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a dimensão micropolítica das emoções
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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MANA 16(2): 265-285, 2010
Maria Claudia Coelho
Introdução
Este artigo discute a relação entre moral, alteridade e violência, tendo como objeto de análise os sentimentos presentes em relatos de experiências de vitimização em uma modalidade específica da violência urbana: os assaltos a residências. Insere-se na área de investigação da antropologia das emoções, tomando como vertente teórica o “contextualismo” (Lutz & Abu-Lughod 1990), com sua ênfase na dimensão micropolítica das emoções. O universo analisado são as camadas médias do Rio de Janeiro. A metodologia utilizada é a entrevista em profundidade. Os dados são um conjunto de oito entrevistas realizadas com três casais que vivenciaram juntos, marido e mulher, experiências de assaltos às suas residências; e com duas mulheres que tiveram também suas residências assaltadas enquanto estavam em casa, em companhia de seus maridos e/ou filhos, empregados etc. 1 Os três homens entrevistados têm 84, 55 e 43 anos; suas esposas têm, respectivamente, 85, 52, e 42 anos. As outras duas mulheres têm 66 e 50 anos. Todos têm filhos: o primeiro casal tem dez, o segundo tem dois e o terceiro tem um; as duas mulheres têm, cada qual, dois filhos. O primeiro casal reside em um bairro de camadas médias da zona norte da cidade, o segundo, na zona sul do Rio de Janeiro e o terceiro, na Barra da Tijuca. As duas mulheres residem em bairros da zona sul do Rio de Janeiro. Entre os homens, há um funcionário público aposentado, um engenheiro e um ge- rente de empresa multinacional; entre as mulheres, há três donas de casa, uma marchand e uma pequena empresária. O texto busca explorar a existência de uma narrativa-padrão nestas experiências, com foco na caracterização dos assaltantes e nos sentimentos por eles suscitados nos entrevistados. Para tanto, está estruturado em três seções. Na primeira delas, exponho os pressupostos teóricos que nortearão a análise, em particular: a) principais vertentes da antropologia das emo-
ções, seguindo o mapeamento proposto por Lutz & Abu-Lughod (1990); b) a existência de uma dimensão micropolítica das emoções, ou seja, a capaci- dade que as emoções têm de atualizar, na vivência subjetiva dos indivíduos, aspectos de nível macro da organização social. A segunda seção examina os relatos dos entrevistados, enfocando o exame das representações que fazem dos assaltantes, com ênfase em suas atitudes e atributos, procurando rastrear as associações entre “desordem”, “sujeira”, “pobreza” e “ignorância”. A terceira parte aborda os sentimentos suscitados pela experiência de vitimização entre os entrevistados, procurando delinear a existência de uma dinâmica entre humilhação/medo/impotência, de um lado, e raiva/desprezo/compaixão, de outro.
A emoção como objeto das ciências sociais: um esboço do campo
O campo da antropologia das emoções conheceu um forte desenvolvimento nos Estados Unidos a partir de meados da década de 1980, com a publica- ção de um texto hoje referência obrigatória destes estudos: o trabalho de Michelle Rosaldo (1984) sobre a influência da perspectiva interpretativista de Clifford Geertz sobre o estudo antropológico dos afetos.^2 Com base em diversas comparações de cunho etnográfico com material obtido em trabalho de campo junto aos Ilongot, a autora formula como tarefa da antropologia mostrar de que modo a cultura (em sua dimensão pública e simbólica) interfere na experiência psicológica dos indivíduos. Para a autora, o ponto central é “o reconhecimento do fato de que o sentimento sempre recebe sua forma através do pensamento, e de que o pensamento é carregado de sentidos emocionais” (Rosaldo 1984:143, tradução minha). Em uma tentativa de esclarecer a fronteira entre pensamento e sentimento, Rosaldo sugere que a distinção-chave é a forma de envolvimento do self do ator social, extraindo daí sua conhecida formulação do sentimento como um “pensamento incorporado”:
As emoções são pensamentos de algum modo “sentidos” em rubores, pulsa- ções, movimentos do fígado, mente, coração, estômago, pele. São pensamentos incorporados , pensamentos perpassados pela preocupação de que “eu estou envolvido”. A oposição pensamento/afeto revela assim a diferença entre a mera escuta do choro de uma criança e a escuta sentida — como aquela que ocorre quando percebemos que há perigo envolvido ou que a criança que chora é o seu próprio filho (1984:143, tradução minha).
