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Este texto discute o papel da monarquia portuguesa no século xiv, sua influência na economia e a consolidação do estado nacional. Além disso, analisa a relação entre a liberdade individual e a democracia, explorando as ideias de autores como agostinho de hipona, tomás de aquino e john locke. O texto também aborda a importância da lei divina e humana, e a tensão entre elas.
O que você vai aprender
Tipologia: Exercícios
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Sumário
A categoria “patrimonialismo” já se tor- nou um lugar-comum na literatura política e sociológica. Ela procede da sociologia de Max Weber, na qual designa um dos tipos da dominação tradicional. Seu emprego como conceito-chave para a construção de uma interpretação da história brasileira deve-se à obra seminal de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, publicada pela primeira vez ao final da década de 1950. O argumento de Faoro pode ser resumi- do da seguinte maneira: a) a consolidação precoce do Estado nacional português no século XIV, num momento de decadência da nobreza territorial e de fragilidade da incipiente burguesia comercial, deu à Co- roa o protagonismo na vida nacional; b) nessa situação, toda a atividade econômica subordinou-se ao interesse e à vontade do Rei a partir da expansão africana e ultra- marina iniciada com a conquista de Ceuta; c) esse padrão apresentaria uma tendência inata à reprodução, manifestando-se nos momentos posteriores da história portu- guesa e brasileira; e d) ainda sofreríamos, no Brasil de hoje, as consequências dessa
Tiago Ivo Odon
Tiago Ivo Odon é Consultor Legislativo do Senado Federal, mestre em Direito e Políticas Públicas e doutorando em Sociologia.
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marca de origem, manifesta na debilidade do mercado, sempre dependente do Estado, e na ausência de uma administração públi- ca regida por normas impessoais. A interpretação de Faoro oferece uma explicação acabada para uma série de fe- nômenos percebidos como problemáticos na economia, na política e na sociedade brasileiras: a elevada carga tributária, a extensão dos subsídios governamentais, a confusão entre as esferas pública e privada, a ineficiência da burocracia, a recente crise ética do Congresso Nacional, tudo seria consequência do vício de origem lusitano. Cultura política e cultura democrática são conceitos elaborados por determina- das correntes da ciência política a partir dos estudos pioneiros de Almond e Verba sobre o caso alemão. Nesse país, o regime totalitário teria prosperado em razão de características culturais específicas ao povo alemão, notadamente a disciplina, a obediência automática e a desvalorização de processos deliberativos. No Brasil, na década de 1980, logo após a redemocratização, foram publicados os resultados de pesquisas de opinião sobre a atitude dos cidadãos brasileiros frente aos valores democráticos. Essas pesquisas registravam, de forma sistemática, a opinião desfavorável da maioria dos brasileiros sobre partidos, legislativos e legisladores; a preferência por resultados sem considera- ção dos processos; a tolerância com regimes autoritários. A conclusão reiterada apontava um déficit de cultura democrática no País, déficit capaz de comprometer inclusive o futuro da democracia a médio prazo. Há um problema na tentativa de es- tabelecer relações de causalidade entre características histórico-culturais genéricas e eventos concretos extraídos da história de um país. Quanto mais genérica é a carac- terística separada como variável indepen- dente e quanto mais ancorada no senso comum dos leitores, maior a capacidade de convencimento da relação de causali- dade imputada. O patrimonialismo, tal
como trabalhado por Faoro, atende a essas condições. Trata-se de uma característica genérica que satisfaz a autoimagem mais difundida entre os brasileiros. É capaz de gerar, portanto, um modelo explicativo com elevado poder de convencimento. No entanto, muitos autores defendem que tal modelo não produz explicações eficientes. Sua própria generalidade, que permite a aplicação quase universal, retira- ria sua força explicativa. No caso, o modelo permite ler a história a partir das premissas nele incorporadas, mas não permite ver, na história, nada diferente disso. Para outros, seria mais producente examinar o alegado déficit de valores de- mocráticos no Brasil a partir da escassez de democracia ao longo da nossa história. Durante a maior parte de nossa história, seja no período do Império, seja durante a República, a grande maioria da população foi excluída do direito de voto. A República Velha foi um regime de partidos únicos e fraude eleitoral sistemática. A República liberal de 1945-1964 ainda conviveu com a exclusão dos analfabetos do voto e com a prática generalizada do voto de cabresto. Regimes abertamente autoritários persisti- ram no Brasil por 29 anos, quase um terço do século XX (1937-1945 e 1964-1985).^1 O Estado democrático de direito tem apenas 20 anos no Brasil, e novas pesquisas, como as de José Álvaro Moisés e Alberto Carlos Almeida, continuam a apontar para o déficit de valores democráticos entre os brasileiros. Almeida (2007, p. 19) sugere que as características culturais da socie- dade brasileira apontam para uma tensão entre “o arcaico e o moderno”, ou seja, uma oscilação entre a hierarquia e a igualdade, entre a autoridade e a liberdade. A pesquisa de José Álvaro Moisés é inte- ressante porque tentou explorar a reação dos
(^1) As considerações feitas aqui sobre o patrimo- nialismo, até o momento, foram tiradas de estudo elaborado no âmbito da Consultoria Legislativa do Senado Federal por Caetano Ernesto Pereira de Araújo (Estudo no^ 1.445, de 2009).
