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Tradução de Metamorfoses de Ovídio: Interpretação e Análise Crítica, Notas de estudo de Tradução

Uma análise crítica da tradução poética das metamorfoses de ovídio, com ênfase no uso do dodecassílabo para traduzir os hexâmetros originais, a refuncionalização da forma poética e a constante interação entre o autor e suas obras. O texto discute a concepção de tradução de benjamin, a função do autor na obra e a relação entre as metamorfoses e as obras de calvino.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Kaka88
Kaka88 🇧🇷

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS
Metamorfoses em Tradução
Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho
Relatório Final apresentado ao Programa de Pós-
graduação em Letras Clássicas, do Departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, como trabalho de conclusão de pós-
doutoramento.
Supervisor: Prof. Dr. João Angelo Oliva Neto
São Paulo
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Baixe Tradução de Metamorfoses de Ovídio: Interpretação e Análise Crítica e outras Notas de estudo em PDF para Tradução, somente na Docsity!

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS

Metamorfoses em Tradução

Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho

Relatório Final apresentado ao Programa de Pós- graduação em Letras Clássicas, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, como trabalho de conclusão de pós- doutoramento. Supervisor: Prof. Dr. João Angelo Oliva Neto São Paulo 2010

Agradecimentos Ao prof. João Angelo, pela supervisão deste trabalho e pela amizade que muito me honra e acrescenta. Aos colegas do Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, pelo convívio sempre ameno e frutífero. Ao João Paulo Matedi, Guilherme Gontijo e Lillian De Paula, leitores primeiros e amigos tradutores.

Resumo O presente trabalho consiste na tradução poética dos cinco primeiros livros das Metamorfoses de Ovídio, acompanhada de uma breve reflexão sobre o percurso tradutório e um estudo sobre as metamorfoses do personagem-autor, no contexto da obra ovidiana. Palavras-chave Ovídio; Metamorfoses ; tradução poética; gêneros da poesia, epos , elegia. Abstract This paper consists of the poetic translation of the first five books from Ovid’s “Metamorphoses”, including a brief reflection on the translation process as also a study on the metamorphoses of the author-persona within the context of Ovid’s work. Key-Words Ovid ; Metamorphoses ; poetic translation; genres of poetry; epos; elegy.

Metamorfoses em tradução Aqui estão os cinco primeiros livros das Metamorfoses de Ovídio traduzidos poeticamente, verso a verso, em dodecassílabos de formatos variados, como o alexandrino clássico ou o dodecassílabo sem cesura, com acentos obrigatórios na 6ª e 12ª sílaba ou na 4ª, 8ª e 12ª sílaba. Essa é medida do poema ovidiano em português, que permitiu ao tradutor transpor o material mítico e poético contido nos hexâmetros latinos. Traduzir poeticamente não significa simplesmente metrificar a matéria vertente do original. O movimento da tradução tende a incorporar a forma do original no novo medium , procedendo com uma atenção microscópica para com o detalhe, o arabesco do verso, a sonoridade e as figuras de linguagem. É da ordem do impossível fazer corresponder um a um cada elemento de que se compõe o original na tradução. O tradutor, no entanto, não se dará por vencido, uma vez que dispõe dos recursos próprios de sua língua e da sua tradição cultural, e eles são inúmeros e potencialmente infinitos, conjugados com o influxo e a inflexão da língua do original. O trabalho de tradução pressupõe uma dimensão pulsional, um corpo a corpo com a linguaguem, um enfrentamento letra a letra que permita entreouvir a voz refugiada na escritura. Sob esse aspecto, as Metamorfoses são um poema exemplar. Todo poema, mesmo o mais elíptico e icônico poema visual, é uma estrutura que implora por um corpo que o projete no espaço e o faça existir na sua dimensão sonora ou vocal. Desde o proêmio, as Metamorfoses se apresentam como um poema sobre corpos em transformação. Ele se constitui também, na sua dimensão escritural, num corpus , num conjunto selecionado de relatos míticos, entrelaçados numa trama narrativa, em que narradores diversos se alternam como sujeitos enunciativos. A idéia central deste trabalho deriva, portanto, da percepção da unidade de procedimento de representação do corpo em metamorfose. Os relatos da transformação de um ser em outro só se concluem com a transformação da voz. Isso se dá principalmente quando se trata da transformação de um ser humano em animal ou árvore. Um dos momentos cruciais do processo é a descrição da transformação da voz humana em voz de animal ou a descrição da perda dessa faculdade em função da perda da identidade anterior e a passagem para o reino vegetal ou mineral. O detalhe trágico é que à transformação corporal não se segue uma transformação na consciência do ser transformado. Transformados em animais ou árvores, os antigos seres humanos

