525. De acordo com os historiadores da ciência, a maior contribuição da Academia foi ter servido de modelo para a instituição que veio a ser criada cerca de 18 séculos depois – a Universidade. A Universidade também teve inspiração no Liceu, escola fundada por Aristóteles em 335 a.C. Aqui também há uma ligação mitológica, pois o nome Liceu se deve ao fato da escola ter sido fundada no bosque consagrado a Apolo Liceios. A Academia, de Platão, ensinava a pensar, a buscar o conhecimento do “verdadeiro, do bom e do belo”. (Bernal, 1969), por si mesmo, sem motivações ulteriores”.
Acta Cirúrgica Brasileira - Vol 18 (5) 2003 - 375
O cirurgião acadêmico
Quando se fala em Academia, de qual Academia se está falando? Da Academia no sentido platônico ou da Academia “Universidade”.
É interessante assinalar, também, que acadêmico pode se referir a luminares, a pessoas eméritas (Acade- mia de Medicina) como pode se referir à estudante (acadêmico de medicina).
Essa dupla interpretação não é meramente fortuita
Assim, creio que quando se fala de cirurgião acadêmico estamos falando de cirurgião que atua na Universidade, podendo ser jovem ou emérito, membro ou não de uma academia enquanto sociedade ou agremiação.
Assumida essa concepção de que cirurgião acadê- mico é o cirurgião que pertence e ou atua em Univer- sidade podemos passar a analisar o que se espera e o que está acontecendo com esse médico.
Assim sendo, cabe tecer algumas considerações sobre a evolução e o papel da Universidade, enquanto Academia, pois é dentro dessa estrutura que atua o cirurgião acadêmico.
A Universidade, instituição medieval que tem 900 anos, completará no Brasil, em 2004, 70 anos, se tomarmos como referência a criação da Universidade São Paulo.
Sou mais velho do que a Universidade Brasileira e certamente a maioria dos presentes é mais velha que a maioria das universidades brasileiras surgidas após a USP.
Em certo sentido somos o passado, o presente e o futuro da Universidade.
Nossa Universidade, ao ser criada, tomou basica- mente, como modelo a Universidade Européia; muitos dos primeiros professores universitários eram europeus. Com eles veio o modelo calcado na cátedra vitalícia e na carreira acadêmica do doutorado e da livre docência. O modelo permitiu o estabelecimento de bases sólidas, fincando princípios de educação e de pesquisa, à época, que fizerem e fazem a força da USP.
A meu ver, ao final de cerca de 35 anos o modelo mostrou sinais de exaustão, exigindo retoques, refor- mulações e ou reformas adequadas às transformações sociais, culturais e técnico-científicas.
Assim, na segunda metade dos anos 60, algumas lideranças desencadearam um processo de análise crítica com vistas à renovação.
Coincidentemente, nesse momento, no mundo todo iniciou-se um processo de questionamento e contestação de várias estruturas institucionais: sistemas
políticos, sociais, governo, forças armadas, igreja, universidade; símbolo emblemático do fenômeno foi o movimento estudantil de 1968. Atropelado pelos acontecimentos, enfrentando forças conservadoras, o processo de análise crítica da Universidade sofreu um impacto. Paradoxalmente, juntaram-se forças renovadoras e conservadoras, blo- queando, de certa forma, o aprofundamento amadu- recido de análise. As forças renovadoras desejavam a mudança da estrutura o mais rapidamente possível, sobretudo no que dizia respeito à figura da cátedra vitalícia. De outro lado, as forças conservadoras, temerosas quanto à possibilidade de mudanças mais profundas, coaptaram os renovadores. Nessa luta, que acabou centrada principalmente na estruturação do poder, se fez a chamada reforma da Universidade, de 1968. Copiou-se, então, parcialmente, o modelo norte- americano de Universidade, sem o devido equaciona- mento e sem a devida incorporação conceitual e filosó- fica do sistema. Extinguiram-se, é verdade, as cátedras, estabele- ceu-se a figura de Departamento. Sem dúvida, democratizou-se, parcialmente, a dinâmica do poder. Acabou-se, porém, com a responsabilidade do catedrático de estruturar e formar escola. Buscou-se, contudo, dar maior liberdade aos jovens, não mais submetidos à vontade superior e freqüentemente despótica do catedrático. O docente passou a prestar contas ao Departamento, na figura do colegiado (Conselho de Departamento). Defendeu-se a idéia de junção e de integração de áreas (antigas cátedras e novas disciplinas). A integração seria uma forma salutar de intercâmbio de idéias, de planos e de ações inovadoras. Em algumas Universidades, o Departamento virou a super cátedra; em outras, a integração desejada não progrediu – antes, houve fragmentação, separação e cizânia na esfera das antigas cátedras. Departamentos foram criados ao sabor das lutas de grupos e de poder, variando de instituição para instituição. Antigas disciplinas se tornaram departa- mentos, cátedras se tornarem disciplinas ou foram absorvidas por outras. Não são raros os casos de Departamentos esdrúxulos, até no nome e na com- posição. A reforma, porém, teve o mérito de ocasionar um abalo na acomodação.
