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Quando a bomba foi lançada sobre Nagasaki, a aldeia de Mieko ficou em ruínas ... Cranes e Mieko and the Fifth Treasure, para que as crianças de todo o mundo.
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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Para as crianças de Nagasaki
Quando a bomba foi lançada sobre Nagasaki, a aldeia de Mieko ficou em ruínas e a mão da menina ficou gravemente ferida. A maior paixão de Mieko é a caligrafia mas, agora, mal consegue segurar um pincel. Sente, também, com tristeza, que perdeu aquilo que lhe permite pintar: o lendário quinto tesouro, que significa “beleza de coração”. Forçada a ir viver com os avós e a frequentar uma nova escola, a coragem de Mieko é duramente posta à prova. Contudo, a menina aprende que o tempo e a paciência podem ajudá-la muito, inclusive a reencontrar o quinto tesouro.
— Mieko, vem tomar o pequeno-almoço! — chamou a avó, num tom de voz alegre. — São horas de levantar! Mieko, porém, já não estava deitada. Estava sentada no quarto, quase imóvel, e cheia de pena de si mesma. — Desço já! — respondeu. A menina olhou fixamente para o material de pintura alinhado em cima da cómoda de laca vermelha. O seu professor de Arte, o Senhor Araki, tinha-lhes chamado “os quatro tesouros”. Havia um belo pincel de zibelina, um bloco de tinta, uma pedra de tinta do formato de um lago de nenúfares e um rolo de papel de arroz. Mieko tinha-os utilizado para pintar ideogramas japoneses. A caligrafia era a sua atividade favorita. O Senhor Araki também lhe dissera: “Mieko, és uma das poucas pessoas que nasceram com o quinto tesouro: beleza de coração. Quando pintas, essa beleza flui do teu coração para a tua mão, para o pincel, e passa para o papel. Se praticares muito, virás decerto a ser uma grande artista.” Mieko nunca compreendera muito bem o significado de “beleza de coração”, mas sabia que a sua maior felicidade consistia em ter um pincel na mão e em ver como cada traço que desenhava era cada vez mais perfeito. Suspirou ao pensar como tinha sido maravilhoso estar sentada no seu quarto a pintar, sozinha. Costumava entrelaçar traços, curvas e pintas para compor ideogramas que pareciam ter vida própria. Os dois traços que fazia para escrever “homem” assemelhavam-se a duas pernas calcorreando campos. E quase conseguia ouvir as pingas no ideograma para “chuva”. Quando pintava, Mieko vivia num mundo mágico. Porém, tudo mudara.
Nunca esqueceria o dia em que a bomba atómica fora lançada em Nagasaki, gerando ondas de choque que tinham alcançado a cidade onde vivia. Parecia o fim do mundo. Janelas foram estilhaçadas e telhas voaram pelo ar. Mieko tinha sido lançada ao chão e, quando erguera um braço para proteger a face, um pedaço de vidro recortado tinha-a atingido na mão e feito um corte profundo, desde os dedos até ao pulso. O sangue jorrara a rodos. Agora, duas semanas mais tarde, a ferida ainda latejava, dolorosa, por debaixo da ligadura. “Não é grave,” dissera o pai, na sua voz tranquilizadora de médico. “A tua mão vai sarar depressa e em breve estarás a pintar de novo.”
O avô designou um rochedo no minúsculo jardim das traseiras. — Vês aquilo? — perguntou, com orgulho. — Trouxe-o da montanha numa carroça, no ano passado. Consegues ler as palavras nele inscritas? Mieko estudou os traços que compunham os ideogramas, mas não eram fáceis de decifrar. Abanou a cabeça em sinal de desistência. — Água derramada nunca volta ao copo — explicou o avô. — Significa que não devemos preocupar-nos com coisas que não podem ser mudadas. O velho fez uma pausa para expelir o fumo do cigarro e acrescentou: — Coisas como a derrota do Japão na guerra, coisas como tudo o que a bomba destruiu. Coisas como a tua mão ferida e a tua vinda para aqui — concluiu, olhando de relance para a mão de Mieko. A avó sorriu, deu uma palmadinha no ombro da neta e disse: — Sei que não é fácil para uma criança de dez anos compreender, mas deves tentar. Mieko suprimiu as lágrimas. Não queria compreender. Apenas queria voltar para casa e que tudo voltasse a ser como dantes. À hora de deitar, a avó estendeu um futon no quarto de Mieko e pendurou uma rede mosquiteira em volta dele. Quando viu os quatro tesouros em cima da cómoda, acenou, aprovadora. — Vejo que não esqueceste os teus objetos de caligrafia. Fizeste bem. Em breve voltarás a praticar. — Não, não voltarei! — explodiu Mieko, enfiando os quatro tesouros numa gaveta. — A bomba deu cabo de tudo, avó. Jamais voltarei a pintar. — Não digas isso — pediu a avó, desconcertada. — A tua mão vai melhorar… — Mas os meus dedos vão ser sempre hirtos e desajeitados como camarões secos — disse Mieko, em voz baixa. — E os meus traços não passarão de paus. A menina deitou-se no futon e cobriu a cabeça com o lençol. A avó suspirou. — Vou escrever aos teus pais a dizer que chegaste em segurança. Dorme bem — disse, apagando a luz.
