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A Ficção Seriada como Fonte de Aprendizagem Significativa: O Caso de Mindhunter, Provas de Comunicação

Este artigo discute a possibilidade de efeito de enciclopédia resultante da ação de veículos noticios, observada pela teoria da agenda, em relação às séries de ficção norte-americanas, utilizando o exemplo de mindhunter. A autora argumenta que, como as reportagens de jornais, as séries de ficção ampliam as horizontes da experiência direta do espectador, permitindo que ele experimente a vida das personagens como se fosse a sua própia. Dessa forma, as informações incorporadas ao seu acervo cognitivo configuram-se em aprendizagem significativa. Além disso, a autora questiona se as séries de ficção podem produzir o mesmo efeito de enciclopédia observado nas pesquisas da teoria da agenda, considerando a recepção da ficção na zona intermediária em que o teste de realidade é suspenso.

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Amanda_90 🇧🇷

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Mindhunter e efeito enciclopédia: um estudo da ficção seriada como campo de
aprendizado significativo 1
Luísa Chaves de Melo2
LabMid/PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJ
Resumo
O artigo discute, a partir da série norte-americana Mindhunter, a possibilidade de o
efeito de enciclopédia – decorrente da ação dos veículos noticiosos, segundo observado
pela teoria da agenda (McCOMBS, 2009) ser estensível à ficção audiovisual.
Argumento que, como nas reportagens de jornais, a ficção seriada faz uma mediação
simbólica da realidade, sendo um relato da sociedade (BECKER, 2009) que amplia os
horizontes da experiência direta do(a) espectador(a). Como o caráter ficcional da série
faz com que o(a) espectador(a) suspenda o teste de realidade, ao assisti-la ele(a)
experimenta a vida das personagens como se fosse a sua própria, (co)movendo-se com
aquele universo dado. Dessa forma, as informações da série que são incorporadas ao seu
acervo cognitivo, devido ao efeito de enciclopécida, configuram-se aprendizagem
significativa por descoberta (AUSUBEL, NOVAK, HANESIAN, 1978).
Palavras-chave: séries Netflix; agenda setting; aprendizagem significativa; ecologia
das mídias; Neil Postman.
Introdução
Em 1968 foi realizada, nos EUA, uma pesquisa junto a eleitores(as) para
identificar a influência dos veículos de notícias nas suas decisões a respeito do pleito
eleitoral. Os resultados obtidos fizeram surgir a hipótese do agenda setting, que entende
que a influência das mídias não se diretamente sobre a opinião dos(as) eleitores(as),
mas na identificação dos assuntos que devem ser considerados por eles(as) como
relevantes. Ou seja, uma transferência da agenda das mídias para a agenda pessoal
dos indivíduos.
Em 2004, Maxwell McCombs, que formulou a hipótese inicial juntamente com
Donald Shaw, publicou um livro analisando resultados obtidos em 400 pesquisas
1 Trabalho apresentado no GP Ficção Seriada, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento
componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2 Doutora em Literatura Comparada, professora agregada do Departamento de Comunicação Social e pesquisadora do
LabMid (PUC-Rio), membro do Grupo de Pesquisa em Interações Digitais GRID/CNPq e da Media Ecology
Association. e-mail: luisa.melo@puc-rio.br..
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41 º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8 /09/201 8 Mindhunter e efeito enciclopédia: um estudo da ficção seriada como campo de aprendizado significativo 1 Luísa Chaves de Melo 2 LabMid/PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJ Resumo O artigo discute, a partir da série norte-americana Mindhunter , a possibilidade de o efeito de enciclopédia – decorrente da ação dos veículos noticiosos, segundo observado pela teoria da agenda (McCOMBS, 2009) – ser estensível à ficção audiovisual. Argumento que, como nas reportagens de jornais, a ficção seriada faz uma mediação simbólica da realidade, sendo um relato da sociedade (BECKER, 2009) que amplia os horizontes da experiência direta do(a) espectador(a). Como o caráter ficcional da série faz com que o(a) espectador(a) suspenda o teste de realidade, ao assisti-la ele(a) experimenta a vida das personagens como se fosse a sua própria, (co)movendo-se com aquele universo dado. Dessa forma, as informações da série que são incorporadas ao seu acervo cognitivo, devido ao efeito de enciclopécida, configuram-se aprendizagem significativa por descoberta (AUSUBEL, NOVAK, HANESIAN, 1978). Palavras-chave: séries Netflix; agenda setting ; aprendizagem significativa; ecologia das mídias; Neil Postman. Introdução Em 1968 foi realizada, nos EUA, uma pesquisa junto a eleitores(as) para identificar a influência dos veículos de notícias nas suas decisões a respeito do pleito eleitoral. Os resultados obtidos fizeram surgir a hipótese do agenda setting , que entende que a influência das mídias não se dá diretamente sobre a opinião dos(as) eleitores(as), mas na identificação dos assuntos que devem ser considerados por eles(as) como relevantes. Ou seja, há uma transferência da agenda das mídias para a agenda pessoal dos indivíduos. Em 2004, Maxwell McCombs, que formulou a hipótese inicial juntamente com Donald Shaw, publicou um livro analisando resultados obtidos em 400 pesquisas (^1) Trabalho apresentado no GP Ficção Seriada, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. (^2) Doutora em Literatura Comparada, professora agregada do Departamento de Comunicação Social e pesquisadora do LabMid (PUC-Rio), membro do Grupo de Pesquisa em Interações Digitais – GRID/CNPq e da Media Ecology Association. e-mail: luisa.melo@puc-rio.br..