permanecem mentalmente humanos! E é justamente a percepção da mudança da voz o sinal que evidencia a mudança de estado. Enquanto escuta o seu uivo ecoando no silêncio dos campos, Licáon tenta em vão recuperar a fala: Territus ipse fugit nactusque silentia ruris Exululat frustaque loqui conatur; ab ispso Colligit os rabiem solitaeque cupidine caedis Vtitur in pecudes et nunc quoque sanguine gaudet. In uillos abeunt uestes, in crura lacerti; Fit lupus et ueteris seruat uestigia formae. Canities eadem est, eadem uiolentia uultus, Idem oculi lucent, eadem feritatis imago est. Ele foge e, aterrado, em campo silencioso, ulula, em vão tentando falar; ele próprio recolhe a raiva à boca e ávido de mortes volta-se contra o gado e em sangue se compraz. A veste se converte em pêlo e braço em perna; faz-se lobo e conserva algo da antiga forma: as mesmas cãs, o mesmo rosto violento, o mesmo olhar brilhante e um furor idêntico. ( Metamorfoses I, 232-239) Dafne, transformada em loureiro, comunica-se por gesto com Apolo: Vix prece finita, torpor grauis occupat artus, Mollia cinguntur tenui praecordia libro, In frondem crines, in ramos bracchia crescunt; Pes modo tam uelox, pigris radicibus haeret, Ora cacumen habent, remanet nitor unus in illa. Hanc quoque Phoebus amat positaque in stipite dextra Sentit adhuc trepidare nouo sub cortice pectus Complexusque suis ramos, ut membra, lacertis Oscula dat ligno, refugit tamen oscula lignum. Cui deus: “At quoniam coniunx mea non potes esse, Arbor eris certe” dixit “meã; semper habebunt Te coma, te citharae, te nostrae, laure, pharetrae; Te ducibus Latiis aderis, cum laeta triumphum Vox canet et usent longas Capitolia pompas. Postibus Augustis eadem fidissima custos Ante fores stabis mediamque tuebere quercum; Vtque meumintonsis caput est iuuenale capillis, Tu quoque perpétuos semper gere frondis honores.” Finierat Paean; factis modo láurea ramis Annuit utque caputuisa est agitasse cacumen.

