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Este artigo explora a relação entre a entrada em um trabalho de campo com pomba-gira e as exigências do termo de livre consentimento esclarecido (tlce) pelo comitê de ética da pesquisa. O autor reflete sobre as perspectivas de pomba-gira em relação às relações construídas entre as pessoas, os desejos, os acertos e os fazeres na gira. O texto descreve a experiência do autor em fazer campo com dona maria mulambo, a pomba-gira de babalorixá david moura, e o processo de obter permissão para realizar uma pesquisa sobre as pessoas e as pomba-giras e seus desejos.
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Tipologia: Slides
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Nos caminhos de Pomba-gira: Notas sobre trabalho de campo e comitê de ética na encruzilhada Humberto Manoel de Santana Jr. (PPGCS/Unicamp) Este artigo tem como foco a relação entre a entrada no trabalho de campo com a Pomba-gira e as exigências de Termo de Livre Consentimento Esclarecido (TLCE) pelo comitê de ética da pesquisa. Partindo da reflexão da pesquisa de campo para compreender a perspectiva da Pomba-gira sobre as relações que as pessoas constroem acerca dos (des)encontros entre os quereres , os fazeres que envolvem as vivências na gira^1 e os acertos^2 que são construídos para efeitos pragmáticos. Por algum tempo ouvi histórias de pessoas que levei para se consultar com Dona Maria Mulambo, e percebia que existia um choque entre os quereres. Para dar início ao trabalho de campo fui a uma gira de Dona Maria Mulambo, no bairro da Pavuna, na cidade do Rio de Janeiro. Dona Maria Mulambo é a Pomba-gira que vem em terra^3 no Babalorixá David Moura. O Babalorixá David Moura é o sacerdote do terreiro Ilé Axé Obá Ti Ogun, do qual sou filho de santo, situado no Bairro Valverde, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. A gira não acontece no terreiro, pois é realizada nos fundos da casa do Babalorixá, onde Dona Maria Mulambo está assentada, no Bairro da Pavuna, no Rio de Janeiro. Chegando ao local comecei a limpar junto com meus irmãos de santo para que pudéssemos começar gira. Limpamos a frente do quarto de Dona Maria e tiramos as folhas secas que ali se encontravam. Retirei as bebidas, as taças e os assentamentos^4 dela e de Seu Pinga Fogo para limpar o seu quarto. Limpei cada garrafa, cada taça, os cinzeiros e a cuia de Seu Pinga Fogo. Coloquei cada coisa em seu devido lugar, do lado esquerdo as bebidas, cuia de Seu Pinga Fogo e do lado direito as bebidas, taças, perfumes de Dona Maria. Nesse dia eu tinha levado uma garrafa de licor de marula para presenteá-la por um pedido feito e conquistado. Levei também um champagne, pois havia sonhado com ela bebendo (^1) Cerimônia ritual de chamada das Pomba-giras onde ela dança, canta e dar consulta. (^2) Tipos de arranjos ou acordos feitos entre as pessoas e as entidades. (^3) A entidade ocupa o corpo do seu cavalo. (^4) Grupo de objetos onde a entidade ou Orixá são assentados tornando-se seu corpo.
