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Este artigo analisa o tema da morte assistida a partir de questionamentos levantados na película espanhola mar adentro. O autor aborda a importância da liberdade e da dignidade da vida humana, quando marcada por deficiências que tolhem a autonomia. O artigo também discute a opção entre continuar a viver e a opção pelo suicídio assistido, como fez ramon sampedro.
Tipologia: Notas de estudo
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Revista Bioética 2008 16 (1): 51 - 60 51
Léo Pessini
Resumo: Este artigo analisa o tema da morte assistida a partir de questionamentos levantados na película espanhola Mar Adentro (2004), do cineasta Alejandro Almenabar, sobre o drama do jovem marinheiro espanhol Ramon Sampedro. Além de comover platéias no mundo inteiro, o filme trouxe a público uma série de questionamentos éticos sobre a vida e a morte, dentre as quais destacam-se: qual o valor da vida humana quando marcada por deficiências que tolhem a liberdade e a autonomia? O que fazer quando não se encontra mais motivos para viver? Continuar a viver tentando ressignificar a vida seria possível ou a opção pelo suicídio assistido seria desejável como o fez Ramon Sampedro? Longe de assumir uma postura de juízes, mesmo discordando da solução final, este artigo argumenta pelo direito ao respeito ao qual todo ser humano faz jus.
Léo Pessini Professor doutor de teologia moral no mestrado stricto sensu em Bioética do Centro Universitário São Camilo (SP)
Palavras-chave: Morte. Eutanásia. Distanásia. Respeito. Autonomia. Liberdade.
No início de 2005, dois filmes fizeram grande sucesso de crítica e público: Menina de Ouro , produção estadu- nidense, e Mar Adentro , filme espanhol, produzido por Alejandro Amenábar. O último traz às telas a história verídica de Ramón Sampedro. Os dois filmes versam sobre o mesmo tema: a questão da eutanásia, do mor- rer sem sofrimentos por opção.
Enquanto esses filmes concorriam a prêmios, desenro- lavam-se na vida real, com ampla cobertura da mídia, dois casos que acabaram sendo acompanhados em todo o mundo. Num deles, após longa batalha judicial que suspendeu a alimentação que a mantinha viva há 15 anos, a jovem norte-americana Terri Schiavo, em esta- do vegetativo persistente, viria a morrer por inanição. O outro foi a agonia pública do Papa João Paulo II, que após longo calvário causado por doença crônico- degenerativa em fase terminal, Mal de Parkinson, recusa retornar ao hospital, optando por permanecer
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em seus aposentos. Suas últimas palavras foram: deixem-me partir para o Senhor. Consciente da proximidade do final de sua vida, o Papa recusa procedimento dis- tanásico, ou seja, o prolongamento do processo de morrer.
Esses filmes e fatos ajudaram a ampliar a reflexão sobre questões éticas ligadas ao processo de morrer, em tempos de cuida- dos sempre mais tecnologizados. Além disso, criaram a oportunidade no contex- to acadêmico científico, de promover muitas discussões éticas sobre a questão da morte e do morrer, da eutanásia, do direito de morrer com dignidade, questões jurídicas, religiosas e sociais envolvidas, corroborando, nesse sentido, para muitos esclarecimentos 1,2,3,4,5.
Mar Adentro
Iniciemos uma aproximação reflexiva ao filme Mar Adentro , obra de arte provocati- va, que pela dramaticidade incomoda e faz pensar. O título evoca o poema de amor Os Sonhos^6 , escrito por Ramon Sampe- dro, cuja vida é retratada no filme: a histó- ria verídica desse jovem marinheiro espa- nhol que aos 25 anos ficou tetraplégico após trágico mergulho no mar da costa da Galícia. Ao pular na água projetando-se de um rochedo, no momento em que a maré havia baixado, comprometeu irreversivel- mente a coluna vertebral devido ao choque da cabeça contra a areia. Após o acidente Ramon viveu praticamente 29 anos ( anos, 4 meses e alguns dias), sempre com
a determinação férrea de terminar sua vida, lutando convictamente na Justiça pelo direito de morrer. Seu caso foi levado aos tribunais em 1993, numa tentativa para conseguir a legalidade da eutanásia na Espanha, mas o pedido foi negado.
