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Guias e Dicas
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Estudo sobre Medo, Controle Social e Guerra ao Terrorismo, Notas de aula de Direitos Humanos

Esta monografia propõe-se a realizar um estudo sobre o medo, controle social e a guerra ao terrorismo, com foco em prisões como guantánamo, abu ghraib e bagram. Analisa a figura do terrorista como inimigo interno e a supressão de liberdades e violação de direitos humanos por meio de novas legislações antiterroristas, intervenções militares e encarceramento de suspeitos. Palavras-chave: medo, controle social, terrorismo, política externa norte-americana, ordem neoliberal, 11 de setembro, guerra ao terror, direitos humanos, guantánamo, estado de exceção.

O que você vai aprender

  • Como o 11 de setembro influenciou a política externa norte-americana e a ordem neoliberal?
  • Como o medo e o controle social estão relacionados à guerra ao terrorismo?
  • Como a figura do terrorista é construída como inimigo interno na guerra ao terrorismo?
  • Quais são as implicações das prisões de Guantánamo, Abu Ghraib e Bagram no estado de exceção?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Aldair85
Aldair85 🇧🇷

4.8

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DEPARTAMENTO DE
DIREITO
MEDO, TERRORISMO E DIREITOS
HUMANOS
por
CINTIA RESCHKE DE BORBA
ORIENTADOR: João Ricardo W. Dornelles
2009.1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO
RUA MARQUÊS DE SÃO VICENTE, 225 - CEP 22453-900
RIO DE JANEIRO – BRASIL
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DEPARTAMENTO DE

DIREITO

MEDO, TERRORISMO E DIREITOS HUMANOS

por

CINTIA RESCHKE DE BORBA

ORIENTADOR : João Ricardo W. Dornelles

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO RUA MARQUÊS DE SÃO VICENTE, 225 - CEP 22453- 900 RIO DE JANEIRO – BRASIL

PUC

MEDO, TERRORISMO E DIREITOS HUMANOS

por

CINTIA RESCHKE DE BORBA

Monografia apresentada ao Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) para a obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientador: João Ricardo W. Dornelles

Is It True?^1 Is it true that the grass grows again after rain? Is it true that the flowers will rise up again in the Spring? Is it true that birds will migrate home again? Is it true that the salmon swim back up their streams? It is true. This is true. These are all miracles. But is it true that one day we'll leave Guantánamo Bay? Is it true that one day we'll go back to our homes? I sail in my dreams. I am dreaming of home. To be with my children, each one part of me; To be with my wife and the ones that I love; To be with my parents, my world's tenderest hearts. I dream to be home, to be free from this cage. But do you hear me, oh Judge, do you hear me at all? We are innocent, here, we've committed no crime. Set me free, set us free, if anywhere still Justice and compassion remain in this world! Usama Hassan Ahmed Abu Abir Jordaniano, prisioneiro em Guantánamo, capturado no Afeganistão em novembro de 2001 e libertado na Jordania em novembro de 2007. (^1) Poema do livro Poems from Guantánamo: The Detainees Speak , coletânea de poemas feitos pelos detentos de Guantánamo, editados por Marc Falkoff e publicados em 2007 pela University of Iowa Press.

RESUMO

A presente monografia se propõe a realizar um estudo sobre medo, controle social, guerra ao terrorismo e o verdadeiro estado de exceção estabelecido pelas prisões de Guantánamo, Abu Ghraib e Bagram. Na primeira parte, faz-se uma análise das origens e formas do medo e como ele é manipulado e perpetuado com propósitos econômicos e políticos na sociedade pós-moderna. Num segundo momento, dedica-se ao estudo da figura de um inimigo interno específico muito atual: o terrorista e como a “guerra ao terrorismo”, declarada após os eventos ocorridos em 11 de setembro, liderada pelos Estados Unidos, vem suprimindo liberdades e violando direitos humanos, por meio das novas legislações antiterroristas, das intervenções militares e do encarceramento de “suspeitos”. Ainda neste capítulo, trabalha-se a brevemente política externa dos EUA, contemplando a sua “lógica imperialista”. Por fim, discute-se como a prisão de Guantánamo representa um verdadeiro estado de exceção, em que “suspeitos” da prática de atos terroristas são mantidos por anos sem julgamento e privados de todas as garantias fundamentais, constituindo-se numa verdadeira aberração ética e jurídica. Palavras chaves: medo; controle social; terrorismo; política externa norte-americana; ordem neoliberal; 11 de setembro; “guerra ao terror”; direitos humanos; Guantánamo; estado de exceção.

