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Mulheres Submetidas a Violência Doméstica: Reflexões sobre a Complexidade da Experiência, Manuais, Projetos, Pesquisas de Psicologia

Este documento discute a importância da teoria do duplo-vínculo na compreensão e intervenção em casos de violência conjugal. As mulheres que vivem com essa experiência sentem-se impotentes e paralisadas, frequentemente justificando a violência que sofrem. As intervenções da justiça em casos de violência conjugal ainda apresentam desafios, como a falta de compreensão das demandas das vítimas e a exigência de um claro posicionamento delas. O documento argumenta que as mulheres podem estar aprisionadas em padrões relacionais contraditórios e de grande investimento afetivo, o que dificulta a reflexão sobre a situação e a elaboração de queixas de violência. Além disso, o uso do silêncio e do segredo como estratégias de sobrevivência revelam outro paradoxo: as mulheres ficam impedidas de nomear a violência que sofrem, contribuindo para a insatisfação e sofrimento na relação conjugal e criando obstáculos para a construção de sua autonomia.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2020

Compartilhado em 14/09/2020

sabrina-moura
sabrina-moura 🇧🇷

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Psicologia: Teoria e Pesquisa
Vol. 33, pp. 1-10 doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102.3772e3346
e3346
Psicologia Clínica e Cultura
“Mas Ele Diz que me Ama...”: Duplo-Vínculo e Nomeação da Violência Conjugal
Fabrício Lemos Guimarães1
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
Glaucia Ribeiro Starling Diniz
Universidade de Brasília
Fabio Pereira Angelim
Superior Tribunal de Justiça
RESUMO - O objetivo dessa pesquisa qualitativa foi discutir a aplicação da Teoria do Duplo-Vínculo ao contexto da violência
conjugal.Foram consideradostrês critérios de duplo-vínculo: (a) Relacionamento de imenso valor afetivo; (b) Mensagens
paradoxais; (c) Impossibilidade de refletir sobre a relação. A estratégia metodológica foi a leitura do livro Mas ele diz que me
ama..., aplicação de questionário e reflexão grupal sobre o livro.Participaram da pesquisa 20 mulheres encaminhadas pela
justiça. A análise dos títulos atribuídos pelas participantes a sua própria história resultou em quatro categorias que revelaram
dimensões da relação duplo-vincular: Ambiguidade de sentimentos; Promessas do parceiro; Constatação da realidade violenta;
Perspectiva de nova vida. Essa pesquisa-intervenção facilitou a reflexão das mulheres sobre sua realidade e ofereceu ferramentas
para avaliação de riscos da violência.
Palavras-chave: violência conjugal, gênero, teoria sistêmica, duplo-vínculo, pesquisa-intervenção
“But He Says He Loves me ...”: Double-Bind and Nomination of Marital Violence
ABSTRACT - The purpose of this qualitative research was to present and discuss the application of the Double-bind Theory
to marital violence. Three double-bind criteria were considered: (a) Relationshipof immense emotional value, (b) Paradoxical
messages;(c) Impossibility toreflect about the relationship. The methodological strategy consisted in reading the book But he
says he loves me..., answering a questionnaire and participating in a group reflection. Twenty women referred by the Judicial
System participated in the research. Analyses of the titles women attributed to their stories generated four categories: Ambiguity
offeelings; Partner’s promises; Confirmation of the violent reality; Prospect of a new life. This research-intervention facilitated
the reflection of women regarding their condition and served as a tool to improve risk assessment.
Keywords: marital violence, gender, systemic theory, double-bind; research- intervention.
1 Endereço para correspondência: Centro Empresarial Brasil 21, SHS
Quadra 06, Bloco I, Sala 215, Asa Sul, Brasília, DF, Brasil. CEP.
70.316-901. E-mail. billguimaraes@yahoo.com.br
O padrão é mais ou menos esse: Beijo! Tapa! Beijo! Tapa! Beijo!
Tapa! Para cada tapa, ganhamos um beijo, e para cada beijo
ganhamos um tapa. Em qual deles escolhemos acreditar? No
beijo, é claro. É o que nos mantém ali (Penfold,2006, p. viii – ix).
A dinâmica conjugal violenta leva mulheres a ficarem
anestesiadas, ou seja, sem condições de avaliarem o próprio
relacionamento e os riscos que correm (Ravazzola, 1997).
Elas frequentemente se sentem impotentes e paralisadas
diante de sua experiência (Diniz & Pondaag, 2006;
Guimarães, 2009; Ravazzola, 1997).
Nesse contexto, é evidente que elas terão dificuldades
em esclarecer os profissionais sobre suas demandas à
Justiça. É mais difícil ainda que consigam decidir
sozinhas e sem apoio adequado sobre a continuidade ou
não do processo criminal contra seus parceiros (Macedo
et al., 2012). Esse empobrecimento da percepção exige
compreensão de dimensões da dinâmica conjugal violenta
e, consequentemente, do tipo específico de ajuda requerida
pelas vítimas (Diniz & Pondaag, 2006; Pondaag, 2009).
As intervenções da Justiça em casos de violência
conjugal, no entanto,ainda são marcadas pela incompreensão
da demanda das timas (Diniz, 2011; Magales, 2011;
Soares, 2005). Os profissionais tendem a exigir um claro
posicionamento dessas mulheres para a permissão da
persecução penal do parceiro agressor ou para arquivar o
processo judicial (Guimarães, 2009; Magalhães, 2011).
Dessa forma, não levam em consideração que elas podem
estar aprisionadas a um padrão relacional contraditório e
com grande investimento afetivo (Angelim, 2009; Angelim
& Diniz, 2010).
É frequente nas audiências, a exigência de que uma
decisão sobre os rumos do processo seja tomada rapidamente.
Não é oferecida às mulheres oportunidade mínima de
reflexão, explicação sobre o processo e orientação sobre as
consequências de sua escolha. Esse procedimento pode fazer
com que as mulheres se sintam pressionadas e sem saída,
justamente no lugar onde deveriam receber apoio e proteção.
Corre-se o risco de induzi-las ao arquivamento do processo
(Macedo et al., 2012; Magalhães, 2011).
Resolve-se o processo judicial, mas ignora-se o
conflito conjugal. Tampouco, as mulheres adquirirem uma
compreensão ampliada de sua experiência (Diniz, 2011). Esse
tipo de postura pode resultar no agravamento da situação: elas
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1 Psicologia: Teoria e Pesquisa Vol. 33, pp. 1-10 doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102.3772e e Psicologia Clínica e Cultura

