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Identidades Trans na Infância: Análise da Repressão e Libertação, Slides de Direito

Este texto explora as ideias centrais das duas obras 'minha vida em cor-de-rosa' e 'isso é a vida' sobre a transição de gênero, a patologização e despatologização de identidades trans, a relação entre sexo anatômico e identidade de gênero, violência simbólica, cis heteronormatividade e a supervalorização do adulto. O texto também discute a importância de uma educação não sexista e a necessidade de reconhecer as múltiplas identidades femininas, incluindo travestis e mulheres transexuais.

Tipologia: Slides

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Rio890
Rio890 🇧🇷

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MINHA VIDA EM COR-DE-ROSA:
CENASEENCENAÇÕES DA TRANSEXUALIDADE
FEMININA NA INFÂNCIA
MY LIFE IN PINK:
FEMALE TRANSSEXUALITY
SCENES IN CHILDHOOD
MI VIDA EN ROSA:
ESCENAS Y REPRESENTACIONES DE LA TRANSEXUALIDAD
FEMENINA EN LA INFANCIA
Megg Rayara Gomes de Oliveira
DOI: 10.11606/issn.2238-3999.v8i1p108-129
Artigos
Megg Rayara Gomes de Oliveira
Travesti preta, doutora em educação
pelaUniversidade Federal do Paraná.
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MINHA VIDA EM COR-DE-ROSA:

CENAS E ENCENAÇÕES DA TRANSEXUALIDADE

FEMININA NA INFÂNCIA

MY LIFE IN PINK:

FEMALE TRANSSEXUALITY

SCENES IN CHILDHOOD

MI VIDA EN ROSA:

ESCENAS Y REPRESENTACIONES DE LA TRANSEXUALIDAD

FEMENINA EN LA INFANCIA

Megg Rayara Gomes de Oliveira

DOI: 10.11606/issn.2238-3999.v8i1p108-

Artigos

Megg Rayara Gomes de Oliveira Travesti preta, doutora em educação pela Universidade Federal do Paraná.

Minha vida em cor-de-rosa: cenas e encenações da transexualidade feminina na infância

Resumo

Neste artigo discuto a transexualidade feminina na infância. Utilizo como objeto de análise o filme Minha vida em cor-de-rosa (Bélgica, França, Reino Unido, 1997) e o documentário Meu eu secreto (Estados Unidos da América, 2007), procurando fazer uma relação com o debate atual sobre ideologia de gênero. O interesse, então, está concentrado nas ideias centrais das duas produções, ou seja: a transição do gênero masculino para o feminino, a patologização e despatologização das identidades trans, a relação entre sexo anatômico e identidade de gênero, violência simbólica, cis heteronormatividade e a supervalorização do adulto. Para fazer esse debate recorro às reflexões de John Thompson (2009) sobre comunicação de massa e violência simbólica, os estudos de gênero e sobre diversidade sexual, bem como os estudos pós-estruturalistas, especialmente a obra de Michel Foucault. Palavras-chave: Identidade de gênero, Transexualidade, Infância, Violência simbólica, Sociedade.

Abstract

This article discusses female transsexualism in childhood. The movie My Life in Pink (Belgium, France, United Kingdom, 1997) and the documentary My Secret Self (United States of America, 2007) are used as object of analysis, trying to relate to the current debate on Gender Ideology. Then, the study focuses on the central ideas of the two productions, namely: the transition from male to female gender, the pathologization and depatologization of trans identities, the relationship between anatomical sex and gender identity, symbolic violence, cis-heteronormativity and adultcentrism. To make this debate, John Thompson’s (2009) reflections on mass communication and symbolic violence, gender studies and sexual diversity are considered in the article, as well as poststructuralist studies, especially Michel Foucault’s work. Keywords: Gender identity, Transsexuality, Childhood, Symbolic violence, Society.