ANEXO I - TABELAS

Tabela 01 Prisioneiros transferidos da Prisão de Guantánamo (Cuba) para outros países (Até 01 de Junho de 2009). Tabela 02 Prisioneiros remanescentes na Prisão de Guantánamo (Cuba) (Até 01 de Junho de 2009). Tabela 03 Prisioneiros mortos na prisão de Guantánamo (2002 até 01 de junho de 2009).

INTRODUÇÃO

A vida contemporânea é marcada pelo medo. As pessoas vivem constantemente assombradas pela sensação de insegurança e pelo temor de que algum mal as possa atingir a qualquer momento. Os meios de comunicação de massa bombardeiam o público diariamente com novos tipos de perigos e a idéia de que todos os indivíduos são vulneráveis. O medo é um mecanismo de dominação de grande potencial, que é largamente aproveitado por agentes políticos e econômicos para estimular o consumo e possibilitar a adoção de políticas e medidas, que dificilmente seriam aceitas ou viáveis, caso a população não estivesse paralisada pelo medo e ocupada o bastante na infindável tarefa de lidar com ele. Neste sentido, um dos objetivos do presente trabalho é estudar o fenômeno do medo e como ele constitui um mecanismo de controle social amplamente utilizado pelos poderes dominantes, com vias a alcançar seus interesses e dar continuidade ao sistema capitalista vigente. Outro foco desta pesquisa é o terrorismo, tópico tão em voga hoje em dia, e cujo significado e abrangência se pretende compreender melhor. Além disso, faz-se, uma breve análise da “guerra ao terror”, decretada pelos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro de 20 01 - que tem como pano de fundo a lógica da “guerra infinita” 1

  • , levando-se em conta os reais motivos que estão por trás dela, que dizem respeito, não à efetiva ameaça oferecida pelos ditos “terroristas”, mas ao interesse em se dar continuidade à supremacia das forças dominantes e à ordem neoliberal. (^1) DORNELLES, João Ricardo W. Guerra Imperial Permanente versus Direitos Humanos. Artigo apresentado no Seminário "Direitos Humanos - Viena + 10 - Desafios e Perspectivas". Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio, out. 2003. p. 1.

violence”, de Thomas Butko, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de Alberta, no Canadá. No último capítulo, dedicado à análise da prisão de Guantánamo, foram de grande relevância, para a parte sobre estado de exceção, as obras Estado de Exceção – Homo Sacer II e Homo Sacer – O Poder Soberano e a Vida Nua I do filósofo italiano Giorgio Agamben, assim como o artigo Soberania imperial, espaços de exceção e o campo de Guantánamo: desterritorialização e confinamento na "guerra contra o terror", do professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, José María Gómez. No tocante aos outros aspectos do estudo de Guantánamo, visto tratar-se de um capítulo recente da história e que ainda está em desenvolvimento, não há, até o momento, muita bibliografia a respeito, de modo que foram utilizadas notícias de fontes conhecidas, sobre o assunto, bem como relatórios da Anistia Internacional, da Human Rights Watch e do Center for Constitutional Rights , conceituadas organizações de direitos humanos; e um estudo detalhado sobre Guantánamo realizado pelo Centro de Direitos Humanos da University of California, Berkeley. Vale ressaltar, ainda, que de forma alguma se tem a pretensão de exaurir os temas tratados, haja vista a sua complexidade e as inúmeras outras abordagens que poderiam ser feitas. O objetivo é desenvolver alguns aspectos considerados proeminentes, também por terem alguma conexão com a linha de pesquisa da autora desta monografia, no âmbito de seu projeto de iniciação científica.