Era a primeira vez que Mieko estava longe de casa sozinha. Tinha saudades do seu quarto, em cujas paredes pendurara o quadro do seu professor e em cuja janela rumorejavam as folhas do pessegueiro da mãe. E se algo acontecesse aos pais? E se adoecessem e morressem? E se nunca mais os visse? Quando, finalmente, se sentiu exausta, Mieko abafou a boca com uma almofada e chorou até adormecer. Nessa noite, teve um pesadelo. Um avião zumbia por cima da sua cabeça e uma bomba enorme explodia na sua face. Quando Mieko acordou aos gritos, encontrou o avô ajoelhado junto de si.
— A guerra já terminou — disse, abraçando-a. — Acabaram-se as bombas. Mas Mieko não conseguia parar de soluçar e de tremer. — Tens de parar de chorar — sussurrou o avô. — As tuas lágrimas não vão ajudar os que foram mortos pela bomba atómica. As almas deles precisam de atravessar o Rio da Morte para atingirem o céu. Cada lágrima que derramas cai no rio e torna-o mais fundo. Mieko estremeceu ao imaginar o que seria debater-se com aquela água gelada e, aos poucos, foi-se acalmando. O avô esticou as roupas da cama e disse: — Chega de pensamentos tristes. Tenta dormir tão profundamente como o rochedo do jardim. Mal o avô saiu, Mieko abeirou-se da janela aberta e afastou a franja para que o ar fresco da noite refrescasse a sua testa húmida. Sem luar, mal podia ver o rochedo do avô. Sentia pena dele, ali tão sozinho e tão rodeado de escuridão. Parecia tão sozinho como ela.
Todas as manhãs, Mieko vestia o vestido que a avó costurara a partir de um velho quimono de algodão. Não tinha botões ou cinto, para que a menina pudesse enfiá-lo pela cabeça com facilidade. A avó pusera as blusas de manga comprida e as calças largas que Mieko trouxera num saco de restos de tecido. — Não percebo por que razão o governo obrigou as raparigas a vestir aquelas roupas quentes e ásperas. Ainda bem que a guerra acabou e que podes vestir roupas decentes de novo — disse, sentada sobre os calcanhares, enquanto olhava Mieko de alto a baixo. — Estás com muito melhor aspeto — opinou, com um sorriso satisfeito. — Já pareces outra vez uma rapariga. Havia sempre muito que fazer na quinta. A avó não parava de fazer coisas: cozinhar, limpar, varrer, remendar roupas. Mieko tentava ajudar dando de comer às galinhas, indo buscar os ovos, polindo a varanda de madeira, acendendo o lume sob a tina de banho ao fim da tarde, ou espalhando água na terra seca e gretada da estrada, por causa do pó. As tarefas da cozinha eram mais difíceis, porque a mão de Mieko era desajeitada e doía-lhe sempre que tentava segurar uma faca ou uma colher. A menina demorava muito a cortar beringelas e pepinos com a mão esquerda. Certa vez, deixou cair ao chão um prato cheio de peixe cortado e ficou a olhar para o
apalpou o pescoço da menina. Finalmente, anunciou: — A tua garganta está ótima e as tuas glândulas não estão minimamente inchadas. — Tenho mesmo de ir para a escola hoje, avó? — suplicou Mieko. A avó nem lhe deu atenção. Continuou a enfiar arroz em crepes de tofu, que mais pareciam velas enfunadas, e colocou-os, bem arrumados, numa lancheira. — Está muito calor! — exclamou, tocando ao de leve no pescoço, com a ponta do avental. — Não caminhes depressa de mais hoje de manhã, Mieko! A neta disse: — Nem sei onde fica a escola. Se calhar, ainda me perco. — Eu levo-te lá a caminho do campo — interrompeu o avô. — Agora corre para o teu quarto e arranja-te. — Não te esqueças dos materiais de caligrafia — avisou a avó, enquanto colocava um pedacinho de peixe seco na lancheira, como