Minha vida em cor-de-rosa: cenas e encenações da transexualidade feminina na infância é considerada algo a ser duramente conquistado pelos indivíduos do sexo masculino, ao passo que a feminilidade é percebida como um componente natural da mulher. Já no trabalho de César Sabino, também estudado por Junqueira (2009), a masculinidade está associada a demonstrações de força, destemor e virilidade, construídas em contraposição a determinadas caracte- rísticas tidas como femininas. Assim, os códigos de conduta ensinados às crianças estabelecem que “o único lugar habitável para o feminino é em corpos de mulheres, e para o masculino, em corpos de homens” (Berenice Alves de Melo BENTO, 2008, p. 25), premiando os normatizados com respeito e oportunidades, e castigan- do os diferentes com desprezo e obstáculos (William PERES, 2009, p. 237), expondo, de forma bastante objetiva, que em sociedades patriarcais não há outra possibilidade além do ajustamento. É a família heteronormativa, ou seja, aquela definida pela prática do “sexo bem educado ou normatizado, isto é, as práticas heterossexuais, mono- gâmicas, consolidadas pelo matrimônio e reprodutivas” (Maria Rita de Assis CÉSAR, 2009, p. 43), o modelo de organização social que deve ser preserva- do. Para tanto, as pessoas precisam ser ensinadas, desde muito cedo, a agir de modo que consigam reproduzi-lo no futuro. Essa é a visão das igrejas cristãs, que ao longo do tempo têm se esfor- çado para impor padrões únicos de comportamento que tomam a cis^2 hete- transcrevo seu nome completo para a identificação do sexo (gênero) e, consequentemen- te, para proporcionar maior visibilidade às pesquisadoras e estudiosas.

  1. Cis é a abreviação de cisgênero. A noção de cisgeneridade é proposta pela transexual Julia Serano, em 2007, na obra Whipping girl: a transsexual woman on sexism and the scapego- ating of femininity. “A partir do exercício de analisar a origem da terminologia – trans-: o outro, o desajuste. Ligações químicas cruzadas espontaneamente, de forma inesperada. O oposto disso, o termo -cis-, também existe no campo da química orgânica: seria a ligação quími- ca esperada, a mais comum de se ocorrer entre os elementos. A ligação química “normal”. Porém, as moléculas da química orgânica são imprevisíveis. Assim como as subjetividades são imprevisíveis. Portanto, a cisgeneridade indica a existência de uma norma que produz efeitos de ideal regulatório, ou seja, efeitos de expectativas e universalização da experiência humana. Em termos gerais, o que diferentes ativistas e os movimentos transfeministas têm proposto é que a norma cisgênera é uma das matrizes normativas das estruturas sociais, políticas e patriarcais, cujos ideais regulatórios produzem efeitos de vida e de atribuição identitária extremamente rígidos. A atribuição identitária, de forma compulsória no momento de registro de cada pessoa, define e naturaliza a designação de uma pessoa a um dos polos do sistema de sexo/gênero ao nascer, a partir de uma leitura restrita, baseada na aparência dos órgãos genitais. Além disso, a norma cisgênera afirma que essa designação é imutável, fixa, cristalizada ao longo da vida da pessoa.” (Maria Luiza Rovaris CIDADE, 2016, p. 13-14).