e refratárias a qualquer configuração sociocultural — e a historicista, que compartilharia com o relativismo a convicção de que as emoções são cons- trutos culturais, entendidos aqui, porém, de uma perspectiva diacrônica. Lutz & Abu-Lughod elaboram, contra o pano de fundo deste mapa, a proposta que batizam de perspectiva contextualista, cuja inspiração teórica é a noção de discurso de Foucault, entendido como uma fala que forma aquilo sobre o que fala, ao invés de manter com ele uma relação de referên- cia, como algo que lhe seria externo. Esta perspectiva permite às autoras adentrarem a dimensão micropolítica dos sentimentos, mostrando como as emoções são tributárias de relações de poder entre grupos sociais, servindo simultaneamente para expressar e reforçar tais relações. Um exemplo desta visão é o próprio trabalho de Lutz (1990) incluído nesta coletânea. Nele, a autora retoma suas reflexões sobre o lugar da emoção no pensamento ocidental, partindo da ideia de que “qualquer discurso sobre emoção é também, ao menos implicitamente, um discurso sobre gênero” (:69, tradução minha). Seu foco neste texto é a existência de uma “retórica do controle” das emoções associada ao gênero, o que, em sua visão, faria com que o discurso sobre as emoções fosse também uma fala sobre o exer- cício do poder. Com base em um conjunto de entrevistas realizadas com homens e mu- lheres norte-americanos pertencentes às camadas médias e populares, Lutz desenvolve então uma análise sobre o modo como o tema do controle das emoções aparece no discurso de homens e mulheres. Seu ponto de partida é um paradoxo que identifica no discurso ocidental sobre as emoções: elas seriam ao mesmo tempo “sinais de fraqueza” e uma “força poderosa”. Este paradoxo estaria no cerne da ambiguidade que cercaria a condição feminina no pensamento ocidental: “a emocionalidade é a fonte do valor da mulher, sua expertise ao invés da racionalidade, mas ao mesmo tempo é a origem da sua inadequação para tarefas sociais mais amplas e mesmo uma ameaça potencial a seus filhos” (:77, tradução minha). Lutz sugere ainda a existência de um paralelo entre esta forma de compreensão da condição feminina e o estudo de Taussig (1984) sobre o colonialismo, em que o autor aponta para a ambiguidade presente na visão dos colonizadores em relação aos indígenas, na qual medo e espanto se alternam com nojo e menosprezo. Para Taussig, este seria um processo em que um “espelho colonial” “reflete de volta para o colonizador a barbárie de suas próprias relações sociais” (Taussig 1984:495 apud Lutz 1990:77, tradução minha). Lutz enxerga nesta comparação a possibilidade de se pensar em um “paradoxo da vontade” como recorrentemente presente nas relações de dominação,
pois o outro subordinado é ideologicamente representado como fraco (de forma a precisar de proteção ou disciplina) e ainda assim periodicamente como uma ameaça à fronteira ideológica, podendo rompê-la através da insubordinação ou da histeria. A fala sobre a emoção, conforme evidenciado nestas transcrições, mostra as mesmas contradições quanto ao controle, à fraqueza e à força. Dada sua definição como natural, ao menos no Ocidente, os discursos sobre a emoção podem ser um dos mais prováveis e poderosos instrumentos por meio dos quais se exerce a dominação (:77-78, tradução minha).
