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Guias e Dicas
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A História do Barril de Amontillado e o Demônio da Perversidade, Slides de Literatura

Essa texto apresenta a história de montresor e fortunato, duas figuras italianas que se conheciam há muito tempo. Montresor, ofendido e desacatado por fortunato, planeja sua vingança. Fortunato, apaixonado pelo vinho, é convidado para a adega de montresor para ver um barril de amontillado raro e valioso. No entanto, montresor envenena o vinho e, depois de fortunato se embriagar, o encarceram e deixa-o morrer. A história é narrada por edgar allan poe, que também fornece uma breve biografia do autor.

Tipologia: Slides

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Ronaldinho890
Ronaldinho890 🇧🇷

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Coleção Aventuras Grandiosas
Edgar Allan Poe
O barril
de amontillado
e
o demônio
da perversidade
Adaptação de Rodrigo Espinosa Cabral
1ª edição
O_Barril_Demonio_Perversidade.p65 20/6/2005, 15:171
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Coleção Aventuras Grandiosas

Edgar Allan Poe

O barril

de amontillado

e

o demônio

da perversidade

Adaptação de Rodrigo Espinosa Cabral

1 ª edição

O Barril de Amontillado

O Barril de Amontillado

“CRÁPULA, porco, sujo, nojento.” As palavras de Fortunato ainda golpeavam minha cabeça. “Imbecil, DESCONJURADO, canalha!” Sentia cada sílaba como se fossem FALANGES de dedos firmes. Lembrava- me de sua boca grande soltando IMPROPÉRIOS e eles me irritavam. A simples recordação de suas ofensas me queimava o estômago e me fazia querer vingança. Vocês me conhecem bem e sabem que não sou homem de proferir ameaças. Meu objetivo era apenas um: vingança. Ameaçá-lo, exigir descul- pas ou entrar em bate-boca, nada disso iria me deixar em paz comigo mes- mo. Mas, para tanto, eu precisava ser calculista. Não poderia me expor a riscos. Deveria puni-lo e permanecer impune à justiça. Não seria certo se eu fosse castigado pela lei por tentar lavar minha honra. Da mesma forma, não seria certo esquecer as ofensas de Fortunato e perdoá-lo. Minha família tem a tradição de não levar desaforo para casa e Fortunato iria pagar muito caro por sua boca grande! Fazia parte do meu plano iludir meu alvo. Dei tempo ao tempo e planejei uma vingança detalhada. Para esfriar a cabeça, fiquei algumas semanas sem vê-lo. Enquanto isso ia desenvolvendo mentalmente o meu plano. Depois, fui aos poucos me aproximando dele. Tive que fazer caras e bocas e fingir ser seu amigo. Uma parte de mim tinha raiva só de se chegar perto da figura BONACHONA de Fortunato, mas meu objetivo final compensava o sacrifício e fazia com que eu aceitasse a situação. Dava-me um certo prazer imaginar que, se Fortunato lesse meus pensamentos, saberia que meus sorrisos se origi- navam da idéia de sua IMOLAÇÃO. Como quase todo italiano, Fortunato se dizia um conhecedor de vinhos. Falava com orgulho de suas qualidades. Na verdade, são poucos os italianos que realmente conhecem a alma de um vinho. A maioria aproveita a fama VINÍCOLA do país e, em situações propícias, como jantares, festejos e ban- quetes, ilude leigos, MOÇOILAS e milionários ingleses ou austríacos. Quanto a

❦ CRÁPULA: canalha, calhorda, libertino ❦ DESCONJURADO: ofendido, desacatado ❦ FALANGE: osso do dedo da mão ou do pé ❦ IMPROPÉRIO: insulto ❦ BONACHONA: com bondade, ingenuidade e paciência naturais ❦ IMOLAÇÃO: assassinato por vingança ❦ VINÍCOLA: relativo à vinicultura ❦ MOÇOILA: mocinha

