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Relações Culturais e Políticas Brasil-EUA: Impacto do Cinema nos anos 80, Notas de aula de Cultura

Este documento discute as complexas relações culturais e políticas entre brasil e estados unidos durante a década de 1980, focando no impacto do cinema naquela época. Apesar da tentativa de distância política dos estados unidos em relação ao brasil, a indústria cinematográfica brasileira continuou a seguir uma linha diferente, com a presença de filmes norte-americanos quase universal no mercado brasileiro. O texto explora as causas dessa aparente incongruência e as consequências para as relações entre os dois países.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Roberto_880 🇧🇷

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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BELO HORIZONTE – UNIBH
FÁBIO CRISTIAN DAVI
A INFLUÊNCIA CULTURAL NORTE-AMERICANA NO
BRASIL: O CINEMA E A INDÚSTRIA CULTURAL NO FIM DA
DÉCADA DE 1980
BELO HORIZONTE
2010
FÁBIO CRISTIAN DAVI
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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BELO HORIZONTE – UNIBH

FÁBIO CRISTIAN DAVI

A INFLUÊNCIA CULTURAL NORTE-AMERICANA NO

BRASIL: O CINEMA E A INDÚSTRIA CULTURAL NO FIM DA

DÉCADA DE 1980

BELO HORIZONTE

FÁBIO CRISTIAN DAVI

A INFLUÊNCIA CULTURAL NORTE-AMERICANA NO

BRASIL: O CINEMA E A INDÚSTRIA CULTURAL NO FIM DA

DÉCADA DE 1980

Artigo apresentado ao Centro Universitário de Belo Horizonte como requisito parcial à obtenção do título de analista em Relações Internacionais. Orientador: Prof. Ms. Túlio Sérgio Henriques Ferreira Co-orientadora: Prof. Ms. Kátia Silva Araújo

BELO HORIZONTE

A INFLUÊNCIA CULTURAL NORTE-AMERICANA NO BRASIL: O CINEMA E A

INDÚSTRIA CULTURAL NO FINAL DA DÉCADA DE 1980

Fábio Cristian Davi^1 Orientador: Prof. Ms. Túlio Sérgio Henrique Ferreira^2 Co-orientadora: Prof. Ms. Kátia Silva Araújo^3

Resumo

Este trabalho objetiva discutir a contraditória dinâmica das relações culturais e políticas entre Brasil e Estados Unidos no final da década de 1980 – período marcado por significativas transformações internas e de ordem global. Essa aparente incoerência nas relações entre os dois países é pautada no fato de que mesmo havendo uma tentativa de distanciamento dos Estados Unidos pelo Brasil, a indústria brasileira cinematográfica não seguiu esta mesma linha, uma vez que, na referida época, a presença de filmes norte- americanos no mercado brasileiro era quase que universal. A partir dessa discussão, optou-se por uma ampla pesquisa das características econômicas, culturais e políticas entre os dois países e seus respectivos governos, além da análise de filmes norte-americanos, que foram amplamente difundidos no Brasil durante o final dessa década. Concluiu-se, por fim, que o desejo por uma maior autonomia brasileira no cenário internacional foi apenas uma das causas da problemática levantada por este artigo.

Palavras chave: cinema, indústria cultural, autonomia, relações internacionais

Abstract

This article focuses on the contradictory dynamics of cultural and political relations between Brazil and the United States in the late 1980’s – a period time market by significant changes in internal issues and global order. This apparent inconsistency in the

(^1) Graduando do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário de Belo Horizonte – Uni-BH. Artigo de conclusão de curso. 2 Mestre e Especialista em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB. Professor de Relações Internacionais do Centro Universitário de Belo Horizonte – Uni-BH. 3 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

relations between these two countries is based on the fact that even with an attempt, performed by Brazil, to distance the United States, the Brazilian film industry did not follow this action, since, at that time, the presence of American films in the Brazilian market was almost universal. From this discussion, we opted for a broad survey of economic, cultural and political characteristics between the two countries and their governments, beyond analysis of American movies, which were widely disseminated in Brazil during the end of this decade. It was concluded, finally, that Brazil’s desire for greater autonomy in the international arena was only one cause of the questions raised in this article.