41 º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8 /09/201 8 realizadas ao redor do mundo 3 ao longo de três décadas, fazendo surgir, então, a teoria da agenda. Embora a teoria da agenda diga respeito à influência da imprensa noticiosa sob a realidade social, entendo ser possível ampliar suas proposições para além do campo de atuação do jornalismo, uma vez que as séries de ficção (como também novelas e filmes) realizam a mediação simbólica da realidade, em um contexto social no qual tem se observado a diluição das fronteiras entre gêneros (JENKINS, 2008). Mesmo que não houvesse essa diluição, a ficção tem sido usada como fonte para estudos sociológicos. O sociólogo norte-americano Howard Becker afirma que romances são relatos de sociedade: representações que trazem informações sobre como a sociedade se vê. Sendo assim, o objetivo deste artigo é tomar a série Mindhunter , lançada pela Netflix 4 em outubro de 2017, como exemplo para se pensar a ficção seriada como um relato de sociedade que estabelece uma mediação simbólica, ampliando nosso conhecimento de mundo para além da nossa realidade imediata e, com isso, despertando nosso interesse para assuntos que estão fora da nossa experiência direta. Assim, argumentarei que as séries de ficção também produzem o efeito de enciclopédia, conforme observado por McCombs e Shaw nas pesquisas da teoria da agenda. O próprio McCombs insinua essa possibilidade, ao mencionar uma pesquisa coordenada por George Gerbner. Segundo a pesquisa, o efeito da programação televisiva de entretenimento é uma síndrome de medo da criminalidade pela percepção de que o mundo é perigoso. Isso ocorre pela exposição contínua dos(as) espectadores(as) à violência apresentada nos programas (McCombs, 2009, p. 53). Além disso, a recepção da ficção ocorre na zona intermediária em que o teste de realidade é suspenso (MELO, 2017), permitindo, portanto, que o(a) espectador(a) se entregue à trama, experimentando a sensação de partilhar a “realidade” de personagens ficcionais, (co)movendo-se com suas ações e decisões, e, portanto, vivendo aquela vida como se fosse a sua própria. Daí, buscarei demonstrar que o conhecimento adquirido pelo(a) espectador(a) das séries de ficção será um aprendizado significativo (AUSUBEL; NOVAK; HANESIAN, 1978). (^3) Os países mencionados pelo autor são Alemanha, Argentina, Canadá, Espanha, EUA, Grã-Bretanha, Israel, Japão e Taiwan. (^4) A Netflix é a principal operadora de streaming no Brasil atualmente. A empresa oferece a seus assinantes um catálogo de filmes, séries e seriados que podem ser vistos, a qualquer momento, por computadores, tablets e TVs com acesso à internet.

