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Misteriosa Tia Daniela: Um Enigma Familiar, Manuais, Projetos, Pesquisas de Psicanálise

Através desta história, analisaremos as relações complexas entre uma pequena família e a intrigante figura da tia daniela, cujos comportamentos inusitados, como o uso prolongado de uma luva, suscitam inquietude e estranheza. A história apresenta uma família composta por ducha, pombinha e ed, e a entrada da misteriosa daniela, que traz consigo uma aura de desconhecida beleza e comportamentos exóticos. O documento também explora as implicações simbólicas da figura de daniela, que pode ser interpretada como um jardim selvagem, e as observações de pombinha sobre ela, que revelam sua natureza misteriosa e perturbadora.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

PorDoSol
PorDoSol 🇧🇷

4.5

(272)

654 documentos

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XI Congresso Internacional da ABRALIC
Tessituras, Interações, Convergências
13 a 17 de julho de 2008
USP
São Paulo, Brasil
Muito além do jardim... Uma leitura do conto
“O jardim selvagem” de Lygia Fagundes Telles
Prof. Dr. Marisa Simons (CEFET-SP)
Resumo:
A análise propõe-se a desvelar, sob a ótica da crítica temática e conceitos da psicanálise freudiana
e lacaniana, a metáfora básica que organiza o conto "O jardim selvagem" de Lygia Fagundes Tel-
les, a qual ambiguamente associa a protagonista à imagem de um "jardim", local de beleza e orde-
nação vegetal, e ao signo "selvagem", que o qualifica, num evidente contraponto semântico. Acom-
panhando o foco narrativo que centraliza o tema das relações familiares em um pequeno grupo,
analisar-se-á a inquietante estranheza vinculada à linda figura da "tia" Daniela, de palavras gentis
e comportamentos extraordinários, tais como o inexplicável uso diuturno de uma luva na mão di-
reita. No embate entre o familiar e o insólito, focalizar-se-á o jogo narrativo em que o terrível en-
contra-se oculto pelo belo.
Palavras-chave: Lygia Fagundes Telles, literatura e psicanálise, duplo, estranhamento.
Introdução
Dentre os livros da escritora contemporânea Lygia Fagundes Telles encontra-se O Jardim
Selvagem (1965), ganhador do Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, no qual se destaca o
conto que dá título à obra.
Objeto da presente análise realizada na confluência da Literatura e Psicanálise, o conto em
questão foi reeditado em Antes do baile verde (1972), obra vencedora do Prêmio Guimarães Rosa
da Fundepar Governo do Estado do Paraná, uma coletânea dos melhores contos da autora, desde o
início de seu percurso literário na década de 40. A narrativa também foi selecionada para integrar
Mistérios (1981), livro publicado pela Editora Nova Fronteira, com o objetivo de resgatar aqueles
que foram considerados alguns dos seus textos mais instigantes.
Segundo o crítico Fábio Lucas, na apresentação da obra de 1981, o projeto literário de Lygia
Fagundes Telles é um dos mais estimulantes no espaço da literatura brasileira, oferecendo contos
que ora se aproximam do sobrenatural, ora dos recônditos da alma ou da busca do eu impossível,
enquanto explora com arte todos os elementos do processo narrativo, em intrigas bem urdidas, que
encontram na linguagem, na liberdade da corrente de pensamento, nos monólogos interiores, nas
expansões poéticas, uma genuína forma de expressão.
1 Além do jardim...
Evidenciando aspectos apontados pela crítica, o conto “O jardim selvagem” introduz o
insólito nas relações corriqueiras de um pequeno grupo familiar composto pela menina Ducha,
personagem-narradora, sobrinha de Pombinha e Ed, o qual se casa sem qualquer participação à
família, nela introduzindo a desconhecida Daniela, linda mulher acima de trinta anos, de palavras
melífluas e comportamentos exóticos. Advinda de obscuras origens, não esclarecidas durante todo o
conto, a presença de Daniela faz-se marcar pelo uso diuturno de uma luva na mão direita, o
hábito de montar cavalo em pêlo à semelhança dos índios, bem como o de tomar banho, em total
nudez, na cascata da chácara eleita como moradia pelo casal.
No início do conto, a protagonista é definida pelo marido por meio da seguinte comparação:
“Daniela é como um jardim selvagem”, a qual produz na mente do leitor uma imagem antitética,
explicada por meio de tautologia, pois à indagação da sobrinha quanto ao seu significado, Ed
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Tessituras, Interações, Convergências USP – São Paulo, Brasil

