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Neste documento, ana carolina soliva soria discute as importâncias dos cinco casos clínicos publicados por sigmund freud durante as primeiras duas décadas de sua carreira, com ênfase no caso dora. Ela examina a razão pela qual freud escolheu publicar esses casos e as mudanças na abordagem de freud para o tratamento de pacientes, especialmente em relação à fantasia e sexualidade infantil. O documento também discute a importância da construção da sexualidade infantil na teoria de freud.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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CADERNOS DE FILOSOFIA ALEMÃ nº 11 | P. 83 - 98 | JAN-JUN 2008
Ana Carolina Soliva Soria *
RESUMO: O PRESENTE ARTIGO PRETENDE ANALISAR ALGUNS ASPECTOS EM QUE O TEXTO “FRAGMENTO DE UMA ANÁLISE DE HISTERIA”, DE SIGMUND F REUD , AJUDA-NOS A COMPREENDER A RELAÇÃO ENTRE A INVESTIGAÇÃO CLÍNICA DO PSICANA- LISTA E A CONSTRUÇÃO DE UMA TEORIA GERAL DO FUNCIONAMENTO PSÍQUICO. PALAVRAS - CHAVE : F REUD , D ORA , SEXUALIDADE, FANTASIA , SEDUÇÃO
ABSTRACT: THIS ARTICLE AIMS AT EXAMINING SOME ASPECTS IN WHICH THE TEXT OF THE FRAGMENTS OF AN ANALYSIS OF HYSTERIA (DORA ) BY S IGMUND F REUD COULD HELP US TO UNDERSTAND THE RELATION BETWEEN CLINICAL INVESTIGATION AND THE CONSTRUCTION OF A GENERAL THEORY OF PSYCHIC FUNCTIONING. KEYWORDS : F REUD , D ORA , SEXUALITY, FANTASY , SEDUCTION
Durante as duas primeiras décadas de seu trabalho psicanalíti- co, Sigmund Freud publicou cinco importantes casos clínicos. São eles: “Fragmento de uma análise de histeria” ( Bruchstrück einer Hysterie- Analyse ), de 1905, “Análise da fobia de um menino de cinco anos” ( Analyse der Phobie eines fünfjährigen Knaben ), de 1909, “Observa- ções sobre um caso de neurose obsessiva” ( Bemerkungen über einen Fall von Zwangsneurose ), de 1909, “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia descrito auto-biograficamente” ( Psychoanalytische Bemerkungen über einen autobiographisch beschreibenen Fall von Paranoia ), de 1911, e “Da história de uma neurose infantil” ( Aus der Geschichte einer infantilen Neurose ), de 1918. Esses textos, que fica- ram comumente conhecidos como “O caso Dora”, “O pequeno Hans”, “O homem dos ratos”, “O caso Schreber” e “O homem dos lobos”, tratam tanto da neurose quanto da psicose e se tornaram referência para qual- quer pessoa que deseja estudar a arte analítica. Ora, cabe-nos aqui perguntar por que Freud escolheu publicar esses casos. O que havia em Dora ou em Hans que o levou a redigir seus históricos e a deixar de lado
O “CASO DORA”: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES... ANA CAROLINA SOLIVA SORIA
tantos outros? Em princípio, poderíamos pensar que a condição para expor um caso clínico é o sucesso alcançado com a terapia e a sua infalibilidade, ou seja, os bons casos, os passíveis de serem publicados, seriam aqueles em que a terapia atingiu o seu fim e livrou o paciente de seus males. Contudo, logo no início do “Fragmento de uma análise de histeria”, Freud adverte o seu leitor:
Este histórico de apenas três meses é abarcável e memoriável; mas seus resultados permaneceram incompletos em mais de um ponto de vista. O tratamento não foi conduzido até a meta pro- posta, e sim interrompido pela vontade da paciente quando al- cançado um certo ponto. Nesse momento, alguns enigmas do caso da enfermidade ainda não tinham sido em nada apreendi- dos, outros clarificados somente de modo imperfeito, ao passo que a continuação do trabalho certamente teria avançado em todos os pontos até o último esclarecimento possível. Desse modo, posso oferecer aqui apenas um fragmento ( Fragment ) de uma análise. 1
