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O Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1470-1536), Provas de Poesia

Resumo: A poesia portuguesa dos séculos XV e XVI passou a ser denominada “poesia palaciana” devido ao fato de que era no palácio que os nobres e cortesãos ...

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Tucano15
Tucano15 🇧🇷

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O
Cancioneiro Geral
de Garcia de Resende (1470-1536): festa e teatralidade,
um espaço para a exaltação do “eu”
Garcia de Resende’s
Cancioneiro Geral
: feast and theatricality, a space for the
exaltation of the self
El
Cancioneiro Geral
de Garcia de Resende: Fiesta y teatralidad, un espacio
para la exaltación del “yo”
Geraldo Augusto FERNANDES
1
Resumo: A poesia portuguesa dos séculos XV e XVI passou a ser denominada “poesia
palaciana” devido ao fato de que era no palácio que os nobres e cortesãos se reuniam
para deleitamento e trocas culturais não de Portugal, mas de seu vizinho, Castela.
Depois do advento da poesia trovadoresca, a poesia do Quatrocentos e do Quinhentos
portugueses vão retratar a cultura e a sociabilidade de um país em que as Descobertas
marítimas marcarão a riqueza e ostentação, fruto de uma economia em expansão. O
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, reunião de 880 poemas de 1459 a 1516, é tido
como um documento histórico em versos, pois registra o início da grandeza de Portugal.
Abstract: The Portuguese poetry of the XVth and XVIth centuries is denominated
courtly poetry due to the fact that it was in the palace that nobles and courtesans got
together for rejoice and cultural changes not only that of Portugal but also of its
neighbor, Castile. After the poetry composed by troubadours in the previous centuries,
the poetry of the Fourteenth and the Fifteenth will portrait the culture and sociability of
a country where the maritime Discoveries will point out the richness and ostentation,
because of an economy in expansion. Garcia de Resende’s Cancioneiro Geral, a
compilation of 880 poems from 1459 to 1516, is considered a historical document in
verses which registers the beginning of the greatness of Portugal.
Keywords: Cancioneiro Geral Garcia de Resende Poesia palaciana Sociabilidade
Exaltação do indivíduo Sala e palácio.
Palavras-chave: Garcia de Resende’s songbook Courtly poetry Sociability
Exaltation of the self Room and palace.
1
Professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Ceará. E-mail:
geraldoaugust@uol.com.br.
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O Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1470-1536): festa e teatralidade,

um espaço para a exaltação do “eu”

Garcia de Resende’s Cancioneiro Geral: feast and theatricality, a space for the

exaltation of the self

El Cancioneiro Geral de Garcia de Resende: Fiesta y teatralidad, un espacio

para la exaltación del “yo”

Geraldo Augusto FERNANDES^1 Resumo : A poesia portuguesa dos séculos XV e XVI passou a ser denominada “poesia palaciana” devido ao fato de que era no palácio que os nobres e cortesãos se reuniam para deleitamento e trocas culturais – não só de Portugal, mas de seu vizinho, Castela. Depois do advento da poesia trovadoresca, a poesia do Quatrocentos e do Quinhentos portugueses vão retratar a cultura e a sociabilidade de um país em que as Descobertas marítimas marcarão a riqueza e ostentação, fruto de uma economia em expansão. O Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, reunião de 880 poemas de 1459 a 1516, é tido como um documento histórico em versos, pois registra o início da grandeza de Portugal. Abstract : The Portuguese poetry of the XVth and XVIth centuries is denominated courtly poetry due to the fact that it was in the palace that nobles and courtesans got together for rejoice and cultural changes – not only that of Portugal but also of its neighbor, Castile. After the poetry composed by troubadours in the previous centuries, the poetry of the Fourteenth and the Fifteenth will portrait the culture and sociability of a country where the maritime Discoveries will point out the richness and ostentation, because of an economy in expansion. Garcia de Resende’s Cancioneiro Geral , a compilation of 880 poems from 1459 to 1516, is considered a historical document in verses which registers the beginning of the greatness of Portugal. Keywords : Cancioneiro Geral – Garcia de Resende – Poesia palaciana – Sociabilidade – Exaltação do indivíduo – Sala e palácio. Palavras-chave : Garcia de Resende’s songbook – Courtly poetry – Sociability – Exaltation of the self – Room and palace. (^1) Professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Ceará. E-mail : geraldoaugust@uol.com.br.