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Hossne WS
Após 20 anos, o novo modelo começou a apre- sentar sinais de desgaste e de exaustão. Problemáticas antigas, sufocadas pela reforma, bem como novas problemáticas afloram e angustiam. Não há agora outro modelo a copiar, mesmo porque a instituição univer- sidade vem passando por situações semelhantes no mundo todo.
Acresce que, no país, se dispõe de massa crítica suficiente e capaz e que deseja um novo modelo, a ser criado.
O novo modelo (ou modelos) deverá ser criado e é justamente nessa fase que nos encontramos e onde a atuação do cirurgião acadêmico é de fundamental importância.
De acordo com historiadores e sociólogos, estaría- mos na véspera das grandes transformações culturais, sociais e institucionais. Os indicadores que precederam as grandes transformações na história da humanidade se tornariam evidentes 30 a 50 anos antes da transfor- mação propriamente dita e tais indicadores (desemprego, delinqüência juvenil, aumento da violência, inflação sem explicação, consumismo), vem se evidenciando a partir da década de 80.
A necessidade de mudanças se torna clara. Parado- xalmente, quanto mais se percebe a necessidade de mudanças, mais a maioria (medíocre), com receio de perda de qualquer natureza, procura manter o status quo – continuismo da mediocridade.
Por isso, segundo a mensagem do historiador Toynbee, a esperança deve repousar numa minoria criativa, (sobretudo na esfera acadêmica), que poderá vir a traçar os novos rumos, quiçá, dentro de novos paradigmas.
Nunca foi tão importante como agora criar mecanismos e processos que permitam selecionar, proteger e aprovar os acadêmicos criativos.
Torna-se imprescindível uma análise crítica da sistemática de seleção de docentes para a Universidade, no caso, do cirurgião acadêmico.
O cirurgião
Após as considerações sobre um dos compo- nentes do nosso tema, qual seja o componente “Aca- demia” passemos as consideração do outro componente
Classicamente, consideram-se como requisitos, exigências, características, atividades ou atribuições (conforme o ponto de vista que se adote), ou melhor, talvez, responsabilidades do cirurgião acadêmico, o seu desempenho em três atividades da Universidade: prática clínica profissional (prestação de serviço ou extensão),
pesquisa e ensino (prefiro, educação). Alguns autores incluem também a administração. Há um ponto fundamental nas atividades acadê- micas, sejam elas de ensino, de prática profissional, de pesquisa ou de administração que sempre deve ser ressaltado: O cirurgião acadêmico vai treinar e formar as futuras gerações; assim, é indispensável que os jovens contem com os mais talentosos como seus mestres e modelos, de um lado, e de outro, o cirurgião acadêmico deve ter sempre em mente que suas ações atingem as futuras gerações, que serão formadas pelos seus discípulos.
Prática clínica profissional
Leval (2001) indaga se o cirurgião acadêmico deve se superar como cirurgião (o profissional, o prático) ou como acadêmico (o teórico, o intelectual). Nesse sentido, um cirurgião acadêmico, para Leval (2001) seria uma antinomia, entendendo-se, por antinomia uma contradição ou conflito entre duas leis ou princípios; uma oposição recíproca. Não creio que seja uma situação de antinomia ou de uma aporia (dificuldade insolúvel). Trata-se, a meu ver de uma falsa antinomia. O cirurgião acadêmico deve se superar tanto como médico, como acadêmico. No cirurgião acadêmico ambas as facetas devem coexistir e interagir. A academia leia-se os Hospitais Universitários e de Ensino em geral, recebem os casos mais graves e mais complicados, por definição. Os hospitais da acade- mia devem formar e bem os futuros cirurgiões. Espera- se, também, sempre contribuição no sentido de aperfei- çoamento e melhoria da s práticas cirúrgicas, tanto no aspecto clínico como operatório. Basta este elenco para demonstrar que a Academia deve selecionar os cirurgiões mais competentes profissionalmente para o desempenho de tais atividades, como assinala LEVAL, (2001). O cirurgião acadêmico deve sempre ter presente que, antes de mais nada, ele é médico, com toda a gama de atividades e de compromissos que tal situação acarreta. O cirurgião acadêmico, como médico, não pode se esquecer que “o alvo de toda a atenção é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”, como estipulado em nosso Código de Ética Médica. Todo ato médico exige um relacionamento humano
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Hossne WS
O ensino baseado em problemas, a medicina basea- da em evidências, o sistema de tutoria são todas tentati- vas que merecem acolhida sem perda de análise crítica, tanto para as condições da sua aplicabilidade, como para a capacidade e competência dos atores envolvidos.