41 º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8 /09/201 8 A partir dessa observação de Becker, argumento que a ficção audiovisual – e não apenas a literária – é um relato de sociedade. Como representação da sociedade, afirma recortes que expressam opções e convicções de seus produtores. Trazem, portanto, um viés ideológico que manifesta uma visão de mundo a partir de valores éticos. Da mesma forma que Becker recorre a Orgulho e preconceito como um relato de época, buscando entender diferentes visões a respeito da instituição matrimonial no século XIX, entendo ser possível considerar Mindhunter um relato de sociedade mesmo não tendo sido produzido na época em que se passa a narrativa. Assim, a visão que a série da Netflix expressa, evidentemente, não é a visão de alguém sobre a sua própria época, mas a visão de pessoas de hoje sobre aquele momento, mesmo que a trama se baseie em livro biográfico escrito por um dos agentes que viveu os fatos apresentados pela série. A ficção audiovisual e o efeito de enciclopédia Em uma sociedade urbana, em que os indivíduos convivem diariamente com anônimos, uma parte significativa de nossa experiência social é ampliada em relação aos nossos limites físicos. Segundo McCombs, a maior parte dos assuntos que consideramos relevantes não estão facultados à nossa experiência direta. As mídias incluem em nossas preocupações questões que não seriam conhecidas se não tivéssemos tido contato com esses veículos. Realizam, portanto, uma mediação simbólica da realidade, fazendo surgir um conjunto de informações comum a um grupo de audiência. O destaque dado a uma notícia ou assunto dá pistas sobre a relevância daquele tema para seus(suas) leitores(as). É assim que “a repetição do tópico dia após dia é a mais importante mensagem de todas sobre sua importância” (McCOMBS, 2009, p. 18 ). Em decorrência da repetição dos assuntos e do fluxo contínuo da comunicação, surge o efeito de enciclopédia, e aquelas informações passam a fazer parte do nosso acervo cognitivo sem que o tenhamos aprendido formalmente. É esse efeito identificado nas pesquisas empíricas realizadas por estudiosos da teoria da agenda que penso ser possível estender à ação das ficção seriada^6. Como a (^6) Não descarto a possibilidade de a ficção seriada realizar agendamento; ao contrário, tendo a pensar que novelas, séries e seriados também estabelecem agendas públicas, como ocorre no Brasil com discussões, conversas e reportagens instigadas por situações apresentadas na ficção seriada televisiva. No entanto, seria necessária uma pesquisa organizada com acompanhamento das mesmas pessoas em determinado lapso de tempo para verificar empiricamente esta impressão.

41 º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8 /09/201 8 ficção seriada é um relato de sociedade, que traz uma visão de mundo e forma um grupo de audiência, apresentando situações que não seriam conhecidas pelo(a) espectador(a) por experiência direta, ela configura-se como mediação simbólica nos mesmos parâmetros da reportagem de veículos noticiosos apontados por McCombs. As informações esporádicas que chegam em cada episódio somam-se às anteriores e, pela repetição, tornam-se conhecimento, ampliando o acervo cognitivo dos espectadores; o que se torna mais evidente quando essas informações dizem respeito a uma experiência estranha à experiência social direta, como ocorre, por exemplo, com o conhecimento dos brasileiros sobre o sistema educacional norte-americano ou das áreas de atuação da CIA, da NSA, do FBI, da polícia e dos US Marshals. É neste ponto que chego ao objeto deste estudo. Mindhunter é uma série que se passa no final da década de 1970 e apresenta a gênese do termo serial killer como forma de designar um novo tipo de assassino que começa a aparecer nos EUA nos anos 1960. A série se baseia no livro Mind Hunter: Inside the FBI’s Elite Serial Crime Unit , de John W. Douglas, um ex-agente do FBI que se dedicou a estudar esse tipo de crime. Criada por Joe Penhall, a primeira temporada tem dez episódios com duração variável 7