1. SOBRE O MEDO

“O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho". Guimarães Rosa O medo é um sentimento que acompanha o ser humano durante toda a sua vida. Segundo Zygmunt Bauman, a sua causa maior é a morte, podendo ser classificado em medo original e secundário. O medo original traduz-se na sensação gerada quando se está diante de uma ameaça à vida, também compreendido como instinto de sobrevivência, que leva à fuga ou à agressão. Tal sentimento é compartilhado com todos os outros animais. Por outro lado, o medo secundário é particular ao ser humano e pode ser definido como o medo provocado pela consciência de que a morte é inevitável e pode chegar a qualquer tempo. Não é necessário que haja uma ameaça concreta, manifestando-se “quer haja ou não uma ameaça presente. O medo secundário pode ser visto como um rastro de uma experiência passada de enfrentamento da ameaça direta – um resquício que sobrevive ao encontro e se torna um fator importante na modelagem da conduta humana mesmo que não haja mais uma ameaça direta à vida ou à integridade”.^2 Este “medo derivado”, como o denomina Hughes Lagrange 3 , possuiria natureza social e consistiria na insegurança impulsionada pelo conhecimento da suscetibilidade e vulnerabilidade humanas frente o perigo^4. (^2) BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. p. 9. (^3) Citado por Bauman. Ibid. p. 9. (^4) Ibid. p. 9.

Aos indivíduos que não têm acesso à imortalidade individual, são dadas possibilidades de imortalidade despersonalizada, como a que Bauman chama de “imortalidade-por-procuração”. 8 Esta, diversamente da imortalidade personalizada, não demanda a prática de atos memoráveis, mas é proporcionada como “prêmio de consolação” às pessoas que não têm esperança de realizar feitos importantes. Diante da sua inaptidão para obter a imortalidade por meio da vida, fazem-no por meio da morte. É a morte por uma causa que lhes confere tal espécie de imortalidade. Esta concepção foi bastante aproveitada por governantes na época da formação dos Estados-nação e da República francesa pós-revolucionária, que necessitavam de cidadãos patriotas prontos, se necessário, a sacrificar suas vidas em prol da imortalidade da nação. 9 Com o gradual enfraquecimento do poder de convencimento da estratégia acima, ganha força, na sociedade contemporânea, o estratagema da marginalização das preocupações com a morte. Esta se opera por meio da desvalorização das coisas que são duráveis e de longo prazo, afastando a preocupação com a eternidade e a imortalidade. Pode-se chegar a isso de duas maneiras: pela desconstrução e pela banalização da morte. Com relação à desconstrução, Bauman faz referência a Freud, que observou que os seres humanos tendem a empreender esforços para eliminar a morte da vida e a enfatizar as causas aleatórias a provocam, como acidentes e doenças, ocultando o seu aspecto necessário e natural 10 . Esta desconstrução está em sintonia com a proposta moderna de desintegrar o desafio existencial em vários problemas distintos que devem ser solucionados separadamente. Até então, acreditava-se ser finita a (^8) Ibid. p. 52. (^9) Ibid. p. 53. (^10) Ibid. p. 56.

quantidade dos problemas existentes – e os que ainda estavam por vir – e ser possível prevê-los e dominá-los. Todavia, a desconstrução, que se propunha a afastar a preocupação com a morte, surte efeito exatamente contrário. Intensifica ainda mais o pavor da morte e mantém-no presente e atuante em nossa vida diariamente de maneira que “da ameaça da morte não há agora um só momento de descanso. A luta contra a morte começa no nascimento e continua presente pela vida afora. Enquanto prossegue, é pontilhada por vitórias – ainda que a última batalha esteja fadada à derrota. Antes dela, contudo (e quem sabe antecipadamente que batalha se revelará como a última?), a morte permanece velada. Fragmentada em incontáveis preocupações com incontáveis ameaças, o medo da morte satura a totalidade da vida, embora na forma diluída de uma toxidade um tanto reduzida. Graças à ubiqüidade de suas pequenas doses, é improvável que o pavor da morte seja ‘ingerido’ totalmente e confrontado em toda a sua medonha horripilância, sendo suficientemente comum para poder paralisar o desejo de viver.”^11 Enquanto a desconstrução visa afastar o confronto com morte, decompondo-a em diversos problemas solucionáveis, a banalização pretende transformar o próprio enfrentamento em um evento trivial, por meio da realização de encenações diárias da morte. Há várias formas de se experimentar a morte em vida, uma delas seria a morte de alguém próximo, que traz profundo sentimento de perda e que nos aproximaria da irreversibilidade e da finitude, permitindo-nos antever o significado da nossa própria morte. É o que Bauman denomina de “morte de segundo grau” e tratar-se-ia da “única modalidade em que a experiência da morte é acessível aos vivos”.^12 O que nos propicia ter essa “revelação” sobre a morte é justamente a perda de uma pessoa querida que nunca poderá ser completamente substituída em nossa vida. É o fim irreversível do “compartilhamento de um (^11) Ibid. p. 59. (^12) Ibid. p. 62.