O próprio Ínaco e as Naides desconhecem-na; Mas ela segue o pai e também as irmãs, E deixa-se tocar por aqueles que a admiram. O velho Ínaco lhe oferta ervas frescas; ela lambe as paternas mãos, beijando as palmas, e se, desfeito o choro, pudesse falar, dizendo o nome e estado, pediria ajuda. Com a pata fez no pó letras, em vez de fala, expondo o triste indício de um corpo mudado. ( Metamorfoses I, 635-50). A conservação da identidade interna na mutação externa reflete a doutrina da metempsicose de Pitágoras, exposta pelo próprio no livro XV. O poeta extrai da matéria do poema todas as conseqüências possíveis. Não se trata tão só de narrar a perpétua mutação de todas as coisas, mas de atualizar poeticamente a natureza metamórfica da linguagem. O princípio metamórfico incide sobre a matéria e a forma do poema. Como se pode ver na tradução dos excertos acima mostrados, procurei dotar a linguagem de minha tradução de certa tactilidade, realçando os valores sonoros da composição do original: daí o recurso às aliterações, às rimas toantes, e a toda sorte de paronomásias e de hipérbatos, procurando a plasticidade das imagens expressas ao nível do conteúdo, bem como a recriação do efeito patético da cena. A variabilidade rítmica do dodecassílabo pode ser outro elemento que, usado adequadamente, auxiliará a expressão dos sons sugeridos no poema, com suas cesuras, pausas e silêncios, pois são esses interstícios que ajudam a esculpir o som, o ambiente sonoro por onde flui o silêncio e a palavra poética. Aí a linguagem, modelo por excelência do fluxo heraclítico, se modifica a todo instante no tempo e a soma dos eventos lingüísticos é não apenas acrescida, mas alterada a cada novo evento. Tempo e linguagem estão intimamente ligados e se movem à medida que os experimentamos e os percebemos (STEINER, 1994, p. 42-43). Ao se servir do repertório mitológico, Ovídio não age simplesmente como colecionador interessado em salvar do esquecimento um tesouro de lendas, crenças e costumes antigos: o poeta age de forma orgânica, fazendo com que o princípio metamórfico da linguagem presente no mito organize o poema inteiro, criando assim as condições de sua traduzilibidade, ou seja, de sua sobrevida para além mesmo da vida da língua em que primeiro se plasmou.

É, portanto, a partir da concepção benjaminiana de tradução como forma intrinsecamente solicitada pelo original, que se pauta o segundo movimento de nosso trabalho interpretativo das Metamorfoses. Através da re-elaboração poética do material ovidiano, pretendemos criar uma nova forma para os pensamentos e as imagens do poema. Para tanto, servimo-nos do dodecassílabo para traduzir os hexâmetros de Ovídio, atentos aos jogos e às figuras de linguagem, no sentido de proceder a uma refuncionalização da forma poética do original em nossa língua. Ainda que não pratiquemos rigorosamente o modelo ideal de tradução interlinear almejado por Benjamin, a nossa idéia é submeter o português ao influxo da língua latina, com suas inversões sintáticas, o léxico precioso e os esquemas aliterativos, sempre buscando de forma equilibrada o efeito de estranhamento próprio da linguagem literária em relação com linguagem ordinária e referencial, evitando, contudo, descair no absurdo de latinizar completamente o português. Nas Metamorfoses , Ovídio criou um modelo dinâmico de escritura, um tecido musical ininterrupto, capaz de abrigar em si um vasto imaginário, submetendo-o ao princípio único e constante de mutação de todas as coisas, num processo de repetição semelhante à técnica do letmotiv na música, com seus temas e variações. As histórias sucedem umas às outras numa temporalidade que parte do instante da narração para qualquer outro ponto do passado ou mesmo do futuro, numa linha que recobre muito mais o in illo tempore da fábula do que os fatos considerados históricos. No entanto, as circunstâncias históricas determinam toda a narrativa, fazendo com que os personagens míticos ajam e sintam como seres humanos submetidos à sua lógica; além do mais, muitas das metamorfoses descritas são narrativas etiológicas que apontam para um estado de coisa atual. Ovídio opera contrapontisticamente dando ao passado atributos do presente. O poema é ao mesmo tempo uma recolha de contos e um diálogo dinâmico com a tradição literária e filosófica, através do jogo intertextual e alusivo. Ovídio condensa, amolda e reorganiza os dados da tradição e do contexto, traduzindo-os em novos termos, segundo o padrão de sua linguagem, tal como acontece a um mito, que é sempre a tradução em novos termos de um outro mito. Ao submeter o seu poema ao princípio metamórfico, Ovídio cria também as condições da sua tradução. A arte do poeta consiste justamente em concentrar o problema da metamorfose como uma questão de linguagem. É a linguagem que se move e que reencena o jogo metamórfico. O poeta não encontra dificuldade, através de uma

