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Este texto analisa o imaginário da tristeza durante a belle époque (1870-1920) e sua relação com a construção da identidade nacional brasileira. O autor destaca o conceito de 'sentimento de estrangeiridade' e sua importância na interpretação da cultura nacional, além da relação entre a tristeza, a modernização e a urbanização. O documento oferece uma perspectiva sobre como os intelectuais brasileiros da época percebiam e interpretavam a nação, o exotismo e a tristeza.
Tipologia: Notas de estudo
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GILMAR ROCHA Professor da PUC-Minas Doutorando em Ciências Humanas (IFCS-UFRJ)
RESUMO O texto analisa o imaginário da tristeza no período da Belle Époque (1870-1920), como parte de um processo mais amplo de cons- trução da identidade nacional brasileira. Ao lado das representações da tristeza, emerge o que chamo “ sentimento de estrangeiridade ”, que toma conta de boa parte do campo discursivo e imaginário dos intelectuais brasileiros da época, denunciando um estilo exótico nas interpretações do Brasil. Nessa perspectiva, a representação do “ brasileiro, homem triste exilado em sua própria terra ” ganha sentido e significado se relacionada ao processo de modernização e urbanização da sociedade brasileira da virada do século passado.
ABSTRACT This paper intends to analyze the imaginary of sadness during the Brazilian Belle Époque (1870-1920), as a constitutive element of the nation-building process. Besides the representations of sadness, grows a “ feeling of foreigness ” which occupies the entire discursive and imaginary field. The sadness and foreigness centrality denotes the exotic style of brazilian intellectual production. The brazilian image as a sad and exiled man in his own land, has its sense and meaning related to the modernization and urbanization process which happened in the brazilian society during the end of the nineteenth century.
Palavras Chave : Representação da tristeza; sentimento de estrangeiri- dade; exotismo; modernidade; identidade nacional.
VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, nº 24, Jan/01, p.172-
Keywords : Representation of sadness; feeling of foreigness; exoticism; modernity; national identity.
Introdução
Darcy Ribeiro salienta em introdução a um de seus últimos livros, o caráter “ novo ” do povo brasileiro, “ inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos... ”^1. Mesmo que a alegria e a felicidade tenham já sido identificadas como um dos traços constitutivos do “ caráter nacional ” bra- sileiro, por um ou outro observador nacional ou estrangeiro, houve um momento em que as representações sobre o caráter triste dominaram boa parte das interpretações da cultura nacional. À primeira vista, a imagem de um homem brasileiro triste, melancóli- co, parece algo estranha, estrangeira, fora de lugar. Mas não é esse o caso das representações da tristeza no imaginário nacional da virada do século XIX/XX. Elas ocupam um lugar de destaque no contexto da Belle Époque na medida em que apontam para um “ estilo exótico ” que per- passa o discurso da construção da nação e da identidade nacional bra- sileira. Aí um “ sentimento de estrangeiridade ” marca profundamente o discurso de construção da nação cuja imagem pode ser traduzida na representação do “ brasileiro, homem triste exilado em sua própria terra ”. Aparentemente, tristeza e exotismo concorrem para uma imagem nega- tiva da nação, mas ganham sentido e significado se relacionadas às primeiras experiências de modernização e urbanização da sociedade da virada do século. Apesar da relação nação, tristeza e exotismo estar presente no romantismo, durante a primeira metade do século XIX, meu interesse se dirige, principalmente, para o período da Belle Époque, en- tre os anos 1870 e 1920.