Keywords: cinema, cultural industry, autonomy, international relations

1. Introdução

O presente trabalho visa discutir os impactos das relações culturais entre o Brasil e os Estados Unidos através do cinema. A discussão desta relação é inferida pela influência do cinema norte-americano na autonomia do Estado brasileiro durante a segunda metade dos anos 1980. Propõe-se apresentar, diante do emergente cenário interno e externo desta década, as principais mudanças políticas, sociais e econômicas brasileiras em conjugação com as mudanças de ordem global que estavam em andamento. Nesse contexto o que se destaca é a origem político-histórica desta transformação, como o fim ditadura militar brasileira em 1985, e também mudanças externas, como o fim da Guerra Fria e os processos de globalização. Com isso, pretende-se demonstrar ao longo deste artigo os valores e as reformulações de ideologias dentro da dinâmica específica desta época, apontando para isso as políticas externas adotadas pelos dois países. A fim de exercer uma maior autonomia, o Brasil, neste período, adotou uma política externa de distanciamento com os Estados Unidos. Entretanto, mesmo com esta política bilateral contenciosa, a indústria cultural brasileira não seguiu esta linha, uma vez que os filmes norte-americanos estavam quase que universalmente presentes no cinema. Torna-se necessário, assim, uma ampla discussão do cinema enquanto vetor cultural além de uma investigação histórica sobre as relações culturais internacionais e suas possíveis conseqüências dentro deste contexto.

O resultado do impacto cultural produzido pela presença norte-americana no Brasil obedeceu não somente a um planejamento cuidadoso, mas também foi parte integrante de uma estratégia mais ampla, que tinha como intenção garantir o alinhamento do Brasil e do restante da América Latina aos Estados Unidos, país que, naquele momento, 1940, procurava afirmar-se como uma grande potência e também se reposicionar no sistema internacional como um novo centro de poder (MOURA, 1984, p. 11-12). Atualmente, observamos como essa difusão de certos aspectos da cultura norte- americana é latente em nossa sociedade e cotidiano, se intensificando através deste processo histórico que pode ser medido pela ampla aceitação, incorporação e absorção de diversos produtos culturais norte-americanos. Esta profunda e complexa teia de influências é formada tanto através de gostos e hábitos, quanto pela atração por estes produtos, quer sejam representados pela alimentação, vocabulário, moda, música, filmes, livros, no ensino, na linguagem da propaganda dos meios de comunicação, e até mesmo na formação de uma expressiva intelectualidade acadêmico-científica (MESQUITA, 2002, p.10), sendo esta última capaz de influenciar diretamente o cenário político, social e econômico das relações internacionais, ao mesmo tempo em que não está desprovida da influência de relações de poder (TRAGTEMBERG, 1990 apud SILVA, 2008). Assim, o objetivo principal deste artigo é discutir como a expansão cultural norte- americana, sem dúvida^4 a mais influente do mundo desde a metade do século XX, influenciou a cultura no Brasil, através do cinema, a partir da última metade da década de 1980 até o seu fim, ou seja, de 1985 a 1989, durante o governo Sarney, marcado não somente pela abertura política e retorno da democracia, mas também por uma política externa que teve como opção uma tentativa de distanciamento com os EUA. Observamos que mesmo havendo uma política bilateral contenciosa, a indústria cultural brasileira não seguia esta mesma linha da política externa, uma vez que durante este período, a indústria cinematográfica brasileira estava sendo relativamente abandonada. Ao mesmo tempo, filmes norte-americanos ocupavam parte central de nosso cotidiano pela sua presença quase que universal. Neste período o cinema brasileiro praticamente desapareceu acompanhando a crise financeira do país herdada do regime militar.

(^4) De acordo com Noam Chomsky em “O que o Tio Sam realmente quer”, aqueles que determinaram a política norte-americana tinham um alto grau de certeza quanto ao fato de que os Estados Unidos sairiam da Segunda Guerra como a primeira potência global da história, tanto assim que, durante e depois da guerra, já planejavam cuidadosamente como moldar o mundo pós-guerra. Chomsky ressalta que mesmo antes da guerra, os Estados Unidos já eram de longe o principal país industrial do mundo – como o eram desde a virada do século.