Medieval and early modern Iberian Peninsula Cultural History (XIII-XVII centuries) Cultura en la Península Ibérica Medieval y Moderna (siglos XIII-XVII) Cultura na Península Ibérica Medieval e Moderna (séculos XIII-XVII) Jun-Dez 201 5 /ISSN 1676- 5818 ENVIADO: 20 .0 8. ACEPTADO: 11.09.

Da mesma maneira que vários poetas dos velhos cancioneiros tinham conseguido instilar uma certa dose de verdadeira emoção no árido convencionalismo da cantiga de amor, também os do Cancioneiro Geral se erguem de vez em quando a autêntica poesia. Stephen Reckert A ânsia de ser diferente e superior aos restantes cortesãos no seu vestir parece que levava à criação de novidades e à frequente quebra dos padrões estabelecidos, daí a sinonímia que se vem estabelecer nos textos da colectânea entre trajo e envençam. Maria Isabel Morán Cabanas

Um mar encapelado, feito de linho pintado; caravelas adentram a grande sala, simulando

os caminhos da navegação em direção às novas terras conquistadas; um verdadeiro

arsenal de máquinas ocultas faz tudo parecer real; animais são servidos inteiros durante

os banquetes faustosos e exóticos; trombetas, apitos e tiros anunciam e animam as

atrações: começam os momos^2 e os entremezes^3 – encenações típicas da última fase do

medievo europeu, que prenunciam já o teatro moderno.^4 A dança e o canto são

(^2) Segundo Fidelino de Figueiredo: “Os momos eram simples efeitos cenográficos com artifícios mágicos, mas como elementos literários só continham as letras ou cimeiras ou breves , isto é, pequenas explicações que os atores e certos lugares do cenário ostentavam: eram dizeres da galanteria ou aclarações indispensáveis à boa inteligência da representação” (Figueiredo, 1966, 107). (^3) Também conforme Fidelino de Figueiredo: o “ entremez teria um sentido mais compreensivo, designaria todo o conjunto de representações cênicas de determinado momento e determinada solenidade, equivaleria ao nosso moderno espetáculo ; o momo significaria o episódio particular e a ação cômica”. ( Idem , ibidem , 108). (^4) Em Festa, teatralidade e escrita. Esboços teatrais no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. (2003), Maria Isabel Morán Cabanas desenvolve um extenso estudo sobre o nascimento do teatro português, cujo embrião se encontra na coleção de poemas de Garcia de Resende. Quanto à teatralidade na poética da Idade Média, escreve Paul Zumthor: “A ritualidade – a ‘teatralidade’ – poética termina, certamente, em longa duração, por atenuar-se, mas não em suas manifestações concretas, porque, até o século XV e, principalmente, até o XVII, o corpo ficou aí totalmente comprometido. Foi seu objeto que se deslocou pouco a pouco (na medida da difusão da escritura), ao ponto que, passado

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reuniões ligadas a uma data ritual em que se testa a coesão do grupo (Régnier-Bohler,

Entretanto, mais do que simples espaço para apresentações coletivas, a sala é o espaço

propício à revelação do “eu”, no sentido de exacerbação de uma personalidade que

precisa aparecer ante uma sociedade, em que a aparência se revela mais importante.