Muito além do jardim... Uma leitura do conto

“O jardim selvagem” de Lygia Fagundes Telles

Prof. Dr. Marisa Simons (CEFET-SP)

Resumo:

A análise propõe-se a desvelar, sob a ótica da crítica temática e conceitos da psicanálise freudiana e lacaniana, a metáfora básica que organiza o conto "O jardim selvagem" de Lygia Fagundes Tel- les, a qual ambiguamente associa a protagonista à imagem de um "jardim", local de beleza e orde- nação vegetal, e ao signo "selvagem", que o qualifica, num evidente contraponto semântico. Acom- panhando o foco narrativo que centraliza o tema das relações familiares em um pequeno grupo, analisar-se-á a inquietante estranheza vinculada à linda figura da "tia" Daniela, de palavras gentis e comportamentos extraordinários, tais como o inexplicável uso diuturno de uma luva na mão di- reita. No embate entre o familiar e o insólito, focalizar-se-á o jogo narrativo em que o terrível en- contra-se oculto pelo belo. Palavras-chave : Lygia Fagundes Telles, literatura e psicanálise, duplo, estranhamento.

Introdução

Dentre os livros da escritora contemporânea Lygia Fagundes Telles encontra-se O Jardim Selvagem (1965), ganhador do Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, no qual se destaca o conto que dá título à obra. Objeto da presente análise realizada na confluência da Literatura e Psicanálise, o conto em questão foi reeditado em Antes do baile verde (1972), obra vencedora do Prêmio Guimarães Rosa da Fundepar Governo do Estado do Paraná, uma coletânea dos melhores contos da autora, desde o início de seu percurso literário na década de 40. A narrativa também foi selecionada para integrar Mistérios (1981), livro publicado pela Editora Nova Fronteira, com o objetivo de resgatar aqueles que foram considerados alguns dos seus textos mais instigantes. Segundo o crítico Fábio Lucas, na apresentação da obra de 1981, o projeto literário de Lygia Fagundes Telles é um dos mais estimulantes no espaço da literatura brasileira, oferecendo contos que ora se aproximam do sobrenatural, ora dos recônditos da alma ou da busca do eu impossível, enquanto explora com arte todos os elementos do processo narrativo, em intrigas bem urdidas, que encontram na linguagem, na liberdade da corrente de pensamento, nos monólogos interiores, nas expansões poéticas, uma genuína forma de expressão.

1 Além do jardim...

Evidenciando aspectos apontados pela crítica, o conto “O jardim selvagem” introduz o insólito nas relações corriqueiras de um pequeno grupo familiar composto pela menina Ducha, personagem-narradora, sobrinha de Pombinha e Ed, o qual se casa sem qualquer participação à família, nela introduzindo a desconhecida Daniela, linda mulher acima de trinta anos, de palavras melífluas e comportamentos exóticos. Advinda de obscuras origens, não esclarecidas durante todo o conto, a presença de Daniela faz-se marcar pelo uso diuturno de uma só luva na mão direita, o hábito de montar cavalo em pêlo à semelhança dos índios, bem como o de tomar banho, em total nudez, na cascata da chácara eleita como moradia pelo casal. No início do conto, a protagonista é definida pelo marido por meio da seguinte comparação: “Daniela é como um jardim selvagem”, a qual produz na mente do leitor uma imagem antitética, explicada por meio de tautologia, pois à indagação da sobrinha quanto ao seu significado, Ed