Retrato de época
O ponto de partida é a análise desenvolvida por Paulo Prado em RETRATO DO BRASIL: Ensaio sobre a Tristeza Brasileira, de 1928. Na definição do autor, esse ensaio é um retrato “ impressionista ” do caráter nacional. É neste estudo que se tem mais claramente formulada a repre- sentação da tristeza brasileira entre tantas outras Interpretações do Bra- sil. De fato, a obra de Paulo Prado tem uma importância exemplar, para-
1 RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1995, p. 19
marcado pelos temas da tristeza, morte, dor, solidão, amor platônico. Assim, “ entre nós o círculo vicioso se fechou numa mútua correspondên- cia de influências: versos tristes, homens tristes; melancolia do povo, melancolia dos poetas ”, contribuindo para formar a representação da tristeza do povo brasileiro, dirá Paulo Prado^4. Os males advindos da tristeza contaminaram toda a vida social bra- sileira. Segundo o autor, “ o vinco secular que deixaram na psique nacio- nal os desmandos da luxúria e da cobiça ”, concorreram para o desen- volvimento de uma série de problemas e vícios que assolam a nação: “ o Brasil, de fato, não progride; vive e cresce, como cresce e vive uma criança doente no lento desenvolvimento de um corpo mal organiza- do ”^5. O verdadeiro retrato do Brasil, na lente do autor, é o de um país que na sua formação histórico-cultural legou uma população doente, desani- mada e triste, vivendo numa economia de Estado patrimonialista, uma justiça marcada pela politicagem, uma polícia viciada e corrupta, uma agricultura negligenciada e um elevado índice de analfabetismo aliado a uma cultura letrada de imitação. E conclui o autor, para o fim de tão graves males restam duas soluções catastróficas: a Guerra e a Revolu- ção. Soluções estas que permitiriam ao povo sair de seu estado de letar- gia crônica ou corrigir os erros e os males existentes. Do contrário, cabe ao país viver na “ mais completa ignorância do que se passa pelo mundo afora ”^6. O problema decorrente dessa interpretação, consiste em: como pode um povo triste, apático e doente promover uma guerra ou revolu- ção para mudar os rumos da nação? Retrato do Brasil representa a formulação mais bem acabada sobre a tristeza brasileira. Pode-se dizer que é única e última das interpreta- ções do caráter nacional triste. Porém, mais do que o retrato de um pas- sado colonial a partir do qual a tristeza se consolidou como um traço psicológico do caráter nacional do povo brasileiro, revela muito do ima- ginário social e intelectual de fins do século passado à época de sua publicação. Sua importância reside no fato de condensar e fixar toda uma linhagem de interpretações acerca da tristeza brasileira. Isso não impediu que o livro sofresse várias críticas desde sua publicação 7.
4 Idem, p. 154. Dante Moreira Leite salienta, em sua interpretação de Retrato do Brasil, que “ o romantismo teria deformado o nosso organismo social e teria feito com que o Brasil, numa hora de mentalidade prática, desse a impressão de gente viva falando uma língua morta ”, ver: O Caráter Nacional Brasileiro – História de uma Ideologia. 4a edição, São Paulo, Pioneira, 1983, p. 290. 5 Prado, Paulo. Op. Cit., pp. 171- 6 Idem, p. 187 7 Eduardo Frieiro publica, em 1931, O Brasileiro não é Triste. 2a edição, Rio de Janeiro, INL, 1957. O autor reúne ainda comentários de outros intelectuais sobre a alegria do brasileiro. A superação definitiva da “ ideologia do pessimismo ”, viria logo depois com a publicação de Casa Grande & Senzala , em 1933. Para uma análise do significado político de Retrato do Brasil , ver: CAPELATO, Maria H. R. “Retrato do Brasil: uma representação do ser nacional” in COSENTINO, Francisco C. & SOUZA, Marco A. 1500-2000: Trajetórias. Belo Horizonte, Unicentro Newton Paiva, 1999.
Em suma, o livro chama a atenção para a necessidade de uma in- vestigação mais profunda sobre: 1) a construção da nação brasileira; 2) o significado da tristeza brasileira presente no imaginário intelectual desde o romantismo; 3) o exotismo que perpassa e se fixa nas interpretações científicas e literárias da Belle Époque. É preciso, então, analisar como os intelectuais da virada do século sentiram, viveram e pensaram a na- ção, o exotismo e a tristeza do povo brasileiro.