O caso escolhido pelo pai da psicanálise para ser publicado en- cerrou-se prematuramente e não nos oferece resultados completos. Trata- se de um fragmento ( Bruchstück, Fragment ) de uma análise. Ele foi in- capaz de ajudar sua paciente, assim como tantos outros médicos que já a haviam submetido a múltiplas terapias. E uma vez que o seu método de tratamento (a saber: a associação livre) permite à enferma falar in- discriminadamente sobre todos os pensamentos que lhe sobrevêm e diri- gir sua atenção de modo espontâneo para o passado ou o presente, seu relato nos parece fracionado e espalhado por diversas épocas e contex- tos. Além disso, como nos admite no final do prefácio que escreve para esse texto, Freud foi muito pouco hábil em descuidar-se da transferência^2
(^1) Freud, S. “Bruchstück einer Hysterie-Analyse”. In: _____. Gesammelte Werke , vol. 5. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1999, pp. 168-9. 2 A transferência é toda uma série de vivências anteriores, preservadas no inconsciente como moções e fantasias, revividas não como algo passado, mas como um vínculo atual com o médico.
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va ainda mais”.^6 O método catártico atacava apenas os efeitos do mal, deixando intacta a sua causa. O médico tinha, desse modo, de refazer o procedimento de dias atrás e eliminar outros tantos fantasmas que subs- tituíam os primeiros. Esse trabalho interminável é criticado por Freud no prefácio do Fragmento de análise de um caso de histeria :
Talvez um leitor familiarizado com a técnica de análise exposta nos Estudos sobre histeria fique admirado de que em três meses não se pôde encontrar ao menos uma solução definitiva para os sintomas abordados. Mas isso será compreensível se comunico que desde os “Estudos” a técnica psicanalítica sofreu uma revi- ravolta substancial. Naquela época, o trabalho partia dos sinto- mas e se punha como meta solucioná-los um após o outro. Aban- donei desde então essa técnica, pois a achava totalmente ina- dequada à estrutura mais fina da neurose. Deixo agora que o próprio enfermo determine o tema do trabalho cotidiano, e en- tão parto da superfície que o inconsciente oferece à sua aten- ção em cada ocasião. 7
Se o método empregado por Freud para o tratamento de seus enfermos passou por uma mudança completa em poucos anos, isso se deve ao fato de que nos “Estudos” o evento traumático era sempre algo ocorrido num passado recente. Ele se limitava à época da puberdade e não apresentava força alguma de determinação de sintoma. Por esse motivo, para cada manifestação eliminada da enfermidade, outras tan- tas apareciam em seu lugar. Seria preciso retroceder ainda mais para
(^6) Breuer, J. “Beobachtung I. Frl. Anna O...”. In: Freud, S. Gesammelte Werke, Nachtragsband: Texte aus den Jahren 1885-1938 7 , p. 229. Freud, S. “Bruchstück einer Hysterie-Analyse”, p. 169. O próprio Freud já havia cons- tatado tal problema na parte final dos Estudos sobre histeria. Ele diz: “Em seguida, se se eliminam os produtos da doença durante tais períodos agudos, os sintomas histéri- cos recém originados, então deve-se estar preparado para que os eliminados sejam logo substituídos por novos. O médico não ficará livre da impressão dissonante de um trabalho das Danaides, de algo impossível”. Freud, S. “Zur Psychotherapie der Hysterie”. In: _____. Gesammelte Werke , vol. 1, p. 262. (As Danaides são personagens mitológi- cas que foram condenadas a tentar eternamente encher com água um recipiente fura- do. Cf. Grimal, P. Dicionário da mitologia grega e romana. Trad. de Victor Jabouille. 2a. ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1993, p. 110)