Tessituras, Interações, Convergências USP – São Paulo, Brasil responde-lhe: “Jardim selvagem é um jardim selvagem”^1. A imagem e a expressão tautológica, “irmãs” do non sense, são utilizadas pelo esposo diante da dificuldade encontrada para explicitar o complexo perfil da mulher. Entrementes, a comparação acaba por se transformar, ao longo do conto, na principal metáfora^2 que o organiza, na medida em que vão se sobrepondo e fundindo na mente do leitor os termos comparados. Busque-se, pois, o sentido da metáfora que, pouco a pouco, se forma, podendo ao final ser traduzida na assertiva: “ Daniela é um jardim selvagem”. Para melhor compreender a imagem composta por meio das palavras, analisem-se os signos que se amalgamam em sua formação. Inicialmente, o nome da protagonista, Daniel(a) , remetendo a Daniel, o primeiro profeta a chamar um anjo pelo nome^3 , traz à memória os mensageiros celestes, ainda por que o significante encontra ressonância nos nomes de conhecidos arcanjos do Velho e do Novo Testamento: Miguel (vencedor de dragões), Gabriel (mensageiro), Rafael (guia dos médicos e viajantes)^4. Por livre associação, em razão de sua beleza, de seus olhos azuis, bem de acordo com o estereotipo das figuras celestes, Daniela projetaria a idéia do Bem. Porém, a configuração narrativa de uma mulher angelical vai além desse primeiro frame. Devido ao deslizamento de sentido de um signo sobre outro na cadeia sintagmática, a carga semântica associada ao signo Daniela encontra ressonância na palavra jardim que, dentro da tradição religiosa judaico-cristã, faz pensar no jardim de delícias, no paraíso terrestre, lugar de beleza e prazer. O quadro parece apropriado à protagonista devido ao deleite que causa sua delicadeza ao falar com as pessoas, sua elegância no vestir, sua cultura musical evidenciada na capacidade de tocar piano, deixando subentendida a felicidade do marido pela posse de tal mulher. Entretanto, a idéia de Éden associada ao feminino remete, quase que de imediato, por mecanismo psíquico de associação, à Eva e à maligna serpente, Lúcifer, também um anjo dos mais belos antes de sua queda. Coloca-se, assim, narrativamente, um grão de sal na aparente doçura com que se retrata Daniela. Se a palavra jardim, no interior de seu campo semântico, sofre deslocamento de sentido, instaurando a ambigüidade, pois não se trata de qualquer jardim, mas daquele em que se torna possível a presença do maligno, o vocábulo selvagem acaba por promover a sua total subversão. Por princípio, jardim é um lugar de ordenação vegetal, visando harmonia estética, a produção do belo. Mas a palavra selvagem ali insere a desarmonia, a ruptura das normas e padrões, à semelhança do que fez a serpente no Paraíso. Um jardim e seu anjo. Que anjo será este? A ambigüidade estabelece-se desde o início, devido a certos procedimentos narrativos. No nível do enredo, nada se esclarece quanto à origem de Daniela, que também nada pode elucidar, por não lhe ser dada a palavra. Tudo o que dela se conhece nos chega por meio do discurso da narradora e das demais personagens. Nem uma só vez a protagonista assume o discurso direto. Também Ed, que a conheceria melhor na condição de marido, só toma diretamente a palavra em dois momentos, no primeiro e quarto parágrafos, apenas para comparar a esposa a um jardim selvagem. Envolvido no silencioso jogo do desconhecido e na definição tautológica de Ed sobre Daniela, o leitor sente-se frente a um enigma a desvendar e pode assumir o viés do marido - a comparação (^1) TELLES, L. F. “O jardim selvagem”, in Mistérios: ficções, 5 ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 49 - 56. (^2) Jacques-Lacan em As formações do inconsciente , Seminário de 1958, ao tratar o ensaio freudiano - O chiste e suas relações com o inconsciente - , no âmbito de sua teoria do significante, identifica a condensação (um dos processos oníricos teorizados por Freud) à metáfora. Aponta o célebre exemplo de condensação aquele que Freud realizou entre as palavras: familiar e milionário, dando origem ao neologismo familionário. Essa condensação/metáfora faz emergir “um sentido a partir do não-senso; do não-senso do termo familionário surge um sentido, o de ter familiaridade com um milionário.” ROUDINESCO, E. & PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.126. (^3) CLARET, M. (org). A essência dos anjos. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005, p. 43. (^4) CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Verbete: “Anjos”, in Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números), 10 ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1996, p.61.