A natureza da nação No Brasil, o processo de construção do Estado antecipou-se à cria- ção da nação. Com a independência em 1822, acentuou-se o “ senti- mento nacionalista ” dos brasileiros. O romantismo serviu a esse propósi- to, pois tornou possível a expressão de um novo desejo, o patriotismo, e vicejou a criação de uma literatura independente e de uma atividade intelectual ligada ao processo de construção da nação. Mas, desde cedo, muitas dessas possibilidades seriam domesticadas, deixando dúvidas quanto à eficácia do romantismo em atingir os propósitos do nacionalis- mo. Ao analisar as raízes da crítica romântica, Antônio Cândido diz:
“““““No Brasil, impunha-se, portanto, segundo os cânones do momen- to, considerar a raça e o meio. Quanto a este, tudo se resumiu em tiradas, (...) sobre a diferença e a grandeza da natureza tropical, originando forçosamente sentimentos diferentes. Daí um persis- tente exotismo, que eivou a nossa visão de nós mesmos até hoje, levando-nos a encarar como faziam os estrangeiros, propiciando, nas letras, a exploração do pitoresco no sentido europeu, como se estivéssemos condenados a exportar produtos tropicais no terre- no da cultura espiritual..... Homens como Denis se encontram na ori- gem de tal processo: é claro que um francês acentuaria o encanto local e veria nele a contribuição que o Brasil poderia dar” – Grifo meu^8.
Esse exotismo marcou profundamente a intelectualidade brasileira da virada do século passado, provocando um “ sentimento de estrangei- ridade ” ao idealizar o projeto civilizatório das metrópoles européias. De acordo com Ventura, entra em cena uma espécie de “ auto-exotismo ” em que “ o intelectual ‘periférico’ percebe a realidade que o circunda como ‘exótica ’ ” 9. Exotismo que, além de promover um certo distanciamento
8 CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira – Momentos Decisivos: 1836-1880. Belo Horizonte, Itatiaia, 1981, p. 324. 9 VENTURA, Roberto. Estilo Tropical — História Cultural e Polêmicas Literárias no Brasil (1870-1914). São Pau- lo, Cia das Letras, 1991, p. 38.
as experiências de modernização da sociedade brasileira produzindo uma nova sensibilidade estética. Apesar da persistência das represen- tações da tristeza e do estilo exótico no processo de construção da na- ção, no período da Belle Époque, opera-se uma ressemantização dos significados desses elementos, a partir da introdução da ciência, com o deslocamento do culto à natureza para o problema das raças e da mo- dernização da sociedade. Portanto, no romantismo, a exaltação da natu- reza representa o problema central do nacionalismo romântico, já no re- alismo, o elemento natureza sofre uma inversão de valor em função das teorias do determinismo racial.
Brasileiro, homem triste exilado em sua própria terra “ Brasileiro, homem triste exilado em sua própria terra ”, esse parece ser o mote das visões e sentimentos comuns a muitos dos intelectuais da Belle Époque. Por exemplo, de acordo com Naxara, Euclides da Cu- nha reconheceu “ um quase exílio paradoxal dentro de nossa própria ter- ra ” e Roquete Pinto, referindo-se aos trabalhadores rurais, dizia serem “ estrangeiros em sua própria terra ”^12. Mas, o registro mais contundente desse exótico “ sentimento de estrangeiridade ” será fornecido por Sér- gio Buarque de Holanda. Numa formulação próxima a dos antropólogos, por meio da qual se desenvolve uma atitude de estranhamento, o autor de Raízes do Brasil , nos deixa ver o sentido do exotismo:
“A tentativa de implantação da cultura européia em extenso territó- rio, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é nas origens da sociedade bra- sileira, o fato dominante e mais rico em conseqüências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente mui- tas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à per- feição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra pai- sagem” – Grifo meu^13.
12 NAXARA, Maria R. L. (1992), “A Construção da Identidade: Um Momento Privilegiado”. Revista Brasileira de História, 11, 23/24, 1992, p. 182. 13 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 17a edição, Rio de Janeiro, José Olympio, 1984, p. 3.