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encontrar a verdadeira condição etiológica da enfermidade e acabar com a mera anulação dos sintomas. Aos poucos, os relatos de seus pacientes voltam-se para experiênci- as cada vez mais antigas, e levam a análise a retroceder da puberdade até a primeira infância. Em 1896, Freud publica “A hereditariedade e a etiologia das neuroses” ( L’heredité et l’etiologie des névroses ), “Sobre a etiologia da histeria” ( Zur Ätiologie der Hysterie ) e “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” ( Weitere Bemerkungen über die Abwehr- Neuropsychosen ), textos que apresentam uma tese fundamentalmente im- portante nessa época, a saber: a sedução por um adulto pervertido desperta na criança uma sexualidade prematura e doentia. Com isso, o pai da psica- nálise vislumbra, ainda que de maneira distorcida, o que viria a ser a sua futura teoria da sexualidade infantil, exposta de modo mais bem acabado em 1905, com o texto “Três ensaios sobre teoria sexual” ( Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie ). O retrocesso às experiências da infância leva-nos ao segundo ponto ausente nos “Estudos”, isto é, à compreensão de que a criança é naturalmente dotada de uma atividade sexual auto-erótica. Além disso, em 1895 faltava entender que os relatos de suas pacientes não correspondiam às suas experiências efetivas, ou seja, que eram cenas fantasiadas, criadas para encobrir a atividade sexual infantil. Este terceiro ponto somente foi reconhecido após 1897, data em que Freud depara com um problema estatístico: se todos os histéricos foram seduzidos por um adulto na infância, e se nem todas as crianças seduzidas desenvolvem a enfermidade, então o número de adultos per- vertidos deveria ser muito maior do que o número de pessoas histéricas. Dar-se conta desse problema foi também perceber que o analista não controla a análise em todos os seus pontos (como pressupunha a práti- ca da hipnose), que o paciente constrói a sua própria fala e que ao ana- lista cabe um olhar crítico que dará nexo aos fenômenos relatados na clínica. Nasce assim a psicanálise. Em “Sobre a história do movimento psicanalítico” ( Zur Geschichte der psychoanalytischen Bewegung ), Freud nos diz:
Ainda que de uma época muito posterior, uma aquisição seme- lhante é a construção da sexualidade infantil, da qual ainda nem
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Apesar do histórico clínico de Dora ser em alguns pontos “mais pobre do que eu teria desejado”, escreve Freud, sobre outros aspectos apresenta uma enorme vantagem, a saber: reúne os conceitos de fanta- sia, passado remoto e atividade sexual infantil. E, se prestarmos aten- ção à data de sua redação e publicação, veremos uma coisa bastante curiosa. Em 1900, aos 18 anos, Dora inicia o seu tratamento após uma tentativa de suicídio. Seus encontros com Freud ocorrem entre os me- ses de outubro e dezembro, quando, por vontade própria, desiste da terapia. Em janeiro de 1901, o caso clínico é redigido, mas publicado apenas em 1905. 1900 e 1905 são também as datas da publicação de dois textos fundamentais para a psicanálise. São eles, respectivamente: “A interpretação dos sonhos” e “Três ensaios sobre teoria sexual”. O primeiro deles põe lado a lado sonho e fantasia, ou ainda, normal e pa- tológico, e apresenta tais construções psíquicas como realizações de um desejo sexual infantil. Contudo, uma vez que tais desejos correspon- dem a uma época arcaica, cujos objetos de satisfação foram há muito tempo abandonados, são mantidos pela instância moral na obscuridade inconsciente. Não podem ter acesso ao Eu consciente, porém continu- am exercendo pressão sobre ele. E, como o desejo infantil recalcado jamais é representado diretamente na consciência, cria-se uma outra representação que dribla a censura e o traz à luz com toda a sua força. Em “A interpretação dos sonhos”, o trabalho de driblar a censura, que recai sobre os desejos infantis, e o de apresentá-los na consciência é comparado por Freud ao de um jornalista político: ele tem de dizer ver- dades desagradáveis para os governantes, mas, se o faz diretamente, terá suas declarações suprimidas. Abstém-se então de certas formas de ataque e desfigura a expressão de suas opiniões.