“Mas Ele Diz que me Ama...”: Duplo-Vínculo e Nomeação da Violência Conjugal

Fabrício Lemos Guimarães^1 Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios Glaucia Ribeiro Starling Diniz Universidade de Brasília Fabio Pereira Angelim Superior Tribunal de Justiça RESUMO - O objetivo dessa pesquisa qualitativa foi discutir a aplicação da Teoria do Duplo-Vínculo ao contexto da violência conjugal.Foram consideradostrês critérios de duplo-vínculo: (a) Relacionamento de imenso valor afetivo; (b) Mensagens paradoxais; (c) Impossibilidade de refletir sobre a relação. A estratégia metodológica foi a leitura do livro Mas ele diz que me ama... , aplicação de questionário e reflexão grupal sobre o livro.Participaram da pesquisa 20 mulheres encaminhadas pela justiça. A análise dos títulos atribuídos pelas participantes a sua própria história resultou em quatro categorias que revelaram dimensões da relação duplo-vincular: Ambiguidade de sentimentos; Promessas do parceiro; Constatação da realidade violenta; Perspectiva de nova vida. Essa pesquisa-intervenção facilitou a reflexão das mulheres sobre sua realidade e ofereceu ferramentas para avaliação de riscos da violência. Palavras-chave : violência conjugal, gênero, teoria sistêmica, duplo-vínculo, pesquisa-intervenção

“But He Says He Loves me ...”: Double-Bind and Nomination of Marital Violence

ABSTRACT - The purpose of this qualitative research was to present and discuss the application of the Double-bind Theory to marital violence. Three double-bind criteria were considered: (a) Relationshipof immense emotional value, (b) Paradoxical messages;(c) Impossibility toreflect about the relationship. The methodological strategy consisted in reading the book But he says he loves me... , answering a questionnaire and participating in a group reflection. Twenty women referred by the Judicial System participated in the research. Analyses of the titles women attributed to their stories generated four categories: Ambiguity offeelings; Partner’s promises; Confirmation of the violent reality; Prospect of a new life. This research-intervention facilitated the reflection of women regarding their condition and served as a tool to improve risk assessment. Keywords : marital violence, gender, systemic theory, double-bind; research- intervention. 1 Endereço para correspondência: Centro Empresarial Brasil 21, SHS Quadra 06, Bloco I, Sala 215, Asa Sul, Brasília, DF, Brasil. CEP. 70.316-901. E-mail. billguimaraes@yahoo.com.br O padrão é mais ou menos esse: Beijo! Tapa! Beijo! Tapa! Beijo! Tapa! Para cada tapa, ganhamos um beijo, e para cada beijo ganhamos um tapa. Em qual deles escolhemos acreditar? No beijo, é claro. É o que nos mantém ali (Penfold,2006, p. viii – ix). A dinâmica conjugal violenta leva mulheres a ficarem anestesiadas, ou seja, sem condições de avaliarem o próprio relacionamento e os riscos que correm (Ravazzola, 1997). Elas frequentemente se sentem impotentes e paralisadas diante de sua experiência (Diniz & Pondaag, 2006; Guimarães, 2009; Ravazzola, 1997). Nesse contexto, é evidente que elas terão dificuldades em esclarecer os profissionais sobre suas demandas à Justiça. É mais difícil ainda que consigam decidir – sozinhas e sem apoio adequado – sobre a continuidade ou não do processo criminal contra seus parceiros (Macedo et al., 2012). Esse empobrecimento da percepção exige compreensão de dimensões da dinâmica conjugal violenta e, consequentemente, do tipo específico de ajuda requerida pelas vítimas (Diniz & Pondaag, 2006; Pondaag, 2009). As intervenções da Justiça em casos de violência conjugal, no entanto,ainda são marcadas pela incompreensão da demanda das vítimas (Diniz, 2011; Magalhães, 2011; Soares, 2005). Os profissionais tendem a exigir um claro posicionamento dessas mulheres para a permissão da persecução penal do parceiro agressor ou para arquivar o processo judicial (Guimarães, 2009; Magalhães, 2011). Dessa forma, não levam em consideração que elas podem estar aprisionadas a um padrão relacional contraditório e com grande investimento afetivo (Angelim, 2009; Angelim & Diniz, 2010). É frequente nas audiências, a exigência de que uma decisão sobre os rumos do processo seja tomada rapidamente. Não é oferecida às mulheres oportunidade mínima de reflexão, explicação sobre o processo e orientação sobre as consequências de sua escolha. Esse procedimento pode fazer com que as mulheres se sintam pressionadas e sem saída, justamente no lugar onde deveriam receber apoio e proteção. Corre-se o risco de induzi-las ao arquivamento do processo (Macedo et al., 2012; Magalhães, 2011). Resolve-se o processo judicial, mas ignora-se o conflito conjugal. Tampouco, as mulheres adquirirem uma compreensão ampliada de sua experiência (Diniz, 2011). Esse tipo de postura pode resultar no agravamento da situação: elas