. A série mostra as diferentes etapas da pesquisa e da consequente produção de conhecimento científico: a inquietação inicial a respeito de um fenômeno, o momento em que o fenômeno se torna objeto de interesse científico, a busca por um conhecimento teórico que ajude a explicar o fenômeno, a realização da pesquisa de campo, o desenvolvimento de metodologia e os ajustes nessa metodologia para maior aferição de dados, os dilemas éticos a respeito do modo como se conduz as entrevistas, a análise de resultados e redefinição da metodologia, e de premissas, a partir dos resultados, a conceituação e formulação de proposições a respeito do fenômeno. Na primeira temporada de Mindhunter , Holden Ford, alter ego do agente do FBI que é autor do livro original, passa por todas essas etapas, demonstrando um certo fascínio pelos casos. Sua ânsia por entender as motivações dos assassinos afeta o seu comportamento e o modo como convive com as pessoas próximas, contaminando suas relações pessoais. Isso ocorre de modo mais evidente na relação com sua namorada, (^7) 60’, 56’, 45’, 54’, 42’, 34’, 52’, 53’, 48’ e 52’, respectivamente. Observa-se que a grande diferença entre a duração dos episódios reflete o fato de a série ter sido produzida para um ambiente de streaming , no qual é o espectador que impõe o seu ritmo de audiência. Sem uma grade de programação fixa, deixa de ser necessária a padronização anteriormente imposta, na qual se previam também os cortes para os intervalos comerciais. Os episódios de Mindhunter parecem seguir unidades lógicas, o que determinaria a disparidade de duração entre o primeiro e o sexto episódios.

41 º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8 /09/201 8 Consideremos como um caso primário característico a noção de que a lição em aula se constitui, predominantemente, de dois componentes: o conteúdo e o método. (…) O conteúdo, como qualquer roteiro de estudos, prova, existe independentemente do estudante, sendo indiferente ao meio de comunicação através do qual é ‘transmitido’. O método pode ser imaginativo ou monótono, mas nunca é mais do que um meio de transmitir o conteúdo” (POSTMAN, WEINGARTNER, 1978, p. 36). Se é possível entender uma metodologia pedagógica como meio, no sentido Postmaniano, é possível também pensar as séries como método pelo qual o conteúdo é transmitido. Desse modo, posso atribuir as observações de Ausubel, Novak e Hanesian sobre o aprendizado ao efeito de enciclopédia da ficção seriada. Se a premissa acima é válida, posso, ainda, afirmar que o aprendizado a respeito do fenômeno do serial killer é por descoberta, uma vez que a recepção da ficção seriada audiovisual ocorre na zona intermediária de experiência, onde o teste de realidade – que diferencia os estímulos externos ao eu com sua realidade interna – é suspenso. Segundo Winnicott, na zona intermediária de experiência, o indivíduo sabe que aquilo que ele está vivendo não faz parte de seu mundo interno, mas não precisa dele se diferenciar. Por entender que, devido ao seu caráter ficcional, a recepção da ficção ocorre nessa área, o(a) espectador(a) experimenta a experiência das personagens da série como se estivesse ele(a) mesmo vivendo aquelas situações. Assim, ele(a) se (co)move com as ações e decisões das personagens, e a ficção seriada se converte em campo de experiência para ele(a) (MELO, 2017). Dessa forma, espectadores(as) de Mindhunter – assim como os(as) de outras séries, seriados e novelas – vão aprendendo, por descoberta, junto com os agentes do FBI: participam das diferentes etapas da pesquisa, vivem as experimentações junto com eles, questionam os imperativos éticos na condução dos interrogatórios, formam, em suma, o conhecimento científico sobre o assunto, não apenas como testemunhas oculares, mas com uma sensação em segundo plano de serem participantes da empreitada. ao tipo de experiência reflexiva da sociedade dos meios impressos. Como a questão neste artigo não é pensar a relevância da informação aprendida, mas analisar o efeito de enciclopédia das séries de ficção, não vejo incompatibilidade alguma com o pensamento posterior do autor.