Nesse espaço propício ao “eu” exterior, adentram cavaleiros que lutam por sua senhora,

durante as justas e os torneios; nele, esgrimam-se os poetas palacianos, que colocam em

palavras seu embate por aquela a quem dizem servir; poetas que, no entanto, usam essas

mesmas palavras, para atacar desde os mais chinfrins defeitos dos cortesãos até as mais

íntimas taras desse público ávido pela bisbilhotice. Mas também é aí que esse “eu”

precisa atingir a perfeição, que, segundo Johan Huzinga, “implica que esta seja mostrada

aos outros; para merecer o reconhecimento, o mérito tem que ser manifesto.

A competição serve para cada um dar provas de sua superioridade” (Huizinga, 1993, 72).

Se esta manifestação vem da era primeva do homem, já o nobre – aquele homem

sociabilizado – demonstra sua ‘virtude’ por meio de proezas de força, destreza, coragem,

engenho, sabedoria, riqueza ou generosidade. Na falta destas, pode ainda distinguir-se

numa competição de palavras, isto é, ou ele mesmo louva as virtudes nas quais deseja

superar seus rivais, ou manda que elas lhe sejam louvadas por um poeta ou um arauto.

Esta exaltação da própria virtude, como forma de competição, transforma-se muito

naturalmente em depreciação do adversário, o que, por sua vez, passa a ser um outro

tipo de competição ( idem, ibidem , 74).

À época do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, fazendo uso da descrição de

Huizinga, percebe-se a supremacia da competição poética, não mais aquela de força e

destreza nas batalhas de campo, se bem que vários dos poetas do Paço participassem

ativamente das lides bélicas engendradas por um Portugal das conquistas e das

descobertas. Nas mais das vezes, é o próprio poeta que se louva, ao contrário do que

acontecia à época áurea do Trovadorismo. Mas muitas das vezes, trazem os poetas

palacianos para encenação uma espécie de competição poética em que a depreciação do

adversário se sobressai. Há de se ressaltar este fato: tanto na época anterior à sociedade

dos poetas quatrocentistas, quanto ao tempo destes, a depreciação sempre se deu pelos

embates entre dois ou mais poetas, que, com palavras escarninhas ou maldizentes,

montavam as “tenções” – no Trovadorismo – ou as ajudas , perguntas e respostas – no fim

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do medievo peninsular – descendentes, enfim, das “tensó”, dos “partimen”, dos “joc

parti” provençais.^7

Quanto ao espaço físico das representações, a sala será o palco para a exaltação do “eu”

  • como se disse atrás – e é projetada para fazer parte de um tipo arquitetônico

característico da Idade Média: o palácio. Espaço concentracional da nobreza, é nele que

se representam os grandes papéis sociais, é nesse espaço privado que circulam os

cortesãos, os grandes senhores, príncipes e reis. Mas também, como miniatura de uma

cidade, é nos palácios que se movimentam os cavaleiros, os servidores – mordomos,

tesoureiros, coletores, capelães, criados, servos, enfim, toda a máquina administrativo-

burocrática e militar do reino, transformando-se o habitat de convívio privado num

espaço público.

Como um dos representantes máximos desses servidores, circula com naturalidade e

imponência Fernão da Silveira, o coudel-mor^8 , que será, aqui neste estudo, uma

referência ao tipo de poesia desenvolvida à época do Cancioneiro de Resende. Para bem

atuar nesse espaço de teatralidade, é necessário referir-se, nesta altura, a uma composição

de Fernão da Silveira. O poema é emblemático da exaltação do “eu”, e um breve

comentário sobre isso cabe aqui, já que se está tratando da questão do “fingimento” –

aparentar em detrimento do ser com fins de se conseguir o apreço dos convivas do Paço

e, sem dúvida, uma posição mais alta na escala cortesã. Silveira compõe, de forma

epistolar, um verdadeiro manual de como se vestir e se comportar nos salões áulicos,

visando sempre à aparência – sabendo vestir-se e tratar cortesãos e damas, o sobrinho

do poeta, a quem é dirigida a composição, alcançará o sucesso que qualquer nobre

deseja.