voltam para suas casas fadadas à vivência de repetições dos episódios violentos e descrentes com o Sistema Judiciário (Guimarães, 2009; Magalhães, 2011). O fato é que mesmo nos casos de crime de lesão corporal, em que atualmente a ação penal é pública incondicionada, ou seja, não depende da representação da mulher para seguir com o processo (STF - ADI 4424/2012) em diversos momentos torna-se necessária uma participação ativa da mulher vítima. Uma questão especialmente importante diz respeito à necessidade ou não de instalação, modificação e/ou mesmo a retirada de Medidas Protetivas de Urgência (MPU). Outras questões igualmente relevantes estão relacionadas à necessidade e/ou mesmo à aceitação para participar em acompanhamento psicossocial, buscar refúgio na casa abrigo, notificar às autoridades possíveis descumprimentos de MPU por parte do parceiro, entre outras medidas que venham a ser necessárias durante o processo. Mulheres e homens, seja como casais ou ex-casais, acabam retornando à Justiça diversas vezes sem uma resposta efetiva do Estado (Soares, 2005; Saffioti, 1999; Teixeira, 2009). No intuito de evitar a repetição desse padrão, a avaliação de risco realizada pelos profissionais – operadores do direito, equipe psicossocial, entre outros – deve considerar as condições de reflexão de que as mulheres dispõem para perceberem sua situação e elaborarem as queixas de violência (Angelim, 2009; Macedo et al., 2012). A aplicação da Teoria do Duplo-Vínculo (TDV) aos casos de violência conjugal pode contribuir para a compreensão de dinâmicas relacionais violentas. Tramas do padrão relacional precisam ser desvendadas para que se possa compreender como é difícil e complexa a elaboração de um pedido de ajuda por parte das mulheres. É nosso entendimento que essa teoria pode fornecer ferramentas fundamentais para elucidar parte do “mistério” da permanência e manutenção de um relacionamento violento (Angelim, 2009; Angelim & Diniz, 2010). Este artigo tem como objetivo apresentar a aplicação da Teoria do Duplo-Vínculo (TDV) ao contexto da violência conjugal. Inicia com breve discussão sobre o contexto histórico e as principais características dessa teoria, para então tratar das condições de sua aplicação aos relacionamentos conjugais. Apresenta, em seguida, parte dos dados de pesquisa-intervenção que usou essa teoria como uma das ferramentas que pode favorecer a compreensão do fenômeno e a atuação profissional nesses contextos. Finaliza com reflexão sobre a importância da inclusão da TDV para pensar e lidar com situações de violência conjugal. Teoria do Duplo-Vínculo: Breve contextualização A TDV foi apresentada em 1956 por Gregory Bateson, Don Jackson, JayHaley e John Weakland, no artigo “Rumo a uma teoria da esquizofrenia”. Esses autores constituíam o grupo de pesquisa que fundou o Mental Research Institute

  • MRI em Palo Alto, California-EUA, o qual se tornou um dos berços fundamentais de construção de aportes teóricos para a terapia conjugal e familiar de base sistêmica (Angelim & Diniz, 2010; Bateson et al., 1956; Carter & McGoldrick, 1995). Bateson, Jackson, Haley e Weakland (1956) discutiram o papel da linguagem como processo importante na estruturação da personalidade das pessoas. Lançaram, então, as primeiras ideias sobre a presença de dinâmica duplo-vincular nos relacionamentos familiares. A TDV tornou-se uma nova forma de olhar, entender e intervir na etiologia e manutenção de diversas psicopatologias. Essa teoria se consolidou com forte aporte teórico e de pesquisas na área de saúde mental. Os primeiros estudos foram direcionados às famílias com pacientes diagnosticados com esquizofrenia. Depois, foi aplicada a várias outras psicopatologias (Angelim, 2009). Terapeutas familiares passaram a investigar e intervir nos padrões de relacionamento ao invés de buscar uma experiência traumática específica como origem dos transtornos psicopatológicos. Saíram de uma visão simplista e linear para uma compreensão sistêmica das relações familiares e da saúde mental de seus membros (Angelim & Diniz, 2010). Influenciados pelo trabalho de Bateson et al. (1956), Watzlawick, Beavin e Jackson (1967/1995) começaram a perceber algumas dinâmicas comuns em diversas famílias com pacientes esquizofrênicos em suas pesquisas. Essas características foram consideradas as condições de duplo- vínculo. Os autores perceberam que determinadas condições relacionais configuravam experiências constantes, que precisavam ser vivenciadas diversas vezes para desencadear um transtorno. Watzlawick et al. (1967/1995) descreveram cinco critérios específicos para avaliar se uma relação poderia ser considerada como duplo-vincular: (a) Presença de duas ou mais pessoas em uma relação intensa e de elevado valor de sobrevivência; (b) Prevalência de mensagens paradoxais, em que a pessoa afirma algo (p. ex.: “você pode sair com suas amigas”) e comunica algo contraditório sobre a própria afirmação (p. ex.: brigar pelo fato de a mulher estar se arrumando para sair com as amigas), ou seja, as duas mensagens excluem-se mutuamente e são apresentadas em níveis comunicacionais diferentes; (c) O/a receptor/a da mensagem fica impedido/a de refletir e de sair do padrão interacional; (d) Quando o padrão de DV é duradouro, transforma-se em expectativa autônoma e não requer reforço posterior para se perpetuar; e (e) O comportamento paradoxal imposto pela dupla vinculação é, por sua vez, uma dupla vinculação e isso redunda em um padrão de comunicação que perpetua a si mesmo. A aplicação desses critérios da TDV aos casos de violência conjugal pode ajudar a identificar elementos dessa dinâmica conjugal e os riscos presentes nesse tipo de relacionamento. Essa avaliação de risco pode ser realizada pelos profissionais e mesmo pelas pessoas envolvidas na relação: mulheres, homens, familiares, amigos e comunidade. Neste trabalho, partimos do pressuposto de que a identificação desses critérios pode contribuir para criar condições para que mulheres possam refletir sobre o relacionamento e fazer uma escolha consciente sobre manter ou não o vínculo conjugal.