Coleção Aventuras Grandiosas

meuamigo, devo dizer que Fortunato entendia de vinhos antigos e tinha a mim como um bom conhecedor de vinhos italianos. De fato, eu os aprecio e, na época, costumava adquiri-los em grande quantidade. Já tinha todo o plano mentalizado e fazia alguns dias que eu esperava o momento certo para pô-lo em prática. Durante o supremo delírio do carnaval, no final da tarde, encontrei meuamigo. Estava alegre e me cumprimentou com entusiasmo. Suas palavras vinham vestidas com o cheiro do álcool. Seu comportamento atestava que estivera bebendo a tarde toda. Diria até que estava engraçado, enfiado numa fantasia justa e listrada, com um chapéu CÔNICO cheio de GUIZOS na cabeça. Apertei sua mão e meus olhos brilharam com a possibilidade de iniciar minha vingança. — Tudo bem contigo, Fortunato? — Tudo ótimo, Montresor! — Fico feliz de ver que está bem animado hoje. Queria mesmo falar com você. É que essa manhã me entregaram um barril de vinho. Disseram que é AMONTILLADO... — Como é que é? — a música e seu estado não o deixavam ouvir direito. — Recebi um barril de amontillado! — O quê! De amontillado? Tem certeza? É muito raro! Ainda mais agora, no meio do carnaval... — Pois é. Eu também tenho dúvidas quando a veracidade dessa carga. Mas, mesmo assim, resolvi arriscar e comprei. Tentei encontrá-lo para tirar a dúvida, mas como não o achei, acabei comprando assim mesmo, para não perder a oferta. — Amontillado! Eheheheh. Acho que você comprou gato por lebre. — Será? Talvez sim, talvez não... — Ah, o amontillado... — ... mas por via das dúvidas, pensei em consultar o Luchesi. Acho que ele pode dar um parecer e... — Você está louco? O Luchesi é um italiano bruto! Não sabe a diferença entre um XEREZ e um amontillado! — Sempre ouvi comentários que ele e você são os maiores especialis- tas em vinho na cidade.

❦ CÔNICO: em forma de cone ❦ GUIZO: pequeno sino ❦ AMONTILLADO: tipo de vinho proveniente da cidade de Montilla, província de Córdova, na Espanha ❦ XEREZ: generoso vinho seco ou doce fabricado na província espanhola da Andaluzia

Coleção Aventuras Grandiosas

Seus olhos brilharam quando peguei a garrafa empoeirada de uma es- tante de madeira. — Vai nos defender da umidade — falei para encorajá-lo. Ele levou o gargalo aos lábios e deu uma golfada. O vinho faiscou em seus olhos e os guizos no seu chapéu se sacudiram. — Esse lugar é enorme — falou para mudar de assunto. — Os Montresors eram muito ABASTADOS. Herdei deles o gosto pelo vinho e algumas tradições... — Como era o BRASÃO DA FAMÍLIA? — O desenho de um pé humano pisando uma serpente, que lhe pica o calcanhar. — Qual é a DIVISA? —NEMO ME IMPUNE LACESSIT. Fortunato achou o lema bonito, enquanto minha imaginação fluía ao sa- bor do Médoc. Passamos em frente de uma parede de ossos empilhados, velhos barris e PIPOTES, nos confins da catacumba. Para encorajar meu convi- dado, resolvi pegá-lo pelo braço. Naquela região da catacumba, o salitre IN- FESTAVA o teto e as paredes feito um fungo. — Fortunato, estamos bem embaixo do leito do rio. A umidade aqui é NOCIVA! Vamos voltar antes que sua tosse ataque de novo. — Pára com essa frescura. Vamos em frente. Mas antes me passe o Médoc. Peguei um De Grave em outra estante, quebrei o gargalo com classe e alcancei a ele. Fortunato enxugou a garrafa de uma só vez. Seus olhos ar- diam com o álcool. Quando sorveu a última gota, abriu um sorriso e se livrou da garrafa. Escutei o barulho dos cacos contra as pedras úmidas do piso e olhei para ele buscando uma explicação para aquele ato. — O que foi? — perguntou. — Não conhece esse ritual? — Não. — Ué, você não pertence à irmandade? — Que irmandade, Fortunato? — Pensei que você fosse maçom. — Ah, claro. Sou sim. Não me lembrava desse ritual...