(^7) “Nas cortes de amor, o habitual era a imitação mais aproximada possível dos julgamentos verdadeiros, com demonstrações por analogia, o recurso a precedentes, etc. Muitos dos gêneros que se encontram na poesia dos trovadores se relacionam estreitamente com as queixas de amor, como por exemplo o castimen (reprimenda), a tenzone (disputa), o partimen (canção antifonal), o joc partit (jogo de perguntas e respostas). O fundamento último de todos estes gêneros não é o julgamento propriamente dito, nem um impulso poético espontâneo, nem sequer a pura e simples diversão social, mas sim a luta imemorial pela honra em questões de amor” (Huizinga, 1993, 140). Se aqui Huizinga se refere diretamente ao amor, o trecho serve bem para expandir o entendimento de que o “eu” medieval se mostra através desses gêneros, num espaço físico propício à teatralidade, como se procurou demonstrar. (^8) Oficial da casa real que cuidava “da criação dos cavalos castiços e de marca. Também provia e determinava as dúvidas sobre os acontecimentos e lançamentos dos cavalos aos que tinham contia ou fazenda a que fossem obrigados a manter cavalo, para com ele servirem na guerra” (Dias, 2003, 208).

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É para o palácio, então, que se voltam todas as atividades da realeza; é onde ela,

protegida pelo rei e por ele controlada, irá travar a batalha ainda silenciosa contra a

ascensão inexorável da burguesia. Mas é aí, nesse ambiente, que essa burguesia também

vai encontrar, na convivência com os costumes áulicos, os subsídios para sua

dominação; e essa virá aos poucos com o crescimento mercantilista engendrado pelas

grandes descobertas.

É em meio a essa sociabilidade cortesã, em que a etiqueta é minuciosa e polida, em que

os atos são mais artificiais do que naturais, pois o código da galanteria exige que a

espontaneidade seja reprimida em favor da mesura, é, afinal, nesse centro que nasce a

poesia palaciana. Denominação por si só explicativa, a poesia desenvolvida no

Quatrocentos português irá retratar, dessa forma e essencialmente, o modo de vida

aristocrático, requintado, protocolar e formalista, longe da realidade caótica que

atravessará o final da Idade Média, agora, abrindo as portas para uma renovação estética

e social que resultará no advento do Classicismo. Nas palavras de Jole Ruggieri, a

“cultura” palaciana nasce da combinação da nobreza com a realeza, preparando uma

nova sociedade:

La nobiltà che gradatamente era stata immobilizzata, si avvicinò al re facendosi palaciana , tutta si rivolse alle galanterie cortesi, ed ebbe la sua letteratura, che naturalmente fu letteratura di corte, in cui si continuava il libero canto cavalleresco dei secoli antichi, in qualche misura però modificato dalla tradizione castigliana e dallo spirito nuovo della prima Rinascenza (Ruggieri, 1931, 7).

É ainda nesse ambiente que Garcia de Resende, funcionário palaciano, compila quase

mil poemas na coletânea denominada Cancioneiro Geral , dedicada ao príncipe D. João,

futuro D. João III. Publicada em 1516, reúne poemas desde 1459. Provavelmente

baseou-se no Cancionero General , de Hernando del Castillo, na Espanha. Apresenta grande

parte dos poemas compostos por homens e mulheres e que eram criados no ambiente

ocioso das cortes do século XV. Os temas desenvolvidos eram os da vida simples e do

dia a dia da corte, mas também os de cunho religioso, amoroso, elegíaco, alguns com

apelo à epopeia. Já nele desenvolve-se uma poesia didático-moralizante que marca o

desconcerto do mundo próprio de momentos de transição. Nele, igualmente se

encontram ricas peças satíricas – de extenso número – burlescas e experimentais.