4 Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Vol. 33, pp. 1- FL Guimarães et al. diversos términos e retornos à relação. Terminar e reconciliar a conjugalidade evidencia a coexistência da expectativa de sair da relação e a esperança de mudança na sua dinâmica (Guimarães, 2009; Walker, 1999). Essa dinâmica relacional torna ambos os cônjuges prisioneiros do paradoxo entre amor e agressão. Tanto homens como mulheres permanecem presos a essa dinâmica. A pressão social e as cobranças recaem injusta e exclusivamente sobre a mulher por ser a pessoa em condição de desvantagem e marcada pelas desigualdades de gênero. As mulheres podem se sentir obrigadas a resolverem sozinhas todos os problemas familiares. Esse dilema as coloca diante de outro paradoxo: “ficar para resolver ou sair para resolver? Elas ficam presas em uma armadilha: se ficam são criticadas, acusadas de gostar de apanhar; se saem, são vistas como fracas, e acusadas de provocarem a ruptura familiar” (Guimarães, 2009, p. 69). A ambivalência de sentimento atinge seu extremo quando ocorre o paradoxo entre amor e ódio. A dinâmica violenta pode aumentar de intensidade e de frequência até atingir um fim trágico: a morte de um dos cônjuges, na grande maioria dos casos da mulher. A tendência é ocorrer o feminicídio (Krug, Dahlberg, Mercy, Zwi,& Lozano, 2002; Waiselfisz,

  1. ou o homicídio da mulher seguido de suicídio do homem (Aguiar, 2009; Angelim, 2009; Macedo, 2013; Teixeira, 2009). A dinâmica duplo-vincular presente nessa situação não permite alternativas fora da relação, senão a morte dos cônjuges (Angelim & Diniz, 2010). Ambos ficam aprisionados a esse padrão de relacionamento. O livro Nunca você sem mim: Homicidas-suicidas nas relações afetivo- conjugais , de Analba Teixeira (2009), ilustra bem como a conjugalidade violenta pode evoluir até o desfecho trágico de um homicídio-suicídio. Outro estudo - Mapa da Violência no Brasil – de Waiselfisz (2012) revela que 91 mil mulheres foram assassinadas nos últimos 30 anos, sendo mais de 43 mil na última década (aumento de 216% nesse período). Entre essas, quase 68,8% foram mortas dentro de casa e, se considerarmos mulheres na faixa etária de 20 a 49 anos, 65% foram executadas pelos parceiros ou ex-parceiros. É alarmante o índice de letalidade da violência doméstica e familiar no país. 3º condição: Impossibilidade de Refletir sobre a Relação A terceira condição do duplo-vínculo nas relações conjugais violentas é marcada pela impossibilidade de reflexão sobre a sua própria dinâmica. Simone de Beauvoir (1967) defende que existe uma estereotipia do comportamento feminino, em que as mulheres ficam subjetivamente dependentes do lócus conjugal e familiar. Essa expectativa social por si só é um fator que dificulta a reflexão das mulheres sobre sua condição subjetiva (Angelim, 2009; Guimarães, 2009). Em uma dimensão relacional, o ciclo da violência também dificulta a reflexão sobre a situação da relação violenta (Walker, 1999). A repetição do ciclo faz com que a mulher se adapte aos altos e baixos da vivência conjugal. Diante do medo, a vítima faz todo um movimento para eliminar questões associadas à percepção da violência: falta de autonomia pessoal, agressividade do parceiro, alterações do humor, rotinas, divisão de trabalhos domésticos, ciúmes etc. Mulheres esperam que essa atitude possa mudar o comportamento do companheiro ou pelo menos evitar novas agressões (Saffioti, 1999). Esse processo pode levar a um estado de hiper vigilância e de desamparo aprendido (Angelim, 2009; Walker, 1999). Lamentavelmente, a tendência é a retomadadas fases mais violentas do ciclo, o que faz com que os momentos de tranquilidade fiquem cada vez mais curtos e raros (Guimarães, 2009; Soares, 2005; Walker, 1999). O uso do silêncio e do segredo também dificulta a reflexão sobre a relação (Diniz & Pondaag, 2006; Pondaag, 2009). As mulheres podem ter dificuldade para verbalizar as experiências de agressão e nomeá-las como violência. Tendem, assim, a utilizar o silêncio, o segredo e o não dito como estratégia de enfrentamento (Pondaag, 2009). A violência é um fenômeno muitas vezes inesperado e aterrorizante. Surge daí essa dificuldade em nomeá-la. No contexto da dinâmica conjugal violenta, os envolvidos não percebem os atos como realmente acontecem e ficam anestesiados – não sentem plenamente as suas consequências (Ravazzola, 1997). A autora defende que “não vemos as coisas para as quais não encontramos nomes. Tampouco vemos que não as vemos. Acreditamos então sem esforço que elas não existem. O efeito do ‘duplo-cego’ (...) é poderoso” (p. 92). A anestesia acontece com tanto êxito que o mal-estar deixa de ser sentido, o que ajuda a entender porque algumas mulheres contam os seus dramas sorrindo, mesmo quando a violência é extrema (Ravazzola, 1997). A instalação das anestesias na dinâmica conjugal e o uso do silêncio e do segredo como estratégias de sobrevivência revelam, portanto, outro paradoxo: apesar da dor e do sofrimento causado pela violência, a mulher fica impedida de nomeá-la (Diniz & Pondaag, 2006; Guimarães, 2009). A dificuldade em falar sobre a violência é um fator que atrapalha ou impede a formulação de um pedido de ajuda efetivo. Essa estratégia de sobrevivência contribui para a insatisfação e sofrimento da mulher na relação conjugal e cria obstáculos para a construção de sua autonomia (Pondaag, 2009). O isolamento social da família também dificulta ou impossibilita a reflexão sobre a relação (Angelim & Diniz, 2010; Soares, 2005). Esse isolamento é muito comum em famílias em situação de violência e ocorre quando a vítima perde ou diminui significativamente o contato com seus parentes, amigos e comunidade. O parceiro geralmente tenta impedir de todas as maneiras que a mulher estude, trabalhe e circule livremente (Alves & Diniz, 2005; Soares, 2005). O isolamento atua como uma consequência da violência e, ao mesmo tempo,como um fator de risco – contribui para a formação de um círculo vicioso e favorece a sua perpetuação (Guimarães, 2009). Uma análise detalhada desses critérios carrega o potencial de revelar o quanto um relacionamento violento pode estar alicerçado em padrões de duplo-vínculo. Essa análise deve ser feita à luz de uma perspectiva de gênero, no intuito de evitar “condicionar o tipo de relação afetiva entre agressor e

Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Vol. 33 pp. 1-10 5 Duplo Vínculo e Violência Conjugal vítima e naturalizar algumas das contradições vividas pelas mulheres” (Angelim & Diniz, 2010, p. 403). Aplicação da Teoria do Duplo-vínculo a Relações Conjugais Violentas Várias pesquisas (Hamilton & Armstrong, 2009; Mahmoud, 2003) defendem a importância de se discutir a dinâmica duplo-vincular nas relações sociais, familiares e conjugais. Poucos estudos relacionam TDV e violência conjugal (Knickmeyer, Levitt, Horne, & Bayer, 2004). Esses autores discutiram como algumas questões religiosas têm características duplo-vinculares e aprisionam as mulheres à dinâmica conjugal violenta. Por mais que os paradoxos possam estar presentes em todas as relações conjugais, defendemos a necessidade de ampliar a compreensão de uma dinâmica relacional violenta. Os critérios discutidos acima vão além das mensagens paradoxais e configuram uma dimensão estruturante da relação violenta. Por estarem arraigados à dinâmica conjugal, a mera constatação do episódio de violência não é suficiente para compreender, intervir e mudar um padrão relacional permeado pelo duplo-vínculo. É preciso promover ou aprimorar a capacidade de reflexão dos/as envolvidos/as na dinâmica conjugal violenta (Angelim, 2009; Macedo, 2013). Esses recursos de reflexão estabelecem limites para o próprio significado da experiência violenta para a vítima. Podem ajudá-la a reconhecer e a superar o padrão de relacionamento duplo-vincular violento e ampliar sua capacidade de avaliar os riscos da violência. Por fim, podem imprimir mais clareza à sua denúncia junto ao Estado (Angelim, 2009; Angelim & Diniz, 2010). Uma mulher inserida em uma dinâmica duplo-vincular está em situação vulnerável. A probabilidade de seu retorno para o relacionamento é alta – mesmo que ele seja permeado pela violência, que não tenha nenhuma perspectiva de mudança, e, inclusive, após a mulher ter buscado ajuda de familiares, amigos e da Justiça. Esse processo leva a um desgaste e descrédito junto à sua rede de apoio familiar e institucional (Angelim & Diniz, 2010). Os autores enfatizam que: enredada num padrão de relacionamento duplo-vincular a vítima e o agressor não dispõem de condições para superar o padrão relacional violento. (...) Esse padrão relacional inviabiliza até mesmo a compreensão de como começaram as agressões. Daí que nesses casos a percepção do padrão relacional torna-se, por vezes, mais importante que o esclarecimento da causalidade linear e dos motivos que permitem os episódios de violência. (Angelim & Diniz, 2010, p. 402) Essa reflexão teórica constitui a base para a apresentação de parte dos resultados da dissertação de mestrado do primeiro autor à luz da TDV e é detalhada e discutida na tese de doutorado do terceiro autor. Os dois trabalhos foram realizados sob a orientação da segunda autora e tiveram como eixo estruturante a necessidade de compreender como homens e mulheres nomeiam e percebem a própria história conjugal violenta. Serão detalhadas a seguir, o método da pesquisa e depois os seus resultados à luz da TDV.