41 º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8 /09/201 8 Mindhunter e a construção do conhecimento sobre serial killers As cenas iniciais de Mindhunter mostram o fracasso de Holden em uma negociação com um suspeito que mantém uma refém. A refém sai ilesa da situação, mas o suspeito se mata. É assim que o agente é afastado do trabalho de campo e transferido para Quantico, escola de formação de agentes do FBI, para ser instrutor de negociação com reféns. Ao final de uma aula um tanto burocrática, que se frustra na tentativa de captar a atenção dos alunos, ele vê uma sala lotada de alunos, mesmo após ter tocado o sinal de encerramento. Os alunos ouvem, atentos, um palestrante falar sobre um novo tipo de crime, extremamente violento, aleatório e sem motivo aparente: Há quarenta anos, o FBI foi fundado para caçar John Dillinger, Baby Face Nelson, Machine Gun Kelly. Criminosos que zombavam da sociedade, mas só visavam ganhos pessoais. Agora temos a violência extrema entre estranhos. Como agimos quando o motivo se torna elusivo?^9 Holden, intrigado, espera o professor Peter Hathman sair do prédio para se apresentar a ele e perguntar mais sobre o assunto. Os dois saem dali para continuar a conversa em um bar. Nessa conversa, insinuam a interferência de fatores ecológicos 10 na nova configuração de crimes, relacionando fatos políticos com o surgimento deste tipo de assassinato. Peter afirma: “O governo era simbolicamente uma instituição paternal. Agora? Salve-se quem puder”. Para Holden complementar: “O mundo mal faz sentido, então o crime também não faz”. Quando Peter deixa o bar, Holden conhece Debbie e, com ela, os estudos sociológicos sobre a natureza do desvio: “Dukheim diz que todas as formas de desvio são desafios à repressão normatizadora do Estado”, explica a moça. A proximidade desses dois encontros desperta em Holden uma inquietação teórica que o leva de volta aos bancos da faculdade, para estudar psicologia criminal na Universidade da Virgínia, após convencer seu chefe da importância de buscar conhecimento fora do bureau. O próximo passo é se juntar com Bill Tench, integrando a pequena equipe do (^9) Usarei, nas citações de falas da série, a tradução da legendagem disponível na Netflix. (^10) Apesar de breves, essas falas se aproximam da abordagem da ecologia das mídias na medida em que entendem que fatores simbólicos têm influência no surgimento do crime randômico. O que mudou nos aspectos simbólicos da realidade, ou seja, na significação da realidade social, está associado ao surgimento de um novo meio capaz de estabelecer comunicação na sociedade – nesse caso, a TV. Seria interessante investigar as relações entre esse tipo de crime e o advento da TV como meio preponderante de comunicação da sociedade norte-americana, ampliando questões apresentadas por Kevin D. Haggerty (2009) em artigo que liga o fenômeno do assassinato serial de vitimas desconhecidas do assassino à modernidade, à cultura de celebridades das mídias, ao racionalismo científico moderno e à ideia de engenharia étnica-social.

41 º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8 /09/201 8 personagem. Trata-se de Dennis, um funcionário público, que é mostrado em pequenas cenas na abertura dos episódios 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 9. O(A) espectador(a) entende que Dennis é um serial killer e fica curioso para saber como ele se ligará à trama principal. Se a curiosidade o levar à pesquisa na internet, descobrirá que Dennis é Dennis Rader, o autointitulado assassino BTK (bind-torture-kill), que matou mais de dez pessoas entre 1974 e 1991 e só foi preso em 2005, quando inovações tecnológicas permitiram que investigadores analisassem novamente as evidências do caso. O criminoso é mencionado no artigo The serial killer phenomenon (WHITTINGTON-EGAN, 2008) que faz uma revisão bibliográfica dos principais estudos sobre o tema. A comparação das informações consolidadas nesse artigo científico com as que o(a) espectador(a) tem acesso ao assistir a Mindhunter mostra que sobra pouca coisa não dita na série. Por contar a história da pesquisa realizada no BSU, a trama apresenta as principais informações sobre o fenômeno, diluídas nas entrevistas feitas por Holden, na caracterização e descrição dos entrevistados, nas situações vividas pelas personagens e nas análise e conclusões da equipe – que depois de obter sucesso em desvendar crimes violentos em mais de uma cidade, se questionam, no último episódio, se não seria o caso de ensinarem esses perfis para agentes e policiais. Essas informações, contudo, não são dadas de modo organizado. Cabe ao(à) espectador(a) estabelecer as relações entre fatos e informações, construindo por si próprio o conhecimento. Conhecimento enciclopédico sobre serial killers O historiador criminalista Whittington-Egan começa o artigo afirmando que o crime mudou e os serial killers refletem essa mudança, como também é dito no primeiro episódio da série. O autor descreve o serial killer típico como um homem caucasiano heterossexual, jovem (entre 18 e 32 anos) e solitário, embora algumas vezes ‘cacem’ em duplas. A palavra caçada também é usada pelas personagens para se referir à busca do serial killer pela vítima. Whittington-Egan menciona que a pesquisa realizada pelo BSU estabeleceu esse perfil típico, após entrevistarem 36 assassinos, sendo 25 deles seriais. Atribui ao departamento a taxonomia dos criminosos, que se dividem entre psicóticos e psicopatas, também chamados de sociopatas. Em seguida, o historiador criminalista diferencia dois perfis de serial killers , e é nesse ponto que se observa mais claramente o fato de o aprendizado significativo decorrente do “método” Mindhunter ser por descoberta – ou seja, depender de o(a)