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que derivam da lei divina. Portanto, o homem é livre por meio da lei divina. São Tomás de Aquino chega mesmo a dizer que os governantes da Cidade do Homem são “inferiores” ao “governante supremo”, da Cidade de Deus: “como a lei eterna é a ra- zão governadora no governante supremo, é necessário que todas as demais ordenações do governo que se encontram nos governa- dores inferiores derivem da lei eterna”. E repete frase de Agostinho: “nada é justo e legítimo na lei temporal que não derive da lei eterna” (AQUINO, 2001b, p. 39). Concebe-se uma margem de liberdade humana contra o Estado. Esse processo apenas se completaria com a redenção da vontade , que ganharia relevo após o “pacto de consentimento” de John Locke, quando a razão , imaculada na filosofia antiga e na filosofia cristã medieval, começaria a ceder lugar à vontade. Seria por meio da valoração da vontade que a razão ganharia sua prevalência político-jurídica sobre a autoridade na Idade Moderna, momento decisivo para o liberalismo (ODON, 2007, p. 337-355). No pensamento político medieval, ao contrário, as convenções humanas, como o contrato, são antes atos de razão do que de vontade. Tomás de Aquino (2001a, p.
destrua a sua vida ou que lhe retire os meios de conservá-la. Lei é obrigação, direito é liberdade; portanto, incompatíveis na mesma situação. Do direito natural Hobbes deriva a primeira lei natural: a busca da paz individual por qualquer meio. Hobbes subtrai Deus de seu arranjo político. Sua lei natural nada tem a ver com a lei natural (lei divina) de Tomás de Aquino. Na segunda lei natural que apresenta, Hobbes sepulta a ideia de razão como derivação de uma ordem independente da vontade humana, presente na filosofia agostiniana-tomista. Dessa lei natural fundamental, com a qual se ordena aos homens que busquem a paz, deriva a segunda lei, a de que es- tejam dispostos, quando outros também estiverem, a renunciar, na medida em que considerarem necessário, à paz e à própria defesa, ao seu direito a tudo e a se conten- tarem em ter tanta liberdade em relação aos outros quanto a que concederem aos outros em relação a si próprios. Assim, esclarece Hobbes, aquele que abandona um direito próprio ou o transfere não dá a ou- tro homem um direito que este último não possuía, pois não existe nada a que cada homem não tenha direito por natureza, mas limita-se a retirar-se do seu caminho para que ele possa gozar do seu direito originário sem ser impedido por ele ou por outrem. Essa é a ideia política base de liberdade negativa , ou seja, ausência de im- pedimentos externos. Essas transferências recíprocas de direitos geram o que Hobbes chama de “contrato” ou “pacto” (HOBBES, 2000, p. 114). Nesse arranjo, em que a convenção entre os homens escreve a lei racional, por meio do pacto, Hobbes (2000, p. 123, grifo nosso) funda a ideia de justiça , sua terceira lei natural: “ que os homens cumpram os pactos que celebrarem. [...] Nesta lei de natureza reside a fonte e a origem da justiça. [...] E a definição da injustiça não é outra senão o não cumprimento de um pacto”. O jus está no pacto, e não em Deus – “É impossível fa- zer pactos com Deus”, escreveu (HOBBES,