❦ ABASTADO: rico ❦ BRASÃO DA FAMÍLIA: insígnia que representa uma família de nobres ❦ DIVISA: lema, frase que simboliza a idéia ou o sentimento de um grupo social ❦ NEMO ME IMPUNE LACESSIT: ninguém me ataca sem ficar impune ❦ PIPOTE: pequena pipa ou barril ❦ INFESTAVA: dominava, tomava conta ❦ NOCIVA: prejudicial, perigosa

O Barril de Amontillado

— Você é maçom? Não acredito. Mostre o sinal. — Serve este aqui? — disse, pegando uma colher de pedreiro dentro de meu casaco. — Você tem uma colher aí dentro! Você deve estar de brincadeira! Você é mesmo surpreendente, Montresor! Mas vamos logo ver o amontillado! — Vamos lá! — disse eu, oferecendo o meu braço para que Fortunato se apoiasse pesadamente. Seguimos em frente. O corredor ficou um pouco mais estreito, o teto, mais baixo e o chão, mais úmido. Faltava SOBRIEDADE para Fortunato racioci- nar que apenas um barril pequeno passaria por aqueles corredores. Talvez, se não estivesse tão empolgado em SORVER o amontillado, pudesse pensar que não havia sentido em carregar um barril até o fundo da adega. Caso ele recla- masse da distância eu diria que havia reservado um lugar especial para aquela bebida, nos últimos recantos da adega. Mas, EMBRIAGADO, ele não demons- trou essa curiosidade. Chegamos numa CRIPTA, onde o ar era tão ruim que as chamas de nos- sas tochas ficaram reduzidas a brasas. Devido à escuridão, acho que Fortunato não notou duas enormes pilhas de ossos humanos nas paredes laterais. A parede à nossa frente, até pouco tempo, também escorava uma pilha de os- sos, mas eu os havia removido recentemente para executar meu plano, dei- xando apenas um pequeno monte ali por perto. — Fortunato, o amontillado está aqui. Mas, sinceramente, acho melhor a gente voltar. Amanhã eu falo com o Luchesi... — O Luchesi é um poço de ignorância — disse, dando um passo à frente na escuridão da sala e caindo na minha armadilha. A armadilha era uma reentrância na cripta com um buraco de um metro e vinte centímetros de profundidade que eu havia escavado para facilitar o plano. Com Fortunato caído foi fácil acorrentá-lo a duas pesadas argolas de ferro, presas ao chão de granito por oito grossos parafusos. — Eu dei várias chances a você. Mas sua ARROGÂNCIA e seu ar supe- rior o impediram de querer voltar. Agora se divirta. Passe a mão na parede e sinta o salitre. Sinta o piso frio e úmido. Sinta o escuro da solidão e do cativeiro. Ainda confuso com o acontecido, meuamigo disse com uma voz de espanto:

❦ SOBRIEDADE: estar sem o efeito de bebida alcoólica ❦ SORVER: beber ❦ EMBRIAGADO: ébrio, alcoolizado ❦ CRIPTA: galeria subterrânea onde se guardavam relíquias e se enterravam mártires ❦ ARROGÂNCIA: soberba, atrevimento, insolência

O Barril de Amontillado

Até hoje me dá prazer lembrar daquela cena, da fúria de meuamigo e de sua FRUSTRAÇÃO e conseqüente silêncio, quando ele desistiu de recla- mar e ficou quieto. Pude então retomar minha tarefa. Coloquei a sétima, a oitava, a nona e a décima camadas dos tijolos grandes e pesados. Já era meia- noite e faltava um tijolo para completar a última camada, quando uma garga- lhada vinda da reentrância quebrou o silêncio da cripta. — Eheheheheheheheh! Foi uma boa troca. Vamos rir muito por causa desse vinho lá em casa. Ehehehehehe. — O amontillado! — exclamei. — Eheheheheh. É claro, o amontillado. Mas agora já está tarde. Vamos voltar. Minha mulher e os outros devem estar nos esperando. Vamos embora. — Sim, nós vamos embora — menti com ironia na voz. — Pelo amor de Deus, Montresor! — implorou Fortunato. — Sim —pelo amor de Deus, — respondi com a mesma ironia na voz. Esperei para ver quais seriam suas próximas palavras, mas só recebi o silêncio. — Fortunato! Não houve resposta. — Fortunato! Como ele não respondia, resolvi jogar uma tocha pelo buraco do único tijolo que faltava. Ouvi um balanço dos guizos do chapéu. Sorri e rapidamente coloquei o último tijolo no muro. Meuamigo ficou encerrado no fundo da cripta e a parede pesada separava meu ato da realidade. Depois, tranqüilamente, repus a pilha de ossos contra a parede e já faz cinqüenta anos que ninguém os tirou de lá. IN PACE REQUIESCAT!