Este tema das relações entre emoção e poder está no centro de outros estudos produzidos por cientistas sociais de várias tradições intelectuais voltados para a compreensão da dimensão micropolítica de sentimentos específicos, mostrando como a gramática da emergência e da expressão destes sentimentos pode iluminar aspectos de nível “macro” da organiza- ção social. Nas próximas seções, buscaremos compreender os sentimentos narrados pelos entrevistados — em particular, a compaixão e o desprezo — com base em alguns estudos que visam ao entendimento desta capacidade micropolítica das emoções.
As representações dos assaltantes
A descrição dos assaltantes realizada pelos entrevistados deixa entrever uma recorrência: a natureza desorganizada e caótica de suas atitudes. Em vários depoimentos, chama a atenção a presença de um retrato da atuação dos assaltantes, tomada coletivamente como “agitada”, “desorganizada”, uma “bagunça”:
Mas eles eram dois primários. Eu tenho a impressão de que eles não eram de [cidade praiana]. Eu tenho a impressão de que eles nessas ondas [...] dessas festas idiotas na beirada da praia, que fazem aquelas coisas, aquela sujeirada toda, aquele murmurinho, todo mundo faz o que quer no meio da rua, é uma bagunça geral nessa época (Rafael). 3
As nossas portas de armário são de correr. Então a gente só ouvia assim, aque- le barulho, ploft, ploft, porque são quatro quartos, ali, e era tudo assim uma barulheira tremenda, depois ouvimos rasgando aqueles lençóis que são tipo náilon, também, que não é algodão puro, e eu dizia assim, “meu Deus, o que será isso?” (Magnólia).
E eram três. Dois assim até bem apessoados e tinha o mais velho, parecia tá meio dopado que fosse, ele é muito agitado, e aí eles queriam mais coisas. Disse: “Não! Nós não temos, joias nós não temos nem coisa nenhuma”, né? E aí então... Nós vimos que eles estavam mexendo pela casa inteira, né? (Vânia).
Os outros eram muito maus. Eles botavam a arma bem “aqui”, enfiavam arma na sua cabeça. Esse não fazia isso, nunca fez. O que fez comigo botou aqui de longe e virou, mas eu senti que ele não tava fazendo aquilo... Ele não ia fazer, era o que me passava. Eu, por algum motivo, senti mais confiança nele. E ele não tava drogado. Um com certeza tava drogado. Os outros dois não. Um era muito calmo (Ana).
Eu acho que o mais agressivo preponderava. [...] O mais organizado falou que se a gente se comportasse tudo ia acabar certo; durante o assalto eles não agi- ram assim. Entendeu? Então, ele deu a entender que tudo ia... ia ser um assalto tranquilo, mas eles não abriram mão da intimidação, nem das ameaças, nem eu acho que da violência de amarrar, de estar encostando a arma na cabeça. Acho que... Então, acho que a diferença entre eles era de função ali, acho. Persona- lidade, talvez o mais novo um pouco mais agressivo, né? (Guilherme).
Reproduzi nesta seção a sequência de trechos, retirados dos depoimentos de sete entre os oito entrevistados, para acentuar a recorrência do tema da “desordem” na caracterização dos entrevistados, eventualmente associada à “imundície”, em um vínculo simbólico que evoca a clássica concepção da “sujeira” como algo que está “fora do lugar” (Douglas 1976). Esta descrição das atitudes dos assaltantes nos remete também à discussão proposta por Caldeira (2000) sobre a violência como “desordem”, identificada de forma clara, em seu universo, em uma estratégia retórica que principia sempre por descrever um cotidiano no qual a violência irrompe subitamente, transtornando-o.^4 Um segundo traço também muito nítido na caracterização dos assal- tantes é sua associação à pobreza:
Todos assim de classe média, só tinha um que era... um pouquinho, talvez uma classe C, assim, mais pobre, mas não era nenhuma pessoa que você pudesse dizer assim: “Não! são pessoas necessitadas, vieram, nasceram é... numa situ- ação muito difícil”. Não dava pra perceber isso não, todos eles tinham, vai ver que tinham até educação, reconheceram a gravura do Monet.