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2000, p. 118). Não se fala mais aqui no jus natural, que dá “liberdade a tudo”, mas no jus positivo, pactuado, que dá a liberdade necessária para a vida pacífica. A obrigação política, portanto, se justifica no pacto, no nomos , e não na physis. A ordem política deixa de se relacionar com a physis , a lei natural, a lei divina, a razão, e passa a se relacionar com o nomos , a convenção, a lei positiva, a vontade. As ideias posteriores de Locke, Rousse- au, Montesquieu, entre outros, são deriva- ções desse arranjo original de Hobbes, mas com uma importante diferença: o direito – a liberdade – é anterior ao contrato, à lei. O direito não se submete ou é limitado pela lei do monarca, como em Hobbes. A lei é que deve ajustar-se ao direito. Hobbes não vê os direitos a serem transferidos no seu contrato como direitos passíveis de serem arguidos contra o Estado constituído. Pelo contrário, são transferidos ao Estado! Ape- sar de tanto em Hobbes quanto em Locke o fundamento do pacto ser o mesmo, ou seja, a liberdade, em Locke não existe transfe- rência de direitos. Locke não falará de um pacto de submissão, mas de um pacto de consentimento. O objetivo da sociedade ci- vil é a preservação da propriedade, ou seja, os direitos à vida, à liberdade e aos bens, os quais se tornam oponíveis a qualquer ho- mem ou mesmo a qualquer autoridade que queira feri-los. Locke fornece a formatação final ao individualismo político, ampliando ainda mais a margem de liberdade idealiza- da por Hobbes. A partir de Locke, pode-se dizer, a ideia de sociedade ( iuris societas ) cede de vez à ideia de indivíduo. Em resumo, Locke (1998, p. 437) arre- mata: nascemos livres na mesma medida em que nascemos racionais. Ao contrário do pensamento político medieval, o bem não é dom de Deus: “A necessidade de procurar a felicidade é o fundamento da nossa liberdade” (Idem, p. 105). É possível perceber que os dois pensa- mentos políticos – o medieval e o moderno
a constituição do Estado: no primeiro, o Estado justo é a emanação da vontade do Criador, fundado na sua lex aeterna ; no segundo, o Estado justo é a emanação da vontade do homem, fundado num contra- to. No Estado medieval, a vida ética é a vida segundo Deus; no Estado moderno, segundo a convenção. O primeiro Estado se descobre ( physis ); o segundo se inventa ( nomos ). O primeiro é o Estado da neces- sidade; o segundo, da utilidade 3 (a livre criação da função estatal a partir de uma ordem privada).
O vínculo valorativo que equaciona a relação entre iuris societas e Estado é o que o liberalismo clássico chama de liberdade. Trata-se da liberdade referida por Locke, Montesquieu e Kant: liberdade é a liberdade de agir segundo leis , o que pode apresentar um sentido positivo e um negativo. Mui- tos autores, como Isaiah Berlin, Giovanni Sartori, Michelangelo Bovero, entre outros, traduzem essas duas perspectivas por meio das conhecidas expressões “liberdade po- sitiva” e “liberdade negativa”. Na precisa abordagem de Berlin, a ideia de liberdade positiva significa que eu sigo as regras que eu mesmo pactuei para ser livre (a forma- ção do “direito consciente” por meio do parlamento, conforme Kelsen). E a ideia de liberdade negativa significa dizer que “há fronteiras dentro das quais os homens são invioláveis”, que impedem, de forma abso- luta, a imposição da vontade do Estado ou da de um homem sobre outro. Disso resulta o princípio básico citado por Berlin (2002, p. 267): “nenhum poder pode ser considerado absoluto, apenas os direitos o podem”. Essa é a característica fundamental da iuris societas moderna. O Estado Moderno é fundado sobre a ideia de liberdade negativa. Esta é a liber- dade do liberalismo clássico, segundo o (^3) Termo usado por Tocqueville (2004, p. 148) ao estudar o contrato social norte-americano.