Na carta que dirige aos juízes, em 13 de novembro de 1996, Sampedro apresenta um argumento muito trabalhado no filme: viver é um direito, não uma obriga- ção. Ao colocar em cheque a regulação da vida e da morte pelo Estado e pela Igreja, aponta a hipocrisia do Estado laico diante da moral religiosa. Em janeiro de 1998, em segredo, conseguiu realizar seu inten- to, assistido por pessoa amiga, Ramona Maneiro. Essa amiga, vivida nas telas como a personagem Rosa, confessou no início de 2005 ter ajudado Sampedro a tomar cianureto para morrer. A confissão foi feita sete anos após a morte de Ramón, quando o delito já estava prescrito e o jul- gamento inviabilizado.
A discussão pública sobre eutanásia
O debate de Ramón com a Igreja sobre o direito à eutanásia é estabelecido com Padre Francisco, religioso também tetra- plégico, que resolve visitar Sampedro – que está no segundo andar da residência, mas como a escada é muito estreita não permi- te a passagem da cadeira de rodas do padre. Os dois então se comunicam com a ajuda de um porta-voz, um seminarista, que corre pateticamente de um lado para o outro, levando os recados. A discussão
Morte, solução de vida? Uma leitura bioética do filme Mar Adentro
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deu origem ao filme Mar Adentro. Com ele partilha cigarros, troca beijos, afetos, impossibilidades, desejos, frustrações e a morte como finalidade.
Como interpretar as relações de Ramón com as duas mulheres que com ele desen- volvem uma relação afetiva, Rosa e Júlia? Rosa, jovem simples e desajeitada, oriun- da do contexto rural, entra na vida de Ramón após vê-lo em uma entrevista na televisão, na qual expressa o desejo de morrer. O encontro entre eles é confli- tuoso. Ramón a chama de mulher frus- trada, que busca conhecê-lo apenas por piedade, impondo sua agenda racional: ser minha amiga é me respeitar. Não me julgue. Dirige-se a ela com palavras duras que podem ser a chave para interpretar o mistério de sua personalidade: não me ponhas a responsabilidade de dar um senti- do à tua vida. É justamente essa mulher, Rosa, que vai ser solidária a Ramón na opção de dar um fim à vida.
Júlia identifica-se com a situação de Ramón e o vê a partir do grave problema de saúde que tem, o que acabará por dei- xá-la em estado de demência completa. O amor impossível entre ambos cristali- za-se na vontade comum de que a morte ocorra no mesmo dia da publicação do livro. É um amor que cresce ao abrigo não do desejo de viver, mas do desejo de morrer.
Os motivos de Ramón e Júlia são, contu- do, diferentes: em Ramón temos a pre-
sença de uma motivação até certo ponto sartriana: ele sente a existência como inútil. Júlia tem medo da degradação e perda da dignidade na altura em que a doença a transforme em vegetal. Frente a essa situação o filme silencia questão muito importante: quem decide da digni- dade da vida, é o próprio que declara que sua existência perdeu toda a dignidade ou não será a tarefa ética dos outros seres humanos, dos acompanhantes, ajudados pela sociedade, de reivindicar e reclamar esta dignidade do doente, lutando, por assim dizer, contra a impressão – eventual- mente compreensível por parte do doente – de perda de dignidade?^7
Da janela, uma paisagem lindíssima se descortina, traz o vento a remexer as cor- tinas e os desejos de liberdade e movimen- to. Daquela abertura da janela, o mundo todo se apresenta a Ramón Sampedro. Já na primeira cena do filme, o espectador é colocado no lugar do protagonista, diante da janela e dos desejos, sonhos e impossi- bilidades que se apresentam. Ao sobrevoar a terra e o mar, realiza a metáfora da liberdade do espírito, que fala da possibi- lidade de lutar pela liberdade mesmo em condições extremas e cruéis.
O sentido da liberdade em jogo
Penso que um dos núcleos do filme é a questão do sentido da liberdade. Ele tenta provar que é na morte que se reencontra a alegria, no caso de tetraplégico ou de pes- soas atingidas por doença incurável. Faria
Morte, solução de vida? Uma leitura bioética do filme Mar Adentro
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parte da dignidade da pessoa o fato de poder dar-se a morte, para realizar o dese- jo de se libertar do corpo , do corpo deficien- te e doente. Isso não me angustia, tal como se verifica na noite dramática em que Ramón demonstra firmeza no sentido de buscar a morte, grita, compulsivamen- te: por que morrer, por que morrer? A liber- dade é reclamada, mas uma liberdade para quê? Para realizar qualquer coisa de vida? Não, somente para morrer: uma liberdade para a morte. Será que é esse o sentido profundo da liberdade ou não se tem que afirmar que existe a liberdade também como liberdade para a vida , ou liberdade para um acréscimo de vida?