Você acha que teria feito diferença pra você assim? É... assim, teria me surpreendido menos. Eu acho que a diferença foi a surpresa
de ter percebido que eram pessoas de um nível de educação pelo menos secun- dário ali. Inclusive, o mandante estudando o nível superior, né? Ele ainda não tinha terminado, mas tava lá. Cursando... Teria sido... Eu teria ficado menos surpreso, mas numa justificativa mais racional. Pô! A pessoa precisa! Mas não era o caso. A diferença seria mais ser surpreendido [pela] expectativa que eu tinha de que as pessoas que roubam são pessoas é... altamente necessitadas, que vieram de uma situação muito difícil, não tiveram nenhuma oportunidade na vida, e o crime seria uma consequência racional dessa... desse meio ambiente em que elas viviam, né? O que não me pareceu em nenhum momento ser o caso deles, né? Um deles, inclusive, tinha, morava praticamente ali [na rua de moradias de alto luxo] e tal (Guilherme).
A fala de Guilherme explicita uma expectativa que nos demais de- poimentos aparece de forma sub-reptícia: a vinculação da criminalidade à pobreza, com a privação material sendo concebida como motivação fundamental para a decisão de assaltar. Esta associação aparece de forma mais sutil em outros relatos, eventualmente vinculando pobreza, crimina- lidade e “favela” ou “subúrbios”, em uma relação de resto já tantas vezes estabelecida no senso comum de segmentos das camadas médias e altas da população carioca:
[...] era uma quadrilha de classe média alta. Quer dizer, dois eram de classe média alta. Nenhum era favelado, os outros dois eram... classe média... um classe média baixa o outro pobre, mas nenhum deles morava em favela. [...] esse era o único pretinho da situação, e o outro até era mulato, o outro que estava lá embaixo; um deles era [mulato] e o outro era branco. E... um era da [rua de moradias de alto luxo] (Ana).
[...] o meu medo é que eu me via assim, jogada, num subúrbio aí qualquer da vida, estuprada, levando tiro, ou morta. Eu visualizava na minha cabeça: eu já era jogada num buraco aí qualquer... (Joana).
Esta associação entre violência e diferenças de classe social surge nos depoimentos ainda de outra maneira, esta bem mais sutil: as especulações quanto às razões por que suas residências teriam se tornado alvo do interesse dos assaltantes. Em vários relatos, os entrevistados supõem, por mínimos indícios, que pessoas que haviam prestado serviços em suas residências — sintomaticamente, serviços de baixas qualificação profissional e remunera- ção, tais como faxina, jardinagem ou construção — haviam, intencional ou inadvertidamente, passado informações a conhecidos seus do mesmo meio
quer dizer, isso é um pensamento meu, tá? E conversei também com alguns filhos e todos eles acham que realmente pode ter havido um... não que esses tenham ido lá em casa, mas podem ter comunicado a esses outros lá do [nome de bairro da cidade praiana], que têm qualquer coisa com a Baixada...
Esse bairro é o quê, um bairro de classe média? Não, não. Meio, tem muita... algumas favelas. Mais necessitado. É, tem comércio... Muito comércio. Mas é uma classe média bem, bem pra baixo e outras... (Magnólia e Rafael).