41 º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8 /09/201 8 espectador(a) juntar por si próprio as peças dispersas para chegar a essa conclusão. Embora sejam diferenciados como organizados ou desorganizados por conta de seus procedimentos, a tipificação desses dois perfis ainda está em aberto na primeira temporada. O(A) espectador(a), contudo, reconhece os dois perfis descritos por Whittington-Egan pela caracterização dos assassinos entrevistados e dos suspeitos – em casos que ocorrem simultaneamente à realização da pesquisa. O assassino desorganizado em geral é solitário e covarde (só ataca a vítima depois de deixá-la inconsciente), e caça suas vítimas perto de onde mora ou trabalha, como Rissel e Darrell Gene Devier, o suspeito em uma das investigações. O organizado, por sua vez, costuma manter relações sociais convencionais, são mais imaginativos e mais adaptáveis, planejam com antecedência e preferem um tipo específico de vítima, que costumam observar à distância por algum tempo; são sádicos, matam lentamente, querem chocar a coletividade e por isso deixam os cadáveres à vista e, muitas vezes, aproximam-se da polícia (ou mesmo integram o corpo policial) para saber como está o encaminhamento das investigações^12 , como Kemper e Brudos. Outras informações presentes no artigo e na série são o fato de esse tipo de assassino em geral ter inteligência acima da média, ter tido uma infância difícil, com pai ausente, abuso sexual e/ou tortura sistemática. Há casos, como o de Ed Kemper, de assassinos que cresceram no que é considerado um bom ambiente socioeconômico. Parte significativa dos serial killers , a terça parte segundo o artigo, foi paciente em instituição mental ou é ex-condenado, como Kemper, Rissel, Speck e Charles Manson, mencionado na série como celebridade midiática. Álcool, drogas e vício em pornografia são gatilhos que contribuem para o criminoso realizar suas fantasias violentas. A série também questiona o fato de esses assassinos serem considerados criminosos sexuais, pois evidências – segundo apontado pelo artigo – indicam que a motivação para o crime decorre mais da possibilidade de exercer poder sobre o outro do que desejo sexual. A personagem de Speck ilustra essa questão, ao atirar o pássaro que segurava cuidadosamente nas mãos no ventilador da sala de interrogatório: ele mata porque pode fazê-lo. Por fim, Mindhunter incorpora até mesmo detalhes menos significativos como o fato de muitos serial killers terem sofrido ferimentos na cabeça na infância, como contado pela personagem de Monte Rissel. (^12) Se estou defendendo que o efeito cognitivo da ficção seriada ocorre em grande parte por causa da associação entre informações recebidas em séries diferentes, vale lembrar que esse perfil de serial killer é bem explorado em outra série do catálogo da Netflix, The Fall , com temporadas lançadas em 2013, 2014 e 2016.