❦ FRUSTRAÇÃO: decepção ❦ IN PACE REQUIESCAT: descanse em paz

Coleção Aventuras Grandiosas

Epílogo

Ao terminar esta leitura, feche o livro e feche seus olhos. Imagine que por um instante você é Fortunato, sozinho, embriagado e emparedado. Pense na sua vida, agora que ela parece ter chegado ao fim. O que você mudaria? Você se arrepende de algo? O que gostaria de ter feito, mas não foi possível? Se pudesse sair da prisão de Montresor quais seriam as primeiras coisas que faria? Quem gostaria de ver e de abraçar? O que falaria para as pessoas que você ama? Abra os olhos. Aproveite que está vivo e livre, e ponha em prática seu plano de viver sua vida da melhor forma possível.

❦ EPÍLOGO: conclusão

Coleção Aventuras Grandiosas

  1. O Julgamento do Barril de Amontillado. Na condição de juiz, seu professor irá dividir a turma em três grupos: A) alunos que adoraram a história; B) alunos que odiaram a história; C) alunos que se mantiveram neutros a respeito da história. O grupo B terá a tarefa de criticar a história, apontando defeitos e pontos negativos. O grupo A fará a defesa da história. O grupo C agirá como júri, votando e dando um parecer decisivo sobre a “condenação” ou “absolvição” da história, se ela pode ou não ser recomendada a outros leitores.

  2. Os personagens diziam ser membros da maçonaria. Faça uma pesquisa sobre essa sociedade.

  3. Forme um grupo de três ou quatro alunos e reescreva o final da história em no máximo duas páginas.

  4. Cada grupo deve ler sua história. Após a leitura os demais grupos devem decidir qual é a história mais interessante.

  5. Você gostaria de provar o Amontillado dos “Montresor”?

O Demônio da Perversidade

O DEMÔNIO DA PERVERSIDADE

Antes de contar a minha história, preciso fazer algumas considerações sobre o que resolvi chamar de Demônio da Perversidade. Em sua busca para descobrir quais teriam sido as intenções de Deus ao criá-lo, o homem acabou por se analisar e chegou às seguintes conclusões: como Deus lhe deu órgãos digestivos, é preciso que o homem se alimente para manter seu corpo. Essa necessidade impulsiona o homem como o chico- te impulsiona o cavalo e, movido por ela, o homem come. Com a energia proveniente da comida, o homem transforma o seu meio. Deus também pôs no homem acessórios para que ele se reproduzisse e continuasse sua existên- cia terrestre. A mente humana também foi outro presente divino e, com ela, o homem foi capaz de seguir PRECEITOS morais e intelectuais. Tal pensamento teria sido mais exato se o homem tentasse deduzir as intenções divinas a partir daquilo que o próprio homem faz, e não a partir de suas suposições sobre o que ele acha que Deus quer que ele faça. Se já é difícil para nós entendermos Deus em suas obras visíveis como os grilos, as girafas, as montanhas, as estrelas, as marés... como será possível tentar enten- der os pensamentos e as intenções de Deus ao criar as coisas que criou? Posteriormente, a FRENOLOGIA admitiu a perversidade como uma ca- racterística congênita, primitiva e paradoxal de boa parcela da raça humana. Como se, ao nascer, já estivéssemos condenados pela perversidade. Todos nós, mais cedo ou mais tarde, acabamos ATORMENTADOS por vozes inter- nas, pensamentos repetitivos que vêm de nosso interior e que causam a nossa CÓLERA. Essa cólera, essa loucura mental muitas vezes só precisa de uma faísca, uma breve idéia para virar um impulso, para que esse impulso se converta em desejo e o desejo, em vontade. A partir daí, a vontade se torna uma ÂNSIA incontrolável que, infelizmente, é satisfeita. Digo infelizmente porque, quase sempre, satisfazer nossos instintos primitivos não é algo de acordo com o sistema moral e social em que vivemos... Quase sempre isso nos causa transtornos, REMORSOS e MORTIFICAÇÕES.