Os colegiados de curso, com representações das diversas disciplinas, infelizmente, nem sempre conse- guem atingir as finalidades que levaram à sua constituição, seja por falta de preparo, seja por falta de poder para as devidas medidas.
O cirurgião acadêmico deve fazer valer sua opinião, integrando-se no processo, de forma serena e equilibrada.
Quanto ao que ensinar assiste-se, em muitas escolas médicas, a um fenômeno, até certo ponto, paradoxal.
Reconhecem os educadores, os profissionais da saúde, as sociedades científicas, os planejadores da política universitária e de política de saúde e também o próprio leigo, a importância da formação geral do médico e do cirurgião. Nunca, no mundo todo e, em particular em nosso país, se falou tanto da importância do clínico geral e, por extensão, do cirurgião geral.
No entanto, a exceção de algumas atitudes advin- das, principalmente, da política de atendimento à saúde, a formação geral não tem recebido a devida atenção e reconhecimento. Praticamente, sumiu o cirurgião geral. A evolução dos conhecimentos, as transformações tecnológicas, sociais e culturais podem ter contribuído para o desaparecimento do cirurgião geral, substituído por diversos especialistas, frente às novas exigências técnico-científicas. É até compreensível. O que não é aceitável é que desapareça a formação geral do médico comum e do especialista em particular.
Alguém – e o cirurgião acadêmico de qualquer especialidade – deve cuidar dessa formação.
Mais do que nunca nos dias de hoje, deve-se não só transmitir conhecimentos e informações doutrinárias referentes às disciplinas ministradas, como ensinar a aprender.
O avanço do conhecimento em geral e, na medicina em particular, vem sendo tão rápido que livros texto e tratados, às vezes, já nascem parcial ou totalmente obsoletos.
Por outro lado, a tecnologia da comunicação tornou possível a obtenção imediata de informações e dados.
A medicina evoluiu nos últimos 50 anos mais do que em muitos séculos.
A chamada revolução científica, já referida, fez com que a medicina somasse à sua condição de arte ou técnica o status de ciência médica.
Se a 1ª revolução científica se processou ao longo de 2 a 3 séculos, a soma de avanços no século XX foi tão extraordinária que propiciou, a meu ver, 4 revoluções em um único século. Na primeira metade do século XX ocorreu a revolução atômica, que nos deu a bomba atômica, mas também a energia nuclear, a medicina nuclear, a ressonância nuclear magnética. A partir da década de 50 se iniciou, com a dupla hélice do D.N.A., a revolução molecular que já nos deu a fertilização in vitro, o sequencionamento do genoma humano, a clonagem, a terapia gênica e, esperamos que não nos dê uma “bomba molecular”. Nos últimos 20 anos tivemos a revolução espacial com as viagens espaciais, surgindo a ciência e a medi- cina espacial e a revolução da comunicação e da infor- mação, tendo como símbolo emblemático, a Internet e a telecomunicação. No campo específico da cirurgia, se desenvol- veram a Videocirurgia, a Robótica aplicada à cirurgia, a cirurgia nanotecnológica, o controle da rejeição imunológica, entre outras conquistas. Assim, o que ensinar passou a ser: ensinar sufi- cientemente bem para poder aprender constantemente, utilizando as novas tecnologias. Não dá mais para insistir no sistema arcaico de simples aquisição de conheci- mento momentâneo, sem olhar para o futuro. Quanto ao como ensinar, dispõe hoje o cirurgião acadêmico de vários recursos audiovisuais e conta, também, com o apoio de especialistas em pedagogia e didática. Creio, porém, que o fundamental é ter vontade, paixão, de ensinar. Os recursos são meios, que devem estar a serviço da vontade de ensinar. Os recursos podem faltar mas a vontade, não. O processo de formação inclui necessariamente uma etapa de treinamento, tanto na parte clínica como na parte operatória. Esta etapa se desenvolve na fase de residência e deve envolver o cirurgião acadêmico e o futuro cirur- gião, quer venha a ser acadêmico ou não. Dois pontos, entre outros, merecem destaque: 1) atenção cuidadosa para corrigir defeitos ou vícios básicos de técnica e de tática e 2) cuidado para controlar os efeitos negativos que acompanham a curva de aprendizagem. O futuro cirurgião está aprendendo e desenvol- vendo suas habilidades e este é um processo evolutivo, sujeito a acidentes e incidentes.