Megg Rayara Gomes de Oliveira rossexualidade como modelo único de existência. À medida que a sociedade muda e propõe rupturas, o discurso religioso se atualiza, bem como seus mecanismos de controle. Em 1997 o cardeal Joseph Aloisius Ratzinger, atual Papa Emérito Bento XVI, reforçava em seus escritos que a biologia determinaria o gênero e que a “liberação da mulher serve de centro nuclear para qualquer atividade de liberação tanto política como antropológica com o objetivo de liberar o ser humano de sua biologia” (RATZINGER, 1997, p. 142). Ratzinger dava, então, o pontapé inicial para o surgimento de um debate que hoje é conhecido por ideologia de gênero. Na definição de Jorge Scala, discutida por Richard Mikolski e Maximiliano Campana (2017), a ideologia de gênero é um instrumento político-discursivo de alienação com dimensões globais, que busca estabelecer um modelo to- talitário com a finalidade de “impor uma nova antropologia” para provocar a alteração das pautas morais e desembocar na destruição da sociedade. Ao dirigir um ataque às lutas feministas e apontar o caminho para o de- senvolvimento do conceito de ideologia de gênero, o cardeal Ratzinger procu- rava atingir, de acordo com Mikolski e Campana (2017), a Conferência Mundial de Beijing sobre a Mulher, organizada pelas Nações Unidas, em 1995, pela ousadia de propor substituir o termo “mulher” (que havia sido o principal su- jeito nas três conferências que antecederam essa) pelo conceito de “gênero”, possibilitando que essa categoria fosse ampliada, não se restringindo apenas a questões biológicas. Assim, “nessa conferência se reconheceu que a desigualdade da mulher é um problema estrutural e só pode ser abordada de uma perspectiva integral de gênero” (MIKOLSKI; CAMPANA, 2017, p. 727), chamando a atenção para a necessidade de olhar para os múltiplos sujeitos que expressam identidades femininas, como travestis e mulheres transexuais. Tais declarações colocaram a categoria “gênero” no centro dos debates que giravam em torno do papel da mulher, provocando uma importante reação por parte de diversos setores religiosos conservadores e, em especial, da própria Igreja Católica. Assim, por causa dessa conferência, o papa João Paulo II, em sua “Carta às mulheres”, se referiu à necessidade de defender a identidade

Megg Rayara Gomes de Oliveira e Reino Unido, dirigida pelo belga Alain Berliner. O filme conta a história de Ludovic Fabre, uma menina transexual^6 de sete anos de idade. Embora seja uma obra de ficção, apresenta fortes semelhanças com a infância de muitas mulheres transexuais. Porém, acredito na possibilidade de outras formas de relacionamento entre crianças transexuais e sua família, escola e com a so- ciedade de um modo geral. Por isso, vou estabelecer diálogo entre o filme e o documentário Meu eu secreto (My secret self), produzido e apresentado pela Rede ABC de televisão dos Estados Unidos da América em 2007, que tam- bém discute transexualidade na infância. As histórias reais de duas meninas transexuais, Jess Jennings e Riley Grant, narradas no documentário, serão utilizadas para dialogar com as situações vivenciadas pela personagem fictí- cia Ludovic Fabre no filme Minha vida em cor-de-rosa. Ambas as produções, embora tenham finalidades distintas, são con- sideradas como meios de comunicação de massa justamente por estarem disponíveis “a uma pluralidade de receptores” (John B. THOMPSON, 2009, p. 287) e estão inseridas “dentro de uma teoria do cinema queer, termo surgi- do no final dos anos de 1970/80, posterior aos genders studies, justificando a alta permeabilidade e artificialidade entre as identidades de gênero” (Alisson MACHADO, 2011, p. 11). Queer, que não possui equivalente exato na língua portuguesa, “pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário” (Guacira Lopes LOURO, 2004, p. 38). Para Judith Butler (2002, p. 58), apon- tada como uma das precursoras da teoria queer, o termo tem operado como uma prática linguística com o propósito de degradar os sujeitos aos quais se refere: “queer adquire todo o seu poder precisamente através da invocação reiterada que o relaciona com acusações, patologias e insultos”. Por isso, a proposta foi dar um novo significado ao termo, de positivá-lo, passando a entender queer como uma prática de vida que se coloca contra as normas socialmente aceitas. Queer, então, pode ser interpretado como um processo, um movimen- to, e aproxima-se das reflexões de Michel Foucault (1979) sobre o conceito

  1. Neste artigo, reconheço a identidade feminina de Ludovic Fabre por entender que está perfeitamente consolidada em seu discurso, embora seja submetida a um tratamento no gênero masculino pela sociedade onde está inserida.