Ele pode, por exemplo, contar o que aconteceu entre dois mandarins no Império do Meio, enquanto tem em vista os funcionários da pá- tria. Quanto mais severa reina a censura, tanto mais vasto será o disfarce, tanto mais engenhoso, com freqüência, os meios pelos quais guia o leitor pelas pegadas do significado próprio.^9
(^9) Freud, S. “Die Traumdeutung”. In: _____. Gesammelte Werke , vol. 2/3, p. 147-8.
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A incapacidade do paciente de oferecer informações exatas e coerentes sobre si depende da força de atuação da censura. “Sem dúvi- da [os enfermos] podem informar o médico sobre esta ou aquela época da vida de maneira suficiente e coerente; depois, segue-se um outro período em que suas notícias são empobrecidas, ficam lacunas e enig- mas; e uma outra vez defronta-se com épocas totalmente obscuras, não iluminadas por nenhuma comunicação útil”.^10 O trabalho da censura, que age sobre as moções de desejo, é semelhante àquele realizado pelos funcionários da fronteira russa, 11 que cobrem com tarjas pretas as partes dos textos de jornal que podem oferecer alguma ameaça e transfor- mam-nas em um murmúrio incompreensível. A arte ( Kunst ) do psicana- lista é a de seguir livremente o discurso do enfermo, sem deixar que sobre ele recaia qualquer juízo repressor. A sua escuta segue pontual- mente cada um dos elementos narrado pelo paciente, ou melhor, toma- os separadamente, para em seguida estabelecer um vínculo coerente entre as pequenas pistas que apontam em direção ao desejo inconsci- ente (isto é, para o que está por detrás da “tarja preta” da censura). O médico dá, assim, a unidade que faltava ao discurso: ele completa os pedaços suprimidos, os reconstrói de modo coerente e dá ao desejo inconsciente o direito à fala. No prefácio do caso Dora, encontramos uma menção explicita de Freud à “Interpretação dos sonhos”. Diz ele: “esse histórico da enfermi- dade pressupõe o conhecimento da interpretação dos sonhos; sua leitu- ra será altamente insuficiente para todos os que não se enquadram em tal pressuposto”. 12 O trabalho analítico no presente caso apresenta a técnica e a teoria expostas no texto de 1900. A partir de dois sonhos contados por sua paciente, mostra-nos como a interpretação de elemen- tos oníricos é inserida na arte psicanalítica, ou como podemos trabalhar a fantasia em análise (uma vez que fantasia e sonho encontram-se lado a lado). Para isso, tem-se de trazer à luz o desejo infantil recalcado. A esse respeito, lemos em “Sobre a história do movimento psicanalítico”:
(^10) Freud, S. “Bruchstück einer Hysterie-Analyse”, p. 174. (^11) Freud, S. “Die Traumdeutung”. In: Gesammelte Werke , vol. 2/3, p. 534. (^12) Freud, S. “Bruchstück einer Hysterie-Analyse”, p. 168.