É interessante lembrar as figuras de Gene e de seu marido, defensores do movimen- to Morrer com Dignidade e da Luta pela Legalização da Eutanásia. É significativo e até paradoxal que Gene, no final de sua gravidez mostre de perto essa gravidez a Ramón ao colocar sua barriga perto do ouvido dele. Está-se frente a um contraste brutal, quase absurdo: alguém que defen- de o direito à eutanásia e ao mesmo tempo dá com alegria a vida ao nascituro. Talvez o que o filme busque explicitar é a tese de que não é porque se é a favor da eutanásia que se é contra a vida em geral, e, princi- palmente, contra novas vidas.
Pode-se interpretar esse contraste tam- bém de outra maneira. Estamos frente à contradição existencial com Gene. É a mesma pessoa que dá à vida com o nas- cimento de seu bebê, e luta pelo direito à
morte do corpo do outro. Como se nas- cimento involuntário (por parte de quem nasce) e morte voluntária (de quem opta pela eutanásia) tivessem a mesma digni- dade em relação à vida humana. Não seria isso desfazer a reta compreensão entre dignidade da vida e liberdade, como se fosse digno nascer involuntariamente, mas indigno morrer voluntariamente? Ao que parece, Gene ilustra uma contra- dição inerente ao respeito pela vida do corpo. É essa contradição que surge sutil- mente nas suas últimas palavras de des- pedida ao telefone com Ramón: é mesmo isto [morrer] que você quer?
Perguntamo-nos se não se esqueceu de um elemento principal: a liberdade em face da dignidade da vida do corpo que está em causa. Para Ramón, o suicídio é visto como libertação do corpo de uma existência indigna. O pedido para morrer pode mesmo ser compreensível ante as dificuldades da vida do corpo, da mente ou da alma. Mas não é por isso que nós, os outros, temos que considerar como aceitável uma solicitação de suicídio ou considerar como eticamente justificável o ato de eutanásia. Essa posição final depende de uma compreensão existencial da liberdade: somos livres para exercer a liberdade em proveito da vida e não a serviço da morte. Mas como fazer enten- der essa verdade existencial à pessoa por- tadora de tetraplegia, como no caso de Ramón? Ficamos sem resposta. E o filme explora muito bem essa angústia do expectador 8.
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dencia um caso de alguém super bem cuidado, de tal maneira que não se pode criticar a família, mas mesmo assim deseja simplesmente morrer.
Podemos até dizer que faltou algo de essencial nos cuidados: conseguir fazer com que Ramón descobrisse e sentisse que sua presença não é a mais , mas que tem sentido. Temos o cuidado, sim, mas talvez falte ternura nesse cuidar. Nesse sentido, nunca vemos por parte dos fami- liares um gesto de ternura, um tocar das mãos, um abraço. O único abraço resulta de um pedido de Ramón ao sobrinho, no momento em que esse vai embora. E a expressão mais dramática destsa falta em cuidá-lo, que muitas vezes não transmite ternura, manifesta-se na explosão do irmão mais velho, que em momento de muita angústia desabafa: há 28 anos todos se tornaram escravos dele.
O filme mostra que o cuidado vital bási- co do corpo, com todas as suas exigên- cias, ainda não é suficiente para ajudar a pessoa tetraplégica a perceber que sua vida pode continuar a ter um sentido para além de todas as limitações ineren- tes à condição física limitante.
Apontamentos finais
Ramón Sampedro ferido em seu corpo, mas dolorido ainda em sua inferioridade, acabou por travar intensa batalha judicial para que pudesse se dar o direito de mor- rer. Irredutível na sua determinação, não
conseguindo pelas vias oficiais, descobre criativamente uma forma oficiosa de rea- lizar o que queria.