É importante ressaltar, e também a título de exemplo, que um dos principais desafios conjunturais relacionados à área cultural, naquele momento, estava ligado diretamente à desigualdade na distribuição de renda, acarretando, conseqüentemente, na marginalização cultural, educacional, econômica e social dos estratos mais baixos da população (CALABRE, 2009, p.93-94 apud PORTELA, 1979:2-3). Se junta a isso, o fato de que, ao contrário do que ocorre em muitos outros países, a televisão brasileira exibia quase que exclusivamente filmes longas-metragens comprados no exterior^5 (GALANO, 1995 apud BÔAS; GONÇALVES, 1995, p.260). Ou seja, um dos principais problemas culturais brasileiros está relacionado ao “ mimetismo cultural ” e ao “ transplante de cultura ” (SCHNEIDER, 1988). É exatamente esta dependência cultural ao qual o Brasil está submetido, que “subordina” a população a copiar idéias, modas e produtos culturais estrangeiros. O passado histórico brasileiro e sua realidade de subdesenvolvimento condicionaram a ocorrência repetida de transplantes culturais, desconsiderando na maioria das vezes sua própria realidade (SCHNEIDER, 1988, p.442).

Na política, por exemplo, copiamos o modelo do federalismo americano, num país como o nosso, sem tradição de autogoverno local, que chegou às vezes a um servilismo grotesco. Nas altas rodas do Império e da 1.a^ República era de bom tom falar francês e citar versos de Victor Hugo. A propósito da filosofia, escreve Cruz Costa: “O que desde logo nos impressionou, quando tentamos estudar a evolução da filosofia no Brasil, foi à longa e variada importação de idéias e doutrinas que viemos fazendo no decorrer da nossa história. Que sentido tem para nós essas idéias? Que significado assume aqui estas doutrinas? (COSTA, 1967, p.436 apud SCHNEIDER, 1988, p.442).

Estas doutrinas e idéias configuram o “ hábito do mimetismo ” no Brasil, criado através destes diversos transplantes culturais históricos, fazendo com que fiquemos “ de tal forma impressionados pelos produtos culturais importados, que nossa capacidade de apreciá-los criticamente ficou quase que aniquilada ” (SHOOYANS, M. apud SCHNEIDER, 1988, p.442). Esta é uma tendência marcante dos países subdesenvolvidos, e não somente do Brasil, cuja invasão cultural e político-ideológica não tem limites, em um processo recorrente

(^5) Néstor García Canclini, em seu livro “Consumidores e Cidadãos” (1999), cita que as crises do cinema ao longo de sua história estiveram quase sempre relacionadas com mudanças tecnológicas, como por exemplo, o aparecimento do cinema falado que competia com o cinema mudo e, mais tarde, a competição do cinema com o surgimento da televisão. Na última década, entretanto, perguntas sobre se o cinema continuará existindo se referem, principalmente, à evasão do público, uma vez que nos países latino-americanos foram fechadas mil salas durante o período. Mesmo com essa tendência, se assiste a mais filmes do que em qualquer época anterior, porém eles são assistidos em casa: na televisão ou no vídeo. A disseminação do vídeo e a expansão de seus lucros são impressionantes, sendo que o faturamento por aluguel e venda deste produto triplicou de 1985 a 1991. Canclini conceitualiza assim, o surgimento de expectadores multimídia, que se relacionam com o cinema de diversas maneiras – em salas, na televisão, no vídeo, etc., percebendo-o como parte de um sistema amplo e diversificado de programas audiovisuais (GARCÍA CANCLINI, 1999, p.199-201).

A Guerra Fria se encaminhava para o desfecho, prenunciando-se a vitória incontestável de um dos lados em litígio. As políticas econômicas neoliberais começaram a ser experimentadas e, na esfera da cultura cinematográfica, algumas premissas mudavam de lugar. O postulado, a partir de então, não era mais o “direito de imagem”, mas a lei de ferro do mercado. A desnacionalização, travestida de cosmopolitismo, estava sendo gestada, junto com um pensamento único. Assim, o desdém com que o cinema nacional passou a ser tratado nos órgãos da imprensa ajustou-se perfeitamente à ideologia liberal dos proprietários destes veículos naquele momento (ORICCHIO, 2003, p.216).

Acredita-se, desta forma, que políticas de cunho neoliberais tenham influenciado notoriamente nas decisões dos governos dos referidos Estados.