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A representação defendida pelo libera- lismo clássico era uma representação cen- sitária, que poderia filtrar a racionalidade da vontade geral. Stuart Mill até defende uma representação intelectual, preconizan- do que, diante da polarização entre dois grandes blocos – o dos proprietários e o dos trabalhadores assalariados –, o fiel da balan- ça deveria ser um terceiro grupo, as elites culturais, com o peso de seu voto sendo su- perior a 1. A democracia propriamente dita é um elemento estranho a todo esse processo, só tendo sido incorporada gradativamente a partir de meados do século XIX, com o alargamento do sufrágio e a multiplicação dos órgãos representativos. Nesse intervalo de tempo, temos a constituição do Estado brasileiro, com a vinda da família real no início do século. O Estado brasileiro foi fun- dado no momento liberal. A Europa ainda desconhecia o momento democrático. A tensão epistemológica que existe hoje entre a concepção de democracia e a de direito individual como liberdade contra o Estado pode ser hoje sentida nas Constituições. Numa Constituição como a brasileira, têm-se, de um lado, os direitos individuais (art. 5o), que representam a tra- dicional tutela das liberdades individuais (liberdade pessoal, política e econômica), em que vige a liberdade negativa clássica, e, do outro lado, os direitos sociais (art. 7 o^ a 11), que representam direitos de participa- ção no poder político e na distribuição da riqueza social produzida. De um lado, um Estado que não deve intervir; do outro, um Estado paternalista e intervencionista. Nas palavras de Gozzi (1993, p. 401), a forma do Estado oscila, assim, entre a liberdade e a participação. É o conflito irresolúvel entre liberdade positiva e liberdade negativa, já preconizado por Isaiah Berlin.
Como já colocado, o Estado brasileiro foi fundado, no início do século XIX, no momento liberal, quando a Europa ainda
desconhecia o momento democrático. Como percebeu Luiz Werneck Viana, as diferenças constituintes do indivíduo, no caso brasileiro, revelam a noção de inde- pendência (liberdade negativa) e não a de autonomia (liberdade positiva), que admite a submissão à lei desde que ela seja livre- mente aceita, tal como deriva do arranjo contratualista. Assim, o individualismo brasileiro, portador de uma consciência rústica de liberdade e apaixonado pelo seu interesse, não consagrou o princípio da liberdade positiva, em que a cultura do civismo poderia assentar-se (VIANA; CARVALHO, 2004, p. 206). Luiz Werneck Viana sugeriu uma nova ideia para explicar o desenvolvimento po- lítico-social brasileiro: o barroco, ou seja, a plasticidade entre o arcaico e o moderno. A Península Ibérica permaneceu prati- camente intocada pela Reforma Protestan- te, não produziu pensadores equivalentes a Hobbes ou Locke, não passou por qualquer surto de individualismo político e resistiu à teoria do contrato social fundada no in- divíduo (MORSE, 1988, p. 37). A Península Ibérica não passou pela revolução metafí- sica por que passaram países da Europa Central e a ilha inglesa, que redimiu a von- tade em relação à razão. A Escola Ibérica de Direito Natural, dissonando do direito natural anglo-saxão, permaneceu presa à metafísica tomista, com forte influência das filosofias de Francisco de Vitoria e de Fran- cisco Suarez. Tal Escola lançou as bases do dedutivismo que iria reinar na metodologia do direito ibérico (HESPANHA, 2003, p. 209), o que ainda hoje produz seus efeitos no direito brasileiro. Conforme Richard Morse, dois cami- nhos epistemológicos divergentes se de- senvolveram na Europa: a racionalidade formal-objetiva do tomismo e a raciona- lidade dialético-pessoal anglo-saxã. No primeiro, vai-se de um dado concreto a uma classe de coisas, para então se retornar para interpretar o dado. O Estado político tomis- ta é fruto desse tipo de racionalidade. No