Método

A experiência dos três autores com trabalhos junto a mulheres em situação de violência já havia evidenciado que essas mulheres tendem a minimizar ou mesmo negar suas experiências e suas dores. Tal constatação constituiu um desafio para a construção da pesquisa. Nesse contexto, foi adotada uma estratégia de pesquisa qualitativa a partir do uso de um estímulo indutor de reflexões, no caso o livro Mas ele diz que me ama: Grafic Novel de uma Relação Violenta , escrito por Rosalind B. Penfold (2005). Buscamos, na história de uma mulher vítima, escrita de forma criativa por meio da estratégia de quadrinhos, o elemento potencializador de reflexões sobre a experiência de violência conjugal de outras mulheres. A dimensão inovadora dessa estratégia justifica o caráter exploratório da pesquisa (Seidl de Moura & Ferreira, 2005). Participantes Vinte mulheres em situação de violência conjugal participaram da pesquisa. Todas foram encaminhadas pela Justiça para acompanhamento psicossocial em Núcleos de Atendimento às Famílias e Autores de Violência Doméstica (NAFAVD) da Secretaria do Estado da Mulher (SEM) do Distrito Federal – Brasil.A idade das participantes variou entre 27 a 55 anos. Os níveis de escolaridade foram desde o ensino fundamental incompleto ao superior completo. A diversidade racial foi representada pela presença de mulheres negras, pardas, amarelas e brancas. As crenças religiosas foram a evangélica e a católica. O tempo de relacionamento compreendeu o intervalo de 2 a 35 anos. As mulheres relataram que estavam expostas às agressões por períodos muito distintos, desde 8 meses a 35 anos. Nove mulheres estavam separadas dos parceiros. A quantidade de filhos variou de 1 a 5, duas mulheres relataram não ser mães. A renda variou de zero a quatro mil e quinhentos reais. Os dados demográficos corroboraram dados de outras pesquisas que mostram que a violência afeta mulheres de todas as idades, raças, crenças religiosas, e de diferentes níveis educacional e econômico. Esse resultado reitera que a violência é um fenômeno universal (Kruget al., 2002; Soares, 2005; Walker, 1999). Instrumentos e Materiais Os instrumentos utilizados foram o livro Mas ele diz que me ama (Penfold, 2005); um questionário criado pelos pesquisadores e o Formulário de Acolhimento de Mulheres do NAFAVD. Será apresentada a seguir uma breve descrição dos principais instrumentos. Livro Mas Ele Diz que me Ama. A escolha metodológica pela utilização do livro Mas ele diz que me ama (Penfold,

  1. como material de pesquisa e instrumento eliciador de reflexões se deveu ao fato de ele narrar uma história conjugal violenta e abranger os principais elementos apontados na literatura como característicos dessas relações. O livro foi testado em atendimentos individuais e, uma vez constatado

Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Vol. 33 pp. 1-10 7 Duplo Vínculo e Violência Conjugal Grupo Saindo do Cativeiro – GSC P1 Você é a mulher da minha vida. Mas todo mundo que ama não bate, não é amor, e os que dizem ama e mata, isso não é amor. P2 Saindo do cativeiro. Ele não ama nem a si mesmo. P3 O desprezo de um homem. E continua errando. P4 Eu nunca fui feliz com ele. Ele nunca me diz que me ama, nunca falou, é sempre caladão. P5 Teu silêncio e tua frieza me deixam em dúvidas do que sentes por mim. E me engana, ele tem cara de pau. Falar não é fazer, fala que ama e não ama e às vezes ama sem falar. P6 O homem que diz me amar me dirigiu a palavra nesses termos... Eu continuo dizendo que não ama. P7 A decepção de uma sonhadora. E por que as agressões? P8 Mas suas atitudes não condizem. Mas as atitudes dele não condizem. P9 Apesar dos pesares, eu o amo tanto! E por que me trai? Isso não é amor! P10 Eu não conhecia o amor próprio... Não quero nem saber, eu vou me amar mais. Grupo Um Dia Serei Feliz – GSF P11 Mas ele diz não consigo viver sem você. Porque não faz nada para mudar. P12 Deus é fiel. Mas não se esforça para amar. P13 Um dia serei feliz. Mas ele quer me matar. P14 A insistência dele foi em vão. Mas não demonstra. P15 Dê-me mais uma chance, a última! Mas não como antes. Não como eu o amo. P16 Amor e ódio. Mas me faz sofrer. P17 Por que se chama de amor se traz tantas dúvidas, medos e inseguranças. Será mesmo amor? Mas que amor é esse que traz tantas questões e tantas dúvidas. P18 Ele não me ama. Mas não me merece. P19 Ele merece uma chance pra mudar. E que nunca ninguém me ama mais do que ele (perda de tempo!). Tabela 1. Respostas das participantes aos itens 7 e 8 do Questionário sobre o livro questionário. Esse formato possibilita a compreensão mais clara dos critérios do duplo-vínculo. A análise das respostas foi feita com base no entendimento de que a resposta à questão sete do instrumento possibilitou às participantes exporem as anestesias que as aprisionavam ou aprisionam à relação conjugal. A resposta ao item oito permitiu a constatação de que há algo errado no relacionamento: estimulada pela palavra “mas” do título do livro. Ao juntar as duas respostas, foi possível fazer uma reflexão sobre o paradoxo entre as anestesias apresentadas pelas mulheres e a percepção da realidade violenta da conjugalidade. As respostas/percepções das mulheres acerca de suas histórias foram analisadas à luz da TDV. A nomeação/intitulação da própria história por parte das mulheres revelou os paradoxos da presença da violência na relação. A partir da análise desses títulos foram identificadas quatro categorias: (a) Ambiguidade de sentimentos; (b) As promessas do parceiro; (c) A constatação da realidade violenta; e (d) Perspectiva de uma nova vida. Essas categorias serão apresentadas e problematizadas a seguir. Do Título do Livro aos Paradoxos das Histórias Reais A análise conjunta das respostas aos dois últimos itens do questionário permite refletir sobre os paradoxos da ambiguidade de sentimentos e da violência. Esses paradoxos são expostos nos trechos a seguir: P5 : “Teu silêncio e tua frieza me deixam em dúvidas do que sentes por mim” e “E me engana, ele tem cara de pau (...) fala que ama e não ama, às vezes ama sem falar”; P6 :“O homem que diz me amar me dirigiu a palavra nesses termos...” e “Eu continuo dizendo que não ama”; P9 : “Apesar dos pesares, eu o amo tanto!” e “E por que me trai? Isso não é amor!”; P12 : “Deus é fiel” e “Mas não se esforça para amar”; P16 : “Amor e ódio” e “Mas me faz sofrer”; P17 : “Por que se chama de amor se traz tantas dúvidas, medos e inseguranças. Será mesmo amor?” e “Mas que amor é esse que traz tantas dúvidas”. A resposta de P12 “Deus é fiel” pode parecer vaga. Entretanto, a análise desse título em conjunto com o seu relato verbal: “Deus é fiel! Eu tenho fé em Deus, que vai melhorar, eu te garanto”, revela a ambiguidade de sentimentos entre sua esperança de mudança da relação e a constatação de que o parceiro não se esforça para mudar. O paradoxo entre amor e violência tende a deixar as mulheres extremamente confusas sobre o vínculo com seus parceiros (Angelim & Diniz, 2010). Essa característica foi apresentada pelas mulheres dos dois grupos. A ambiguidade favorece a reafirmação do relacionamento, e, diante da dúvida, prevalece a tendência em continuar na relação conjugal. Essa reafirmação reforça a ilusão de que a violência