Minha vida em cor-de-rosa: cenas e encenações da transexualidade feminina na infância de dispositivo. Para ele, todo dispositivo “é sempre um dispositivo de poder” (Sueli Aparecida CARNEIRO, 2005. p. 38), um meio pelo qual determinados sujeitos ganham visibilidade quando são interpretados como o contraponto da ordem. Assim, o conceito de dispositivo procura demarcar um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, ins- tituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. “O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da rela- ção que pode existir entre estes elementos heterogêneos. Sendo assim, tal discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma práti- ca que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma, entre estes elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, por- tanto, uma função estratégica dominante”. (FOUCAULT, 1979, p. 244) No entanto, o mesmo Foucault (1982) que consegue perceber uma infi- nidade de mecanismos de controle, como o discurso da ideologia de gênero, operando de forma coordenada e simultânea, também identifica mecanismos para sua contraposição e afirma que onde há poder, há resistência. As meninas! O cinema e a televisão são meios midiáticos expressivos, às vezes efi- cientes para narrar histórias com maior ou menor similaridade à vida real, reproduzindo modelos de feminilidade e masculinidade e arranjos familia- res compatíveis, na maioria das vezes, com os padrões heteronormativos. Contudo, a produção fílmica também pode produzir discursos que questio- nem os padrões que instituem a normatização dos gêneros (Wânia Ribeiro FERNANDES; Vera Helena Ferraz de SIQUEIRA, 2006).

Minha vida em cor-de-rosa: cenas e encenações da transexualidade feminina na infância É o caso de Riley Grant, que, aos 10 anos, prefere passar a maior parte do tempo com calças compridas e brincar com sua cobra de estimação. Talvez também porque seja mais velha que Jess e Ludovic e as bonecas e os vestidos já tenham cumprido suas funções, principalmente na fase de “tran- sição” do gênero masculino para o feminino. Riley Grant também mora nos Estados Unidos, com a mãe Stephanie, o pai Neil e com a irmã gêmea Ally. Assim como Jess, começou a manifestar sua identidade de gênero feminino com poucos meses, reivindicando o direito de usar os brinquedos da irmã. O pediatra sugeriu aos pais que a colocassem em contato com brinquedos e atividades consideradas masculinas e corrigir suas atitudes inadequadas. Riley resistiu e conseguiu o que queria aos sete anos, sendo reconhecida finalmente como menina. O filme Analisando a obra de Thompson (2009), é possível afirmar que as for- mas simbólicas nos acompanham a vida toda, inclusive para reiterar formas explícitas de controle que visam a manutenção do poder, entendido como a capacidade de agir na busca de seus próprios objetivos. Este pode ser individual, desde que os sujeitos se reconheçam nas formas simbólicas que os rodeiam. “Quando relações de poder estabelecidas são sistematica- mente assimétricas, então a situação pode ser descrita como dominação” (THOMPSON, 2009, p. 199). As relações são assimétricas quando indivíduos ou grupos de indivíduos particulares possuem um poder estável de maneira a promover a exclusão de outros indivíduos ou grupos de indivíduos, resultando em dominantes e subordinados. Ludovic Fabre é uma menina transexual fictícia, com sete anos de idade – que ganhou um corpo e uma voz através do trabalho magistral do ator Georges Du Fresne – e assim como Jess e Riley, enquadra-se no grupo dos dominados, estando sujeita a regras e discursos que sistematicamente a excluem. Ludo, como é carinhosamente chamada, é a caçula da família e vive numa pequena cidade francesa com a mãe Hanna, o pai Pierre, dois irmãos e uma irmã. Durante o filme, ainda luta para ter sua identidade de gênero re- conhecida, estando exposta a códigos de dominação que não consideram ser