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segundo, a discussão alimenta-se do “sim” e do “não” que surgem dos encontros entre pessoas distintas. O Estado político moder- no, fundado numa ideia contratualista da vida social, é fruto desse tipo de racionali- dade. No primeiro, a pessoa individual só é inteligível enquanto exemplo de um gênero ou regra geral; no segundo, as pessoas são únicas e idiossincráticas, pois, em vez de exemplificarem uma ordem geral, repre- sentam o não-eu do conhecedor. A “mente latino-americana”, escreveu Morse, tem uma visão “compreensiva e unificadora”, enquanto a anglo-americana é empirista (MORSE, 1988, p. 47,48). Isso vai ao encontro dos escritos de Ro- berto DaMatta sobre a sociedade brasileira. Segundo ele, embora a sociedade humana seja constituída de indivíduos empiricamen- te dados, o Brasil é uma sociedade que não tomou esse fato como ponto central de sua elaboração ideológica, e conclui que, no Bra- sil, se vive mais a ideologia das corporações de ofício e irmandades religiosas, com sua ética de identidade vertical, do que as éticas horizontais que chegaram com o advento do capitalismo (DaMATTA, 1997, p. 195,221). A racionalidade anglo-saxã trouxe várias consequências para o pensamento político: a relevância do consenso; o indivi- dualismo dos direitos naturais; a mudança da legitimação ética do Estado (de Deus para a convenção, da physis para o nomos ). Na Península Ibérica, no entanto, resistiu- se à ideia de conceber o Estado como um “artifício” (produto de um pacto entre in- divíduos), em choque com a ideia de arte ou ciência com causa remota em Deus. Ou seja, o pensamento ibérico ignorou a des- providencialização do Estado. Na teoria neoescolástica de Vitoria e Suarez, o Estado é um todo ordenado em que as vontades da coletividade e do príncipe se harmonizam à luz da autoridade divina e de sua lei na- tural, no interesse da felicitas civitatis (bem comum) (VITORIA, 1960, p. 118). Suarez buscou atualizar o tomismo, pro- pondo estabelecer relações entre razão, au-
toridade e crítica (PEREÑA, 1974, p. 20-22). Nesse sentido, sua filosofia proporcionou uma espécie de ecletismo entre o tomismo tradicional e a teoria do contrato social, com a tese de que a lei natural ( physis ) se atuali- za e se completa historicamente por meio do direito positivo ( nomos ), convenção de homens, estabelecendo uma participação e comunicação de vontades (divina e humana) (SUAREZ, 1974, p. 56,57), diferente da ideia tomista de participação do homem na razão divina (AQUINO, 2001b, p. 16). O Estado é uma instituição natural , pois a natureza exige o seu estabelecimento, e não uma corrupção de uma imagem ideal (Agostinho) ou o campo da correspondên- cia política entre a razão humana e a razão divina (Tomás de Aquino). No pensamento suareziano, a origem da sociedade política é o consenso, o que antecipa Locke, mas tal sociedade não é inteiramente artificial, mas locus de comunicação das razões humana e divina, respeitados seus limites e finalida- des. A lei civil não é dedução absoluta da lei natural, pois resguarda sua finalidade intrínseca de garantir uma ordem social específica entre os homens, de satisfazer as necessidades sociais do ser humano ( nomos ). Mas, ao mesmo tempo, o Estado é physis e, por isso, resguarda sua aura sacra – o jus ainda está em Deus. O Esta- do é provedor e civilizador e, ao mesmo tempo, deve ser limitado para não tolher a livre expansão das faculdades sociais do ser humano. Percebe-se, na filosofia de Suarez, uma tensão entre necessidade e utilidade.^5 Nesse arranjo, pessoas únicas e idiossin- cráticas, capazes de chegar a um consenso sobre a fundação do Estado, são totalizadas na lógica natural desse Estado, que compre- ende e unifica, e cada indivíduo singular conforma sua identidade à totalidade, e se diferencia na medida em que o Estado tutela a diferenciação.
(^5) Capítulo Terceiro da obra De legibus , de Fran- cisco Suarez (1971).
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elites fomentaram acerca das reivindicações populares era produto de sua associação ao radicalismo, à destruição da ordem pública e à liquidação da propriedade privada. Foi formado, no Brasil, um tipo de jurista e de político que repudiava a revolução, que cultivava o amor à liberdade acima de qualquer outro princípio e que encontrava numa ideia peculiar de contrato os funda- mentos da obediência política. Ao privile- giar a primazia do princípio da liberdade em relação ao da igualdade, projetou-se um tipo de político profissional ”forjado para privatizar conflitos sociais, jamais para ad- mitir a representação coletiva” (ADORNO, 1988, p. 239, 240). A cultura política brasileira está mais próxima de uma racionalidade liberal do que democrática, e, ainda assim, uma racio- nalidade peculiar, que oscila entre a auto- ridade e a liberdade, a razão e a vontade, a necessidade e a utilidade. Enfim, a cultura política brasileira expressa um contrato social suareziano, uma proposta barroca de contrato social, com pés no arcaico e no moderno, como denunciam as citadas pesquisas de José Álvaro Moisés e Alberto Carlos Almeida.
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