Este tipo de explicação para esta modalidade de violência, associada a uma clivagem entre classes sociais, opera assim com uma associação entre criminalidade, pobreza e local de moradia, sendo particularmente nítido neste último depoimento, em que o casal imagina a existência de uma rede de contatos entre pessoas moradoras de um bairro onde há “favelas”, em uma cidade praiana e a Baixada Fluminense, que teriam tido acesso à informação de uma suposta “riqueza” a eles atribuída através de um prestador de serviços de jardinagem. Esta lógica parece aproximar estes depoimentos do discurso de tipo “despótico” sobre a violência, segundo tipologia proposta por Soares e Carneiro (1996), o qual, entre outras características, postularia a existência de focos urbanos de violência, identificados primordialmente com as favelas. O terceiro e último traço marcante na representação dos assaltantes é a ignorância a eles atribuída pelos entrevistados. Esta ignorância, contudo, não é explicitada da mesma forma que a pobreza, a bagunça ou a sujeira, não sendo nomeada, porém sugerida em comentários depreciativos, even- tualmente irônicos, feitos en passant :
Agora, que eles venderam, devem ter vendido por qualquer coisa... devem ter vendido, porque tem coisas que valem e tem coisas que nem valem, né? Ainda mais eu que mexo com esses troços, de antiguidades, até de joia, não sei o quê... Às vezes você olha num casamento, as mulheres todas de joias maravilhosas; tem umas que valem muito, tem umas que não valem nada, mas têm o mesmo efeito da outra, é um brilhante que tem um carvão, o outro não tem...
Você acha assim que venderam por qualquer coisa por desconhecimento do valor, por não saberem onde vender... Eu acho que por desconhecimento de valor e também porque eles têm que se sujeitar a vender pra negociantes que não são bons negociantes, que são
pessoas que são ladras também, e que vão comprar, que vão ganhar dinheiro em cima deles (Joana).
Cada coisa que eu me lembrava que eu tinha eu dava graças a Deus. E algumas eles queriam e outras não, né? Então... Se encantavam com bobagens, por exem- plo, uma mochila da [nome de loja], uma bolsa de viagem. Ninguém viu porque o Guilherme usava aquilo uma vez na vida outra na morte. Acharam aquilo lindo e maravilhoso, levaram. E outras coisas que havia, que talvez tivessem até mais valor, eles não levaram, tipo um relógio da [nome de marca], de ouro.
Não viram? Viram, eu dei, mas eles não quiseram, não entenderam, então... (Ana).
Ah, tem uma coisa interessante, na hora que me coube ir ao meu quarto pra mostrar as minhas coisas, eu pude então avisar que havia arma — eu tinha um revólver que ficava assim debaixo da cama, no meu lugar, do meu lado. Aí eu mostrei o revólver, apontei, ele foi lá, pegou; nessa altura estávamos eu e ele no quarto, um de cada lado da cama, da minha cama. Ele então pegou o meu revólver, botou no meio da cama e disse assim: “vamos ver quem é mais rápido”, o dele no cinto, preso à calça. E eu disse: “não, não vou fazer isso, isso não é meu métier ”. Depois me arrependi, porque tive que explicar pra ele o que era métier , entendeu? (Luís).
Aí eles começaram a remexer nas coisas, pegaram minha carteira de identidade. Eu era funcionário naquela época e tinha uma carteira especial. Eu disse “eu tô perdido”. Mas eles eram analfabetos, felizmente. De modo que ele olhava, olhava, olhava a carteira e dizia “você deve ser daqueles que fala[m] com o [presidente do Brasil] na hora que quer” (Rafael).
Estas passagens permitem entrever um esforço de demarcação de supe- rioridade, aqui acionado em relação a um nível cultural representado como inferior: os assaltantes são analfabetos, com vocabulário limitado e incapazes de reconhecer o valor das próprias coisas que desejam roubar. Este esforço sugere haver um traço de desprezo dos entrevistados pelos assaltantes — sentimento este que nos conduz à próxima seção deste trabalho.