8 Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Vol. 33, pp. 1- FL Guimarães et al. não tem solução e contribui para a sensação de que não há como interrompê-la (Walker, 1999). A relação dos cônjuges vai muito além da violência

  • existe afeto, agressão, amor, ódio, respeito, desprezo, confiança, medo, etc. (Aguiar, 2009; Safiotti, 1999). Os parceiros podem ser brincalhões, amorosos, atenciosos, sensíveis, excitantes e afetuosos em diversos momentos, mas também são coercitivos, controladores e agressivos (Aguiar, 2009; Walker, 1999). Essa dinâmica paradoxal ajuda a compreender a disposição das mulheres para punir e, ao mesmo tempo, voltar atrás e querer cuidar do parceiro agressor quando recorrem à Justiça. O fato de o parceiro ser uma pessoa de intenso valor afetivo favorece a instalação de uma dinâmica de submissão da mulher em busca do reconhecimento da pessoa amada (Angelim & Diniz, 2010). A dúvida gerada pela ambiguidade favorece a manutenção da relação, correspondendo à estereotipia esperada do comportamento feminino, fator que dificulta a reflexão sobre sua condição subjetiva. Essa dinâmica reforça ainda mais a dependência da mulher ao lócus conjugal e familiar. A dinâmica duplo-vincular não permite alternativas fora da relação. Surge a dificuldade em romper esse padrão e a tendência da violência em se perpetuar e se agravar indefinidamente (Beauvoir, 1967; Angelim, 2009; Angelim & Diniz, 2010). Várias mulheres compreenderam a existência de paradoxos entre as promessas do parceiro e a presença de violência na relação,que ficam evidentes nos exemplos a seguir: P1 : “Você é a mulher da minha vida” e “Mas todo mundo que ama não bate, não é amor”; P11 : “Mas ele diz não consigo viver sem você” e “Porque não faz nada para mudar”; P15 : “Dê-me mais uma chance, a última!”e “Mas não como antes. Não como eu o amo”; P19 : “Ele merece uma chance pra mudar” e “E que nunca ninguém me ama mais do que ele (perda de tempo!)”. As promessas feitas pelo parceiro formam uma poderosa anestesia e aprisionam as mulheres. Atuam como reforçadores de uma ilusão de que um dia o parceiro e a relação irão melhorar ou voltar a ser como antes (Guimarães, 2009; Ravazzola, 1997; Walker, 1999). Essas promessas têm mais peso que a própria constatação da violência e podem influenciar ainda a construção da própria identidade (McGoldrick,1994). A própria autora/personagem do livro Mas ele diz que me ama evidencia o paradoxo entre a promessa do parceiro e as violências cometidas: “fiquei apegada às promessas de Brian em vez de confiar naquilo que eu via e nas minhas próprias experiências. Minha negação e minha vergonha me mantiveram ao lado dele por dez anos” (Penfold, 2005, p. xiii). Algumas participantes foram capazes de superar a ambiguidade de sentimentos e a armadilha das promessas do parceiro. Elas perceberam a inadequação do paradoxo entre amor/violência na relação. Nesses casos, as mulheres apresentaram a constatação da realidade violenta nas duas respostas aos últimos itens do questionário: P3 : “O desprezo de um homem” e “E continua errando”; P4 : “Eu nunca fui feliz com ele” e “Ele nunca me diz que me ama, nunca falou, é sempre caladão”; P7 : “A decepção de uma so- nhadora” e “E por que as agressões?”; P8 : “Mas suas atitudes não condizem” e “Mas as atitudes dele não condizem”; P14 : “A insistência dele foi em vão” e “Mas não demonstra”; P18 : “Ele não me ama” e “Mas não me merece”. Esse processo de conscientização esteve presente nos dois grupos de mulheres, apesar de ter se destacado no GSC. A estratégia utilizada permitiu às participantes iniciarem o processo de reflexão acerca das mensagens paradoxais e desafiar/rever o valor de sobrevivência em relação ao parceiro agressor (Angelim & Diniz, 2010). A palavra “mas” – do item 8 do questionário – permitiu confrontar diretamente suas anestesias relacionais (Ravazzola, 1997). Elas questionaram o paradoxo entre o amor que o parceiro afirmava sentir e a violência que ele praticava (Angelim & Diniz, 2010). O exercício de dar continuidade ao título do livro pôde ajudá-las a se posicionaram acercada existência dessa contradição. Outra característica que se destaca nos títulos apresentados pelas participantes é a constatação da contradição entre a perspectiva de uma nova vida e a violência vivenciada. As respostas abaixo mostram que elas passaram a desafiar a possibilidade de mudança do parceiro ou da relação: P2 :“Saindo do cativeiro” e “Ele não ama nem a si mesmo”; P10 :“Eu não conhecia o amor próprio...” e “Não quero nem saber, eu vou me amar mais”; P13 :“Um dia serei feliz” e “Mas ele quer me matar”. A expectativa de poder construir uma nova vida foi apresentada por três participantes – duas do grupo GSC e uma do GSF. Elas afirmam o desejo de continuar suas vidas sem a violência ao escolherem como títulos: “não quero nem saber, eu vou me amar mais”, “saindo do cativeiro” e “um dia serei feliz”. Os dois primeiros relatos são de participantes que estão separadas de seus parceiros e pretendem reconstruir as suas histórias. Uma delas afirma não depender do sentimento dele para reconstruir a sua vida, o que indica que ela pode ter iniciado o processo de reflexão para questionar a primeira condição da TDV – valor de sobrevivência. Ela mostrou estar no caminho de resgatar a sua autoestima: “não quero nem saber, eu vou me amar mais”. A terceira participante ainda morava com o cônjuge. Sua fala pode significar a esperança de mudança dentro ou fora da relação e evidenciou o extremo paradoxo entre amor/violência: “Mas ele diz que me ama...mas ele quer me matar”. Ela tem consciência da possibilidade do relacionamento conjugal chegar a um fim trágico: a morte de um dos cônjuges, provavelmente a dela (Kruget et al., 2002; Waiselfisz, 2012). Outra participante também apontou essa possibilidade de feminicídio: “mas todo mundo que ama não bate, não é amor, e os que dizem ama e mata, isso não é amor”.