Da coleção, percebe-se claramente, flui a alma portuguesa. Quanto a ela, comenta Maria

Leonor Buescu: “Relevemos (...) alguns aspectos que nos parecem caracterizar o

sentimento do homem português da época, dividido entre o prazer e o desprazer, a

euforia e a disforia, de certo modo esmagado e perplexo perante o que Camões

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chamaria o ‘desconcerto do mundo’ e que fere o sentido ético de Sá de Miranda, entre

outros” (Buescu, 1990, 179). A esse comentário, acresça-se a questão da língua:

...constitui [o Cancioneiro Geral ] um alargamento das possibilidades expressivas da língua, utilizando sábia e subtilmente uma retórica já elaborada, instaurando os modelos de uma versificação que vai dominar (se não predominar) o lirismo português do século XVI (nomeadamente nas ‘Rimas’ de Luís de Camões) e do século XVII (pense-se em Rodrigues Lobo e numa parte significativa dos cancioneiros barrocos) ( idem, ibidem, 183 - 184).

Para além de registro histórico e ampliação de recursos linguísticos, a poesia é, para

Garcia de Resende, primordialmente social: é ela que faz reunir os poetas – homens e

mulheres – que, juntos, criam a sociabilidade necessária ao ambiente palaciano; é ela que

ameniza e traz harmonia e distração ao ambiente competitivo dos palácios. Fernão da

Silveira, por exemplo, virá a ser uma das figuras preeminentes desse tipo de poesia, pois,

pela reunião de poemas que se empreendeu de sua vasta produção, poder-se-á notar sua

desenvoltura no culto aos vários gêneros e subgêneros poéticos, com destaque para

aqueles poemas conclamatórios à participação dos convivas dos saraus cortesãos.

Nessa época, tendo a poesia se desligado do canto e da dança, próprios da criação

poética do Trovadorismo, foram os poetas palacianos instigados a escrever poemas cujo

ritmo se revelasse na própria linguagem. Isso possibilita novas composições. Toma a

poesia um caráter mais amplo e as peças têm maior elaboração poética, apesar da

predominância de um sentimentalismo mais pessoal – quase sempre influenciado por

Petrarca e Dante. Um dos poemas antológicos do Cancioneiro é a cantiga composta por J.

Rodriguez de Castel Branco, intitulada “Cantiga sua, partindo-se” – um exemplo de

poesia amorosa do dealbar da Idade Média, de cunho petrarquista, como se pode

apreciar na sua transcrição que segue:

Senhora, partem tam tristes meus olhos por vós, meu bem, que nunca tam tristes vistes outros nenhũs por ninguem. Tam tristes, tam saudosos, tam doentes da partida, tam cansados, tam chorosos, da morte mais desejosos cem mil vezes que da vida. Partem tam tristes os tristes, tam fora d'esperar bem que nunca tam tristes vistes

Medieval and early modern Iberian Peninsula Cultural History (XIII-XVII centuries) Cultura en la Península Ibérica Medieval y Moderna (siglos XIII-XVII) Cultura na Península Ibérica Medieval e Moderna (séculos XIII-XVII) Jun-Dez 201 5 /ISSN 1676- 5818 D e vós, senhora, e de mim

O usarei de m’aqueixar

N os males que nam têm fim,

A ntes vam ò galarim

J urando de m’acabar

L astimado com rezam.

A mores bem me fizeram

R esestir minha paixam,

I nteira satisfaçam

A a mester, pois me prenderam ( CG , IV, 672).^11

Já o tema do transcendentalismo não é de relevância na grande maioria das obras

compiladas no Cancioneiro , pois a sociedade austera escondida nos salões das cortes

medievais decadentes não era a preocupação dos poetas palacianos: querem mostrar o

lado prazeroso da palavra e do som, daí ser a poesia um jogo para eles. Quanto a isso,

comenta João Carlos Teixeira Gomes:

Já mostramos como é legítima a noção de fazer poético como um jogo, só não podendo entendê-la os que se aferram à ideia da poesia como registro da contemplação transcendente das coisas (...) a poesia é a linguagem que organiza o mundo (...) essa organização é uma organização de linguagem (...) passa primeiro pela palavra (...) Não há temas ‘inferiores’ ou ‘superiores’, não cabendo assim a ideia de que a produção reunida no Cancioneiro Geral perde exatamente pela mesquinhez dos assuntos poéticos (Gomes, 1985, 309).