De fato, a influência do discurso e do pensamento europeu não ficou restrita ao âmbito das explicações naturalistas da raça e do meio, mas serviu de parâmetro aos ideais civilizacionais de desenvolvimento e pro- gresso da sociedade brasileira. No entanto, frente à idealização dos padrões metropolitanos da civilização européia, contrapunha-se uma realidade caracterizada pela diversidade cultural, étnica e regional. O esforço dos intelectuais brasileiros em superar a inferioridade cultural local, para não dizer racial, e as adversidades naturais, quando não le- vou alguns a reconhecerem na literatura nacional um fenômeno original porque mestiço (híbrido), levou outros a descobrirem, através de um exercício de estranhamento, um sentimento de estrangeiridade associa- do à percepção de uma realidade exótica. A poesia simbolista, com suas nuances de “ decadentismo ”, daria sua contribuição ao acentuar o mal estar de fin de siècle , em que as promessas de progresso inelutável da sociedade sob a égide do racio- nalismo cientificista, logo cedem lugar ao descontentamento, ao horror, à inversão de valores, à poesia da morte^14. Nesse caso, é ilustrativa a poesia de Augusto dos Anjos, que será profundamente influenciada pelo evolucionismo de Spencer ou Haeckel. Esse que se diz “ filho podre de antigos Goitacazes ”, como aparece nos versos de O Lázaro da Pátria , nos deixa ver em Os Doentes , sua concepção da raça brasileira:
“Eu via em mim, coberto de desgraças,/ resultado de bilhões de raças / Que há muitos anos desapareceram! (...)Como quem ana- lisa um apostema,/ De repente, acordando na desgraça,/ Viu toda a podridão da sua raça / Na tumba de Iracema!... (....) E sentia-se pior que um vagabundo / Microcéfalo vil que a espécie encerra,/ Desterrado na sua própria terra,/ Diminuído na crônica do mun- do!”^15
É como “ raça doente ” que o poeta vê, lê, sente e interpreta a espé- cie humana e, em particular, o povo brasileiro. A propósito, a imagem de um Brasil doente seria amplamente divulgada a partir das campanhas de saneamento urbano e rural. Em 1916, o médico e professor da Facul- dade de Medicina do Rio de Janeiro, Miguel Pereira, denunciava: “ O Brasil é um imenso hospital ”^16.
14 O “ decadentismo ” será profundamente influenciado pela filosofia nietzschiana, na crítica aos valores morais e religiosos da sociedade capitalista de fins de século. 15 AUGUSTO DOS ANJOS. Obra Completa de Augusto dos Anjos. BUENO, Alexei. (org.). Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994, pp. 236-249. 16 Na Primeira República, a imagem de um “ Brasil doente ” incide basicamente sobre a vida rural, o que reforça a importância da modernização e urbanização na construção da tristeza e do exotismo no imaginário nacio- nal. A esse respeito ver: LIMA, Nísia T. & HOCHMAN, Gilberto. “Condenado pela raça, absolvido pela medi- cina: o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República”, in MAIO, M. C. & SANTOS, R, V. (orgs.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1996.
criação ou construção de uma imagem do brasileiro como a de um ho- mem indolente, vadio, preguiçoso e não civilizado^22. Em verdade, a influência das teorias racistas e naturalistas não esta- va restrita à explicação do campo de análise, isto é, ao homem e à natu- reza tropical, mas ultrapassava as fronteiras do objeto para incrustar-se no próprio estilo literário e científico da época. Tal é a fórmula do natura- lismo brasileiro. Para Roberto Ventura, o que caracteriza o “ estilo tropical do naturalismo brasileiro ” é a inversão provocada pela influência do pen- samento iluminista quanto à imagem negativa do homem e do paraíso tropical americano, em particular, o homem brasileiro. Com Montesquieu, passando por Rousseau, Buffon até Gobineau, a visão encantadora e paradisíaca dos trópicos vai cedendo lugar ao desencanto e à desilusão se não total com relação à natureza ao menos com relação aos seus habitantes. Se, inicialmente, o Novo