champagne e comemorando comigo. Mesmo sabendo que Dona Maria não gosta de champagne, eu levei. Depois de limparmos o local em volta do quarto e o quarto dela, começamos os preparativos para o início da gira. Dando início a gira , o Babalorixá^5 saúda o seu Exu Pinga Fogo e dona Maria Mulambo cuspindo cachaça nos seus assentamentos , acompanhados do coro em resposta dos presentes na saudação Laroyê^6 e o som dos atabaques. O Babalorixá pega um prato com quatro búzios para confirmar a presença dos Exus. Seu Pinga Fogo respondeu de imediato, mas dona Maria Mulambo demorou para responder. Já havia muito tempo que o Babalorixá não fazia a gira para dona Maria, e ela seguiu sem responder. O Babalorixá jogava e perguntava: Você não vem minha velha? Enquanto isso seguia se comunicando com ela em silêncio, fazendo as suas perguntas, tentando fazer acertos e repetindo o jogo de búzios esperando a sua confirmação. Depois de uma espera de cerca de cinco minutos ela confirmou que estaria presente. As Pomba-Giras e Exus são entidades muito presentes nas vivências da umbanda e fazem parte da linhagem do povo de rua. O povo de rua tem como forte característica a relação com os desejos, tanto das pessoas que a procuram quanto os seus próprios. São espíritos de malandros e prostitutas, sujeitos que teriam ocupado espaços socialmente marginalizados, o povo de rua é então, conhecido por aparecer quando e onde deseja, e por ter a capacidade de interferir de maneira inesperada e temida, e por isso são chamados para “abrir os caminhos” resolvendo problemas difíceis. (CARDOSO, 2007). São essas entidades que facilitam a comunicação entre o mundo visível e invisível, entre os desejos dos Orixás, das pessoas que se consultam com elas, e em meio a essa encruzilhada, alimenta também os seus desejos através do corpo que ocupa durante as giras. Desse modo, as relações são construídas, onde os desejos, quereres, fazeres e acertos em diálogo fazem a roda girar. Começamos a tocar e cantar para chamá-la. Nesse momento estávamos no atabaque eu e mais um ogã^7 , só mais tarde chegou o terceiro ogã. Diferente do momento dos búzios, dona Maria já começou a dar o ar da graça em alguns momentos. O (^5) Sacerdote conhecido popularmente como Pai de Santo. (^6) Saudação para Exu e Pomba-gira. (^7) Título e cargo atribuído para quem deve proteger e auxiliar a casa de culto, dentre as suas funções estão tocar os atabaques para chamar as entidades.
em que as partes que dançam ocupam o mesmo território visível, mas que estão em contato compondo outro corpo. É um constante processo de desterritorialização e reterritorialização de um corpo-território (SODRÉ, 2002), mas também desterritorialização e reterritorialização (DELEUZE & GUATTARI, 1996 ) da encruzilhada enquanto território existencial (ANJOS, 2006). As religiões de matriz africana foram construídas em meio ao processo de desterritorialização e reterritorialização dos africanos que foram trazidos para o Brasil, somente com seu corpo-território, onde o terreiro foi se constituindo numa África qualitativa (SODRÉ, 2002) que sobrevive através do poder criativo existente nas religiões de matriz africana (SERRA, 1995). O poder criativo é parte fundamental nessa vivência onde tudo é feito. Segundo Oro e Anjos (2009) o verbo mais importante dessa cosmologia é o “fazer”, uma vez que a cabeça dos fiéis são feitas , assim como o próprio Orixá e ambos se fazem ao mesmo tempo no presentear-se das oferendas. Desse modo, os fazeres se apresentam como necessários para cada passo da constituição da pessoa, assim como para a construção das relações entre as pessoas e as divindades, e também na retirada dos obstáculos dos caminhos. O fazer é uma relação construída mutuamente, e por isso é necessário que cada um faça a sua parte. É a composição de um mundo em que o mundo visível e o invisível fazem contato, e dessa forma são construídos os acertos para que o equilíbrio faça parte desse encontro. É uma constante nas religiões de matriz africana, uma vez que tudo é feito , sempre se pode fazer acertos com os deuses quando suas exigências são rigorosas demais (GOLDMAN, 2005), assim como também se pode negociar com as demais entidades e espíritos. Os acertos não podem ser confundidos com negociação, uma vez que não podemos pressupor que as partes estão em igualdade na negociação. Dessa forma, acertos são acordos construídos a partir de aconselhamentos, seja por entidades ou Orixás, para que os obstáculos sejam retirados do seu caminho, e assim poder ter seus caminhos abertos. É uma forma de estabelecer o equilíbrio entre o orun e o aiyê , sendo que as entidades e Orixás apresentam vantagens, pois conhecem melhor o seu odu^10. Os (^10) Destino que apresenta seu caminho a partir da sua ancestralidade desde o seu nascimento.
