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Guias e Dicas
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Microfísica do Poder: Análise de Michel Foucault por Roberto Machado, Manuais, Projetos, Pesquisas de Medicina

Michel foucault explora o conceito de poder e sua relação com a verdade, analisando casos específicos como a psiquiatria e a universidade. Foucault questiona a noção de repressão e apresenta a importância de estudar historicamente como se produzem efeitos de verdade em discursos. Um resumo da obra 'microfísica do poder'.

O que você vai aprender

  • Como Foucault analisa a relação entre a universidade e o poder?
  • Qual é a teoria de Michel Foucault sobre o poder e a verdade?
  • Quais são os cinco características históricas da 'economia política' da verdade?
  • Como Foucault desafia a noção tradicional de repressão?
  • Qual é a importância de estudar historicamente os efeitos de poder e verdade?

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Michelle87
Michelle87 🇧🇷

4.7

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Microfísica do Poder
Michel Foucault
Organização , introdução e Revisão Técnica de Roberto Machado
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Microfísica do Poder

Michel Foucault

Organização , introdução e Revisão Técnica de Roberto Machado

Índice

XVI Sobre a história da sexualidade

  • I Verdade e poder
  • II Nietzsche, a genealogia do poder
  • III Sobre a justiça popular
  • IV Os intelectuais e o poder
  • V O nascimento da medicina social
  • VI O nascimento do hospital
  • VII A casa dos loucos
  • VIII Sobre a prisão
  • IX Poder−corpo
  • X Sobre a geografia
  • XI Genealogia e poder
  • XII Soberania e disciplina
  • XVIII XIII A política da saúde no século
  • XIV O olho do poder
  • XV Não ao sexo rei
  • XVII A governamentalidade

ainda não percorridos. Não havia conceitos já formados, vocabulário validado para tratar de questões como a dos efeitos de poder da psiquiatria ou o funcionamento político da medicina. Enquanto que inumeráveis trocas tinham ocorrido desde Marx até a época atual, passando por Engels e Lênin, entre os universitários e os marxistas, realimentando toda uma tradição de discurso sobre a "ciência" no sentido que lhe era dado no século XIX, os marxistas pagavam sua fidelidade ao velho positivismo com uma surdez radical com relação a todas as questões de psiquiatria pavloviana. Para certos médicos próximos do P.C.F., a política psiquiátrica, a psiquiatria como política, não eram coisas honrosas.

Aquilo que eu havia tentado fazer neste domínio foi recebido com um grande silêncio por parte da esquerda intelectual francesa. E foi somente por volta de 68, apesar da tradição marxista e apesar do P.C., que todas estas questões adquiriram uma significação política com uma acuidade que eu não suspeitava e que mostrava quanto meus livros anteriores eram ainda tímidos e acanhados. Sem a abertura política realizada naqueles anos, sem dúvida eu não teria tido coragem para retomar o fio destes problemas e continuar minha pesquisa no domínio da penalidade, das prisões e das disciplinas.

Enfim, talvez haja uma terceira razão, mas não estou em absoluto seguro de que tenha desempenhado um papel. Entretanto, me pergunto se não havia por parte dos intelectuais do P.C.F., ou dos que lhe estavam próximos, uma recusa em colocar o problema da reclusão da utilização política da psiquiatria ou, de forma mais geral, do esquadrinhamento disciplinar da sociedade. Sem dúvida, por volta dos anos 55−60, poucos tinham conhecimento da amplitude real do Gulag, mas creio que muitos a pressentiam, muitos tinham a sensação de que sobre estas coisas melhor era não falar. zona perigosa, sinal vermelho. É claro que é difícil avaliar retrospectivamente o seu grau de consciência. Mas de qualquer forma vocês bem sabem com que facilidade a direção do Partido, que não ignorava nada, podia lançar palavras de ordem, impedir que se falasse disto ou daquilo, desqualificar os que falavam...