Tessituras, Interações, Convergências USP – São Paulo, Brasil Quanto a Ed, parece ter se constituído como sujeito marcado pela repressão.^9 Observando o irmão, durante sua visita depois de casado, Pombinha recorda-se de seu aflito olhar de criança, quando em seu quarto, com medo da escuridão noturna, mesmo assim lhe disse de modo resoluto: “Pode ir embora (...) já não me importo mais de ficar no escuro”.^10 Intuitiva, Pombinha “pressente” o temor no irmão, ainda que ele nada verbalize. Se no nível narrativo o psiquismo de Pombinha revela-se basicamente por meio de seus discursos diretos e observações da sobrinha, o de Ed pelas lembranças da irmã, e o de Ducha pela própria seleção dos fatos a serem narrados e opções de linguagem, a psique de Daniela deve ser apreendida por meio do discurso indireto da narradora e das demais personagens, sobre suas estranhas atitudes. Alguns comportamentos incomuns de Daniela são relatados pela cozinheira do casal à Pombinha, antes que ela a conheça, tal como o uso contínuo de uma só luva na mão direita, sempre de cores diferentes combinando elegantemente com seus trajes diários, e até mesmo uma de borracha para os banhos de cachoeira. O fato causa, na irmã de Ed, uma sensação de inquietante estranheza.^11 O estranhamento mostra-se na fala de Pombinha que, com pequenas variações, insiste na seguinte idéia: “que moça será essa?” 12 Daniela gera a sensação de estranhamento por que certamente toca algo recalcado no inconsciente de Pombinha, uma “‘terra estranha interior’ [para a qual] Lacan inventou um nome – êxtimo, extimidade - , nome para designar (...) o real no simbólico” 13

. Sabendo-se pela psicanálise que as coisas sentidas como estranhas pertencem ao campo do amedrontador, remetendo a sentimentos recalcados, analisemos a possível causa de estranhamento de Pombinha com relação à Daniela. Já nos dizia Freud em seu ensaio “O Estranho”, que o fenômeno do duplo, estudado por Otto Rank (1914) tem ligações com “reflexos em espelhos, com sombras, com espíritos guardiães, com a crença na alma e com o medo da morte” 14 que domina a mente da criança e do homem primitivo. Pombinha, “mulher de presságios”, indicia esse lado da psique humana, na medida em que parece sentir a presença do duplo em Daniela, textualmente marcado por uma mão enluvada e outra descoberta. Na esteira de Freud, sendo o duplo um estranho anunciador da morte ligado a estágios primitivos^15 , Pombinha teme. Entretanto, o estranhamento provocado por Daniela, uma figura tornada familiar por seu papel de esposa, de cunhada e tia, de quem irrompe outro lado obscuro, desconhecido e potencialmente perturbador, é dissipado quando Pombinha vem a conhecê-la. Encantada com a amabilidade da moça, cativada pelos cortes de seda recebidos, Pombinha, uma mulher que usava “meias murchas cor de cenoura”^16 , deixa-se seduzir. O que se pode dizer é que a proximidade com o Belo causa “cegueira” à Pombinha, que envolvida afetivamente e desejosa de que Ed fosse feliz, reprime sua (^9) Como explicita a teoria psicanalítica, “a essência da repressão consiste simplesmente em afastar determina- da coisa do consciente, mantendo-a a distância”. FREUD, S. “Repressão”. In: Obras psicológicas comple- tas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XIV, p.152. (^10) “O jardim selvagem”, p. 50. (^11) Freud nos mostra que dentre os diferentes matizes da palavra alemã heimlich , traduzida por “familiar”, encontra-se um que é igual ao vocábulo oposto – unheimlich. Por esse encontro de opostos, na expressão, das unheimlich, conceituada por Freud e traduzida como “inquietante estranheza”, encontra-se algo conheci- do, familiar ( heimlich) , que se tornou alheio pelo processo de recalque ( unheimlich). FREUD, S. “O Estra- nho”. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira , Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XVII, p. 238, 242-244. (^12) “O jardim selvagem”, p. 50, 51 e 52. (^13) SOUZA, N. S. “O estrangeiro: nossa condição”. In: KOLTAI, C. (org.) O estrangeiro , São Paulo: Escuta: FAPESP, 1998, p.157. (^14) FREUD, S. Idem, op. cit ., p.252. (^15) FREUD, S. Idem, ibidem, loc. cit. (^16) “O jardim selvagem”, p. 53.