A paralisia física nem sempre significa o fim de tudo. Pelo contrário, pode ser o iní- cio de uma vida de novas descobertas e criatividade. Podemos nos perguntar por- que para Ramón Sampedro todas as pro- postas de ressignificação de vida foram descartadas e em determinados momentos até ridicularizadas? Há exemplos notáveis de superação, como os de Christopher Reeve (ator estadunidense que interpretou o Super Homem) e Stephen Hawking (cientista britânico), que podem transmi- tir muito mais que motivação aos porta- dores de necessidades especiais.
A cena do acidente, repetida inúmeras vezes em momentos-chave do filme, suge- re uma tentativa de suicídio, ainda que inconsciente. Parece pouco ingênuo acre- ditar que alguém que tenha sido mari- nheiro, conhecido tantos países e singra- do oceanos tão diferentes, não conhecesse o que estava acontecendo com o mar, abaixo do penhasco, no momento em que se lançou.
Simbolicamente, Ramón Sampedro mor- reu nesse momento. No prólogo de seu livro fala do momento crucial: no dia 23 de agosto de 1968 fraturei o pescoço ao mer- gulhar em uma praia e bater com a cabeça na areia, desde esse dia sou uma cabeça viva e um corpo morto. Poderia dizer que sou o espírito falante de um morto... Considero
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o tetraplégico como um morto crônico que reside no inferno. Ali – para evitar a loucura
- há os que se entretém pintando, rezando, lendo, respirando ou fazendo algo pelos demais: há gostos para tudo! Eu me dedi- quei a escrever cartas. Cartas do Inferno. Difícil encontrar realismo mais cruel para descrever sua própria interpretação de condição de vida.
Se o Ramón histórico for parecido com o de Mar Adentro , guardaremos a imagem de um ser humano que, com inteligência e determinação férrea de não mais viver após o acidente, não conseguiu descobrir um sentido para continuar a viver. A morte é a solução. Nas cenas finais, este- ticamente apresenta-se, no contexto de um crepúsculo (simbolicamente o fim) maravilhoso, o último diálogo entre Rosa e Ramón. Diz Rosa: se é verdade que exis- te vida após a morte, mande-me um sinal? Ao que Ramón responde rapidamente: claro que sim!, emendando, porém, de forma mais reflexiva: mas, depois que morremos não existe mais nada, é como quando antes de nascer. Vou estar nos seus sonhos. Obrigado do fundo do coração^10.
Sem dúvida, essa fala revela que para ele a transcendência da vida não existe e sua morte é o fim de tudo; não existe a pers- pectiva de um futuro promissor com mais vida no além, como apresentam a sabedo- ria das religiões. Com certeza, para mui- tos, esse não é um happy end. Vários defi- cientes físicos que assistiram ao filme me disseram considerar Ramón um contra-
herói. O acusam de ser suicida em poten- cial, antes mesmo do acidente, vendo já no salto do penhasco a busca da própria morte. Enfim, essa foi a opção de Ramón. Não nos cabe medir responsabilidades ou julgar. Mesmo sem compreender ou até discordando da solução final, por questão de valores culturais, morais, éticos e reli- giosos, cabe questionar se é possível assu- mir uma atitude de respeito frente à opção inconcebível do outro?
Ao analisar o filme e ler as Cartas do infer- no me veio à mente, inúmeras vezes, a história de Victor Frankl, notável psiquia- tra suíço que sobreviveu no campo de concentração por ocasião da II Guerra Mundial. Em sua obra clássica, O homem em busca de um sentido , sublinha: o homem não é destruído pelo sofrimento, mas pelo sofrimento sem sentido. Em outra passa- gem cita Nietzsche, advertindo: quem tem um porquê viver, suporta quase todo e qual- quer como^11. Frankl testemunha nos cam- pos de concentração que aqueles que tinham um propósito, uma missão a cum- prir, se encontravam em melhores condi- ções para sobreviver.
Enfim, cada pessoa humana não deixa de ser um grande mistério e pobre razão aquela que orgulhosamente busca explicar e entender tudo. Ao assistirmos e anali- sarmos este filme, é difícil não nos sentir- mos questionados nas emoções, certezas e valores de vida. Sem dúvida, trata-se de provocação que nos leva a aprofundarmos as razões de nossa esperança, do sentido
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Recebido: 19.2.2008 Aprovado: 27.3.
Contato Leo Pessini – pessini@scamilo.edu.br
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