Entre as traduções das Metamorfoses existentes em português, destacamos três completas: uma em prosa , de David Jardim Júnior, da Ediouro, que reputamos como muito útil, porque segue de perto o original latino; uma recente (2007), em prosa, mas com aparência de verso, de Paulo Farmhouse Alberto, da editora Cotovia; e a de Vera Lúcia Leite Magyar, da editora Masdra, também em prosa com aparência de verso e com o agravante de ser de segunda mão, feita a partir do inglês. Dentre as traduções poéticas, destacamos em primeiro lugar, a tradução de excertos das Metamorfoses por Bocage (1765-1805), poeta de reconhecidos méritos, editada pela Hedra, com estudo e notas de João Angelo Oliva Neto. Em segundo lugar, temos a tradução dos cinco primeiros livros por António Feliciano de Castilho (1800-1875), que deliberadamente aproveita versos inteiros de Bocage. Temos também a tradução quase integral de Francisco José Freire (1719-1773), poeta árcade conhecido como Cândido Lusitano, cujo manuscrito foi transcrito por Aristóteles Angheben Predebon, em sua dissertação de mestrado, e está disponível no banco de teses da USP. Li com prazer e proveito os decassílabos de Freire. Castilho, que pilhou Bocage à vontade, disse não ter encontrado nada de aproveitável na tradução de Freire, mas um cotejo de ambas as traduções pode revelar o contrário. Ressaltamos, ainda, a tradução de Haroldo de Campos de Metamorfoses III, 405-510, por ele intitulada de “A morte de Narciso” e publicada em Crisantempo (1998). Deliberadamente, deixei a marca haroldiana em minha tradução do mesmo trecho, como uma espécie de homenagem e reconhecimento ao poeta e tradutor cuja teoria da tradução é inspiração continua e fecunda do meu próprio trabalho. Tal como Castilho fizera com Bocage, assim o fiz com Haroldo, ainda que não eu tenha reproduzido integralmente nenhum de seus versos. Por último, deixamos consignado aqui nosso apreço à tradução em prosa, verso a verso, do Livro V, de Mariana Musa de Paula e Silva, como apêndice à sua dissertação de mestrado, defendida na Unicamp (2008), cuja leitura foi de grande proveito. Referências bibliográficas : CAMPOS, Haroldo. Crisantempo: no Espaço Curvo Nasce Um. São Paulo, Perspectiva,

CHCHEGLÓV, I. K. “Algumas Características da Estrutura de As Metamorfoses de Ovídio”. In : SCHNAIDERMAN, B. (org.). Semiótica Russa. São Paulo, Perspectiva,

DETIENNE, Marcel. A Invenção da Mitologia. Tradução de André Telles e Gilza Marins Saldanha da Gama. Rio de Janeiro, José Olympio, 1992. FABRE-SERRIS, Jacqueline. Mythe et Poésie dans Les Metamorphoses d’Ovide: Fonctions et Significations de la Mytologie dans la Rome Augustéenne. Paris, Klincksieck, 1995. OVIDE. Les Metamorphoses. Tradução e notas de Georges Lafaye. Paris, Belles Lettres,

  1. 3v. OVÍDIO. As Metamorfoses. Tradução e notas de David Jardim Júnior_._ Rio de Janeiro, Ediouro, 1983. ______. As Metamorfoses. Tradução de Antônio Feliciano de Castilho. Rio de Janeiro, Organização Simões, 1959. ______. Metamorfoses. Tradução de Bocage e introdução e notas de João Angelo Oliva Neto. São Paulo, Hedra, 2000. ______. Metamorfoses. Tradução do inglês de Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo, Madras, 2003. OVIDIO. Metamorfosis. Tradução de Antonio Ramirez e Fernando Navarro Antolín. Madri, Alianza, 2003. ______. Metamorfosi. Tradução de Piero Bernardini Marzolla. Turim, Einaudi, 2005. ______. Les Métamorphoses. Traduction nouvelle avec une introduction et des notes par Joseph Chamonard. [s. l.], Garnier Frères, 1953. MARÉCHAUX, Pierre. Premières Leçons sur les Métamorphoses d’Ovide. Paris, Bibliothèque Major, 1999. PREDEBON, Aristóteles Angheben. Edição do Manuscrito e Estudo das Metamorfoses de Ovídio Traduzidas por Francisco José Freire. São Paulo, Banco de teses da USP,