Megg Rayara Gomes de Oliveira possível uma identidade feminina habitar um corpo anatomicamente mascu- lino. As situações que enfrenta nos 88 minutos de filme mostram como pode ser doloroso esse processo, tanto para as pessoas trans quanto para suas famílias. A transexualidade de Ludovic Fabre, pouco ou nada compreendida pela família e pelos vizinhos, é motivo de situações de conflitos e discriminações. Uma discriminação inicialmente dirigida a ela e depois estendida a sua família. Seus pais discordam de seu comportamento pouco comum de vestir roupas femininas, mas interpretam como uma brincadeira inocente de seus primeiros anos de vida e que terá um final quando adquirir mais maturidade e estiver apta a entender e a incorporar o discurso presente na “ação peda- gógica dos mais velhos” (SARMENTO; GOUVEA, 2008, p. 19). No entanto, o tempo faz com que essas atitudes se tornem mais frequentes, passando a ser interpretadas como um problema, principalmente depois que ela aparece usando o vestido de princesa da irmã, maquiagem, brincos e salto alto em uma festa, na qual sua família recebia os vizinhos pela primeira vez, já que tinham se mudado recentemente para o bairro. Embora o filme se concentre na discussão da transexualidade de Ludovic, também discute os papéis de gênero a partir da biologia e quais es- paços caberiam a homens e mulheres. Os homens são apresentados como os provedores, responsáveis pelo sustento da casa e pela formação da per- sonalidade dos filhos. As mulheres ficam restritas ao ambiente doméstico, são donas de casa e quando exercem ocupações fora do ambiente doméstico também se aproximam dos papéis maternos, como professora ou psicóloga de crianças. Nessa lógica, a identidade feminina se manifesta de acordo com o que propõe João Paulo II, e estaria ligada à maternidade, sendo impossível descolar o corpo biológico dos papéis sociais. O mundo que circunda Ludovic é o ideal, com famílias heterossexuais brancas tradicionais e felizes, que se comportam como vizinhos educados, que se respeitam e se preocupam com a segurança uns dos outros. Não há pobreza, vícios, criminalidade, doenças, desordem. É um “mundo cor-de-ro- sa” sem gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, negros(as), imigran- tes, deficientes ou qualquer outra categoria que possa tirar a paz e o sossego.

Megg Rayara Gomes de Oliveira modelo – branco, cis heterossexual, magro, sem problemas de saúde física e mental, de classe média –, a criança passa por um processo em que é vista como representante de uma “infância perigosa” (Carlos RAMIREZ; Dora Lilia MARÍN-DÍAZ, 2007) por colocar as “infâncias universais” em risco. Entre as infâncias perigosas, Dorneles (2010) aponta aquela que está fora de casa, que acessa os materiais a serem consumidos via contravenção, que sobrevive e vive apesar dos riscos de seu cotidiano. Sobrevive nos buei- ros e esgotos da vida urbana, mora embaixo de viadutos, pontes ou marqui- ses de prédios. As infâncias perigosas não têm cor, raça, orientação sexual ou identidade de gênero. Têm apenas classe social, que é tomada como o marcador mais importante para estabelecer a aproximação ou o afastamento da “infância universal”. O potencial “bélico” (RAMIREZ; MARÍN-DÍAZ, 2007) presente nos cor- pos de crianças transexuais as afasta dessa “infância universal”. Talvez por isso suas existências não mereçam a devida atenção nos estudos sobre crianças. De modo geral, as infâncias são tratadas como assexuadas ou como cis heterossexuais, contribuindo para a ausência de estudos que discutam as “se- xualidades disparatadas” (FOUCAULT, 1999) nessa fase da vida das pessoas. A infância que o filme retrata é um pouco diferente da vivida por Jess Jennings e Riley Grant. Ambas conseguiram ser ouvidas por seus pais e ti- veram suas identidades de gênero respeitadas depois de atestadas por es- pecialistas, pois “não são apenas os adultos que intervêm junto das crianças, mas as crianças intervêm junto dos adultos” (SARMENTO; GOUVEA, 2008, p. 29). Jess passou por isso aos três anos e Riley aos cinco. Durante dois anos tiveram o consentimento dos pais para se vestirem e agirem como meninas apenas dentro de casa, pois temiam atitudes hostis para com elas. Jess Jennings, apesar de deixar os pais confusos com sua insistência de que era uma menina, nunca foi punida por isso e podia explicitar seus desejos abertamente. Assim, aos dois anos, perguntou à mãe quando a fada madrinha viria para trocar sua genitália. Reneé não ignorou a pergunta da filha e nem tampouco a considerou desconectada da realidade. A partir daí, decidiu investigar o que estaria acontecendo e procurar informações mais seguras para lidar com a situação.