3. Momentos dos governos Sarney e Reagan

A contextualização histórica do momento Sarney e Reagan, e seus respectivos governos, ajudam a esclarecer a dinâmica do período abordado, ou seja, a segunda metade da década de 1980. Neste período, a sociedade brasileira vivia um processo de distanciamento entre a população e a elite. Esse processo foi facilitado pela turbulenta transição da ditadura para a democracia, e também pela decisão do governo em perpetuar um modelo econômico devastador, viabilizando, assim, os privilégios e perpetuação dessa elite no poder (KOTSCHO, 1986, p.113). O governo de José Sarney foi fundamental para a realização desse processo. Por outro lado, esta também foi uma década que como nunca, a cena pública se “ espetacularizou ” – e o exemplo mais claro disso foram às políticas perpetradas pelo então governo norte-americano de Ronald Reagan (LABAKI, 1991, p.7). Começando pelo momento interno brasileiro, o governo Sarney foi marcado não somente por uma forte crise econômico-financeira herdada do regime militar, mas também pela transição político-democrática necessária e já prevista. Em 14 de março de 1985, consolidou-se o processo de redemocratização do país após 21 anos de regime militar. Restabeleceram-se as garantias de amplas liberdades sindicais, além da convocação da Assembléia Nacional Constituinte, encarregada de elaborar uma nova Carta Constitucional devolvendo o país à democracia, além do direito ao voto pela maior parte da população. Contudo, o então recém eleito presidente Tancredo Neves foi hospitalizado às pressas, não tendo a chance de assumir o poder, falecendo no dia 21 de abril, feriado nacional de Tiradentes – mártir da luta pela independência nacional e natural de Minas Gerais, assim

como Tancredo. Durante toda esta crise, os meios de comunicação alimentaram uma verdadeira comoção popular a fim de catalisar a opinião pública, enquanto José Sarney assumia o poder, lembrando que menos de um ano antes ele havia sido o líder parlamentar do regime militar (MARTINS, 2003, p.64). A base de apoio do novo e aparentemente instável governo Sarney era formada por uma coalizão de partidos liderados pelo PMDB e PFL, entretanto, os militares permaneceram como discretos fiadores auxiliando na manutenção e consolidação da transição, impondo certos limites. Ainda em 1985, o então presidente ampliou o apoio ao seu governo, legalizando os partidos comunistas ao mesmo tempo em que aprovou eleições diretas e transformou o futuro Congresso, que a partir de 1986, seria eleito em Assembléia Nacional Constituinte ((MARTINS, 2003, p.64). Mesmo com estes avanços, contudo, as dificuldades econômicas continuavam a piorar, com inflação, aumento do custo de vida, deterioração dos serviços sociais e crescentes pressões do FMI – Fundo Monetário Internacional. Sarney tentava resistir às dificuldades internas e externas com medidas paliativas ao mesmo tempo em que manteve o mesmo modelo de desenvolvimento. Com poucos meses o governo Sarney já havia caído em descrédito; a população já havia esquecido a morte de Tancredo Neves e as promessas de uma Nova República (MARTINS, 2003, p.65). Em fevereiro de 1986, o Ministro da Economia Dilson Funaro implantou de surpresa o “ Plano Cruzado ” para fazer frente às inúmeras dificuldades econômicas, entre elas, o quadro inflacionário: congelou preços e salários, reduziu a taxa de juros, substituiu a moeda cruzeiro pelo cruzado e controlou o câmbio. Uma euforia consumista, em função da queda e do momentâneo controle da inflação – que teve amplo apoio da sociedade de uma maneira geral – e da diminuição da remuneração da poupança, fez com que a popularidade do governo subisse consideravelmente. Ainda em novembro, tal feito foi “retribuído” com uma votação maciça para os governos estaduais e para o Congresso Nacional. Com o controle dos governos estaduais e maioria absoluta no Congresso-Assembléia Constituinte, o governo anunciou o fim do Plano Cruzado, explodindo a inflação contida por nove meses e diminuindo o consumo drasticamente. Outros planos foram postos em prática rapidamente, mas além de não serem eficazes, contribuíram para piorar o quadro econômico e financeiro do país. O FMI que sempre foi contra este tipo de políticas econômicas se manteve distante durante este período (MARTINS, 2003, p.65-66). Além do aprofundamento da crise financeira, havia também o peso da dívida externa, a falta de crédito do Brasil para com o mercado internacional, a