Os sentimentos dos entrevistados
Os depoimentos são permeados por expressões relativas às experiências emocionais dos entrevistados durante os assaltos. O desprezo, insinuado
Em seu clássico estudo sobre a dádiva, Mauss (2003) realiza, em meio a uma profusão de dados etnográficos, uma análise do ritual do potlatch , encontrado entre as tribos do noroeste norte-americano. No potlatch , enor- mes quantidades de riquezas materiais são destruídas, em um esforço de construção de prestígio social e obtenção de poder por meio do despren- dimento material: se eu destruo, é porque posso dispor, e se destruo mais, é porque tenho mais, e por isso posso mais e sou mais. Os entrevistados, assim, ao rirem de uma suposição quanto à própria destituição, recolocam- se em uma posição de superioridade hierárquica. “Tenho tão mais do que você e estou tão seguro disto que sequer preciso ostentar, sequer me deixo atingir pela sua suposição de que tenho pouco”: é isto que os entrevista- dos parecem estar realizando no plano da linguagem, em uma espécie de potlatch discursivo. Úrsula sintetiza esse “clima” geral dizendo não reagir porque, ao con- trário dos assaltantes, precisa zelar por sua vida porque tem o que perder: “E eu não reajo a assaltos porque eu acho que eu tenho muito a perder. Eles não têm a perder, né?”. Estes comentários, aliados àqueles sobre a “ignorância” dos assaltantes, sugerem a recorrência de um sentimento de desprezo a eles dirigido pelas vítimas. Em estudo sobre os sentimentos de nojo e desprezo, Miller (1997) os define como “emoções de demarcação de status ”. Falando especificamente sobre o desprezo, Miller o identifica como um mecanismo capaz tanto de criar quanto de contestar hierarquias, residindo aí sua importância política. O autor expõe assim sua visão sobre a capacidade micropolítica do desprezo:
O desprezo é o complexo emocional que articula e mantém a hierarquia, o sta- tus , a classificação e a respeitabilidade. E status e classificações diferenciados são as condições que suscitam o desprezo. Assim, o que temos é uma espécie de círculo vicioso no qual o desprezo ajuda a criar e manter as estruturas que geram a capacidade do desprezo. E há boas razões para se acreditar que o estilo específico de desprezo estará intimamente ligado aos arranjos sociais e políticos particulares nos quais ele se dá (Miller 1997:217, tradução minha).
Com base nesta análise de Miller (1997) sobre a capacidade do des- prezo de demarcar hierarquia, podemos então apontar um primeiro traço da dinâmica emocional que marca as experiências de vitimização aqui ana- lisadas: o esforço de recuperação, por meio deste sentimento, de um lugar de superioridade hierárquica no plano subjetivo. O desprezo, contudo, não é o único sentimento capaz de realizar este trabalho. A compaixão é um sentimento dotado também desta mesma capa-
cidade micropolítica (Clark 1997), e está presente em algumas passagens destes relatos, como neste trecho da fala de Vânia:
Você fica chocada na hora, tem pena daqui, dali, mas nada de me afetar.
Você tem pena desses caras que te assaltaram, não? O que você sente em rela- ção a eles? Bom, você na hora fica revoltada, né? Meu marido dizia assim: “Eu quero guardar bem a cara deles, se algum deles sair, chegar lá no hospital, eu falo lá: ‘Ó! Dá um jeito aí!’”. Quer dizer, ele, mas eu também; na hora, eu também acho que eu falo. Na hora eu fico. Eu tenho pena realmente, porque são uns pobres coitados, eles são um... pessoal que não tem... Eu acho que eles não têm amor. Falta um amor total aí. Então, é um pessoal que não tem nada. E eles não têm nem nada a perder, nem a vida, porque eles estão se arriscando mesmo e não têm medo de nada (Vânia).