Mundo é visto como o próprio para- íso terreal, edênico e tropical, conforme aparece nas primeiras descri- ções dos descobridores, viajantes e conquistadores da terra brasilis , posteriormente, tal visão será parcialmente desvalorizada em decorrên- cia das explicações naturalistas e racistas sobre os costumes, hábitos e estilos de vida do homem americano. O naturalismo, no contexto do realismo científico e literário que mar- ca o imaginário intelectual da virada do século, representou um esforço ideológico de superação do então movimento romântico. É através dos ideais da objetividade, da determinação das causas naturais (raça, cli- ma, temperamento) e culturais (meio, educação), da imposição positi- vista da factualidade e da caracterização tipológica dos fenômenos so- ciais e culturais, que o naturalismo passa a explicar a realidade social brasileira. Esses elementos serviram ao desenvolvimento de uma con- cepção determinista na qual o homem se vê submetido ao imperialismo das “ leis naturais ”, restando-lhe apenas a sensação de impotência. Exem- plar será a afirmação de Ronald de Carvalho, segundo a qual “ o homem da zona tropical é um ser destinado ao terror e à humilhação diante da natureza ”^23. Uma formulação mais bem elaborada desse destino inelu- tável será fornecida por Graça Aranha, em Canaã, através da idéia de um “ terror cósmico ”, no qual, frente à natureza, o homem se vê subjuga- do^24. Com efeito, no realismo naturalista a natureza deixa de ser objeto de culto e/ou exaltação e passa a ser vista como problema na definição da identidade nacional.
22 Muitas das representações do brasileiro indolente, preguiçoso etc., apontadas por Leite (op. cit., 1983) na interpretação do pensamento de intelectuais brasileiros, ainda hoje persistem no imaginário popular, segun- do a análise de ALMEIDA, Antônio Ribeiro de. “Quem é o Brasileiro?”. SÍNTESE Nova Fase , 20, 60, 1993. 23 Carvalho apud Frieiro, op. cit., 1957, p. 26 24 A idéia de “ terror cósmico ” será reafirmada pelo autor em conferência pronunciada na Academia Brasileira em 1924; ver: GRAÇA ARANHA. Espírito Moderno. São Paulo, Cia. Graphico-Editora M. Lobato, 1925.
A representação da tristeza é, antes de tudo, uma construção histó- rico-cultural. Mas é como problema relacionado ao determinismo do meio e da raça que a tristeza será vista, pensada e sentida no imaginário da Belle Époque. De fato, tanto a idéia de raça triste quanto a de natureza tropical, aparentemente contraditórias, isto porque, uma é a própria re- presentação de algo sem vida e cor, e a outra designa tudo o que é colorido e exuberante; ambas remetem ao plano da natureza. Duas or- dens de natureza, uma humana e a outra física, mas ambas determinan- tes na composição da idéia de natureza na sociedade brasileira da Belle Époque. A tal ponto a natureza humana parece submeter-se aos capri- chos da natureza física (e divina), que há no imaginário popular brasilei- ro uma anedota bastante esclarecedora do que “ somos ”: Deus, ao criar o Brasil, verdadeiro “ paraíso tropical ”, isentou-o de todas as catástrofes naturais como terremotos, vulcões, etc, o que gerou questionamentos de outros povos. Porém, do alto de sua divina sabedoria, respondeu: esperem para ver o “ povinho ” que vou colocar ali. Aqui, no imaginário popular, como no imaginário intelectual brasilei- ro da virada do século XIX/XX, é a força da natureza, no caso, tropical, com todo esplendor e beleza, que determina o destino dos homens e da sociedade. Tanto maior é a força da natureza, pior é o seu povo; terrível ironia de uma anedota. Daí, quando não se vê a tristeza como sentimen- to submetido ao império de uma natureza tropical dadivosa, gerando, inclusive, a preguiça como seu sinal, ela será vista como o símbolo de uma miscigenação racial cujo resultado é um povo degenerado e doen- te. Some-se a isso o exotismo experimentado como sentimento de es- trangeiridade. Nessa perspectiva, a cultura submete-se à natureza.