Devido ao recuo dos governos norte-americanos anteriores na América Latina, o comunismo havia ganhado significativa margem de manobra, o que tornava esta região vulnerável à liderança dos Estados Unidos no sistema internacional. Reagan tentou, neste sentido, reverter o que chamava de “regimes hostis” aos Estados Unidos na América Latina, promovendo uma total reformulação na política externa para a região, mas que se enquadrava nas novas perspectivas de ação global norte-americanas. Dentre os princípios da nova “ Doutrina Reagan ”, se destacou o apoio a movimentos contra-revolucionários envolvidos nas lutas de libertação nacional – somente se estes fossem identificados como “ defensores da liberdade ” – e a revitalização da Doutrina Monroe , que reforçava e estabelecia novos acordos de segurança na região. Por sua vez, a iniciativa política estratégica anticomunista norte- americana era encarada pela América Latina somente como mais uma tentativa intervencionista dos Estados Unidos, e que desconsiderava a grave questão econômica vigente na região naquele momento, que formava sua principal agenda (PECEQUILO, 2003, p.231). Entretanto, poucas mudanças em relação a este tema foram feitas pelo governo Reagan, que priorizou sua política econômica externa de acordo com a lógica da interna, ou seja, a crença no mercado e na livre iniciativa. Assim, as dificuldades da América Latina deveriam ser superadas a partir de dentro, primeiramente, com tais reformas, para depois haver uma negociação. O objetivo de restabelecer e fortalecer seu domínio na região foi ofuscado pela falta de percepção dos norte-americanos e do não-reconhecimento do declínio de seu poder regional, percebido tarde demais. Tais fatos iam contra a falsa idéia de uma hegemonia norte- americana incondicional (PECEQUILO, 2003, p.232). Houve, neste sentido, uma diminuição relativa da importância dos Estados Unidos na região, o que levou uma afirmação dos países latino-americanos e conseqüentemente a procura por alternativas políticas e econômicas próprias. Por outro lado, algumas políticas de Reagan para a América Latina contribuíram, mesmo que indiretamente, para resultados não esperados. Um bom exemplo destes resultados foram políticas ligadas à democracia, que de certa forma ajudaram na redemocratização da região a partir de meados de 1980, o que viabilizou a retomada do seu crescimento por meio de ajustes e reformas (PECEQUILO, 2003, p.233).

4. Contextualizando os valores

É importante identificar e considerar alguns dos valores embutidos nas prioridades e temas de engajamento da política externa do sistema norte-americano e sua esfera de

influência regional durante a Guerra Fria, no período de 1985 a 1989. Temos assim, como principais características deste período a preservação e proteção do hemisfério contra ameaças de poderes externos e/ou a exclusão de poderes extra-hemisféricos, além da garantia exclusiva de sua zona de influência através da estabilidade e da segurança, por vezes, usando para isso a intervenção direta militar (PECEQUILO, 2003, p.236). Já alguns valores das relações internacionais estadunidenses específicas para a América Latina durante o mesmo período podem ser caracterizados resumidamente quanto: a alguns de seus valores e princípios, notadamente norte-americanos – como a promoção da democracia e da liberdade; aos seus temas de engajamentos hemisféricos – como a eliminação do comunismo; aos seus interesses