O depoimento de Úrsula introduz explicitamente ainda outro sentimento que aparece de forma velada nos demais: a impotência, à qual a entrevistada faz menção em várias passagens. Seu relato estabelece em vários trechos relações entre a impotência, o medo, a raiva e a pena:
Olha, um era bem alto, entendeu? E ele falava — esse que eu fui pro closet com ele, que foi o que ameaçou a gente o tempo todo, o tal das armas, que caiu a bala e ficou procurando — ele era pardo, sabe? Alto. Ele falou que tava em liberdade condicional, que tava roubando pra comer, entendeu? Que ele tinha uma filha de quatro meses e que ele não tinha dinheiro, que ele tinha tentado arrumar emprego, mas quando souberam que ele era ex-presidiário, tinham mandado ele embora, que ele tava roubando pra comer. O outro... [...] Não, esse eu fiquei com pena, a gente fica com pena, né? Esse que tava comigo no hall, no closet... E quando ele saiu, fez um monte de ameaças... Ele ficou olhando assim pra mim: “Você vai ver! não sei o quê...”. Sabe? Essas coisas. Aí você fica assustada, até porque... você fica com um sen- timento assim, é uma pena misturada com medo, entendeu? E com impotência, porque você vê o cara, ele entrou ali, o que ele vai fazer ali? Agora na hora, eu não fiquei com raiva, entendeu? Assim, tem gente que fala: “Ah! Você não ficou com raiva? Vontade de pegar uma arma e matar todo mundo?”. Eu não faço isso. Eu não tive esse sentimento. Eu fiquei muito mais com uma coisa de pena. Até a tenente falou pra mim: “Eu não acredito que a senhora disse isso. Porque a senhora está inocentando o pretinho!”. Eu falei: “Mas eu não posso mentir perante a juíza!”. Ainda falei: “Olha a mãe dele ali!
facultado pela ocupação de lugares socialmente distintos, concorre por sua vez para assinalar e reforçar essa assimetria entre aquele que dá e aquele que recebe a compaixão. É este caráter assimétrico da compaixão que a conduz à reflexão sobre a “micropolítica emocional”:
Mesmo quando aqueles que se compadecem não têm a intenção consciente de fazê-lo, compadecer-se pode ter consequências micropolíticas. Ironicamente, trocar compaixão na economia socioemocional pode aproximar as pessoas e ao mesmo tempo aprofundar o abismo social entre elas (:228, tradução minha).
Esta percepção de estar diante de um “outro” de natureza distinta da sua é cristalina na fala que Úrsula atribui a seu marido, endereçada a um assal- tante, em um esforço para convencê-lo de que não tinha armas ou bens de grande valor: “A gente é do bem, cara! A gente não tem nada aqui! Eu nunca fiz mal a ninguém! Eu sou médico! Eu trato de gente igual a você !”. E, portanto, diferente dele.
Conclusão
A análise dos depoimentos revelou a existência de um conjunto de senti- mentos que se articulam entre si formando dinâmicas emocionais capazes de realizar diversos “trabalhos”. É assim que essas experiências de vitimização suscitam nos entrevistados, em um primeiro plano, humilhação, medo e/ou impotência, os quais podem fluir, ao menos em tese, por um de três “canais”: a raiva, o desprezo ou a compaixão. Como explicar a recorrência, entre os entrevistados, desta dinâmica emocional particular? Em sua análise da dinâmica emocional que engendra os chamados “crimes hediondos” (um pai que espanca seu bebê porque este não obede- ce às ordens para que pare de chorar, ou um homem que mata seu vizinho por obstruir a entrada de sua garagem), Katz (1988), com base em uma perspectiva interacionista, formula a hipótese de que as atitudes da vítima foram interpretadas pelos agressores, naquela situação, como um desafio a um “bem moral” essencial para o modo como se viam, provocando com isso uma espécie de “ira santa”. Assim, o bebê que não para de chorar desafia a autoridade paterna; o vizinho que obstrui a entrada da garagem ameaça o direito à propriedade; ou ainda o marido que queima os livros da esposa e atrapalha seus estudos desrespeita os direitos da mulher. Em todas essas cenas, Katz identifica uma dinâmica emocional que inicia com um sentimento de humilhação “holístico”, ou seja, algo que toma