Uma edição do Petit Larousse que acaba de sair diz: "Foucault:: filósofo que funda sua teoria da história na descontinuidade". Isto me deixa pasmado. Sem dúvida me expliquei de forma insuficiente em As Palavras e as Coisas, se bem que tenha falado muito acerca disto. Pareceu−me que em certas formas de saber empírico como a biologia, a economia política, a psiquiatria, a medicina etc., o ritmo das transformações não obedecia aos esquemas suaves e continuistas de desenvolvimento que normalmente se admite. A grande imagem biológica de uma maturação da ciência ainda alimenta muitas análises históricas; ela não me parece historicamente pertinente. Numa ciência como a medicina, por exemplo, até o fim do século XVIII, temos um certo tipo de discurso cujas lentas transformações − 25, 30 anos − romperam não somente com as proposições "verdadeiras" que até então puderam ser formuladas, mas, mais profundamente, com as maneiras de falar e de ver, com todo o conjunto das práticas que serviam de suporte à medicina. Não são simplesmente novas descobertas; é um novo "regime" no discurso e no saber, e isto ocorreu em poucos anos. É algo que não se pode negar a partir do momento em que se lê os textos com atenção. Meu problema não foi absolutamente de dizer: viva a descontinuidade, estamos nela e nela ficamos; mas de colocar a questão: como é possível que se tenha em certos momentos e em certas ordens de saber, estas mudanças bruscas, estas precipitações de evolução, estas transformações que não correspondem à imagem tranqüila e continuista que normalmente se faz? Mas o importante em tais mudanças não é se serão rápidas ou de grande amplitude, ou melhor, esta rapidez e esta amplitude são apenas o sinal de outras coisas: uma modificação nas regras de formação dos enunciados que são aceitos como cientificamente verdadeiros. Não é portanto uma mudança de conteúdo (refutação de erros antigos, nascimento de novas verdades), nem tampouco uma alteração da forma teórica (renovação do paradigma, modificação dos conjuntos sistemáticos). O que está em questão é o que rege os enunciados e a forma como estes se regem entre si para constituir um conjunto de proposições aceitáveis cientificamente e, consequentemente, susceptíveis de serem verificadas ou infirmadas por procedimentos. científicos. Em suma, problema de regime, de política do enunciado científico. Neste nível não se trata de saber qual é o poder que age do exterior sobre a ciência, mas que efeitos de poder circulam entre os enunciados científicos; qual é seu regime interior de poder; como e por que em certos momentos ele se modifica de forma global.

São estes regimes diferentes que tentei delimitar e descrever em As Palavras e as Coisas, esclarecendo que no momento não tentava explicá−los e que. seria preciso tentar fazê−lo num trabalho posterior. Mas o que faltava no meu trabalho era este problema do "regime discursivo", dos efeitos de poder próprios do jogo enunciativo. Eu o confundia demais com á sistematicidade, a forma teórica ou algo como o paradigma. No ponto de confluência da História da Loucura e As Palavras e as Coisas, havia, sob dois aspectos muito diversos, este problema central do poder que eu havia isolado de uma forma ainda muito deficiente.

A.F.:

Deve−se então recolocar o conceito de descontinuidade no seu devido lugar. Talvez haja um outro conceito mais importante, mais central no seu pensamento: o conceito de acontecimento. Ora, a respeito do acontecimento, uma geração ficou durante muito tempo num impasse, pois, depois dos trabalhos dos etnólogos e mesmo dos grandes etnólogos, estabeleceu−se uma dicotomia entre as estruturas (aquilo que é pensável) e o acontecimento, que seria o lugar do irracional, do impensável, daquilo que não entra e não pode entrar na mecânica e no jogo da análise, pelo menos na forma que tomaram no interior do estruturalismo.

M.F.:

Admite−se que o estruturalismo tenha sido o esforço mais sistemático para eliminar, não apenas da etnologia mas de uma série de outras ciências e até da história, o conceito de acontecimento. Eu não vejo quem possa ser mais anti−estruturalista do que eu. Mas o importante é não se fazer com relação ao acontecimento o que se fez com relação à estrutura. Não se trata de colocar tudo num certo plano, que seria o do acontecimento, mas de considerar que existe todo um escalonamento de tipos de acontecimentos diferentes que não têm o mesmo alcance, a mesma amplitude cronológica, nem a mesma capacidade de produzir efeitos.

O problema é ao mesmo tempo distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros. Daí a recusa das análises que se referem ao campo simbólico ou ao campo das estruturas significantes, e o recurso às análises que se fazem em termos de genealogia das relações de força, de desenvolvimentos estratégicos e de táticas. Creio que aquilo que se deve ter como referência não é o grande modelo da língua e dos signos, mas sim da guerra e da batalha. A historicidade que nos domina e nos determina é belicosa e não lingüística. Relação de poder, não relação de sentido. A história não tem "sentido", o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas. Nem a dialética (como lógica de contradição), nem a semiótica (como estrutura da comunicação) não poderiam dar conta do que é a inteligibilidade intrínseca dos confrontos. A "dialética" é uma maneira de evitar a realidade aleatória e aberta desta inteligibilidade reduzindo−a ao esqueleto hegeliano; e a "semiologia" e uma maneira de evitar seu caráter violento, sangrento e mortal, reduzindo−a à forma apaziguada e platônica da linguagem e do diálogo.