  • como a contenção da União Soviética, a expansão do livre mercado e a preservação da zona de influência natural; as suas táticas – como a ajuda aos “ defensores da liberdade ”; as suas principais iniciativas – como as intervenções, por exemplo, na América Central; e, quanto a sua posição relativa de hegemonia liberal (PECEQUILO, 2003, p.235). O pressuposto dos valores acima descritos está diretamente relacionado ao cinema. Por exemplo, alguns autores como Douglas Kellner^8 (apud LEITE, 2003, p.6), acreditam que os filmes reproduzem as lutas sociais existentes. O autor revela que é possível identificar categoricamente como alguns filmes populares produzidos em Hollywood, entre as décadas de 1960 e 1980, “ transcodificam ” discursos sociais opostos e coexistentes, revelando assim posições políticas específicas de temas controversos como guerra, classe, sexo, raça, capitalismo, Estado e principalmente a política interna e externa norte-americana. O cinema, neste sentido, acaba modelando visões preponderantes do mundo e de seus valores intrínsecos, fornecendo modelos do certo ou errado, moral e imoral, bem- sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente, etc. Destes discursos “ transcodificados ” surgem os diversos “materiais” que a maioria das pessoas usam para construir os sensos sobre si mesmas, o mundo e os outros. O cinema, enquanto “ cultura da mídia ” 9 , tem como objetivo abarcar a grande audiência onde sejam abordados assuntos e preocupações presentes; tornando-se de grande importância a apresentação de dados da agenda social contemporânea (LEITE, 2003, p.7).

(^8) KELLNER, Douglas. A cultura da mídia, 2001. http://www.historia.uff.br/tempo/resenhas/res14-2.pdf Acessado em 19 de julho de 2010 9 Segundo teorização de Sidney Ferreira Leite (2003) existe uma cultura veiculada pela mídia. Suas imagens, sons e espetáculos contribuem para tecer as teias que envolvem a vida cotidiana, exercendo enorme poder e controle sobre o tempo de lazer das pessoas, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais, e fornecendo materiais que forjam identidades. A cultura da mídia fornece o material com que muitas pessoas constroem o seu senso de classe, de etnia e raça, de nacionalidade, de sexualidade, de nós, e eles. Desta forma, a cultura da mídia tem por objetivo a grande audiência, por isso, deve ser eco de assuntos e preocupações atuais, sendo extremamente tópica e apresentando dados da agenda social contemporânea (LEITE, 2003, p.7).

contribuem para nos ensinar como nos comportar, o que pensar, o que sentir, em que acreditar, o que temer e o que desejar ” (LEITE, 2003, p.9). Segundo Sidney Ferreira Leite, em seu livro “ O cinema manipula a realidade? ”, é preciso questionar criticamente a cultura contemporânea da mídia, da qual o cinema faz parte, a fim de se realizar “ estudos do modo como a indústria cultural cria produtos e reproduzem discursos sociais que estão encravados nos conflitos e nas lutas fundamentais da nossa época ” (LEITE, 2003, p.9). Ainda segundo Sidney Ferreira Leite “ os filmes são compreendidos como evidências (fontes) que permitem acesso às ideologias, às relações entre sociedade e Estado, em última instância, às relações de poder, através da conexão estreita entre a sétima arte e a sociedade ” (LEITE, 2003, p.9). O cinema ocupa lugar central para a compreensão da história do século XX. Os filmes podem servir como construtores ou “desconstrutores” de opinião ou mesmo como fontes ricas de como Estados e Instituições utilizam o enorme poder da difusão de idéias e comportamentos dos meios de comunicação para a construção de diversos fatos, acontecimentos, conjunturas e/ou estruturas (LEITE, 2003, p.5-6). Se incorporarmos uma “ dimensão política ” às relações culturais internacionais, considerando-se que essas relações sejam projetadas a uma dimensão da política externa, estas poderiam servir tanto para a cooperação entre dois países, quanto também como incremento sob forma de “ recurso estabilizador ” dos interesses nacionais do país interessado. A participação do Estado, neste sentido, seria coordenar uma política cultural que instrumentalizasse setores da elite ligada ao campo da “ difusão cultural ”, para fazer a mediação entre Estado e sociedade. Ou seja, a influência dos meios culturais de comunicação na opinião pública local, regional ou mundial é muitas vezes complementar às manobras de políticas exteriores de cunho econômico, político e/ou militar, e que muitas vezes servem como justificativas de ações mais amplas de acordo com os interesses reais dos formuladores dessas políticas (COOMBS, 1964 apud MESQUITA, 2002 p.15-16) 11. Em suma, o cinema, usado como política cultural a serviço de qualquer esfera de poder é capaz de imprimir formas, maquinar situações e, ao mesmo tempo contribuir para o andamento de um conjunto de idéias e crenças desejadas (LEITE, 2003, p.6). Com o desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação desde o início do século XX, o ambiente político se revolucionou, surgindo uma nova dinâmica, ou seja, abriu- se um amplo leque de possibilidades antes inimagináveis, de interação dos cidadãos com as questões públicas (MIGUEL, 2002, p.155). Estas interações, todavia, poderiam ter uma face (^11) Coombs , Phillip H. The Fourth Dimension of Foreign Policy: Educational and Cultural Affairs. New York. Harper & Row Publisher, 1964.