Acta Cirúrgica Brasileira - Vol 18 (5) 2003 - 379
O cirurgião acadêmico
Não é eticamente sustentável que a curva de aprendizado traga conseqüências de nenhum tipo para o paciente.
É aí que o cirurgião acadêmico tem a grande responsabilidade de supervisionar e avaliar o que pode e o que não pode ser delegado à equipe sob sua tutela – o que não pode acontecer é o ato cirúrgico ser conduzi- do por equipe não suficientemente preparada.
O desenvolvimento de habilidades e o domínio da técnica devem ser realizados em laboratórios, seja em cadáver seja em animais de laboratório.
A disciplina de técnica operatória, que não deve ser confundida com a de cirurgia experimental, embora seja parte dela, tem sido relegada, a segundo plano. Contudo é aí que o futuro cirurgião seja acadêmico ou não, deve realizar seus primeiros treinamentos e não no paciente.
Pesquisa
Não existe cirurgia acadêmica sem compromisso com a pesquisa.
Da clássica “pesquisa clínica” baseada em casuís- tica dos serviços acadêmicos, progressivamente se diversificaram os enfoques.
Continuam tendo validade os levantamentos retrospectivos, com o objetivo básico de avaliar a quali- dade das atividades do serviço, servindo de monitora- mento e vigilância de resultados.
Até cerca de 40-50 anos atrás, a quase totalidade das publicações estava centrada nesse tipo de pesquisa, acrescido, em alguns centros, da descrição de pequenas inovações e ou modificações de técnica e ou tática operatória.
A seguir, os cirurgiões, principalmente os interes- sados em fisiopatologia cirúrgica, buscaram os labora- tórios de áreas básicas, principalmente de fisiologia, de anatomia patológica, de microbiologia e bioquímica.
Com esta vivência, alguns cirurgiões acadêmicos procuraram, a seguir, criar condições de pesquisa em laboratórios vinculados diretamente à cátedra ou Departamento de Cirurgia. O “locus” privilegiado seria a área da Disciplina (ou cátedra) denominada Técnica Operatória e Cirurgia Experimental.
Na realidade, à época e até hoje em várias escolas médicas, a Cirurgia Experimental estava praticamente restrita a treinamento de técnicas e habilidades, realizada em animais.
Poucos centros no Brasil adotaram a visão de que Cirurgia Experimental é muito mais do que isso.
Um dos primeiros centros a implementar essa filosofia foi o Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina de Botucatu. Já em 1975, com a experiên- cia adquirida, tornou-se possível instalar, devidamente credenciado, o Curso de Pós Graduação em Cirurgia Experimental; foi o primeiro e hoje o único curso com tais características no país. Já foram defendidas 210 teses (entre mestrado e doutorado). As pesquisas na área da cirurgia experimental tiveram o grande mérito de levar para a investigação várias questões suscitadas a partir da vivência e da experiência clínica. Desnecessário assinalar as valiosas contribuições derivadas da Cirurgia Experimental, no campo da metodologia, da imunologia, dos aperfeiçoamentos técnicos, da fisiopatologia, dos transplantes, e em vários outros campos. Um aspecto daí derivado, de importância funda- mental para a cirurgia acadêmica, foi o da educação e formação em metodologia científica. Implantou-se uma nova sistemática de rigor científico, os cirurgiões aprenderam a fazer delinea- mento, familiarizando-se inclusive com os princípios básicos da estatística. O importante nem sempre era o resultado da pes- quisa em si – mas o que a execução do projeto de pesqui- sa trazia para a formação crítica e científica do cirurgião e, o mais importante, transposto para a prática clínica e para a avaliação das próprias publicações científicas. Dos animais de médio porte (cão mais freqüente- mente e porco) progressivamente passou-se, por razões de economia e de facilidade de obtenção, manuseio e manutenção, para animais de porte menor (rato, camun- dongo, cobaia, hamster). A experiência que se foi acumulando trouxe uma valiosa contribuição: ficou evidenciada a importância e a necessidade de se conhecer as características biológicas de cada espécie animal de modo a se poder considerá-la como a mais indicada para o modelo experimental, em estudo. Assim, por exemplo, ficou evidenciado que, para estudos de eletromanometria de esôfago, o gambá seria o animal mais indicado (já que não temos o marsupial canguru, que vinha sendo indicado pela literatura) e não o cão, devido às características anatômicas (mus- culatura) do esôfago do homem, do cão e do gambá. Da mesma forma ficou evidenciada a necessidade de controle do “fotoperiodismo” do rato e do camun- dongo na avaliação do tempo efetivo de jejum, nas dosagens bioquímicas. Atualmente, o foco se desloca dos animais de menor parte para as células e para moléculas. O avanço
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O cirurgião acadêmico
Um livro citado por vários AA é o de Patrícia Pitcher “The drama of leadership” (O drama da liderança). A autora refere haver três tipos caracterís- ticos de liderança: o artista, o artesão e o tecnocrata, e descreve os perfis de cada um.