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pecial nas zonas erógenas (oral, anal, útero-genital e mamilo), buscam a satisfação apenas da zona geradora de estímulos, independentemen- te da satisfação das demais, e não conhecem nenhum tipo de objeto sexual, isto é, satisfazem-se no próprio corpo (auto-eroticamente). Freud não apenas recua a atividade sexual à mais remota infância, mas tam- bém a descentraliza de um ponto corporal fixo, a saber: os genitais. Como nos diz Monzani, a sexualidade infantil:
é esse estado livre e selvagem onde as mais diferentes pulsões, as diferentes zonas erógenas ativam-se e desenvolvem-se, num primeiro instante absolutamente independentes umas das outras. Verdadeiras ilhas de prazer, essas diferentes pulsões, alojando- se em certas zonas, trazem para a criança um fluxo constante de prazer. Quando se pensa na sexualidade tal qual a pensava a psiquiatria clássica, não se pode deixar de ficar espantado. O mérito de Freud não foi somente o de falar de sexualidade infan- til, o de ter realizado um recuo temporal (mostrando que a sexu- alidade já estava presente antes do que se pensava). De fato, esse recuo foi acompanhado de uma espécie de “estilhaçamento” da sexualidade. Desvinculando sexualidade, por um lado, de genitalidade e, por outro, de um modelo comportamental pré- formado (instinto), Freud operou uma reconstrução absoluta- mente inédita na semântica da sexualidade. A significação do termo sexual não só se alarga mas, definitivamente, ultrapassa o conceito clássico. 16
Quando Freud redigiu o caso Dora no início de 1901 tinha já em mente, de modo bastante claro, as idéias que seriam expostas nos “Três ensaios”. Termos como “germes infantis da perversão”, “zonas erógenas”, “tendência à bissexualidade”, “auto-satisfação”, “inibição do desenvolvi- mento”, “constituição sexual”, podem ser encontrados ao longo de todo o texto. Vemos isso, por exemplo, na seguinte passagem:
(^16) Monzani, L. R. Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989, p. 31.
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A condição somática prévia para tal criação autônoma de uma fantasia, a qual correspondia pois ao agir dos perversos, era mesmo dada nela por um fato considerável. Ela se recordava muito bem de que em sua infância tinha sido uma “chupadora”. (...) A própria Dora tinha clara na memória uma imagem de seus anos de primeira infância em que, como disse, estava em um canto no chão, chupando o polegar esquerdo, enquanto com a mão direita puxava o pequeno lóbulo da orelha de seu irmão, sentado ali, quieto. Este é o modo completo de auto-satisfação pelo chupar, que também outras pacientes – posteriormente anestésicas e histéricas – me relataram. (...) Creio que ninguém quererá contestar que a mucosa dos lábios e da boca pode ser explicada como uma zona erógena primária. 17
Em sua fantasia, Dora toma o funcionamento arcaico do auto- erotismo como modelo para a satisfação das moções libidinais abando- nadas. Ao lado do funcionamento normal do psiquismo, conserva-se uma atividade primitiva, há muito tempo abandonada pelo Eu consciente, e sobre a qual a realidade não exerce poder algum. Como “verdadeiras ilhas de prazer” (para usarmos as palavras de Monzani), a sexualidade infantil mantém-se intacta na fantasia, conservando objetos e modos de funcionamento de fases já abandonadas. Ela está, portanto, livre da cen- sura, ou ainda, desconhece qualquer tipo de moralidade. Contudo, a importância do caso Dora não reside apenas no fato de ele ser fundamental para a compreensão da ligação entre a fantasia (exposta no texto de 1900) e a teoria da sexualidade infantil (apresenta- da no ensaio de 1905). Para além dessa função intermediária que pode- mos atribuir-lhe, sua redação mostra-nos como os mais diferentes fenô- menos clínicos podem ser reduzidos a certos elementos principais. Ou melhor, como do múltiplo chegamos a uma unidade teórica, confiável e útil para entender o funcionamento da enfermidade. Muitos médicos da época de Freud consideravam seus relatos clínicos como novelas ( Schlüsselromane ) sem nenhum caráter científi-
(^17) Freud, S. “Bruchstück einer Hysterie-Analyse”, pp. 211-2.