Quando se analisa os poemas de Silveira e dos de seus companheiros, pode-se notar a

preocupação deles com o “fazer poético” a que alude Teixeira Gomes. Alguns desses

poetas – ao relevarem a crise moral por que passava Portugal, perplexo ante as

descobertas – cantarão suas decepções, através do “registro da contemplação

transcendente das coisas”; não obstante, não era a preocupação da maioria. Essa, ao

poetar, tratará dos assuntos “inferiores” e “superiores” no mesmo nível, através da

palavra.

Frequentemente, a crítica especializada no Cancioneiro de Resende comenta, também,

sobre o distanciamento dos poetas palacianos da realidade a que assistiam, já que há falta

  • ou exiguidade – de poemas que exaltem as grandes realizações portuguesas desde a

conquista de Ceuta, até a realização completa dessas na Índia, África e América. Há, sem

dúvida, poetas mais conscienciosos dos fatos reais; contudo, ao colocar em versos a saga

das Descobertas, fazem-no criticamente, como comentado no parágrafo antecedente,

(^11) As letras em destaque são grifos meus.

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antevendo, de certa forma, a decadência do império português. No artigo “Sentimento

heroico e poesia elegíaca no Cancioneiro Geral ”, Aida Fernanda Dias, quanto a isso,

comenta:

Os Portugueses, segurando bem firmes na mão o estandarte real e as espadas, haviam feito surgir a matéria indispensável ao aparecimento da epopeia. (...) Desde a segunda década do século XVI até 1572, surgem tentativas de fixar em metro as glórias pátrias, e o apelo de alguns espíritos mais lúcidos, que procuravam despertar a inspiração dos poetas, oferecendo-lhes, digamos assim, a matéria para as suas obras, acompanha tais tentativas ou é-lhes em alguns casos anterior (Dias, 1982, 269, passim ).

A epopeia lusitana iria surgir apenas com Camões; mas, no Cancioneiro, Dias antevê

alguns esboços rudimentares que chama de poesias heroicas. São elas um texto de Luís

Anriques dedicado à conquista de Azamor ( CG , II, 390) e outro de João Rodrigues de Sá

de Menezes dedicado à mesma conquista ( CG , II, 493). Fernão da Silveira, registre-se,

apesar do papel central nos relacionamentos políticos, tendo mesmo participado de

várias contendas engendradas pela monarquia avisina, não produziu nenhum poema que

exaltasse os grandes feitos ultramarinos dos portugueses.

Há, por outro lado, entre esses poetas do fim do medievo português, alguns que

expressam suas preocupações quanto à decadência dos costumes trazida pelas

conquistas. Duarte da Gama, por exemplo, critica a mania de seus conterrâneos em tudo

imitar quanto à vestimenta; Diogo Velho comparava Lisboa a uma mata onde tudo se

podia caçar; Sá de Miranda fazia apologia à vida do campo, pois execrava a metrópole

corrupta, assim como o faziam Álvaro de Brito Pestana e, sem dúvida, Gil Vicente em

seus autos moralizantes^12. Fernão da Silveira, pelo contrário, nas composições em que

registra fatos históricos e de costumes, deteve-se a dar um panorama da sociedade,

enfocando esses poemas nos nobres seus pares.