❦ PRECEITO: ensinamento, norma ❦ FRENOLOGIA: teoria obsoleta que estudava o caráter e as funções intelec- tuais do homem, tendo como base a configuração do crânio ❦ ATORMENTADO: que sofre tormentos, aflições ❦ CÓLERA: impulso violento ❦ ÂNSIA: aflição, angústia ❦ REMORSO: inquietação da consciência ❦ MORTIFICAÇÃO: sofrimento, aflição

Coleção Aventuras Grandiosas

Essas crises, tão cruciais para um ser humano, nos arrebatam num instante e exigem decisões rápidas, energia e ações imediatas. É como nos vermos numa fuga e, subitamente, nossa estrada acaba em um preci- pício. A primeira idéia, a de pular, nos causa medo, nojo, receio, angústia. Contudo, nossos inimigos se aproximam e começamos a analisar melhor o abismo. Começamos a traçar uma rota de fuga no ar. Imaginamos que aquela é a única saída, mesmo que não haja nada para nos deter. Então, empurra- dos pelo espírito da perversidade, nós cometemos a loucura porque no fundo sabíamos que não deveríamos cometê-la. A perversidade nos tira do sério e reduz nosso princípio inteligível a MIGALHAS. Desculpem minha demora e minha filosofia, mas precisava tentar explicar por que me encontro encarcerado nesta cela reforçada. É sobre isso que quero falar. Ouçam minha história e vão entender por que me encontro agora trancado numa cela fria, com GRILHÕES nos punhos e tornozelos. Acredito que nenhuma aventura humana, nenhum crime, nenhu- ma façanha tenha sido tão bem planejada e executada quanto a minha. Durante meses dediquei todo o meu tempo pensando em uma forma de executar minha proeza. Fiz desenhos, cálculos, li livros, passei horas imaginando situações e descobrindo suas falhas. Quando era possível, eu as solucionava; se não fosse possível reparar as falhas, abandonava o plano e partia para a mentalização de outro modo de eliminar meu oponente. Até que li num romance francês sobre a morte acidental de uma personagem chamada Madame Pilau, por uma vela envenenada. Pensei e repensei sobre aquele DELITO e após MINUCIOSO estudo, re- solvi adotá-lo. Foi preciso aprender a envenenar uma vela e armar uma forma de colocá-la no CASTIÇAL de minha vítima. Para tanto, armei uma visita cor- riqueira na qual comemos bolinhos, conversamos e tomamos chá. Quan- do minha vítima foi ao banheiro, SORRATEIRAMENTE entrei em seu apo- sento e substituí a vela. Os demais fatos decorreriam naturalmente, uma vez que minha vítima adorava ler deitada em sua cama e que seu quar- to era estreito, pequeno e com muito pouca ventilação.

❦ MIGALHA: resto ❦ GRILHÃO: corrente, algema ❦ DELITO: crime, fato punível pela lei ❦ MINUCIOSO: detalhado ❦ CASTIÇAL: objeto usado para apoiar velas ❦ SORRATEIRAMENTE: com extremo cuidado e esperteza