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Escrevi o próprio histórico da enfermidade de memória apenas após a conclusão do tratamento, enquanto o tinha ainda fresco em minha recordação e levado pelo interesse da publicação. Por isso, o escrito não é absolutamente – fonograficamente – fiel, mas pode reivindicar um grande grau de confiança. Nada essen- cial alterou-se nele, se bem que, para maior coerência, em mui- tas passagens modifiquei a seqüência dos esclarecimentos.^20
Ora, os mesmos mecanismos que foram utilizados ao longo do tratamento de Dora, a saber, a separação e a intelecção da fantasia em suas mais diversas partes componentes e a sua refundição em um todo coerente capaz de trazer à consciência o desejo inconsciente, aplicam- se também à própria confecção do texto. Freud toma a matéria-prima bruta e dilacerada da fala da paciente e a transforma na base para a construção de seu texto: os diferentes e múltiplos elementos apresenta- dos durante a análise são agora vistos a partir de um ponto comum. O trabalho clínico, bem como seu modo de redigir um caso, pressupõem o trabalho de análise e síntese do discurso, de desconstrução e recons- trução. Na redação de seu texto, a arte ( Kunst ) e a técnica ( Technik ) que se aplicavam à relação médico-paciente mudam de direção e apontam agora para um outro lado: para a relação autor-leitor. Quanto à primeira, requer-se uma atenção que rebaixe a crítica repressora e se mova da maneira mais neutra possível a fim de fazer o material inconsciente aflorar, pedaço por pedaço, nas fantasias narradas por sua paciente. Assim como os movimentos de um lápis que desenha o contorno de uma figura apro- ximando-se e afastando-se do centro da folha de papel, assim também a atenção flutuante do psicanalista à associação livre do paciente, numa sucessão de movimentos ziguezagueantes, afasta-se e aproxima-se dos motivos inconscientes, podendo, ao fim, dar contorno bem delineado ao discurso de sua paciente e mostrar-lhe a direção de seu próprio desejo. Quanto à relação autor-leitor, temos de levar em conta que, quando Freud se põe a escrever um caso e reconstrói os relatos clínicos em um texto, ele muda a ordem dos esclarecimentos, sem contudo perder a mesma
(^20) Idem, pp. 166-7.
O “CASO DORA”: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES... ANA CAROLINA SOLIVA SORIA
seqüência de movimentos da fala da paciente. Para a constituição do texto, não importa se alguns detalhes ocorridos na análise foram omiti- dos, o importante é que a mesma regra que ditou o alinhamento da tera- pia vigore também para a sua redação. Numa série de linhas circulares, Freud retoma o discurso da enferma a partir de múltiplos pontos e os conecta (sintetiza-os) a um núcleo comum que leva seu leitor do presen- te ao passado remoto. Mas trabalhar com relatos fragmentados e reconstruí-los em um todo coerente impõe para Freud um outro problema, a saber: como ele pode estar seguro de que suas construções são confiáveis e mantêm intactas o essencial da análise? A esse respeito, diz-nos Freud:
Em vista da incompletude de meus resultados analíticos, não me resta senão seguir o exemplo daqueles pesquisadores que têm a felicidade de trazer à luz, após longas escavações, os inestimá- veis, por mais que mutilados, restos da antiguidade. Completei o incompleto com os melhores modelos que me eram conhecidos de outras análises. Mas, tal como um arqueólogo consciencioso, não deixei de indicar em nenhum caso onde minhas construções se aplicam ao autêntico. 21
Para reconstruir um determinado caso clínico, Freud tem de tra- balhar com modelos tirados da própria experiência com outros pacien- tes. A via empírica fornece uma multiplicidade de fenômenos que, medi- ante o trabalho de análise e síntese, dão ao pai da psicanálise o solo sobre o qual ele firma os seus construtos. Num trabalho semelhante ao de um arqueólogo, Freud toma os pequenos fragmentos fornecidos pe- los seus pacientes e tira dali a chave que abrirá as portas para a compre- ensão de qualquer caso particular. É no olhar crítico de Freud que os múltiplos dados empíricos da clínica podem ser reconstruídos na forma de um todo coerente, capaz de fornecer um modelo ( Muster ) para compreender toda uma variedade de outros casos. Nesse sentido, o caso particular “Dora” é elevado à
(^21) Idem, pp. 169-70.