esperar, mesmo que tais esperanças se frustrem mais freqüentemente do que são corroboradas e sustentadas.”^15 Segundo o autor, há três categorias de perigos: os que ameaçam o corpo e as propriedades; os que incidem sobre a estabilidade da ordem social (que assegura o emprego e, portanto, o sustento); e os que recaem sobre a posição da pessoa no mundo e na sociedade (classe social e identidade – étnica, religiosa, etc.) e sobre a proteção contra a exclusão social 16 . Há, ainda, uma “terceira zona” de ameaças, concomitantemente humanas e naturais. Trata-se da zona nebulosa e não muito bem definida em que tragédias completamente inesperadas acontecem - como o esgotamento das jazidas de petróleo, o desaparecimento de grandes companhias (e dos serviços essenciais que prestam) e a queda de aviões com a morte dos passageiros. A cada dia ficamos sabendo de novos perigos que surgem e que podem nos assolar a qualquer momento. 17 Interessante notar que os medos estão em todo o lugar e podem brotar “de qualquer canto ou fresta de nossos lares e de nosso planeta. Das ruas escuras ou das telas luminosas dos televisores. De nossos quartos e de nossas cozinhas. De nossos locais de trabalho e do metrô que tomamos para ir e para voltar. De pessoas que encontramos e de pessoas que não conseguimos perceber. De algo que ingerimos e de algo com o qual nossos corpos entraram em contato. Do que chamamos ‘natureza’ (pronta, como dificilmente antes em nossa memória, a devastar nossos lares e empregos e ameaçando destruir nossos corpos com a proliferação de terremotos, inundações, furacões, deslizamentos, secas e ondas de calor) ou de outras pessoas (prontas, como dificilmente antes em nossa memória, a devastar nossos lares e empregos e ameaçando destruir nossos corpos com a súbita abundância de atrocidades terroristas, crimes violentos, agressões sexuais, comida envenenada, água ou ar poluídos)”.^18 (^15) Ibid. p. 73. (^16) Ibid. p. 10. (^17) Ibid. p. 11. (^18) Ibid. p. 11.

Isso tudo gera um sentimento de insegurança, com o qual somos obrigados a conviver diariamente. Sempre aparecem novos medos, as fontes nunca se esgotam. Quando se esvanecem alguns, aparecem outros. Essa autopropulsão é uma característica do medo. As causam que lhe dão ensejo se renovam e perpetuam-se automaticamente. Deste modo, a sociedade líquido-moderna tem por objetivo reprimir esses temores produzidos cotidianamente e silenciar os medos originados por riscos que não podem ser evitados (ou não devem, em prol da preservação da ordem social). Essa repressão é realizada de maneira discreta e sutil, por meio do que Thomas Mathiesen, mencionado por Bauman, denominou de “silenciamento silencioso”. 19 Tal mecanismo é estrutural – não podendo, portanto, ser imputado ao Estado – , contínuo e habitual, o que o torna abrangente e eficaz. Além disso, atua de modo dinâmico e silencioso, o que lhe confere confiabilidade e legitimidade. 20 Os medos são condizentes com a realidade líquido-moderna, pois nascem e diluem-se com facilidade e em ritmo acelerado, como pondera o autor: “os pânicos vêm e vão, e embora possam ser assustadores, é seguro presumir que terão o mesmo destino de todos os outros.” 21 Outra particularidade dos medos atuais é que eles são facilmente destacados de suas causas originais nas mentes dos sofredores de modo que as ações tomadas em resposta ao medo podem se dirigir para outras direções, que não as causas reais do sentimento de insegurança^22. (^19) Ibid. p. 13. (^20) Ibid. p. 13. (^21) Ibid. p. 14. (^22) Ibid. p. 10 e 174.