Minha vida em cor-de-rosa: cenas e encenações da transexualidade feminina na infância Ludovic, além de expressar seu desejo de ser vista e tratada como meni- na, também insiste que um dia se casará com Jerome, vizinho e filho do chefe de seu pai. Essa personagem sintetiza a visão hegemônica da criança bem-e- ducada, que absorve todos os ensinamentos familiares e reproduz de maneira exemplar o comportamento masculino ideal na infância, atendendo aos anseios daqueles que compartilham da ideia da existência da ideologia de gênero. A ideia que Ludovic apresenta do que é ser menina, além de vestir-se e portar-se como uma nos moldes ocidentais, inclui uma relação afetiva ao lado de uma pessoa que apresenta características do gênero masculino, seguindo os padrões heteronormativos, revelando quem vai desempenhar os papéis femininos e masculinos nas relações sociais e sexuais futuras. Há então, um processo de hipersexualização de seu discurso, que resulta em ações mais coercitivas sobre si e sobre Jerome. Por isso, ambos se policiam quando dis- cutem o futuro um ao lado do outro. Em uma determinada cena do filme, na casa de Jerome, no quarto de sua irmãzinha morta, Ludovic experimenta sensações das mais agradáveis. É um quarto dos sonhos, um quarto de menina, com cores e brinquedos que evidenciam a visão que a sociedade adulta tem do feminino na infância. Seus olhos percorrem cuidadosamente cada detalhe, se demorando aqui e ali, como se cada um deles, mesmo a meia luz, fosse a confirmação de sua feminilidade. Mas é o vestido cor-de-rosa, usado como a representação do universo feminino infantil em vários momentos do filme, que mais a encanta. Sozinhos no quarto, livres de qualquer censura, encenam o casamento de sua heroína Pam com o namorado Ben. Ludovic é Pam e Jerome é Ben. Ludovic usa o vestido rosa e dirige a encenação. No entanto, o casamento é interrompido na hora do beijo do casal pelo desmaio da mãe de Jerome que, de mansinho, aproximou-se para espionar o que estava acontecendo. A mãe de Ludovic, que também estava em outro cômodo, aproxima-se e a arrasta com violência de volta para casa. Nesse momento, Ludovic imagina que está sendo protegida por sua heroína Pam, que amarra sua mãe e a de Jerome com seu sopro mágico de purpurina dourada que toma a forma de um laço. Assim, ela, Jerome e Pam podem voar livremente sem ninguém para impedir. As formas simbólicas descritas por Thompson (2009) e os inúmeros dispositivos identificados por Foucault (1979) como elementos de controle

Minha vida em cor-de-rosa: cenas e encenações da transexualidade feminina na infância uma passagem para o inferno, punição máxima para os cristãos. Este é o recurso de convencimento utilizado pela família de Jerome para afastá-lo de Ludovic, e, assim, se vê obrigado a trocar de lugar na sala de aula para evitar tal castigo. Ao mudar de carteira, dá a entender que Ludovic seria a própria representação do pecado e o simples ato de evitá-la garantiria sua salvação. Este e outros julgamentos a respeito de Ludovic fazem com que a vejam como portadora de uma patologia, precisando, portanto, de tratamento. Sua ida a uma psicóloga confirma essa visão e é tratada como uma tentativa da família de “resolver o problema” e, assim, conviver em harmonia com a vizi- nhança, que se sente no direito de intervir na educação dos filhos dos outros, a partir de um pensamento consensual marcado pela intolerância. A sociedade dos adultos, composta por pessoas que agem dentro dos padrões ditos normais, não é um lugar seguro para uma criança transexual. Ludovic, mesmo sem abdicar verdadeiramente do desejo de ser uma menina, procura estabelecer uma aproximação com os códigos de comportamentos masculinos a fim de minimizar os conflitos em casa e na escola. Brincar de cowboy, jogar futebol ou beijar uma garota são ações que poderiam “ajudá-la” a se construir como menino e, assim, satisfazer a vontade de todos, principal- mente de seus pais. A busca por uma resposta para suas dúvidas, se é menino ou menina, a colocam em contato com uma resposta científica dada pela irmã mais velha, que estudou o assunto nas aulas de ciências: “XY” determinaria o sexo bio- lógico dos meninos e “XX” das meninas. Na visão inocente de Ludovic, seria Deus quem distribuiria essas letrinhas e o “X” que a definiria como menina teria caído no lixo por um capricho do destino. Essa explicação fantasiosa co- loca Ludovic em paz com o criador, porque originalmente teria sido a vontade dele que nascesse XX e não XY. Riley Grant também atribui a responsabilidade de ter uma genitália mas- culina a Deus. Aos seis anos, enquanto fazia uma oração, revelou a sua mãe que estava muito brava com Deus: “Ele me fez menino e eu não sou menino, sou menina mãe! Toda noite peço para Deus me dar um corpo de menina e quando acordo ainda sou menino. Deus não vai corrigir o erro, não vai fazer o certo” (MEU EU…, 2007).