A. F.:

Creio que se pode dizer tranqüilamente que você foi o primeiro a colocar ao discurso a questão do poder; colocá−la no momento em que reinava um tipo de análise que passava pelo conceito de texto, pelo texto com a metodologia que o acompanha, isto é, a semiologia, o estruturalismo etc.

M. F.:

Não acho que fui o primeiro a colocar esta questão. Pelo contrário, me espanta a dificuldade que tive para formulá−la. Quando agora penso nisto, pergunto−me de que podia ter falado, na História da Loucura ou no Nascimento da Clínica, senão do poder. Ora, tenho perfeita consciência de não ter praticamente usado a palavra e de não ter tido este campo de análise à minha disposição. Posso dizer que certamente houve uma incapacidade que estava sem dúvida ligada á situação política em que nos achávamos. Não vejo quem − na direita ou na esquerda − poderia ter colocado

inconveniente: refere−se necessariamente a alguma coisa como o sujeito. Enfim, a ideologia está em posição secundária com relação a alguma coisa que deve funcionar para ela como infra−estrutura ou determinação econômica, material, etc. Por estas três razões creio que é uma noção que não deve ser utilizada sem precauções.

A noção de repressão por sua vez é mais pérfida; em todo caso, tive mais dificuldade em me livrar dela na medida em que parece se adaptar bem a uma série de fenômenos que dizem respeito aos efeitos do poder. Quando escrevi a História da Loucura usei, pelo menos implicitamente, esta noção de repressão. Acredito que então supunha uma espécie de loucura viva, volúvel e ansiosa que a mecânica do poder tinha conseguido reprimir e reduzir ao silêncio. Ora, me parece que a noção de repressão é totalmente inadequada para dar conta do que existe justamente de produtor no poder. Quando se define os efeitos do poder pela repressão, tem−se uma concepção puramente jurídica deste mesmo poder; identifica−se o poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio ser esta uma noção negativa, estreita e esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve−se considerá−lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir. Em Vigiar e Punir o que eu quis mostrar foi como, a partir dos séculos XVII e XVIII, houve verdadeiramente um desbloqueio tecnológico da produtividade do poder. As monarquias da Época Clássica não só desenvolveram grandes aparelhos de Estado − exército, polícia, administração local − mas instauraram o que se poderia chamar uma nova "economia" do poder, isto é, procedimentos que permitem fazer circular os efeitos de poder de forma ao mesmo tempo continua, ininterrupta, adaptada e "individualizada" em todo o corpo social. Estas novas técnicas são ao mesmo tempo muito mais eficazes e muito menos dispendiosas (menos caras economicamente, menos aleatórias em seu resultado, menos suscetíveis de escapatórias ou de resistências) do que as técnicas até então usadas e que repousavam sobre uma mistura de tolerâncias mais ou menos forçadas (desde o privilégio reconhecido até a criminalidade endêmica) e de cara ostentação (intervenções espetaculares e descontínuas do poder cuja forma mais violenta era o castigo "exemplar", pelo fato de ser excepcional).

A.F.:

Para terminar, uma pergunta que já lhe fizeram: seus trabalhos, suas preocupações, os resultados aos quais você chega, como utilizá−los nas lutas cotidianas? Qual é hoje o papel do intelectual?

M.F.:

Durante muito tempo o intelectual dito "de esquerda" tomou a palavra e viu reconhecido o seu direito de falar enquanto dono de verdade e de justiça. As pessoas o ouviam, ou ele pretendia se fazer ouvir como representante do universal. Ser intelectual era um pouco ser a consciência de todos. Creio que aí se acha uma idéia transposta do marxismo e de um marxismo débil: assim como o proletariado, pela necessidade de sua posição histórica, é portador do universal (mas portador imediato, não refletido, pouco consciente de si), o intelectual, pela sua escolha moral, teórica e política, quer ser portador desta universalidade, mas em sua forma consciente e elaborada. O intelectual seria a figura clara e individual de uma universalidade da qual o proletariado seria a forma obscura e coletiva.

Há muitos anos que não se pede mais ao intelectual que desempenhe este papel. Um novo modo de "ligação entre teoria e prática" foi estabelecido. Os intelectuais se habituaram a trabalhar não no "universal", no "exemplar", no "iusto−e−verdadeiro−para−todos", mas em setores determinados, em pontos precisos em que os situavam, seja suas condições de trabalho, seja suas condições de vida (a moradia, o hospital, o asilo, o laboratório, a universidade, as relações familiares ou sexuais). Certamente com isto ganharam uma consciência muito mais concreta e imediata das lutas. E também encontraram problemas que eram específicos, "não universais", muitas vezes diferentes daqueles do proletariado ou das massas. E, no entanto, se aproximaram deles, creio que por duas

razões: porque se tratava de lutas reais, materiais e cotidianas, e porque encontravam com freqüência, mas em outra forma, o mesmo adversário do proletariado, do campesinato ou das massas (as multinacionais, o aparelho jurídico e policial, a especulação imobiliária, etc.). E o que eu chamaria de intelectual "específico" por oposição ao intelectual "universal".