Colocando as idéias no lugar
O elemento estranho ou estrangeiro nem sempre é um “ outro ” loca- lizado além das fronteiras como se fosse um inimigo, ao contrário, ele parece mesmo residir no interior dos Estados nacionais^25. Nessa pers- pectiva, a experiência da modernidade desempenha um papel funda- mental, pois muito do que aparece como estranho, estrangeiro, fora de lugar, é constitutivo dessa realidade e, portanto, um sinal de que muitas vezes o estranho e/ou o estrangeiro habita o lado de dentro das frontei- ras. Aqui, o elemento estranho ou estrangeiro também é menos um “ ou- tro ” do que um sentimento ou uma atitude. De fato, esse parece ser o
25 Para Bauman, o estrangeiro é o símbolo da ambivalência, da indeterminação e, portanto, constitui-se uma ameaça à ordem construída pelo Estado nação, ver: BAUMAN, Zigmunt. “Modernidade e Ambivalência”, in Featherstone, M. (org.), Cultura Global – Nacionalismo, Globalização e Modernidade. Petrópolis, Vozes, 1994.
de a um processo de modernização dos sentidos, no qual uma nova sensibilidade estética marcada pelo individualismo, racionalismo e ur- banização vai ganhando lugar no cenário moderno e urbano da socie- dade brasileira. Assim, o que parece justificar a importância sociológica da tristeza e do exotismo no processo de construção da nação e na tradição das interpretações da cultura brasileira é, a meu ver: o lugar das idéias. Se tomarmos o próprio texto de Schwarz, fica a pergunta: “As Idéias fora do Lugar” estão no devido lugar?^28.
A modernização dos sentidos
A modernidade introduziu um conjunto de transformações dentre as quais destacam-se as urbanas. A cidade moderna tornou-se um lugar de estranhos. Aí, um sentimento de estrangeiridade crescente parece tomar conta dos indivíduos. Segundo Mariz, o homem urbano moderno configura-se uma espécie de estrangeiro, pois:
“A complexidade da sociedade moderna, seu pluralismo e dina- mismo multiplicam as possibilidades de alguém tornar-se estranho para os outros e deparar-se com estranhos. A experiência subjeti- va de ser um estrangeiro torna-se uma experiência disponível para todos os indivíduos na sociedade industrial moderna. A grande variedade de estilos de vida desta sociedade, junto com o dina- mismo da vida moderna colocam os indivíduos freqüentemente em novas situações e ambientes estranhos para ele. Por falta de opções em sua região de origem, muitos indivíduos, especialmen- te jovens, são obrigados a mudar-se para áreas muito diferentes daquelas, onde foram criados.(...) Mas, a mobilidade geográfica da sociedade moderna não é o único processo que transforma indivíduos em estranhos. A mobilidade social e as rápidas trans- formações desta sociedade também lançam indivíduos em dife- rentes ambientes e situações, nas quais ele é ‘um de fora’ e, tal como um estrangeiro numa terra desconhecida, precisa usar téc- nicas adaptativas, precisa ser ressocializado. Portanto, pode-se dizer que a sociedade moderna é uma produtora de estrangeiros ou, mais genericamente, de estranhos”^29_._
28 Aqui tomamos emprestada de Schwarz (1987) a idéia desenvolvida em “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da Malandragem’”. in Que Horas São? Ensaios. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. 29 MARIZ, Cecília L. (1988), “O estrangeiro e o homem moderno”. Cadernos de Estudos Sociais, 4, 1, 1988, p.