Megg Rayara Gomes de Oliveira As explicações de Ludovic, por mais fantasiosas que possam parecer, revelam sua disposição para se construir como mulher e encontram, na fala de Riley, uma semelhança com a triste realidade enfrentada por muitas meni- nas transexuais. Além da violência psicológica que sofre constantemente, Ludovic viven- cia a experiência de ser agredida fisicamente no banheiro da escola por um grupo de garotos, na presença dos irmãos mais velhos e de Jerome, que se isentam da responsabilidade de defendê-la. Tal situação faz com que se sinta extremamente deslocada, sem um espaço que possa ocupar, fazendo com que tente suicídio. As agressões às quais as pessoas LGBT estão sujeitas, em muitos casos, são uma continuidade do discurso familiar que, em certa medida, acaba autorizando e até estimulando atitudes como essas, interpretadas por muitos como corretivas. A escola também representa um espaço hostil à população LGBT, so- bretudo para as travestis e transexuais. Em suas pesquisas, Peres (2009, p.

  1. constata que, “a partir da exclusão familiar e da vizinhança, as relações estabelecidas entre travestis, transexuais e transgêneros e a escola também se mostram bastante prejudicadas”. A escola acaba reproduzindo os modelos discriminatórios observados em outros espaços, promovendo invariavelmente sua expulsão. Foi a própria escola que tomou a iniciativa de expulsar Ludovic para assegurar a normalidade do ambiente, já que uma criança LGBT é “vista como uma ameaça à ordem estabelecida e capaz de ferir a imagem da moral e dos bons costumes” (PERES, 2009, p. 247). Ludovic é vítima de um processo descrito por Peres (2009) como estig- matização, que promove a depreciação e desvalorização dos sujeitos a partir da introjeção de valores e de modos de ver que justifiquem sua desqualificação e exclusão, fazendo com que se tornem cada vez mais vulneráveis diante da vida, perdendo a força de questionamento e da crítica. A estigmatização se pro- paga como ondas, partindo da família para a comunidade e demais espaços. Assim, resistir a esse processo que cobra um ajustamento e estabelece relações assimétricas de poder se torna cada vez mais difícil, uma vez que a tran- sexualidade, ao ser censurada, é entendida como inexistente, ilícita e, portanto, não deve ser falada até ser anulada no plano do real (FOUCAULT, 1982, p. 82).