O dirigente de perfil artista é imaginativo, intuitivo, visionário, enérgico e empreendedor; faz a instituição se desenvolver, é um líder talentoso e inspirador. Sua equipe, em sua maioria, conta com lideres trabalhadores, tipo artesão, e poucos tecnocratas. Aos poucos, porém, vai reconhecendo suas deficiências, aumentando o espaço para o tecnocrata.
Os tecnocratas, em geral, são brilhantes, falantes e até cativantes, usam slogans, trombeteiam estratégias, fixam metas e intimidam os mortais comuns. Invocam forças de mercado, necessidade de racionalização e de redução de custos, elaboram estratégias e planos plu- rianuais, pregam necessidade de reengenharia, intro- duzem novos vocabulários; constrangem as lideranças do tipo artista e do tipo artesão, focalizam a atenção apenas no lucro a curto prazo. O lucro se torna mais uma estratégia do que um resultado.
O estudo de Pitcher se baseia na análise da evolução de uma grande instituição no período de 1980 a 1995. Em 80, a liderança era do tipo artista, em 90 o tecnocrata passa a ser o número 1 e, em 1995 após dispêndio de milhões de dólares, de planejamento estratégico (ao invés do pensar estratégico) a instituição, no caso uma grande companhia, encerra suas atividades.
A moral da história, segundo Leval, (2001) é que os tecnocratas devem ser respeitados, pois são competentes para administrar coisas, mas não devem ter nenhuma autoridade sobre os sonhos das pessoas. Segundo ele, precisamos ter, no topo, lideranças do tipo artista, para enxergar e ampliar horizontes, preci- samos de artífices para ajudar a sonhar e de tecnocratas para ajudar a implantar e não a sufocar.
Eu diria que o cirurgião acadêmico deve saber dominar as “três linguagens” do conto dos irmãos Grimm: a linguagem dos cães, das rãs e dos pássaros, além da sua própria linguagem.
Para Betelheim, (pp.127) a língua dos cães seria o “ego”, a das rãs, o “id” e a dos pássaros, o “superego”.
O cirurgião acadêmico e a Academia não podem atuar sem preocupação mútua, recíproca e harmonica- mente integrada.
A Academia deve buscar abrigar e selecionar os melhores – A academia não existe sem os acadêmicos e os acadêmicos precisam da Academia para desenvol- ver seus talentos.
Está a Academia fornecendo as devidas estruturas e condições para atrair, fixar, abrigar e desenvolver os acadêmicos de que ela precisa? Estão os acadêmicos desempenhando seu papel de modo a atender e desenvolver a Academia? Várias interações ocorrem nesta relação acadêmico
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Hossne WS
Nessas condições, com trabalho rotineiro exacer- bado sem mesmo condições adequadas de funciona- mento, sem possibilidade de aprimoramento clínico, sem condições e sem disponibilidade de tempo para as atividades de pesquisa, o corpo acadêmico selecionado pela Academia nem sempre corresponde às expectativas e, quando corresponde, fica mais nas expectativas e menos nas realizações, acumulando-se frustrações e acomodações.
A medalha tem seu reverso. A Academia, também por vários motivos, não vem contando necessariamente com os mais talentosos e com os mais vocacionados e identificados com a vida acadêmica. A seleção tem sido feita, às vezes, às avessas. Ficam na Academia muitos que não conseguiriam “sobreviver” fora da Academia. Não ficam na Academia porque querem ser acadêmicos autênticos, mas porque querem se acomodar.