acertos são feitos através de uma filosofia política que são construídos numa modalidade própria de jogos com as diferenças (ANJOS, 2006). Devemos levar em consideração que esses acertos não acontecem de forma simétrica já que as entidades é quem vão ditar o ritmo dos acertos , dependendo de que o acordo seja feito da forma recomendada, mas as pessoas só vão saber se o acerto deu certo a posteriore. Nessa encruzilhada que envolve esses quereres , os fazeres se apresentam desde a limpeza do seu quarto, de sua área, pois dessa forma estamos abrindo os caminhos, tirando os obstáculos para que a Pomba-gira venha em terra. Assim também os fazeres se apresentam quando a Pomba-gira aconselha o que se deve fazer, que pode ir desde a banhos de folhas até a um ritual mais elaborado. No jogo dos quereres e fazeres os feitiços são utilizados para alcançar os objetivos, começando pelo cantar dos pontos. Ela começa os fazeres e as pessoas devem continuar seguindo as recomendações da Pomba- gira, que pode ser um banho, um simples ebó^11 e/ou até rituais mais elaborados. Para pensar as relações entre quereres e fazeres devemos levar em consideração que alguns acertos precisam ser feitos para que as partes envolvidas entrem em acordo. Para compreender os acertos temos a encruzilhada como conceito utilizado para pensar as diferenças, propondo um jogo com a alteridade elevando a condição de uma expressão de filosofia das diferenças (ANJOS, 2006). É a encruzilhada a noção que atravessará essa pesquisa, como forma de expressão da filosofia das diferenças, pois é dessa noção que podemos pensar o (des)encontro possíveis entre o orun e o aiyê , assim como onde os acertos são firmados e confirmados, propondo um jogo constante com a alteridade. É lidando com esse outro que está em outro mundo que não o visível que podemos fazer a alteridade dançar entre os mundos envolvidos. A encruzilhada é o território dos Exus e Pomba-gira, sendo pontos de encontro e também possibilidades de escolha podendo abrir ou fechar esses caminhos em busca da realização dos quereres. Dona Maria Mulambo, então, se fez presente na encruzilhada e com a ajuda de uma das pessoas presentes para a gira vestiu sua roupa. Dessa vez, diferente de todas as outras, ela se vestiu fora do seu quarto. Depois de vestir sua roupa voltou para o quarto e saudou os presentes com um ponto de boas vindas: Hoje é dia de festa, inferno acende (^11) Trabalho ou oferenda feita para alguma entidade ou Orixá.
Dona Maria olhou para mim e para minha companheira, e disse: Vocês estão formosos. Tudo lindo. Estou gostando de ver. No momento da minha consulta, entreguei as bebidas que levei de presente por uma conquista alcançada. Dois dias antes da gira sonhei com dona Maria abrindo um champagne e comemorando comigo, o que me deixou pensativo, pois dona Maria não gosta de champagne. Quando entreguei o champagne, a mesma confirmou e disse que era para comemorar. Durante a consulta pedi autorização a dona Maria para fazer a pesquisa em Brasília sobre a relação das pessoas e as Pomba-giras com seus desejos, acertos e fazeres. Ela me respondeu: vai me homenagear? Que formoso! Vai ser formoso. Eu continuei, te peço autorização e proteção. Dona Maria disse: pode ir, vou tá com você. O patrão quer que você não desvie o caminho. Siga seu caminho e vai conseguir o que quer. Seus caminhos estão abertos. Você vai saber identificar o lugar certo. Você já conhece como é. A partir dessa conversa com Dona Maria percebi que ao invés de desejos, é utilizado o querer das pessoas, tanto pela Pomba-gira quanto as pessoas que se aconselham. Quando pedi autorização a dona Maria Mulambo que ocupa o corpo do Babalorixá David Moura foi pelo motivo de já fazer parte do terreiro desse sacerdote. Por fazer parte desse terreiro, sou filho de santo desse Babalorixá, e tenho obrigações a cumpri que vão desde limpar a área e o quarto de dona Maria Mulambo passando por tocar para estabelecer a comunicação entre os mundos nessa encruzilhada. Nesse sentido pedi a autorização a essa Pomba-gira é pedir também proteção para adentrar as encruzilhadas. Comecei a procurar centros ou terreiros em Brasília. Fui num terreiro na região de Sobradinho com duas mulheres que eu tinham sido apresentado por uma colega antropóloga que pedi indicações de quem frequentava, pois estava interessado em fazer campo em Brasília. Foi justamente num dia de gira para Exu e Pomba-gira. Quando estava a caminho fiquei na expectativa de ser esse terreiro para começar o campo. Uma das mulheres que foi comigo virou na Pomba-gira e se juntou as outras e os Exus que ali estavam. Depois fui para um samba com uma das mulheres que me levou e uma amiga dela que também estava na gira. Elas seguiram falando muito sobre Pomba-gira, mas não era o que eu queria. Eu estava procurando um campo em que a Pomba-gira me apresentasse sua perspectiva.