petisco. Mieko achou que seria disparatado levar os quatro tesouros, uma vez que não iria usá-los. Mas, para agradar à avó, colocou-os na pasta de couro preto. Demorou muito a aprontar-se. Quando o avô irrompeu pelo quarto dentro, viu-a a pentear o cabelo e a arranjar o uniforme, sem qualquer necessidade. — Vamos! — disse, com firmeza. — Não vais decerto querer chegar tarde logo no teu primeiro dia! — Mas o primeiro dia é sempre tão assustador… — choramingou Mieko. — Vou sentar-me na carteira errada… dizer as coisas erradas… e todos vão olhar para a minha mão. Mieko achava que a pele nova e avermelhada que despontava na sua mão ferida tinha ainda pior aspeto do que as crostas a sair. Contudo, não tinha outra saída senão arrastar-se para a escola ao lado do avô, cuja mão calejada segurava a sua. Quando chegaram, Mieko hesitou. — Vá lá, entra! — disse o avô, empurrando-a com delicadeza. — Vai correr tudo bem! Mieko ficou a ver o avô caminhar com passo decidido até ele desaparecer na esquina. Por momentos, ficou imóvel, paralisada pelo medo. Finalmente, depois de um suspiro longo e trémulo, atravessou a porta de entrada da escola, devagar.
Mieko descalçou os socos de madeira e colocou-os numa das caixas de calçado do átrio da escola. Limpou as mãos húmidas à saia e, ora apoiando-se num pé ora noutro, esperou que a professora aparecesse e lhe dissesse para que sala ir. Imaginou uma professora velha e má. Pelo canto do olho, viu os alunos entrar. Alguns riam, outras estavam de braço dado. Tinham vivido ali a vida inteira e conheciam-se bem. Nenhum deles lhe dirigiu a palavra. Mieko ficou agradavelmente surpreendida quando uma mulher jovem e bonita se apresentou: — Deves ser a Mieko — disse, afetuosa. — O teu avô falou-me de ti. Sou a Menina Suzuki. Após uma respeitosa vénia, Mieko seguiu a professora para dentro da sala de aula e sentou-se numa carteira perto do fundo. A professora deu-lhe um lápis grosso, cuidadosamente afiado nas duas pontas, e algumas páginas de um jornal velho. — Tenta escrever nos espaços em branco — disse. — Espero que venhamos a ter mais material agora que a guerra terminou. Até lá, vamos remediar com o que temos. Quando olhou em redor e viu todos aqueles rostos fechados, Mieko sentiu, mais do que nunca, o significado da palavra “solidão”. — Temos uma aluna nova — anunciou a professora. — Por favor levanta-te, Mieko. Com os joelhos a tremer, a menina levantou-se enquanto trinta pares de olhos a fitavam. Corou e tentou esconder a mão atrás das costas. A professora continuou: — A Mieko acaba de chegar de uma cidade perto de Nagasaki e espero que todos a façam sentir bem-vinda e a ajudem a conhecer a nossa escola. Estas palavras deram origem a um burburinho na sala. Enquanto se sentava de novo, Mieko ouviu sussurros: — Foi onde explodiu a bomba…
A manhã parecia não ter fim. Mieko sentia-se tão nervosa que tropeçou nos próprios pés e deixou cair o livro duas vezes. Na aula de História, não conseguiu lembrar-se de todos os nomes dos imperadores japoneses, ao invés dos seus colegas. E nem sequer tentou escrever, mantendo antes as mãos no regaço. Aquando dos exercícios de aritmética, ouviu-se um barulho súbito no exterior e Mieko enfiou-se debaixo da carteira. Mal o fez, sentiu-se logo mal. Era apenas o estampido do tubo de escape de um camião, não uma bomba a explodir. Apesar disso, Mieko deu por si a tremer. Nesse momento, a professora apontava para um ábaco gigante que estava diante do quadro e chamou: — Mieko, vem resolver este problema de multiplicar, por favor.