Este fenômeno é sério e encontra dentro da própria academia, pois mais paradoxal que seja, apoios diretos e ou indiretos.
O processo de seleção, a sistemática de avaliação na carreira, os interesses da mediocridade já instalada, a luta pelo poder e os conchavos contribuem para tanto.
Encontram-se na literatura diversas referências ao recrutamento dos cirurgiões acadêmicos; Sonnad e Colletti (2002) com base no estudo de 1766 cirurgiões interessados na vida acadêmica observaram que as mulheres têm maior espírito de colaboração, dão maior apoio e se preocupam mais com a vida familiar e isso deve ser levado em conta no processo de seleção.
Gadacz, (2000) chama a atenção para a importância da escolha do líder (Chairman) responsável pela canalização de talentos; ele deve ter dedicação e entusiasmo pela academia e contar com o apoio dos jovens residentes para fortalecer o departamento.
Quando analisamos a Academia insistimos no fato de que ela está buscando um novo ou novos modelos. A Academia tem que se convencer que ela se encontra diante de vários desafios e que ela não pode se alienar nem perpetuar situações ou ultrapassadas ou incompa- tíveis com o papel e as funções da própria Academia.
Há aqui também um reverso da medalha. Sem os homens e mulheres da Universidade, auten- ticamente envolvidos com o espírito e a natureza da Academia, ela não teria sobrevivido desde a Idade Média, suportando os mais diversos tipos de pressão interna e externa, desafiando fortes correntes políticas, sociais, econômicas adversas.
E a Academia tem sabido dar-lhes Guarida em várias ocasiões em que isso foi preciso. Estamos vivendo um momento em que isso é preciso.
É preciso, mais do que nunca, reconhecer as qualidades dos acadêmicos, fomentar e dar vazão à sua criatividade e ao seu idealismo. É preciso dar-lhes condições para enfrentar, acom- panhar e desenvolver o progresso técnico-científico, com a devida competência. Na área da pesquisa, algumas interações merecem destaque. Cada vez mais (Bell, 1999) as pesquisas na área da cirurgia buscam o apoio das ciências básicas, sobretudo na área da biologia molecular. Isto exige, de um lado, uma formação diferenciada do próprio cirur- gião e de outro lado, a criação de condições para esta interação. A nova geração de cirurgiões acadêmicos necessita ter uma formação que permita a interação e o diálogo científico com as ciências básicas e de inter- face. Este ponto é salientado por Lenfant, (2000). Os lideres na cirurgia acadêmica têm o dever de criar condições para que a nova geração tenha possi- bilidades de adquirir esta nova formação e os jovens têm o dever de buscar tal desiderato. Se de um lado, os recursos econômicos destinados à Academia se tornaram mais escassos, de outro lado, os pesquisadores contam (e nem sempre utilizam) com o apoio das agências, ou instituições de apoio à pesquisa. Particularmente, no Estado de São Paulo, com a Fapesp. A grande maioria dos aportes financeiros para a pesquisa não provém de recursos orçamentários, e sim das agências de apoio. Contudo, a Academia tem também o dever de fornecer as condições para a obtenção e para a opera- cionalização de tais recursos. Mesmo porque, em caso de patentes, a Academia, em geral, passa a ser pro- prietária de 50% da patente. Fenômeno que merece atenção especial diz respeito aos financiamentos obtidos fora de tais agências públicas. É cada vez maior a relação da industria com a pesquisa na Academia. Esta relação precisa ser avaliada em profundidade. De acordo com alguns autores (Kaiser, 2000) a relação pode ser ameaça à integridade e honestidade intelectual do cirurgião acadêmico. Várias aspectos éticos tem sido levantados: necessidade de apresentação à Academia dos acordos financeiros; respeito à dignidade do sujeito da pesquisa, a integridade dos resultados, etc.; neste sentido o país conta com as Resoluções do CNS/MS referentes à ética envolvendo seres humanos. Estudos multicêntricos, com participação interna- cional, financiados pela industria, sobretudo da fase
384 - Acta Cirúrgica Brasileira - Vol 18 (5) 2003
Hossne WS
Correspondência:
William Saad Hossne
R. Vitória Régia, 61
18607-070 Botucatu – SP
Data do recebimento: 25/06/ Data da revisão: 06/07/ Data da aprovação: 19/07/