Segui procurando contatos que não se concretizavam em giras. Tentei contato novamente com as duas mulheres que me levaram, mas o centro dela estava com as atividades paradas, sem giras , e quando acontecia algo era para resolver questões internas. Continuei a procura sem muito sucesso. Mais de dois meses sem conseguir o que eu queria, conheci um homem no Baianinho’s Bar, no Riacho Fundo I, que quando me viu antes de beber jogar um pouco de cerveja no chão, me falou: não sei o que é essas coisas, mas minha chefe que gosta. Perguntei se ela frenquentava algum terreiro, pedi para ele falar com ela, e se ela autorizava ele me passar seu contato. No mesmo momento ele ligou para ela e me passou o telefone. De imediato ela autorizou que me passasse o contato, e já me convidou para uma gira de dona Maria Padilha que acontece quinta-feira a cada duas semanas, na região do Guará II. Por mais que eu tivesse conseguido diversos contatos para frequentar giras, foi justamente num bar, território do povo de rua, que encontrei o caminho em meio a essa encruzilhada. Durante mais dois meses aconteceram desencontros, e não pude comparecer na gira. Até que pude comparecer no final de outubro. Cheguei e ainda não tinha começado. Nesse dia conheci a mulher que era chefe do homem que encontrei no bar. Os ogãs não tinham chegado e a mulher avisou a dona Maria Padilha que eu era ogã. Ela pediu para que pegasse o atabaque. Dentre tantas coisas, dois momentos foram marcantes. O primeiro quando pedi autorização para fazer a pesquisa e dona Padilha me respondeu: porque você pede autorização? Não sei pra que você precisa de tanta autorização. Dona Maria Mulambo mesmo vai te responder sobre ser aqui ou não. Você vai ouvir dela. O segundo foi no final quando te disse que voltaria lá, e ouvi a seguinte resposta: você vem se quiser. Pra mim basta ter minha cerveja, minha champagne e meu pito que já estou satisfeita. Não preciso de gente. Foi quando percebi que denominava de desejo, mas não era só desejo que predominava no campo. Além do desejo presente no corpo e nas falas de dona Padilha, aparecia também os quereres. Enquanto o desejo é um processo de produção, onde existe uma alegria imanente como se ele preenchesse a si mesmo e suas contemplações, o que não implica falta alguma (DELEUZE & GUATTARI, 1996), o querer se apresenta enquanto um processo em movimento que aponta a falta de algo que necessita ser conquistado para que a alegria se faça presente e um vazio seja preenchido.
acertos com parâmetro nas formas que a Pomba-gira apresenta, mas também levando em consideração em que termos podem ser construídos os acertos. É uma encruzilhada entre vários elementos para que no ponto de encontro o acerto seja firmado. Sendo na encruzilhada que os acertos são firmados os termos que regem esse território existencial deve ser respeitado. A encruzilhada é um ponto ambíguo na religiosidade afro-brasileira, podendo ser tanto o começo, o iniciar de um fluxo, quanto o fim de um território existencial. Nesse mesmo local que se deve começar a vida, existe o perigo de se bloquear o fluxo (ANJOS, 2006). A encruzilhada será utilizada não somente como um território existencial, mas como um conceito que atravessa toda essa pesquisa, pois para que os caminhos sejam abertos e os quereres alcançados é preciso fazer acertos , seguir as recomendações da Pomba-gira, ter paciência em relação ao tempo em que as coisas vão acontecendo e, também, lembrar de voltar para agradecer. No trajeto que leva a pessoa para essa encruzilhada vão existir os conflitos, as tensões, e são construídos caminhos de fazeres que levam a possibilidade de (des)encontros dos quereres. A encruzilhada é o território de morada dos Exus, por isso não se deve passar numa encruzilhada sem pedir licença. Se um fiel passar numa encruzilhada e deparar-se com um ebó é provável que discreta e respeitosamente possa saudar o povo da rua que come (ANJOS, 2006). Vale ressaltar que na cosmologia afro-brasileira não se pode começar um ritual sem um pedido a Exu para que abra os caminhos (Idem), satisfazendo primeiro o seu querer , para que somente depois disso ocorra tudo bem com a cerimônia. Por perceber que os acertos são feitos por meio das relações construídas no campo e pelos termos exigidos em campo, começo a refletir o impacto da utilização do Termo de Livre Consentimento Esclarecido (TLCE), já que no momento em que pedi autorização as duas Dona Maria Mulambo e Dona Maria Padilha, elas já me autorizaram, qual o valor de um papel nesse campo? Quais reflexões são possíveis nessa encruzilhada? Quais os riscos de abrir ou fechar os caminhos para essa pesquisa a partir do uso do TLCE? Uma vez que não é o cavalo que pesquiso, de que vale a assinatura desse corpo, da matéria?