fresco. A neta reparou na semelhança extraordinária entre as feições do avô e do pai, embora a cara do avô fosse mais magra e enrugada e o cabelo fosse cinzento. — Como correu a escola? — perguntou ele, enfiando a pequena toalha no cinto. — Foi horrível! — murmurou Mieko. O avô lançou-lhe um olhar furtivo que parecia ler a mente da neta. — Isso é ódio de mais para uma menina — comentou, esfregando os nós dos dedos para aliviar a dor da artrite. — Tentaste fazer amigos? Mieko pensou em Yoshi, mas encolheu os ombros e manteve a cabeça baixa, para evitar fixar os olhos do avô. O idoso designou o campo em redor com o braço. — Vês tudo isto? O arroz não cresce sozinho. Tenho de plantar as sementes, fertilizá- las e ver se as ervas daninhas não atrapalham o seu crescimento. Depois, tenho de separar as plântulas e plantá-las noutro lugar. Não é uma tarefa fácil. Com o semblante sério, acrescentou: — Também não é fácil fazer amizades quando se detesta quase toda a gente. O avô endireitou-se e iniciou o caminho de regresso ao campo. — Pensa nisso! — disse à neta, com as costas semi-voltadas.
Mieko estava demasiado perturbada para pensar nas palavras do avô. Quando chegou a casa, esperava-a um choque. Um par de sapatos abertos, castanhos e envernizados, estava cuidadosamente colocado no chão de cimento da entrada. Mieko tentou passar despercebida pela sala de estar, mas a avó ouviu-a. — Até que enfim que chegaste! Temos estado à tua espera. Entra e vem cumprimentar a Menina Suzuki. Mieko suspirou e entrou na sala. Ajoelhou-se no tapete e inclinou a cabeça em jeito de cumprimento, enquanto se perguntava o que quereria a professora. A avó serviu chá a Mieko, numa das suas melhores chávenas. A neta reparou no padrão de flores, igual ao do serviço da mãe. — A Menina Suzuki acha que deverias ficar em casa durante algum tempo até recuperares as forças — disse a avó. A professora assentiu com a cabeça. — Quando te sentires melhor, Mieko, regressas à escola. Não há motivo para pressas — disse, lançando um olhar à avó. Mieko observou-as, olhando por cima da borda da chávena. A avó franziu a testa, enquanto enfiava no carrapito um fio de cabelo cinzento que se soltara, e disse:
— A Mieko tem de se habituar às outras crianças. Quanto à pintura… A professora inclinou-se para a frente e baixou a voz: — Não se preocupe. A Mieko vai voltar para a escola em breve e não terá dificuldades em recuperar o tempo perdido. Claro que não há motivo para não continuar a pintar em casa… A cara de Mieko iluminou-se. Estas palavras significavam o fim das aulas e das perguntas. Talvez nunca mais regressasse à escola. Mas como poderia ela continuar a pintar? Sem o quinto tesouro, tudo seria inútil.
Nesse mesmo dia, mais tarde, chegou uma carta da mãe.
Querida Mieko, O teu pai e eu temos tantos doentes para atender que passamos longas horas na clínica. Esperamos que te sintas feliz na quinta e que estejas a recuperar as forças e a saúde. Por esta altura, já deves estar na escola, a fazer novos amigos. Escreve-nos logo que possas. Sentimos a tua falta. Um beijo, Mãe.
— Novidades de casa? — perguntou a avó. Mieko abanou a cabeça. Depois, correu para o quarto e guardou a carta. Nessa noite, quando já estava deitada, o avô chegou a casa. Os seus passos pesados e cansados soaram nas escadas. — Mieko — sussurrou. — Ainda estás acordada? A menina cerrou os olhos e fingiu estar a dormir. Não estava com vontade de ouvir falar da cultura do arroz ou da necessidade de fazer amigos. — Quero que saibas que te compreendo — disse o avô, como se soubesse que o sono dela era fingido. — Sei que voltarás para a escola, na altura certa. A gentileza do tom de voz do avô fez com que Mieko se sentisse pior. Muito quieta, quase sem respirar, ouviu-o dizer, junto da porta do quarto: — Acredita, Mieko, que um belo dia hás de encontrar uma amiga. E essa felicidade vai fazer com que pintes belos ideogramas. Tal como dantes. Mieko ouviu o som da porta a fechar. “O meu avô está errado”, pensou. “Perdi o quinto tesouro para sempre e nunca mais serei feliz”.
meses. Havia uma nota para ela no fim da carta:
Querida Mieko, Ainda te dói muito a mão? Já deves estar a escrever com um lápis. Que tal vai a pintura? Ainda não nos contaste nada sobre a escola. Vê se escreves em breve. Um beijo, Mãe.