Tessituras, Interações, Convergências USP – São Paulo, Brasil inquietação sobre Daniela, assim como a própria curiosidade sobre o uso da luva: “... fiquei sem jeito de perguntar, essas coisas não se perguntam”.^17 Buscando razões lógicas, presume que a moça esconde com a luva algum tipo de deformidade física. Mas se a “cegueira” se estabelece em relação à Pombinha, o mesmo não acontece com a personagem-narradora. Dentre os procedimentos narrativos, já apontados, novo fato do enredo contribui para isso. Na ausência de Pombinha, Ducha presencia um diálogo entre a cozinheira do casal e Conceição, a empregada de sua casa. A mulher procurava emprego, demitira-se no dia anterior, pois, chocada, vira Daniela, de modo frio, como se estivesse brincando, pegar o revólver com a mão enluvada e dar um tiro no ouvido de Kleber, o cachorro amigo que sempre a acompanhava aos banhos de cascata. Ao recriminar a patroa, recebera desta, de modo educado e impassível, a explicação de que o cão estava doente, sofrendo muito, e que a morte era um descanso. Diante das contra-argumentações da cozinheira, de que o cão era um bicho de Deus, Daniela apenas explicara que a vida devia ser afinada como música, não admitindo o desafino de uma doença sem cura. Logo, era melhor acabar com o instrumento desafinado. Daniela revela seu duplo: a face do Bem e a do Mal. A expressão tautológica de Ed e a metáfora jardim selvagem quedam esclarecidas. O “anjo bom” representado pela linda e delicada figura de esposa, cunhada, tia, associado a um ego pronto a assumir os papéis normais da vida familiar, de onde surge, de repente, o estranho, o “anjo mau” capaz de fazer com que seus olhos azuis mudem de cor durante os momentos de ira 18 , o que pode ser interpretado como a irrupção de um id apto a matar a sangue frio.

Conclusão

Se Ducha não se entrega à “cegueira” produzida pelo carisma de Daniela, isso se deve muito à forma como o enredo se organiza. Não a conhecendo diretamente, Ducha mantém-se fora da influência exercida pelo lado “anjo bom” da protagonista, ficando em posição favorável para observar seu lado “anjo mau” e assumir o papel de narradora. E tanto é assim, que afirma: “... levei o maior susto do mundo quando dois meses depois tia Daniela telefonou da chácara para avisar que tio Ed estava muito doente”.^19 A personagem-narradora associa a história de Kleber à doença do tio e antecipa os possíveis desdobramentos da situação que envolve aquela estranha tia. Daí o seu susto e inquietação. Daniela, um metafórico jardim permanece na chácara, como se fosse o anjo guardião daquele “Éden” e do marido doente. Mostra-se, aos olhos do mundo, uma enfermeira dedicada, que não abandona o companheiro por um só instante. Tudo parece encaminhar-se bem, até que sucede o inesperado (?): a notícia de que Ed suicidara-se com um tiro! Teria a serpente adentrado o Paraíso? Manifestara-se o “anjo mau”? Que simbólicas plantas selvagens teriam invadido o “jardim”? O conto deixa ao leitor o suspense e a questão. Pombinha e as irmãs, desesperadas, já haviam ido para a chácara, quando Ducha chega da escola e recebe a notícia. Feita à Conceição que a informa da morte do tio, sem saber maiores detalhes, a pergunta de Ducha fica ressoando, sem resposta, nos parágrafos finais: “Um tiro no ouvido?” (^17) Idem, p. 52. (^18) Idem, p. 55. (^19) Idem, ibidem.