Levando a Pomba-gira a sério A gira obedece aos quereres das Pomba-giras que podem ser realizados através do corpo que a mesma ocupa, sendo realizada com as bebidas que ela gosta, assim como o pito que ela fuma. O corpo-território (SODRÉ, 2002) se apresenta enquanto encruzilhada que se sobrepõe a outra encruzilhada. São encontros entre os desejos mundanos e o sobrenatural que são em parte mediados pela performance de rituais em que os espíritos são chamados para beber, dançar e dar as consultas (CARDOSO, 2007), assim como os seus quereres. Através do jogo da sedução, que é parte constitutiva na cosmologia afro-brasileira (SODRÉ, 2002) os acertos vão sendo feitos para que os objetivos sejam alcançados. Os quereres de todas as partes devem ser respeitados, assim como a reconhecimento pelas conquistas alcançadas com riscos de abrir ou fechar os caminhos, fazendo da gira uma encruzilhada. Adentrar o universo da encruzilhada enquanto território existencial é também correr os riscos que as possibilidades de (des)encontros pode proporcionar. Assim, a encruzilhada pode ser a conexão entre conceitos e também a possibilidade de ver surgir novos conceitos. Tanto o território existencial da encruzilhada, quanto o conceito de encruzilhada (ANJOS, 2006) é constituído de uma dinâmica entre conexões e desconexões. As relações construídas entre as pessoas, as Pomba-giras e Exus, os (des)encontros entre os quereres , os fazeres que envolvem as vivências na gira e assim como os acertos que são construídos nessa encruzilhada, tendo como foco a perspectiva da Pomba-gira, tornam ainda mais sedutora a compreensão sobre essas relações. Utilizo relação enquanto noção que pode ser aplicada a qualquer forma de conexão (STRATERN, 2017). Segundo Marilyn Strathern (2017) a relação se baseia em duas propriedades. A primeira propriedade da relação é holográfica, pois é uma instância do campo que ocupa, sendo que cada uma das suas partes contém informações sobre o todo, assim como há informações sobre o todo envolto em cada uma de suas partes. A segunda propriedade é que a relação precisa que outros elementos a completem, pois devemos sempre levar em consideração entre quais elementos às relações se estabelecem. Nesse sentido, ainda segundo a antropóloga é necessário não somente vê a relação entre as coisas, mas também as coisas como relações.
envolvidas, o pai ou mãe de santo, o jogo e o consulente. A partir dessa interação, os pais de santo juntamente com o jogo entram em um tipo de composição específica fazendo-se mutuamente (SOUZA PINTO, 2015). Assim como, as encruzilhadas que estão se sobrepondo e que não somente colocam mundos em comunicação, mas também são composição de um novo mundo fazendo-se mutuamente. O ato de fazer e o querer caminham juntos nessa comunicação entre os mundos visível e invisível, uma vez que primeiro é preciso estabelecer a comunicação com a entidade, criando o ambiente para que a entidade se apresente no mundo visível e possa saudar os convidados, ouvir os quereres dos visitantes e ao mesmo tempo satisfazendo também os quereres dela, mutuamente. Para exemplificar os mundos fazendo-se mutuamente podemos pensar em como as relações são construídas em cada consulta, chegando ao ponto da Pomba-gira, dona Maria Mulambo, me avisar em sonho que ela queria champagne, que em diversas vezes ela mesmo já afirmou que não gosta, mas que naquele momento era o que ela queria. O que foi confirmado na gira seguinte. A Pomba-gira nos ensina que devemos correr os riscos que a magia oferece. Dessa forma, pensar essas relações, é correr esse risco, ou