Mieko não teve coragem de olhar para os avós. Sentia-se envergonhada. Como poderia escrever sobre a escola, os novos amigos ou a pintura? Sentiu um nó na garganta e correu para fora de casa. Encostada a uma das paredes, ouviu as vozes na sala. — Aquela rapariga é demasiado introvertida — dizia a voz ansiosa da avó. — Até parece que um duende malvado lhe roubou a alma. Quase não sorri e, sempre que aparece alguém, desaparece tão depressa como um ovo cozido desliza por pauzinhos. E nem sequer pega num pincel ou num lápis. O avô disse, calmamente: — Quando a Mieko se sentir preparada, vai voltar para a escola. Depois de um longo silêncio, acrescentou: — Quando uma jovem se sente perturbada, devemos deixá-la em paz. Só a Mieko se pode curar a si mesma. Nós não podemos fazê-lo. — Acho que tens razão — concordou a avó com um suspiro. Mieko engoliu em seco. Por sua culpa, os avós também estavam tristes.
Na manhã seguinte, o médico veio vê-la e ficou surpreendido com o quanto ela mudara. — Não te pareces nada com aquela menina escanzelada que chegou aqui em agosto. A comida da quinta faz-te mesmo bem. Inclinando-se para Mieko, disse: — Só não gosto nada dessa cara triste. Um pouco de felicidade faria de ti uma bela jovem. Mieko corou e sorriu um pouco. — Assim está melhor — disse o médico, tocando-lhe na mão e mexendo-lhe os dedos. — Precisas de pintar para distender estes músculos hirtos. — A Mieko está bem, doutor? — perguntou a avó, vinda da cozinha. — Já pode voltar para a escola? O médico acenou afirmativamente e levantou-se para sair.
Mieko olhou para um e para o outro e sentiu-se quase sufocar. — Eu não quero voltar nunca! — Nunca é tempo de mais — comentou o médico, com o sobrolho franzido. — És inteligente e tens queda para a caligrafia, Mieko. Mas nenhuma delas se desenvolverá, se ficares em casa, amuada a um canto. — Ninguém vê a minha inteligência. Só veem a minha mão feia. E não estou amuada — disse a menina, com a voz a tremer. — Não sei o que fazer com ela — queixou-se a avó, impotente. O médico falou de novo, com uma certa dureza na voz: — Mieko, podes ser uma pessoa amarga durante toda a vida, mas apenas te magoas a ti e à tua família. O ódio crescerá no teu coração como uma erva daninha e ocupará o lugar do amor e da beleza. — Não quero saber! — gritou a menina, saindo a correr.
Com as lágrimas a arder nos olhos, passou a correr pelas quintas vizinhas e subiu a montanha. O trilho serpenteava por entre rochedos de formas estranhas e declives relvados. Mieko só se deteve quando chegou junto de um riacho, situado a meio da subida. Cheia de calor e cansaço, deixou-se cair e mergulhou os dedos na água fresca. O ar estava seco como uma bolacha de arroz. A menina pousou a cabeça na margem musguenta e pôs-se a escutar o zumbido lento dos insetos e o gotejar da água sobre os seixos. De repente, ouviu um barulho perto dali. O som era estranho e Mieko lembrou-se das histórias que ouvira sobre Tengu, o demónio de cara vermelha que vive nas montanhas. Contava-se que tinha asas, garras e um nariz muito comprido. Levava as crianças que se portavam mal para a sua caverna e nunca mais ninguém as via. “Se isso for verdade, o Tengu vai levar-me pela certa”, pensou Mieko. E começou a dar-se conta de que, ultimamente, não estava a comportar-se de forma correta. Enumerou as suas más ações: preocupava os avós, faltava às aulas, tinha sido malcriada com o médico, detestava quase toda a gente e nem sequer tentara pintar ou escrever aos pais. Eram muitas más ações. Susteve a respiração e pôs-se à escuta. O som assustador fez-se de novo ouvir. Parecia um bater de asas. Levantou-se de um pulo e desatou a correr pelo caminho sinuoso o mais depressa que podia.