Megg Rayara Gomes de Oliveira A mudança de emprego de Pierre, o pai, faz com que Ludovic volte para casa. No filme, a mudança de emprego, de cidade, de vizinhos, etc. é uma metáfora que alerta para a necessidade de mudanças também no modo de trato com aqueles que não apresentam identidades exatamente padroniza- das. Tal mudança acontece depois de uma série de tentativas frustradas de construir uma identidade masculina em Ludovic, chegando aos extremos de uma surra, justamente em um momento em que ela parecia disposta a desis- tir de se construir como menina para evitar mais aborrecimentos para a famí- lia, mesmo que isso significasse anular-se como pessoa. A compreensão de que Ludovic precisa de apoio se manifestou na passividade de suas atitudes, que revelavam ter chegado ao limite da resistência. Ao contrário de Hanna Fabre, personagem fictícia e que representa o modo de pensar de muitas mães de crianças transexuais, Renée Jennings decidiu apoiar a filha e ficar na frente de batalha, recebendo toda a “artilharia pesada” antes que Jess fosse machucada, perguntando: “que criança merece sofrer?” (MEU EU…, 2007). Para responder a essa questão, recorro a Beatriz Preciado (2014), hoje Paul Preciado, que explica que uma criança não tem autonomia sobre si mesma e “é sempre um corpo ao qual não se reconhece o direito de governar”. Uma criança transexual coloca em risco um projeto de futuro, um empreen- dimento fadado ao fracasso. O futuro que importa anunciado por uma crian- ça só pode ser aceitável se corresponder à norma cis heterossexual branca. Preciado (2014) se preocupa com as outras crianças, aquelas que borram as fronteiras dos gêneros, a cis heterossexualidade e lançam dúvidas se vale a pena um investimento sobre elas. Preciado, então, pergunta: Quem defende o direito das crianças diferentes? Os direitos do me- nino que adora se vestir de rosa? Da menina que sonha em se casar com a sua melhor amiga? Os direitos da criança bicha, sapatão, tran- sexual ou transgênero? Quem defende o direito da criança a mudar de gênero, se for da vontade dela? Os direitos das crianças à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade? Quem defende os direitos da criança a crescer num mundo sem violência sexual ou de gênero? (PRECIADO, 2014)

Minha vida em cor-de-rosa: cenas e encenações da transexualidade feminina na infância Essas crianças não deveriam existir e, por isso mesmo, precisam ser eli- minadas rapidamente. Controlar seu gestual, seu vocabulário, suas vestimen- tas, seus atos, enfim, controlar o próprio sujeito é fundamental para assegurar um futuro normalizado e normatizado. A família de Ludovic Fabre desafiou essas regras e, depois de muitos conflitos e sofrimentos, decidiu acolhê-la e apoiá-la incondicionalmente, afirmando o amor e não o ódio como sentimento que deve estar presente nas relações familiares. Algumas considerações Minha vida em cor-de-rosa não termina como um conto de fadas, di- zendo “e viveram felizes para sempre”, pois as situações de conflitos estarão sempre na ordem do dia na vida de uma pessoa transexual. Ainda assim, a mensagem que fica é de esperança. Esperança no amor incondicional entre pais e filhos(as). Esperança de que a transexualidade não seja interpreta- da como aberração ou patologia e que move as famílias Jennings e Grant, que trabalham para que suas filhas transexuais cresçam em uma sociedade menos preconceituosa. Essa esperança não é tratada como mera abstração ou fantasia, mas como o resultado concreto de reivindicações que partem dos próprios sujei- tos e são endereçadas a segmentos importantes de nossa sociedade, como a família e a escola. Assim, o enfrentamento do preconceito e a inserção da população LGBT teriam início dentro de casa para depois serem estendidos a outros espaços, como a vizinhança, a escola, até atingir toda a sociedade, numa operação contínua, marcada por dores, angústias, agressões, trope- ços, mas, principalmente, como propõe Foucault (1982), por resistência. Assim, as formas simbólicas presentes no filme Minha vida em cor-de- -rosa (1997) e no documentário Meu eu secreto (2007), apesar dos 10 anos que os separam, apontam para uma possibilidade diferente daquela apre- sentada por Thompson (2009), que as vê como uma das muitas formas de operação do poder, justamente por adquirirem contornos de denúncia e não uma mera reprodução dos discursos hegemônicos. Em ambas as produções, o debate a respeito de uma visão adultocên- trica de sociedade é central e aponta para a necessidade de que as crianças,