SABBADINI, Silvano. “Traduzione: Interpretazione e Allegoria”. In BUFFONI, Franco (org.). La Traduzione del Testo Poetico. Milão, Guerini e Associati, 1989. SCHMITZER, Ulrich. Ovidio. Tradução italiana e ensaio de Mariella Bonvicini.Bolonha, Clueb, 2005. SILVA, Mariana Musa de Paula e. Artesque Locumque:Espaços da Narrativa no Livro V das Metamorfoses de Ovídio. Banco de teses da Unicamp, 2008. STEIDER, George. Dopo Babel: Aspetti del Linguaggio e della Traduzione. Tradução italiana de Ruggero Bianchi e Claude Béguin, Roma, Garzanti, 1995. VIRGILIO. Bucólicas. Tradução e comentário de Raimundo Carvalho. Belo Horizonte, Crisálida/Tessitura, 2005. ZUMTHOR, Paul. “A Presença dos Corpos: Entrevista com Eloísa Araújo Ribeiro”. Folha de São Paulo , “Folhetim”. São Paulo, no^ 622, 17 de dezembro de 1988, pp. 5 - 11. ______. A Letra e Voz. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Amalio Pinheiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1993. ______. Introdução à Poesia Oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lucia Diniz e Maria Inês de Almeida. São Paulo, Hucitec/Educ, 1997.

Ovídio e As Metamorfoses do Personagem-Autor Ítalo Calvino, num texto de 1978, intitulado “Os níveis da realidade em literatura”, afirma: A condição preliminar de qualquer obra literária é esta: a pessoa que escreve tem de inventar aquele primeiro personagem que é o autor da obra. Que uma pessoa coloque a si mesma por inteiro numa obra que escreve é uma frase que se diz frequentemente mas que nunca corresponde à verdade. É sempre apenas uma projeção de si mesmo que o autor põe em jogo na escritura, e pode ser tanto a projeção de uma parte verdadeira de si mesmo como a projeção de um eu fictício, de uma máscara. Escrever pressupõe a cada vez a escolha de uma postura psicológica, de uma relação com o mundo, de uma colocação de voz, de um conjunto homogêneo de meios lingüísticos e de dados da experiência e de fantasmas da imaginação, em suma, de um estilo. O autor é autor na medida em que entra num papel, como um ator, e se identifica com aquela projeção de si próprio no momento em que escreve.^2 Em “Cibernética e fantasmas (Notas sobre a narrativa como processo combinatório)”, texto de 1967, Calvino já formulara algo semelhante: a literatura, da maneira como eu a conhecia, era uma obstinada série de tentativas de colocar uma palavra atrás da outra, conforme determinadas regras definidas ou, com maior freqüência, regras não definidas nem passíveis de ser definidas mas que podiam ser extrapoladas de uma série de exemplos ou protocolos, ou regras que inventamos especificamente, isto é, que derivamos de outras regras que outros seguem. Nessas operações, a pessoa eu, explícita ou implícita, fragmenta-se em diferentes figuras, num eu que está escrevendo e em outro eu que é escrito, num eu empírico que está atrás do eu que escreve e num eu mítico que serve de modelo ao eu que é escrito. O eu do autor que escreve se dissolve: a chamada “personalidade” do escritor é interna ao ato de escrever, é um produto e um modo da escritura. 3 Em “A máquina espasmódica”, texto de 1969 que prolonga o debate iniciado no texto anterior, Calvino conclui, referindo-se ao uso espamódico da linguagem na literatura, dizendo: É essa máquina espástica que age através do autor; a verdadeira responsável pela obra, mas ela não funcionaria sem os espasmos de (^2) CALVINO, 2009, p. 376. (^3) Idem, p. 205.