melhor, descobrir como correr esses riscos, também na escrita através da reativação do animismo, atestando um mundo “mais que humano”, e cultivando como ofício uma arte imanente e empírica que experimentam efeitos e consequências que nunca é inócuo (STENGERS, 2017). Podemos ir além na noção de animismo e pensar o vitalismo, pois até mesmo na pedra a vida está presente, e a vida oculta presente nas pedras tem uma grande função de tocar no poder vital dos seres humanos (PINTO, 1997), compondo mundos, e nos apresentando novas perspectivas. Os riscos são parte integrante nas relações entre os quereres, fazeres e acertos na encruzilhada. Como disse dona Maria Mulambo no Rio de Janeiro: se você sair do seu caminho eu lhe quebro as pernas. Ou quando a dona Maria do centro em Guará II, em Brasília: pode escrever, tenha bastante cuidado com o que vai escrever, pois estamos vendo. Você sabe a responsabilidade que é. Os riscos dialogam diretamente com os acertos. A partir dos acertos firmados e confirmados é que a relação de confiança aumenta e os riscos diminuem. Os riscos crescem quando os acertos não são cumpridos. Mais uma vez voltamos às propriedades da relação, seja ela holográfica ou dos
elementos que se completam, pois assim como as partes se conectam, é preciso não somente ver a relações entra as coisas, mas as coisas como relações. Nesse sentido, penso qual a validade de um TLCE para os riscos presentes no meu campo. A pesquisa se desenvolve a partir das histórias contadas na perspectiva da Pomba-gira, ou seja, não é o que as pessoas dizem que está em questão, mas a Pomba- gira falando sobre como são construídas essas relações. Partindo do pressuposto que os acertos para que a pesquisa seja feita já foram feitos, e que não vai da ordem somente do mundo visível. Qual a necessidade do TLCE? Se não é o Babalorixá que estou pesquisando, mas sim a entidade que vem em terra em seu corpo, quem assina o TLCE? Os riscos que envolvem a utilização do TLCE é de fechar os caminhos nessa encruzilhada, pois é não confiar que a autorização já foi dada e os acertos já foram feitos. Ter os caminhos abertos nessa encruzilhada é ter os ouvidos atentos ao que a Pomba-gira diz, e assim então, levar a sério o nativo, como afirma Viveiros de Castro (2002). Nessa encruzilhada a normalidade, enquanto conceito que é determinado pela primeira lei da natureza, ou seja, no processo da ordem natural de preservar-se que opera em consistência com o caráter de auto-conservador da natureza (AKBAR, 1984) é seguir cumprindo os acertos para abrir os caminhos. Assim como, comportamentos que mantém, aumentam ou asseguram a sobrevivência da tribo são normais (Idem), a normalidade é que os acertos se mantenham ativos para evitar os riscos de fechar os caminhos. Para levar a Pomba-gira a sério é necessário compreender os seus conceitos como expressão de um mundo possível exprimido por ela, no qual o possível passa por uma verificação para que ele seja validado como real ingressando nesse mundo, não com o intuito de explicá-lo, mas de multiplicar nosso mundo povoando-o desses mundos exprimidos que existem a partir de suas expressões (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Nesse sentido mais uma vez o TLCE não só coloca em evidência a complexidade da sua utilização, como pode apresentar riscos de quebrar a normalidade, podendo até destruir as relações construídas no campo. Multiplicar e povoando nosso mundo com os mundos exprimidos pela Pomba-gira é não só conhecer, mas respeitar suas normas e assim fazer com que o mundo dela também seja real para nós.