Esta figura nova tem uma outra significação política: permitiu senão soldar, pelo menos rearticular categorias bastante vizinhas, até então separadas. O intelectual era por excelência o escritor: consciência universal, sujeito livre, opunha−se àqueles que eram apenas competências a serviço do Estado ou do Capital (engenheiros, magistrados, professores). Do momento em que a politização se realiza a partir da atividade específica de cada um, o limiar da escritura como marca sacralisante do intelectual desaparece, e então podem se produzir ligações transversais de saber para saber, de um ponto de politização para um outro. Assim, os magistrados e os psiquiatras, os médicos e os assistentes sociais. os trabalhadores de laboratório e os sociólogos podem, em seu próprio lugar e por meio de intercâmbios e de articulações, participar de uma politização global dos intelectuais. Este processo explica por que, se o escritor tende a desaparecer como figura de proa, o professor e a universidade aparecem, talvez não como elementos principais, mas como "permutadores", pontos de cruzamento privilegiados. A causa da transformação da universidade e do ensino em regiões ultra−sensíveis politicamente acha−se sem dúvida aí. A chamada crise da universidade não deve ser interpretada como perda de força mas, pelo contrário, como multiplicação e reforço de seus efeitos de poder no meio de um conjunto multiforme de intelectuais em que praticamente todos são afetados por ela e a ela se referem. Toda a teorização exasperada da escritura que se assistiu no decênio 60, sem dúvida não passava de canto do cisne: o escritor nela se debatia pela manutenção de seu privilégio político. Mas o fato de que tenha se tratado justamente de uma "teoria", que ele tenha precisado de cauções científicas, apoiadas na lingüística, na semiologia, na psicanálise, que esta teoria tenha tido suas referências em Saussure ou Chomski, etc., que tenha produzido obras literárias tão medíocres, tudo isto prova que a atividade do escritor não era mais o lugar da ação.

Parece−me que esta figura do intelectual "específico" se desenvolveu a partir da Segunda Grande Guerra. Talvez o físico atômico − digamos em uma palavra, ou melhor, com um nome: Oppenheimer − tenha sido quem fez a articulação entre intelectual universal e intelectual específico. E porque tinha uma relação direta e localizada com a instituição e o saber científico que o físico atômico intervinha; mas já que a ameaça atômica concernia todo o gênero humano e o destino do mundo, seu discurso podia ser ao mesmo tempo o discurso do universal. Sob a proteção deste protesto que dizia respeito a todos, o cientista atômico desenvolveu uma posição especifica na ordem do saber. E, creio, pela primeira vez o intelectual foi perseguido pelo poder político, não mais em função do seu discurso geral, mas por causa do saber que detinha: é neste nível que ele se constituía como um perigo político. Não falo aqui somente dos intelectuais ocidentais. O que se passou na União Soviética foi certamente análogo em alguns pontos, mas bem diferente em outros. Haveria toda uma história a ser feita sobre o Dissent científico no Ocidente e nos países socialistas desde 1945.

Pode−se supor que o intelectual "universal", tal como funcionou no século XIX e no começo do século XX, derivou de fato de uma figura histórica bem particular: o homem da justiça, o homem da lei, aquele que opõe a universidade da justiça e a eqüidade de uma lei ideal ao poder, ao despotismo, ao abuso, à arrogância da riqueza. As grandes lutas políticas no século XVIII se fizeram em torno da lei, do direito, da constituição, daquilo que é justo por razão e por natureza, daquilo que pode e deve valer universalmente. O que hoje se chama "o intelectual" (quero dizer o intelectual no sentido político, e não sociológico ou profissional da palavra, ou seja, aquele que faz uso de seu saber, de sua competência, de sua relação com a verdade nas lutas políticas) nasceu, creio, do jurista; ou em todo caso, do homem que reivindicava a universalidade da lei justa, eventualmente contra os profissionais do direito (na França, Voltaire é o protótipo destes intelectuais). O intelectual "universal" deriva do jurista−notável e tem sua expressão mais completa no escritor, portador de significações e de valores em que todos podem se reconhecer. O intelectual "específico" deriva de uma figura muito diversa do "jurista−notável": o "cientista−perito". Eu dizia há pouco que foi com os atomistas que ele começou a ocupar o proscênio. De fato, ele se preparava há muito tempo nos bastidores, estava mesmo presente em um canto do palco desde, digamos, o fim do século XIX. E sem dúvida com Darwin, ou melhor, com os evolucionistas

Em nossas sociedades, a "economia política" da verdade tem cinco características historicamente importantes: a "verdade" é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o poder político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas "ideológicas").