um eu mergulhado num tempo histórico, sem uma reatividade própria, uma convulsa hilaridade própria, uma raiva própria de bater a cabeça na parede. 4 Bem, fazendo um breve comentário a essas idéias elaboradas por Calvino, é preciso dizer que elas, assim de chofre enunciadas, encerram desde já uma aporia, pois, ainda que venham subscritas pela autoridade do nome de Ítalo Calvino, Calvino aqui, é apenas mais um dos porta-vozes de um nova tendência crítica que, nos anos 60 e 70, procurou se desligar das velhas noções de autor e obra, que vinculava estreitamente a biografia do autor com a sua produção. Aos exageros da crítica de cunho biografista, a nova crítica de matriz estruturalista, vai, num primeiro momento, jogar todo o peso da significação nos elementos intrínsecos da obra, de alguma forma reafirmando os valores da autonomia da arte frente à realidade, além de realçar o papel do leitor, capaz das interações mais diversas e insólitas, independentemente de uma vontade autoral. Mas se analisarmos corretamente as palavras de Calvino, essa dicotomia entre o real e a ficção não resiste como elemento estruturante. O que notamos de imediato é uma clara delimitação do campo ficcional, que não se restringe apenas ao texto. O ficcional se estabelece a partir mesmo de suas instâncias produtoras. A função autor, para usar uma expressão de Michel Foucault, não se encontra fora da obra, mas faz parte da operação levada a efeito pelo jogo ficcional encetado pela pessoa real que nos acostumamos a chamar de autor. No entanto, para Calvino, a literatura e o mundo ficcional criado por ela não tem um valor em si, separado dos sujeitos reais e da história. Para ele, a literatura é um campo de tensão entre as forças da imaginação, transmutada em linguagem, e o mundo, com as suas contradições, contradições essas que são os motores de todo gesto criador. O sujeito da criação literária é um sujeito plural, um lugar vazio e pleno, onde cabem todos aqueles que aceitam o jogo ficcional, mesmo porque nesse sujeito histórico da escritura, muitas vozes falam e se deixam falar. O verdadeiro criador está sempre aquém de sua obra, ele é uma pletora em ação, controla menos do que gostaria, pois criar inclui também aceitar o movimento da linguagem, a sua vertigem. Uma das funções da literatura é proporcionar a desautomatização dos nossos hábitos mentais, para que assim possamos ter acesso aos mecanismos de constituição do (^4) Idem, p. 245.