Coleção Aventuras Grandiosas

No começo gostei, era como um troféu. Como se eu tivesse ganho o prêmio do crime perfeito. Sim, o crime perfeito que muitos dizem ser uma mentira, uma ficção, era agora um segredo meu, uma conquista e uma satisfa- ção pessoal. Mal sabia eu que aquelas duas palavras seriam a minha mais perfeita ruína... Nos dias seguintes a satisfação circulava por todos os poros de meu ser. Lembro-me de amigos indo me visitar para informar da morte de meu parente ilustre. Lembro-me da minha expressão FORJADA, ao ouvir deles que minha vítima havia morrido em paz, de morte natural durante o sono. Lembro-me de ter inclusive LACRIMEJADO! Sem saber, eu era um ator e dos bons, afinal havia conseguido LUDIBRIAR várias pessoas com minha ENCENAÇÃO. Essas memórias me dão, até hoje, uma sensação de conquista e de superioridade que estariam completas se não fosse a existência do Demônio da Perversidade. Engana-se quem pensa que o demônio tem chifres. Está errado quem acredita que ele anda por aí a espetar as pessoas com o seu TRIDENTE. Não sabe nada da vida quem acha que ele vive embaixo da terra, num inferno de labaredas. É até engraçado pensar que, para muitos, o “demo” tem pele vermelha e uma cauda pontiaguda. Sabe por que quem pensa as- sim está errado? Porque o demônio não tem aparência nenhuma. Nem corpo, nem nada. Porque o demônio mora dentro de nós. Dentro de nosso próprio cérebro. Talvez seu sobrenome seja consciência, talvez seja moral, não sei. Sinceramente, meu espírito acadêmico anda cansado para tais filosofias. Prefi- ro chamá-lo apenas de Demônio da Perversidade, a criatura que me trancafiou nesta cela de condenado. Durante anos eu vivi em paz e alegria com o meu crime, com a minha riqueza e com meu parente morto, mas o demônio é ARDILOSO. Ele sabe esperar, ele aguarda seu momento de fraqueza e então começa a PERTURBÁ- LO. Começou de leve, aos poucos, com breves INSINUAÇÕES, apenas com lampejos, com a frase ESTOU SALVO. Mas, com o passar dos dias, das sema- nas e dos meses, foi crescendo numa OBSESSÃO perseguidora. Primeiro eram

❦ FORJADA: inventada, maquinada ❦ LACRIMEJADO: choramingar ❦ LUDIBRIAR: enganar, burlar ❦ ENCENAÇÃO: fingimento ❦ TRIDENTE: cetro com três dentes ❦ ARDILOSO: astucioso, sagaz ❦ PERTURBÁ-LO: incomodá-lo ❦ INSINUAÇÃO: algo que se dá a entender de modo sutil ❦ OBSESSÃO: pensamento ou impulso persistente ou recorrente

O Demônio da Perversidade

mínimas as vozes, depois seu volume foi aumentando e, por fim, eram várias vozes martelando minha cabeça repetidamente com o coro: “ESTOU SALVO” “ESTOU SALVO” “ESTOU SALVO” O meu maior troféu, a minha glória pessoal, a minha grande façanha se tornou um INCÔMODO sem precedentes. Um demônio perverso que me per- seguia onde quer que eu fosse. Que não me deixava dormir, nem me alimentar, nem fazer minha higiene. Se eu corresse ele corria atrás, ou melhor, dentro de mim. Se eu ficasse parado a sensação era de descontrole. Era impossível trabalhar ou me divertir. Resumindo: era impossível viver! A cada segundo que passava, o refrão “ESTOU SALVO” “ESTOU SALVO” “ESTOU SALVO” afundava seus caninos em meu cérebro. Passei a falar sozinho, para que minha voz me distraísse de minha voz interior. É óbvio que as pessoas percebiam e se entreolhavam ou me olhavam com ares críticos. Para não ficar malfalado, passei a cantar, na esperança de que minha cantoria me trouxesse alívio. Só que nunca fui um bom cantor, além disso tinha vergonha de cantar na presença de outras pessoas. Minha situação ia piorando a cada dia. Por isso eu tentava me distrair no campo e na floresta. Lá meus cabelos e minha barba cresceram, mas depois de algumas semanas a vida campestre não satisfazia mais o meu ser e não me dava mais paz. Tive que voltar para a cidade. Era uma tarde quente, estava caminhando pelas ruas do centro, tentan- do me distrair das vozes, quando a perversidade dominou minha boca e co- mecei primeiro a balbuciar lentamente: — Estou salvo. Estou salvo. E depois a murmurar baixinho: — Estou salvo. Estou salvo. Antes que pudesse reagir eu já estava falando e logo gritando aquelas palavras curiosas que poderiam pôr em jogo a minha liberdade assim que alguém me perguntasse: — Afinal, de que é que você está salvo? Por isso comecei a correr. Pretendia me REFUGIAR novamente na zona rural da cidade ou em alguma floresta, onde ninguém me escutasse. Mas o

❦ INCÔMODO: transtorno, dificuldade ❦ REFUGIAR: esconder, proteger