Mais um pequeno comentário, nada insignificante, se se pensar na terminologia

“cancioneiro”. Nenhum estudioso encontrou a música que pudesse ter sido produzida

pelos poetas cortesãos, ainda que, entre eles, se encontrassem músicos como o próprio

organizador, Garcia de Resende, e D. João de Meneses (Dias, 1978a, 18). Entretanto, há

que se reforçar que, dissociadas da música de acompanhamento, os próprios textos

poéticos vêm eivados de musicalidade.^13

(^12) Vejam-se exemplos e comentários sobre esses fatos em Carvalho, 1995, 76 passim. (^13) Massaud Moisés anota sobre a questão música versus poesia: “é fácil compreender que a libertação desejada acabou provocando uma verdadeira crise poética: que fazer com as palavras, subitamente postas em liberdade, independentes da música? Alguns procuraram ou encontraram o ritmo que lhes

Medieval and early modern Iberian Peninsula Cultural History (XIII-XVII centuries) Cultura en la Península Ibérica Medieval y Moderna (siglos XIII-XVII) Cultura na Península Ibérica Medieval e Moderna (séculos XIII-XVII) Jun-Dez 201 5 /ISSN 1676- 5818 FERNANDES, Geraldo Augusto. Fernão da Silveira: paradigma da criação poética de vanguarda no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. In: A nais V Encontro Internacional de Estudos Medievais , 5, 2003, Salvador: Quarteto, 2005. p. 341-346. __________. A poesia de Fernão da Silveira, no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende: mote para a convivência social. In: A nais I Ciclo Internacional e V Ciclo de Estudos Antigos e Medievais , 2005, Assis, SP: UNESP, 2005. [s.p.]. CD-ROM. Faculdade de Ciências e Letras, Núcleo de Estudos Antigos e Medievais do Departamento de História. FIGUEIREDO, Fidelino de. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. In: História Literária de Portugal – Séculos XII-XX. 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966, p. 102-108. GOMES, João Carlos Teixeira. Gregório de Matos, O boca de brasa. Um estudo de plágio e criação intertextual. Petrópolis: Editora Vozes, 1985. GOMES, Rita Costa. Os Indivíduos e os grupos (excerto). Os tempos da Corte (excerto). In: História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XV , Lisboa, p. 17-35, 1998. HUIZINGA, Johan. Homo ludens. Trad. João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1993. MELO E CASTRO, E. M. O Próprio Poético. (Ensaio de revisão da Poesia Portuguesa atual). São Paulo: Edições Quíron, 1973. (Série Crítica e História Literária). MOISÉS, Massaud. Humanismo (1418-1527). In: A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1981, ...12- 109... MORÁN CABANAS, Maria Isabel. Um curioso manual de etiqueta no Cancioneiro Geral: as trovas do coudel-mor Fernão da Silveira. IBERIA Cantat: Estudios sobre poesia hispánica medieval. Santiago de Compostela, Servicio de Publicacións e Intercambio Científico, p. 459-472, 2002. __________. Festa, teatralidade e escrita. Esboços teatrais no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. A Coruña: Biblioteca-Arquivo Teatral Francisco Pillado Mayor, 2003. __________. Traje, Gentileza e Poesia. Moda e Vestimenta no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Lisboa: Ed. Estampa, 2001. Colecção Leituras, 9. RECKERT, Stephen. From the Resende songbook. Londres: Queen Mary and Westfield College, 1998. RÉGNIER-BOHLER, Danielle. Ficções. In: História da Vida Privada. Da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 2. ROCHA, Andrée Crabbé. Garcia de Resende e o Cancioneiro Geral. 2 ed. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987. Volume 31. (Biblioteca Breve). RUGGIERI, Jole. Il canzoniere di Resende. Genève: Leo S. Olschki, S.A., 1931. SARAIVA, A. J. e LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 16 ed. Porto: Porto Editora, Ltda., [s.d.). SIMÕES, João Gaspar. Lirismo Medieval. In: História da Poesia Portuguesa (Das origens aos nossos dias, acompanhada de uma antologia). Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1955. Volume I, p. 109-125. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. A literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. __________. Essai de poétique médiévale. Paris: Seuil, 1972. (Collection Poétique).