consomem cada vez mais toda a sorte de produtos (em especial os da indústria de proteção pessoal e segurança), muitos deles supérfluos e em quantidades maiores do que seria necessário para viver, na tentativa de cessar os medos e suas causas e de remediar a frustração. Como tais artigos de consumo não funcionam – ou apenas surtem efeito temporário e paliativo – , vez que não se destinam a solucionar as verdadeiras origens das aflições, acabam por ocasionar ainda mais medo e angústia, o que leva a mais consumismo para sanar essas novas angústias que vão surgindo, gerando um perigoso e explosivo ciclo vicioso. Neste sentido, na conjuntura pós-moderna, a guerra contra os medos perdura por toda a vida, muito diferente do que sonharam e difundiram os iluministas, que desejavam criar uma vida em que as paixões, os medos e as ameaças seriam dominados. O autor acrescenta que “a vida inteira é agora uma longa luta, e provavelmente impossível de vencer, contra o impacto potencialmente incapacitante dos medos e contra os perigos, genuínos ou supostos, que nos tornam temerosos. Pode-se percebê-la melhor como uma busca contínua e uma perpétua checagem de estratagemas e expedientes que nos permitem afastar, mesmo que temporariamente, a iminência dos perigos – ou, melhor ainda, deslocar a preocupação com eles para o incinerador lateral onde possam, ao que se espera, fenecer ou permanecer esquecidos durante nossa duração. A inventividade humana não conhece fronteiras. Há uma plenitude de estratagemas. Quanto mais exuberantes são, mais eficazes e conclusivos os seus resultados. Embora, apesar de todas as diferenças que os separam, eles tenham um preceito comum: burlar o tempo e derrotá-lo no seu próprio campo. Retardar a frustração , não a satisfação .”^25 Outra estratégia na tentativa de contornar os medos e as incertezas do futuro é o imediatismo e o ímpeto de aproveitar o presente. Já que o futuro e os perigos são imprevisíveis, a ordem é desfrutar tudo o que se pode agora e não se preocupar com o amanhã, pois este pode não chegar. A substituição das cadernetas de poupança pelos cartões de crédito situa-se dentro desta lógica. Consoante Bauman, nunca uma geração foi tão (^25) Ibid. p. 15.

endividada quanto a atual^26. O futuro está fora de alcance, mas o cartão de crédito tem o poder mágico de trazê-lo para o presente, propiciando consumir por antecipação algo que só será cobrado posteriormente. As cadernetas de poupança demandam certa previsibilidade e constância na sua valorização, diferentemente dos cartões de crédito, que permitem desfrutar agora benefícios futuros. Bauman resume bem a problemática ao afirmar que “se as cadernetas de poupança implicam a certeza do futuro, um futuro incerto exige cartões de crédito.” 27 A construção do projeto moderno baseou-se na procura crescente por felicidade. Na sociedade líquido-moderna, cada indivíduo é treinado desde pequeno para buscar a felicidade individual utilizando-se de meios e esforços individuais.^28 Em consonância com a já mencionada lógica da constante vigilância e prevenção, encontra-se, também, a lógica do excluir para não ser excluído , na qual as pessoas, temendo a exclusão social ou pessoal, que, supostamente, pode ocorrer a qualquer momento, são, por vezes, “compelidas” a perseguirem o seu próprio êxito e a “salvarem a sua própria pele”, mesmo que isto acarrete a exclusão ou o prejuízo do outro. Não necessariamente porque sejam “más” e queiram prejudicar os outros, mas porque as regras do jogo são essas.^29 Bauman exemplifica a questão ao fazer alusão aos reality shows , explicando que fazem tanto sucesso porque, com a sua sistemática de eliminação, simulam, na realidade, o jogo da vida. No mais famoso de todos, o Big Brother (que, aliás, é bem diferente do original criado por George Orwell, cujo objetivo era manter os participantes em um regime (^26) Ibid. p. 16. (^27) Ibid. p. 17. (^28) Ibid. p. 68. (^29) Ibid. p. 30 e 37-39.