negativa, se tomarmos como exemplo o acelerado processo universal de integração determinado por este desenvolvimento tecnológico vindo desde o século passado. Este processo de integração vem propagando-se, desde então, através de duas vertentes intimamente ligadas. Primeiro, através da tecnologia do produto industrial, uma vez que sua escala de produção massificada atua por intermédio dos grandes complexos industriais, hoje eminentemente multinacionais, induzindo o consumo de produtos padronizados nem sempre assimilados pelas diversas culturas que os recebem, e, segundo, através da tecnologia da comunicação audiovisual que permite acompanhar, vendo-se e ouvindo-se, muitas vezes até instantaneamente, o que ocorre em qualquer ponto do mosaico internacional. A face negativa desse processo de integração universal seria uma homogeneização cultural que impedisse a diversidade cultural interna de uma sociedade – brasileira, por exemplo – ao mesmo tempo acabando com sua singularidade no plano internacional, o que por sua vez, tornaria tal sociedade, sem um caráter cultural específico, dependente de outras nações (MAGALHÃES, 1985 apud GONÇALVES, 1995 apud BÔAS; GONÇALVES, 1995 p.243). A “ penetração ideológica ” através dos meios tecnológicos de comunicação pode ser explicada, em grande parte, por investimentos no setor cultural com forte caráter empresarial capitalista e que está vinculado aos diversos setores de produção, determinando consideravelmente como as relações entre cultura e público podem ser modificadas, especialmente quando a indústria invade a esfera da cultura. Assim, bens culturais fabricados com sofisticadas técnicas de produção – como o cinema – podem provocar conseqüências sociais e políticas, uma vez que também podem alcançar uma repercussão significativa – por vezes nem sempre positiva – junto ao público, sendo que este último corre o risco de reduzir- se a mero objeto de intenção ou de cálculo da produção cultural moderna. (BÔAS, 1995, p.228-230). O fenômeno tecnológico da indústria cultural é amplamente explicado pelo fato de que milhões de pessoas participam de maneira interativa dessa indústria, sendo o cinema, um dos meios mais representativos desta discussão. A imposição de métodos e técnicas de reprodução dissemina, necessariamente, bens padronizados a fim de satisfazer a também padronizada necessidade desses milhões de consumidores, que por sua vez, aceitam tal imposição naturalmente. A técnica, neste contexto, desempenha papel fundamental, uma vez que seus centros de produção se contrastam com a recepção dispersa desses mesmos milhões de espectadores. O terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o mesmo poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a mesma (ADORNO, Theodor W.;

potencial influência para as relações internacionais, mais especificamente, para as relações entre Brasil e Estados Unidos, proposta por este artigo. Dentre os filmes da década de 1980 que se encaixam perfeitamente ao tema proposto por este artigo, pode-se destacar o quarto filme da franquia “ Rocky ”. Lançado em 1985, o filme reproduz tendenciosamente a luta política e social, existente na época, entre Oriente e Ocidente (KELLNER apud LEITE, 2003, p.6), ou seja, retrata e/ou “ transcodifica ” (idem), através de uma subtrama, o conflito da Guerra Fria (revivida propositadamente neste período por Reagan). Rocky IV é antecedido por Rocky II (A Revanche), lançado em 1979, e Rocky III (O Desafio Supremo) lançado em 1982, sendo este último o mais criticado de todos da série – tanto por ser considerado como um filme “caça níquel” quanto por ter perdido a identidade dos dois primeiros, limitando-se a um filme de “pancadaria”. Essas versões (II, III e IV) são derivadas do clássico dos cinemas “Rocky – Um Lutador”, lançado em 1976, que conta uma história com fundo moral social que vai além de simples lutas de boxe ao criticar o estilo de vida americano da década de 1970^16. Sendo o roteiro e direção de Sylvester Stallone, Rocky IV – assim como Rocky III