Terra, alguém a quem nada faltava. Perguntava-se como poderia ela sorrir e ser gentil se tinha perdido a família. Depois do lanche, acompanhou-a ao portão e viu-a caminhar em direção a casa.
Nos dias seguintes, Mieko passou bastante tempo fora de casa, na esperança de voltar a ver Yoshi. Mas só voltou a vê-la uma semana mais tarde. Estava na mercearia a comprar chá com a avó quando Yoshi entrou. — A tia Hisako mandou-me comprar chá — explicou. — Viemos buscar o mesmo — disse Mieko, a sorrir. Caminharam juntas até à casa da avó. — Gostavas de ver o meu quarto? — perguntou Mieko, com timidez. — Acho que sim — respondeu Yoshi. Mieko queria mostrar tudo à colega, mas não tinha roupas especiais ou bonecas bonitas. Hesitando, abriu uma gaveta e mostrou-lhe os seus quatro tesouros: a pedra de tinta, o bloco de tinta, o pincel e o rolo de papel de arroz. Yoshi passou os dedos pelo nenúfar gravado na pedra e, depois, afagou os pelos do pincel. — Tens um material maravilhoso! — exclamou, com admiração. — Deves pintar muito bem. Mieko nada disse e guardou os tesouros. Não conseguia contar a Yoshi que tinha perdido o quinto tesouro. Tinha a certeza de que a colega não gostaria de uma rapariga com tanto ódio dentro dela… Levou Yoshi até ao jardim e interrogaram-se ambas sobre o sentido das palavras gravadas no rochedo do avô. Quando Yoshi já se estava a despedir, perguntou: — Amanhã vais à escola? Mieko não sabia se estava disposta a ir à escola, mas também não queria dizer “não” a Yoshi. Por isso, respondeu: — Talvez. Contudo, por volta da hora de jantar, já tinha decidido. Parou de comer a sopa e disse: — Penso que amanhã vou à escola. Os avós olharam-na, surpreendidos. — Avô — disse Mieko, com um olhar sério, — penso que começo a compreender o significado das palavras do teu rochedo. Significam que não devo preocupar-me com a minha cicatriz ou com a ida para a escola. O avô puxou-a para si. — Acho que estás a ficar sensata — disse, dando uma risadinha. — Estás a aprender
a aceitar as coisas que não podes mudar. E, mais importante ainda do que isso, estás a aceitar-te tal como és, com cicatrizes e tudo. Depois da louça lavada e arrumada, sentaram-se a falar até as estrelas aparecerem no céu. Ao deitar, a menina olhou-se ao espelho. Tinha uma cara simples e redonda, emoldurada por cabelo preto e uma franja. Mieko desejou que da sua face emanasse um pouco da bondade que via no rosto de Yoshi. Nessa noite, quando adormeceu, não sentia mal-estar ao pensar na escola e não tinha um nó tão grande na garganta. Sentia-se como se começasse a ver luz, depois da travessia de um túnel escuro. Talvez tudo fosse correr bem.
Mal Mieko entrou na sala de aula, sentiu que havia algo de diferente. Todos sorriam. — Estamos contentes por teres regressado, Mieko — disse a Menina Suzuki, de forma agradável, como se nada de extraordinário se tivesse passado. — Temos estado a estudar as bombas atómicas de Hiroshima e de Nagasaki — disse uma das alunas. — Deves ter sido muito corajosa. Mieko sentiu a sua amargura dissolver-se como neblina matinal. Depois deste episódio, as aulas começaram a correr extraordinariamente bem. Mieko conseguia escrever com um lápis e a professora mostrava-se satisfeita. Na aula de composição, escreveu a primeira carta para os pais.
Queridos mãe e pai, Tenho uma nova amiga chamada Yoshi e gosto de andar na escola. Como a mão ainda me dói, a minha caligrafia não é muito boa. Ainda não usei o pincel. Também tenho muitas saudades vossas. Um beijo, Mieko.