conta do agressor e que coloca em xeque sua autoimagem, parecendo-lhe, naquele momento, ser eterno. A raiva decorreria da necessidade fundamental de salvaguardar essa autoimagem, funcionando assim como um “contrapon- to” da humilhação e motivando uma agressão que se, por um lado, não visa necessariamente à morte do agressor (podendo ser freada por uma mudança de atitude, como um pedido de desculpas, por exemplo), por outro, não se contenta com ela (podendo ter prosseguimento com a imposição de novas agressões ao corpo da vítima). Estaríamos assim diante de um complexo emocional humilhação-raiva, cuja lógica seria a defesa de certa moralidade percebida pelo agressor como essencial para sua identidade. A dinâmica emocional encontrada nos relatos aqui analisados pode ser mais bem compreendida se contrastada com aquela identificada por Katz em seu universo de análise. A tradução empírica da raiva em uma reação ou agressão ao assaltante é, na percepção da situação pelos entrevistados, indesejável, na medida em que passível de colocar em risco sua integridade física e/ou de seus cônjuges, parentes, amigos, empregados. Aquela dinâmi- ca emocional descrita por Katz (1988) de transformação da humilhação em raiva parece então ser um canal vedado a estes entrevistados. Mas as agressões analisadas por Katz não são meramente ações de natureza instrumental: são principalmente ações expressivas, através das quais os agressores pretendem estar resgatando sua autoestima e restabe- lecendo valores morais entendidos como bens supremos, constitutivos de sua identidade e visão de mundo. Que fazer, então, quando a definição da situação parece, aos olhos do narrador, inviabilizar este curso de ação? A hipótese que proponho aqui é a de que desprezo e compaixão se apresentam como sentimentos capazes de realizar, no plano emocional, o mesmo trabalho que a agressão física: em sua capacidade micropolítica, desprezo e compaixão restabeleceriam a hierarquia ameaçada pela invasão das casas, pela expropriação de bens, pelos xingamentos e ameaças, pelas eventuais agressões físicas. Estes sentimentos, contudo, fazem ainda mais: articulados a uma representação dos assaltantes como “desordeiros”, “po- bres” e “ignorantes”, o desprezo e a compaixão sugerem estarmos diante de uma percepção da violência urbana como associada a diferenças entre classes sociais, entendidas em termos de poder aquisitivo e/ou local de moradia. E é justamente a hierarquia entre estas duas “classes sociais” distintas — às quais pertenceriam “assaltante” e “vítima” — invertida pela violência, que estes sentimentos buscariam assim restabelecer. Humilhação, medo e impotência formam então, juntamente com a raiva, o desprezo e a compaixão, um complexo emocional dotado de uma dinâmica específica dessas situações de vitimização, capaz de nos fornecer um guia
(^5) O tema da relação entre a concepção da responsabilidade do sujeito pelo infortúnio e a emergência da compaixão está presente também em análises deste sentimento em outros contextos históricos e culturais, como na discussão de French (1994) sobre a atitude de refugiados em campos no Cambodja diante daqueles que sofreram amputações em decorrência de acidentes com minas.
(^6) Este depoimento de Joana ilustra com particular poder de síntese aquele diag- nóstico discutido por Soares acerca da “invisibilidade” que caracterizaria as relações entre os dois lados da “cidade partida” (Ventura 1994) em que o Rio de Janeiro se teria tornado: “os ‘de baixo’ são frequentemente invisíveis para os de cima, salvo quando lhes metem medo, produzem incômodo ou passam a representar alguma ameaça, imaginária ou real” (Soares 2000:41).
(^7) Em outros trabalhos, explorei diferentes dinâmicas emocionais associadas a formas de percepção da violência, tais como a dinâmica humilhação-coragem asso- ciada a uma concepção da violência como desamparo (Coelho 2009a), a tríade raiva- calma-medo e sua articulação com o gênero (Coelho 2006, 2009b) e o papel da calma como estratégia discursiva de apaziguamento do sujeito (Coelho & Santos 2007).
Referências bibliográficas
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