  • não contém a mesma essência dos dois primeiros filmes, de acordo com Thiago Sampaio e Leonardo Heffer^17. Como exemplo disso, ambos citam o drama vivido pelo protagonista Rocky Balboa (Sylvester Stallone), ligado a necessidade de mostrar suas habilidades no boxe, a fim de suprir suas frustrações, como seus problemas financeiros e dilemas emocionais relacionados à sua esposa Adrian (Talia Shire). Ao invés disso, Rocky IV é produzido com forte inclinação político propagandista, feita através do boxe, da eminente vitória dos valores ocidentais sobre o Oriente comunista, “sintetizando” a velha rivalidade entre capitalismo e socialismo. A trama do filme começa quando seu treinador, amigo, e antigo rival, Apollo Creed (Carl Weathers) é literalmente morto no ringue pelo “invencível” lutador de boxe soviético Ivan Drago (Dolph Lundgren), que além de ser um atleta desenvolvido pela cibernética soviética é também capitão do exército comunista. Inconformado com a morte de seu amigo, Balboa se torna obsessivo em vencer Drago, se submetendo a um treinamento subumano na gelada Sibéria.

(^16) Fonte: http://www.cinemacomrapadura.com.br/especiais/rocky_balboa/criticas/index.html Acessado em 03 de novembro de 2010 17 Fonte: http://www.cinemacomrapadura.com.br/especiais/rocky_balboa/criticas/rocky4.html Acessado em 04 de novembro de 2010

Ao mesmo tempo em que Rocky IV é um filme extremamente previsível, uma análise mais atenta sobre sua “intenção política” o torna simultaneamente interessante^18. Assim, podemos identificar em quase todas as cenas do filme, valores embutidos e, por vezes, explicitamente “vendidos” pelo lado ocidental. Este filme revela assim – juntamente com estes valores – posições políticas específicas, principalmente as que estão ligadas à política interna e externa dos Estados Unidos (KELLNER apud LEITE, 2003, p.6), fato este que – como já abordado neste artigo – influi nas relações com outros países, entre eles, o Brasil e sua política externa, uma vez que este país foi altamente influenciável pelos valores “vendidos” através do cinema, exatamente por estar exposto a indústria cultural cinematográfica norte-americana. Cristina Soreanu Pecequilo, em seu livro “ A Política Externa dos Estados Unidos: continuidade ou mudança? ” (2003), discute o sistema americano na década de 1980, onde enfatiza a decisão do governo Reagan em confrontar diretamente a União Soviética^19 a fim de conter o avanço do comunismo dentro da “velha” estratégia para a Guerra Fria, montando para isso – como já foi explicitado acima – um verdadeiro “ teatro estratégico experimental ”. Mera coincidência, ou não, podemos relacionar este fato, apontado por Pecequilo, ao mesmo “teatro” que o personagem Apollo (de Rocky IV) arma propositadamente na cena em que entra no ringue vestido de “Tio Sam” contra Drago, o lutador de boxe resumido à identidade de “russo comunista malvado”. Esta cena reflete o forte caráter provocativo que “ transcodifica ” (KELLNER apud LEITE, 2003, p.6) a decisão tomada por Reagan de confrontar o bloco soviético – com direito a James Brown cantando ao vivo “ I live in America ” antes da luta começar, juntamente com uma espécie de carnaval regado de fantasias nas cores da bandeira norte-americana. Mais tarde esta confrontação toma contornos mais nítidos, quando já na luta final, o personagem Rocky Balboa repete a dose, agora de maneira menos exibicionista que Apollo, usando somente um “discreto” calção estampado com a bandeira norte-americana – lembrando que esta luta final ocorre em meio a Moscou comunista^20.

(^18) Ibdem 17 (^19) A estratégia norte-americana de “retomada da confrontação” com a União Soviética foi justificada, segundo avaliações feitas na época pela presidência Reagan, a qual afirmava que os Estados Unidos haviam aberto mão de suas posições no “Terceiro Mundo”, principalmente na América Latina, durante a Guerra Fria, e havia chegado a hora de recuperá-las. Reagan também criticou, na mesma época, a complacência do governo anterior de Carter, pelo afastamento de antigos aliados tradicionais pelas pressões dos direitos humanos e da democracia. (PECEQUILO, 2003, p.231). 20 Ibdem 17