A propósito, esse parece ser um processo comum presente na vida moderna de todas as grandes cidades ou metrópoles^30. Em particular, no Brasil, desde a chegada da família real em 1808, a cidade do Rio de Janeiro passou por um intenso processo de transformações orientadas pela política imperial, tanto no que diz respeito aos melhoramentos urba- nos quanto ao processo de constituição do Estado nacional. No entanto, somente a partir da segunda metade do século XIX, é que uma transfor- mação mais significativa se deu na sociedade, em especial, nas princi- pais cidades, caracterizando-se por um efetivo processo de moderniza- ção da sociedade brasileira^31. Nicolau Sevcenko nos fornece um retrato das transformações urba- nas, na cidade de São Paulo, no período posterior à Primeira Guerra Mundial, no qual predomina um certo sentimento de estrangeiridade:
“De tal modo o estranhamento se impunha e era difuso, que envol- via a própria identidade da cidade. Afinal, São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de brancos e nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem americana, nem euro- péia, nem nativa; nem era industrial, apesar do volume crescente das fábricas, nem entreposto agrícola, apesar da importância cru- cial do café; não era tropical, nem subtropical; não era ainda mo- derna, mas já não tinha mais passado. Essa cidade que brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus próprios habitantes, perple- xos, tentando entendê-la como podiam, enquanto lutavam para não serem devorados”^32_._
A metrópole tende a acentuar esse sentimento de estranhamento, pois a experiência subjetiva introduzida pela emergência do individua- lismo, aliada ao racionalismo, contribuem para o sentimento de estran- geiridade dos indivíduos, ao mesmo tempo que destrói a certeza no co- nhecimento do mundo tradicional. “ A emergência das grandes metrópo- les e seu vórtice de efeitos desorientadores, suas múltiplas faces incon- gruentes, seus ritmos desconexos, sua escala extra-humana e seu tem- po e espaço fragmentários, sua concentração de tensões, dissiparam as bases de uma cultura de referências estáveis e contínuas ”, salienta
30 Vale lembrar o estudo clássico de Simmel, A Metrópole e a Vida Mental , de 1900, na qual anunciava a famosa “ atitude blasé ” como forma de distanciamento e sobrevivência psíquica. 31 Apesar das transformações operadas no contexto urbano desde a chegada da família real, a estrutura agrá- ria da sociedade brasileira persistirá por muito tempo condicionando o processo de modernização do país. Ver a esse respeito: FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos – Decadência do Patriarcado Rural e Desen- volvimento Urbano. 7a edição, Rio de Janeiro, José Olympio, 1959 e COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República – Momentos Decisivos. 6a edição, São Paulo, Brasiliense, 1994. 32 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo, Cia. das Letras, 1992, p. 31.
De fato, o processo de modernização não incide somente sobre a vida social e econômica com a introdução de novas tecnologias e estilos de vida, mas também atinge o plano das idéias e, mais especificamente, o plano dos sentidos. Na verdade, a modernização da sociedade impli- ca em um processo de domesticação das paixões ao submeter o pensa- mento aos preceitos da lógica racional, científica e capitalista. Aí uma nova sensibilidade marcada pelas experiências modernas da individua- lidade, racionalidade e subjetividade, aos poucos vai sendo construída nos “ tristes trópicos ”^37. Paralelamente à modernização econômica da sociedade, um processo mais sutil de modernização dos sentidos era colocado à prova. Seguindo o processo civilizatório ditado pela experi- ência ocidental, estava em curso uma “ domesticação das paixões ” à qual uma nova sensibilidade estética era forjada, antecipando algumas das experiências do modernismo no Brasil. Nesse período, tem início uma maior complexificação da sociedade, estendendo-se da divisão social do trabalho à construção da subjetivi- dade do homem moderno. De acordo com Elias, em O Processo Civiliza- dor^38 , uma crescente “ psicologização ” marcada pelo autocontrole dos sentimentos e domesticação dos sentidos dos indivíduos entrava em curso nos trópicos, começando por marcar a visão de alguns intelectu- ais da época. A modernidade provoca nos indivíduos uma certa excita- ção dos sentidos em que sua subjetividade é constantemente confronta- da com a realidade objetiva das transformações sociais^39. A verdade é que a modernidade introduziu na vida do homem moderno o sentimento de