Parece−me que o que se deve levar em consideração no intelectual não é, portanto, "o portador de valores universais"; ele é alguém que ocupa uma posição específica, mas cuja especificidade está ligada às funções gerais do dispositivo de verdade em nossas sociedades. Em outras palavras, o intelectual tem uma tripla especificidade: a especificidade de sua posição de classe (pequeno burguês a serviço do capitalismo, intelectual "orgânico" do proletariado); a especificidade de suas condições de vida e de trabalho, ligadas à sua condição de intelectual (seu domínio de pesquisa, seu lugar no laboratório, as exigências políticas a que se submete, ou contra as quais se revolta, na universidade, no hospital, etc.); finalmente, a especificidade da política de verdade nas sociedades contemporâneas. E então que sua posição pode adquirir uma significação geral, que seu combate local ou específico acarreta efeitos, tem implicações que não são somente profissionais ou setoriais. Ele funciona ou luta ao nível geral deste regime de verdade, que é tão essencial para as estruturas e para o funcionamento de nossa sociedade. Há um combate "pela verdade" ou, ao menos, "em torno da verdade" − entendendo−se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer "o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar", mas o "conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder"; entendendo−se também que não se trata de um combate "em favor" da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico−político que ela desempenha. É preciso pensar os problemas políticos dos intelectuais não em termos de "ciência/ideologia", mas em termos de "verdade/poder". E então que a questão da profissionalização do intelectual, da divisão entre trabalho manual e intelectual, pode ser novamente colocada.

Tudo isso deve parecer bem confuso e incerto. Sem dúvida incerto, pois tudo isso não passa de hipótese. Mas para que fique um pouco menos confuso, eu gostaria de formular algumas "proposições" − no sentido não de coisas aceitas, mas de coisas oferecidas para experiências ou provas futuras.

Por "verdade", entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados.

A "verdade" está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. "Regime" da verdade.

Esse regime não é simplesmente ideológico ou superestrutural; foi uma condição de formação e desenvolvimento do capitalismo. E ele que, com algumas modificações, funciona na maior parte dos países socialistas (deixo em aberto a questão da China, que não conheço).

O problema político essencial para o intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia justa; mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O problema não é mudar a "consciência" das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade.

Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder − o que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder − mas de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento.

Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade.

II

NIETZSCHE, A GENEALOGIA E A HISTORIA

I

A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos.

Paul Rée se engana, como os ingleses, ao descrever gêneses lineares, ao ordenar, por exemplo, toda a história da moral através da preocupação com o útil: como se as palavras tivessem guardado seu sentido, os desejos sua direção, as idéias sua lógica; como se esse mundo de coisas ditas e queridas não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias. Daí, para a genealogia, um indispensável demorar−se: marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá−los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história − os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram (Platão em Siracusa não se transformou em Maomé).

A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande número de materiais acumulados, exige paciência. Ela deve construir seus "monumentos ciclópicos"^1 não a golpes de "grandes erros benfazejos" mas de "pequenas verdades inaparentes estabelecidas por um método severo"^2. Em suma, uma certa obstinação na erudição. A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta−histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da "origem".

II

Encontram−se em Nietzsche dois empregos da palavra Ursprung. Um não é marcado: é encontrado em alternância com o termo Entestehung, Herkunft, A bkunft, Geburt. Para Genealogia da Moral, por exemplo, fala, a propósito do dever moral ou do sentimento da falta, de Entestehung ou de Ursprung^3. Em A Gaia Ciência se trata, a propósito da lógica e do conhecimento, de Ursprung, de Entestehung, ou de Herkunft^4_._

O outro emprego da palavra é marcado. Nietzsche o coloca em oposição a um outro termo: o primeiro parágrafo de Humano Demasiadamente Humano coloca frente a frente a origem miraculosa (Wunder−Ursprung) que a metafisica procura e as análises de uma filosofia histórica que coloca questões über Herkunft und Anfang. Ursprung é também utilizado de uma maneira irônica e depreciativa. Em que, por exemplo, consiste esse fundamento originário (Ursprung) da