Calvino observa que Ovídio, para introduzir os seus leitores no mundo dos deuses celestiais, começa por aproximar esse mundo do deles, a ponto de torná-lo idêntico a Roma de todos os dias, nos seus aspectos urbanos, na sua divisão em classe sociais, nos seus costumes (a multidão dos clientes), na sua religião, pois os deuses têm em casa os seus penates e a eles prestam um culto domésticos, tal como o faziam os romanos do seu tempo. Para Calvino, a contigüidade entre deuses e seres humanos, tema dominante nas Metamorfoses , é apenas um caso particular da contigüidade entre todas as figuras e formas existentes. O que o poeta opera, neste trecho, como de resto em todo o poema, é uma espécie de tradução das realidades celestes para a linguagem dos homens, os reais destinatários da mensagem poética. Ovídio é um mestre da recriação. De um ponto de vista macroestrutural, as Metamorfoses se constituem como um longo tecido de histórias e mitos aproveitados das mais variadas fontes e costurados com habilidade pelo poeta, a fim de terem a aparência de um fluxo continuo. A contigüidade é um efeito de linguagem criado a partir dos nexos que o poeta vai inventando para ligar uma história à outra. 6 Para que fique mais claro aqui o modo ovidiano de criação e reaproveitamento do material da tradição, faço um pequeno parêntese, chamando a atenção uma obra plástica certamente inspirada em Ovídio, “Medusa Marinara” de Vik Muniz, que pude apreciar no Masp, em São Paulo, numa grande mostra dedicada ao artista, entre abril e julho deste ano. Pelo confronto, fica claro que Vik Muniz partiu da Medusa de Caravaggio para compor a sua. Observemos primeiro a forma redonda do suporte das duas obras que remetem imediatamente à forma do escudo de Minerva, que é onde, por fim, vai se fixar a cabeça degolada da Górgona. É no suporte que Vik Muniz vai fazer a alteração mais importante, porque, a partir dela, outras se seguirão naturalmente. Reaproveitando material jogado fora como lixo urbano, um grande prato descartável, o artista contemporâneo nosso projeta a figura do monstro pintado por Caravaggio e sobre ela redesenha os detalhes com restos de molho de tomate e macarrão, que entrelaçado faz as vezes de serpentes, nas quais se transformou a cabeleira de Medusa, deixando assim, à mostra, as várias camadas do mito e de sua apropriação pela arte. Seria óbvio demais, retermo-nos apenas no caráter paródico da operação vikiana. Ele certamente está lá, mas o que me chama atenção, sobretudo, é o método empregado e o resultado da operação levada a efeito. A obra se deixa ler em profundidade, na (^6) Cf. CALVINO, 1994, pp. 31-42.

medida em que transparece as camadas de tempo e matéria com que é feita. Ela nos remete tanto para uma cena/ceia domingueira, num dos inúmeros restaurantes das cidades modernas, com os seus detritos de plásticos e papéis descartáveis, restos de alimento, jogados nas lixeiras, como para a história da arte, para o mito e para a poesia de Ovídio. Mais do que uma metáfora da petrificação e da alienação moderna, o artista nos ensina um modo de ver o mundo, revelando as conexões misteriosas entre os seres e as coisas, entre o passado e o presente, entre os mitos mais arcaicos e os ritos contemporâneos. Ali, num lugar insuspeito, num fast-food, onde parece reinar a mais pura desordem, a deriva, a falta de sentido, o artista revela o princípio metamórfico em que todas as coisas se assemelham e se traduzem, numa continua cadeia de sentidos, em que mesmo o sem-sentido da vida encontra o seu reflexo e a sua tradução. Em Seis propostas para o próximo Milênio , o mito de Perseu e Medusa é evocado como exemplo de leveza. Calvino cita a passagem do Livro IV, 740-52, versos, que segundo ele, expressam a delicadeza de alma necessária para ser um “dominador de monstros”: Ipse manus hausta uictrices abluit unda; anguiferumque caput dura ne laedat harena, mollit humum foliis natasque sub aequore virgas sternit et imponit Phorcynidos ora Medusae. Virga recens bibulaque etiamnunc uiua medulla uim rapuit monstri, tactuque induruit huius, percepitque nouum ramis et fronde rigorem. At pelagi nynphae factum mirabile temptant pluribus in uirgis, et idem contingere gaudent, seminaque exillis iterant iactata per undas. Nunc quoque curaliis eadem natura remansit, duritiam tacto capiant ut ab aere, quoque uimem in aequore erat, fiat super aequora saxum. Ele mesmo lavou suas mãos vencedoras; e para não ferir na areia a face angüífera, cobre a terra de folhas e plantas marinhas e aí põe a cabeça de Medusa Forcínide. Vara verde e vivaz em medula porosa sorve a força do monstro e ao contato endurece, e seus ramos e folhas ganham rigidez. As ninfas do mar tentam de novo o prodígio noutras plantas e alegram-se por consegui-lo, e lançam as sementes delas no oceano. Agora a natureza dos corais é idêntica: endurece no ar, convertendo-se em rocha