estrangeiridade, o que permitiu-lhe olhar para o mundo com maior objetividade mas, ao mesmo tempo, condenou-o a um olhar blasé. Daí a visão de um mundo tropical desencantado, marcado pelas representa- ções da tristeza e pelo sentimento de estrangeiridade. Apesar das controvérsias^40 em torno do caráter elitista e vanguar- dista da Semana de 22, o movimento modernista parece condensar sig- nificativamente o processo de modernização dos sentidos. Além das inovações introduzidas no período pós-guerra como, por exemplo, no- vos hábitos e práticas de lazer, esportivas, habitacionais, alimentares etc, que se acentuam com o tempo, a Semana de 22 anunciou uma renovação estética que, segundo Graça Aranha em Conferência de Aber-
37 Lévi-Strauss denuncia os efeitos dessa modernização sobre os trópicos produzindo uma realidade triste e subvertendo o sentido do exotismo, ver: Tristes Trópicos ..... Lisboa, Edições 70, 1979. 38 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador – Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar, 1993. 39 A Vida Vertiginosa , título de um livro de João do Rio, representa uma síntese de sua visão da modernidade. Em crônica sobre o automóvel, ícone da modernidade, o autor faz uma apologia da sua “ precisão fenomenal ” encurtando o tempo, o espaço, ao mesmo tempo que “ simplifica os negócios, simplifica o amor, liga tôdas as coisas vertiginosamente, desde as amizades necessárias que são a base das sociedades organizadas, até o idílio mais puro ”, ver: João do Rio – Um Antologia. (org.). MARTINS, Luís. Rio de Janeiro, INL, s/d, p. 50. 40 Sobretudo, com os cariocas pela disputa político-cultural da nação; ver: VELLOSO, Mônica Pimenta. Moder- nismo no Rio de Janeiro – Turunas e Quixotes. Rio de Janeiro, Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1996.
tura da Semana de Arte Moderna, obedece ao projeto civilizacional do Ocidente, pois, declara o autor:
“E eis chegado o grande enigma que é o de precisar as origens da sensibilidade na arte moderna. Este supremo movimento artístico se caracteriza pelo mais livre e fecundo subjetivismo. É uma resul- tante do extremado individualismo que vem vindo na vaga do tem- po ha quasi dous seculos até se espraiar em nossa época, de que é feição avassaladora”^41_._
Subjetivismo esse que, seguindo o curso do processo de individua- lização e libertação da arte aos cânones do academicismo e da tradi- ção, “ se torna no mais desinteressado objetivismo ”^42 , promovendo toda uma nova sensibilidade estética que passa pelo processo de autocon- trole dos indivíduos ao de experimentação dos sentidos. A moderniza- ção dos sentidos vai exigir uma nova relação estética que ultrapasse o campo da arte e se fixe na percepção da própria sociedade brasileira^43. Em suma, a representação da tristeza e o sentimento de estrangeiri- dade designam não só o caráter nacional brasileiro, mas também a ma- neira como os intelectuais da época sentiram, pensaram e experimenta- ram a modernização da sociedade como parte de um processo mais amplo de construção da nação. Dessa forma, a representação da triste- za parece exprimir muito do espírito da época, em que os valores da modernidade e da racionalidade científica e capitalista apontam para um processo de transformações no qual as idéias não estavam fora do lugar, ao contrário, numa alusão a Marshall Sahlins, a realidade social tornava-se metáfora viva das idéias^44.
Considerações finais
A tristeza e o exotismo ganham um colorido especial no processo de construção da identidade nacional. Descrevem mais o sentido da modernização da sociedade brasileira do que o significado tradicional de um país que, por muito tempo, será visto como de vocação agrária e, portanto, rural, conforme o pensamento de Alberto Torres^45. Na ver-
41 Graça Aranha, op. cit. p, 15 42 Idem, p. 16. 43 Com o Modernismo, a “ modernização dos sentidos ” fica mais evidente. Para o crítico literário Benedito Nu- nes, a Antropofagia proposta por Oswald de Andrade representou no Modernismo “ um programa de reedu- cação da sensibilidade e uma teoria da cultura ”. NUNES, Benedito. (1978) “Antropofagia ao alcance de todos”, in ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à Antropofagia às Utopias , 2a edição, Rio de Janeiro, Civiliza- ção Brasileira, 1978, p. XX. 44 SAHLINS, Marshall. Historical Metaphors and Mythical Realities – Structure in the Early History of the Sandwi- ch Islands Kingdom. The University of Michigan Press, 1981. 45 TORRES, Alberto. O Problema Nacional Brasileiro – Introdução a um Programa de Organização Nacional. 3a. edição, São Paulo, Nacional, 1938.