Certo dia, quando se encontrava no quarto, Mieko abriu a gaveta da cómoda e tirou de lá os quatro tesouros. Sentada numa almofada, esfregou o bloco de tinta na pedra de tinta humedecida. Quando a tinta ficou preta e suficientemente grossa, Mieko pegou no
— Vamos participar! — disse Yoshi, com entusiasmo. Mieko, porém, abanou a cabeça. Como poderia pensar em participar num concurso, se não conseguia pintar os traços mais simples? — Anda lá! — tentou persuadi-la Yoshi. — Vai ser divertido. Além do mais, nenhum de nós teve lições de caligrafia durante a guerra e tu já estudas há muito tempo. Tens mais hipóteses de ganhar do qualquer um de nós — terminou, puxando pela manga de Mieko. “Tenho mesmo”, pensou Mieko, amargurada. “Tive aulas que de nada me servem agora.” Olhou de relance para os dedos delicados de Yoshi. Como poderia sequer competir com uma pessoa como ela? E com as mãos perfeitas de todos os outros alunos? Pior ainda, Mieko sabia que nunca ganharia sem a magia especial do quinto tesouro. Mas Yoshi não se calava com o concurso. Quando chegaram a casa de Mieko, a avó estava a lavar roupa numa grande tina. — Vai haver um concurso de pintura na escola e penso que a Mieko devia entrar — disse-lhe Yoshi. A avó parou o que estava a fazer e colocou as mãos vermelhas nas ancas. — Eu também penso — disse, olhando a neta fixamente. — Os teus pais iriam ficar tão orgulhosos… — Não! — disse logo Mieko. — Não estou preparada. Não posso — acrescentou, depois de uma pausa. O assunto acabava ali. Pelo menos, era o que Mieko pensava.
Num dia fresco de outono, Yoshi declarou: — Vou dar uma festa no domingo e quero que venhas. Mieko ficou excitadíssima. Tinha a certeza de que a casa de Yoshi se devia parecer com um castelo de conto de fadas. Nesse dia especial, a avó não foi ajudar o avô a colher arroz. Ficou em casa para se certificar de que a neta se vestia condignamente para uma ocasião tão importante. Colocou uma fita azul no cabelo de Mieko e apertou-a tanto que a menina até gritou. Depois, puxou bem o nó do laço e endireitou a melhor saia de Mieko.
— Onde está o teu lencinho limpo? — perguntou em seguida. Mieko tirou-o do bolso. — Não te esqueças de o usar — disse a avó, dando um último retoque na roupa. — Agora podes ir. Quando chegou a casa de Yoshi, Mieko viu-se diante de um portão alto e fechado, com uma pequena porta ao lado. Após alguns minutos, ganhou coragem suficiente para bater ao de leve. Como ninguém atendeu, Mieko bateu com mais força. Logo ouviu o barulho de um par de socos no pátio. — Sou eu, a Mieko — disse, fazendo uma vénia, embora ninguém a pudesse ver. A porta pequena abriu-se e Yoshi pôs a cabeça de fora. — Sabia que eras tu — disse, rindo. — Entra.
As raparigas tiraram o calçado na entrada e enfiaram chinelos. Enquanto percorriam o corredor, os chinelos de Mieko estavam sempre a sair, por serem grandes de mais. Sentiu-se aliviada quando chegou à porta deslizante da sala de estar e se descalçou para caminhar sobre o tatami. Ao contemplar a sala, ficou sem palavras. Era tão grande que tinha oito tapetes! Havia almofadas de seda dispostas junto de uma mesa baixa e Mieko sentiu crescer água na boca quando viu biscoitos e bolos junto de um bule com chávenas a condizer. Esperava poder lanchar em breve. — Senta-te — disse Yoshi, com uma voz de anfitriã adulta. Mieko sentou-se sobre os pés diante de Yoshi. Às vezes, em casa, espamarrava-se. Aqui, contudo, tinha de se comportar de forma a não envergonhar a avó. O tiquetaque do relógio da entrada ecoava no silêncio. Mieko observou os quadros pendurados na alcova e sobre a porta. Gostou do dragão em tinta preta. Os traços do artista deslizavam e saltavam no papel, fazendo com que o dragão parecesse vivo. Mieko quase sentia o calor do seu sopro flamejante. A outra pintura era um poema em caligrafia que dizia:
Por entre a corrupção do mundo, um coração de jade branco e puro.
A menina perguntou-se o que significaria “corrupção”. De repente, Yoshi disse-lhe: — Escusamos de estar tão caladas. Somos só nós. Mieko sorriu abertamente e, em breve, começaram a comer os doces e a palrar sobre a escola. Tinha acabado de enfiar na boca o último bolo quando uma mulher magra e elegante