relacionamento entre as culturas, acaba por impor a cultura da comunidade escrita para uma comunidade que se baseia em outras formas de contrato. É pelos acertos de ordem de encontro entre os mundos que os termos de autorização são feitos. Dessa forma, como utilizar o TLCE em comunidades que fazem seus acertos e tratos por outros meios? Uma vez que o que é dito, os aconselhamentos tem que ser levados a sério, encontro dificuldade de apresentar um TLCE para quem já me disse duas vezes que não entende porque estou pedindo autorização. De que vale os acertos se vou tentar colocar a prova por algo que nada vale para a Pomba-gira? Os riscos já são grandes em relação aos acertos , pois nesse campo estamos em diálogo com o mundo visível e invisível, que pode acarretar diversos riscos e entraves não somente na pesquisa, mas na vida, por um acerto não cumprido, por uma saída do caminho, fazendo surgir obstáculos. Por mais que a intenção dessa ferramenta deveria ser servir para dar condições de seguir com uma pesquisa sem riscos, precisamos refletir, pois nem a pesquisa e muito menos a ética, pode impedir, ou ao menos dificultar uma relação por se ter o consentimento escrito como regra para pesquisadores que não estão lidando com comunidades da escrita. Se quando ela confirma que posso fazer, pede para ter cuidado, canta que Exu não é de brincadeira, entendo que o acerto está sendo feito e cabe então cumprir. Refletir a relação entre os mundos visível e invisível na encruzilhada que se constrói a relação com as Pombas-gira é colocar mundos em contato e refletir que não são relações que variam, mas variações de mundos que se relacionam (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). A encruzilhada, enquanto território existencial deve ser pensada mais uma vez como uma confluência (SANTOS, 2015) que se baseia nas propriedades existentes na noção de relação (STRATHERN, 2017) e assim, tensionada ao puro limite, que não é o limite geométrico no sentido de limitação, “e sim no sentido matemático de ponto para o qual tende uma série ou uma relação: limite-tensão (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Esse limite pode também ser direcionado para o ponto de encontro e de grande ambiguidade que é a noção de encruzilhada (ANJOS, 2006). Assim, podemos pensar a encruzilhada não como um ponto que limita geograficamente os mundos, mas que os permitem se tocarem. Nessa concepção de limite será que não podemos pensar a relação com TLCE em algumas pesquisas?
Limite na encruzilhada Longe de pensar uma conclusão para este artigo, inicio essa parte com mais questionamentos do que no momento da entrada nessa encruzilhada. Comecei a refletir sobre o campo sem ainda ter adentrado de forma mais profunda, pois no dia 27 de novembro de 2018 o meu projeto será avaliado pelo comitê de Ética para que eu possa dar início à pesquisa. Enquanto escrevia o projeto e nos primeiros contatos com o campo para ter a certeza de onde realizar a pesquisa, percebi a dificuldade que o TLCE representa. No momento em que compareci na gira de dona Maria Mulambo, na Pavuna, na cidade do Rio de Janeiro, para pedir a autorização para realizar a pesquisa, estava a procura de permissão e proteção para adentrar essas encruzilhadas, principalmente por querer pesquisar em outra cidade. Cheguei cedo, como de costume, para limpar e preparar o quarto para dona Maria Mulambo vim em terra e toquei para ela. O que me moveu a pedir autorização foi mais do que permissão e proteção, foi o meu querer pesquisar como as relações entre as pessoas e a Pomba-gira são construídas. Construí os meus acertos com a Pomba-gira para que a permissão fosse dada e ela seguisse me protegendo. Dona Maria não só confirmou a permissão, mas também que os caminhos estão abertos. Com os acertos firmados segui para os fazeres que envolviam tanto a confirmação do acordo, quanto a feitura da pesquisa. Compreendendo o processo de desterritorialização e reterritorialização que os africanos sofreram quando foram arrancados da África para com seu corpo-território construir a África qualitativa no terreiro, comecei a refletir sobre como a relação entre as encruzilhadas também passam pelo processo de desterritorialização e reterritorialização tanto em seu conceito, quanto no território existencial. Partindo da encruzilhada, enquanto território existencial que é ao mesmo tempo encontro de caminhos, escolhas de possibilidades de novos caminhos, e também encontro entre o mundo visível e invisível que comecei a entender a importância e os riscos em se manter os acertos. Então me deparo com o conceito de encruzilhada para construir a filosofia existente nesses territórios, juntamente com a noção de relação e como essas
___________. Narrar o mundo: estórias do “povo da rua” e a narração do imprevisível. MANA 13(2): 317-345, 2007. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo c esquizofrenia, vol.
3. tradução de Aurélio Guerra Neto et al. — Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. GOLDMAN, Marcio. Formas do saber e modos do ser: observações sobre multiplicidade e ontologia no candomblé. Religião e sociedade 25 (2): 102-120, 2005. __________. Histórias, devires e fetiches das religiões afro-brasileiras: ensaio de simetrização antropológica. Análise Social , vol. XLIV (190), 2009, 105-137. INGOLD, T. “Repensando o animado, reanimando o pensamento”. Espaço Ameríndio, volume 7, número 2, , jul./dez, pp. 10-25, 2013. LOPES, Paula de Siqueira. O sotaque dos santos: movimentos de captura e composição no candomblé do interior da Bahia. Rio de Janeiro: Museu Nacional,
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