41 º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8 /09/201 8 O assassinato serial é predominantemente um evento da mídia. Está entre os mais raros índices de crime, o que significa que, felizmente, a maior parte das pessoas não tem experiência direta com serial killers. Sem as mídias, os indivíduos certamente não teriam a familiaridade íntima que frequentemente demonstram com a dinâmica geral desse tipo de assassinato e com os apetites particulares dos assassinos. Embora essa capacidade de mediar a experiência de fenômenos que seriam desconhecidos se aplique a muitas outras coisas, a proeminência do tema dos serial killer na mídia torna-se um exemplo extremo dessa tendência. Poucos assuntos foram explorados com tanta persistência ao longo do último quarto de século^13 (HAGGERTY, 2009, p. 173). Considerações finais Nesse trabalho, busquei estender questões levantadas e apresentadas no ano passado neste mesmo GP. Se ali eu discutia a possibilidade de se pensar a ficção como campo de experiência, aqui argumento que essa experiência compartilhada permite um aprendizado significativo e, portanto, atribui às séries de ficção um efeito de enciclopédia sobre as audiências. O interesse por pensar a série Mindhunter como ferramenta didática – um meio de disseminação de conhecimento via entretenimento – veio pela surpresa em ver, no sexto e no oitavo episódios, personagens diferentes explicarem, em linhas gerais, a teoria d’ A representação do eu na realidade cotidiana , de Ervin Goffman. Com a firme convicção de que se o roteiro é bom – e me parece que o de Mindhunter o é – nada está ali por acaso, comecei a pensar o significado daquela explicação para o universo ficcional. Naquele momento, estabeleci a relação entre o modo como Holden passa a entrevistar os criminosos, colocando-se como semelhante a eles, no linguajar e na manifestação de supostas fantasias ocultas, em uma apresentação de si que evita o constrangimento e salva a face do outro, deixando-o à vontade para se expressar livremente. Ou seja, com essa estratégia, a outra pessoa, Firme na linha que está assumindo, ela sente que pode manter a cabeça erguida e se apresentar a outros abertamente. Ela sente uma certa segurança e um certo alívio – como também pode ocorrer quando os outros sentem que (^13) Tradução livre de: “Serial killing is predominately a media event (Gibson, 2006). It is among the most statistically rare forms of crime (Jenkins, 1994), meaning that most people thankfully have no first-hand experience of serial killers. Without the mass media, individuals certainly could not have the intimate familiarity that they often demonstrate with both the general dynamics of serial killing and the appetites of particular killers. While this mediated capacity to experience otherwise unknown phenomena characterizes our relationship with many things, the prominence of serial killing in the media makes it an extreme example of this tendency. Few other topics have been so persistently exploited over the past quarter century”.

41 º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8 /09/201 8 ela está com a fachada errada, mas conseguem esconder essas sensações dela (GOFFMAN, 2011, p. 16). Interessada em investigar essa relação entre a série e o que ela ensinava, busquei artigo científicos sobre serial killers e, ao ler o material levantado, descobri que não havia nada de novo para mim naquelas páginas. Os textos apenas confirmavam com uma linguagem científica o que eu já sabia, de tanto ver filmes e séries de ficção sobre o tema. Colocando-me como objeto, pensei que essa constatação poderia não ser apenas minha, mas de muitas outras pessoas que estivessem na mesma situação. Foi então que, dedicando-me a uma análise detalhada da série, pude pensar as questões aqui apresentadas: se pensarmos a série de ficção como meio, percebemos que ela se converte em campo de experiência e, com isso, amplia nossa realidade para além dos nossos limites físicos, realizando a mediação simbólica de fatos que seriam desconhecidos para nós. Porque partilhamos a experiência vivida pelas personagens ficcionais, em decorrência da suspensão do teste de realidade, as questões apresentadas na série nos (co)movem. Com isso, o efeito de enciclopédia resultante do fluxo contínuo de informações disseminadas em títulos diferentes ocorre como aprendizado significativo por descoberta. Referências AUSUBEL, D. P.; NOVAK, J. D.; HANESIAN, H. Educational psychology : a cognitive view.

  1. ed. Nova York: Holt, Rinehart and Winston, 1978. BECKER, H. Falando da sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. GOFMAN, E. Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face a face. Petrópolis: Editora Vozes, 2011. HAGGERTY, K. D. Modern serial killers. Crime Media Culture , v. 5 , n. 2 , p. 168 - 187, ago.

INNIS, H. O viés da comunicação. Petrópolis: Editora Vozes, 2011. JENKINS, H. Photoshop para a democracia. In:__. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.