Considerações Finais

Os critérios de duplo-vínculo discutidos e aplicados neste trabalho ajudam a compreender como mulheres inseridas em relacionamentos violentos estruturados pela dinâmica duplo- vincular ficam sem recursos para avaliar o risco da violência (Angelim, 2009). O desconhecimento da dinâmica duplo- vincular nessas relações aponta para o total descrédito a que a mulher é submetida, sobretudo quando ela retorna diversas vezes para a relação. Familiares, amigos e, muitas vezes, até

10 Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Vol. 33, pp. 1- FL Guimarães et al. Macedo, D., Guimarães, F., Tusi, M., Guimarães, R., Chaves, R.,& Ramos, T. (2012). Audiências interdisciplinares e violência contra a mulher: Intervenções psicossociais no âmbito do TJDFT. Em M. Lobão, E. Resende, E. C. B. Roque & V. Brito (Orgs.), Conexões: Teoria e Prática do Trabalho em Redes na Secretaria Psicossocial Judiciária do TJDFT (pp. 13-32). Brasília: Lúmens Juris. Macedo, D. S. (2013). Exercícios para Liberação da Tensão e do Trauma (TRE): Aplicação a situações de violência conjugal. (Dissertação de Mestrado). Universidade de Brasília, Brasília. Magalhães, N. T. (2011). Gênero e violência conjugal: Olhares de um sistema de justiça especializado (Dissertação de Mestrado), Universidade de Brasília, Brasília. Mahmoud, V. M. (2003). Os duplos vínculos do racismo (pp. 293-307). Em M. McGoldrick (Org.), Novas abordagens da terapia familiar: Raça, cultura e gênero na prática clínica. São Paulo: Roca. McGoldrick, M. (1994). As mulheres e o ciclo de vida familiar. Em B. Carter& M. McGoldrick (Orgs.), O ciclo de vida familiar: Uma abordagem para a terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas. Knickmeyer, N., Levitt, H. M., Horne, S. G., & Bayer, G. (2004). Re spondingtomixedmessagesanddouble binds: Religious oriented coping strategies of Christian battered women. Journal of Religion and Abuse, 5 , 55-82. Penfold, R. B. (2006). Mas ele diz que me ama: Graphic novel de uma relação violenta (D. Pelizzari, trad.). Rio de Janeiro: Ediouro. Pondaag, M. C. M. (2009). Sentidos da violência conjugal: A perspectiva de casais (Tese de Doutorado). Universidade de Brasília, Brasília. Ravazzola, M. C. (1997). Historias infames: Los maltratos en las relaciones. Buenos Aires: Paidós. Saffioti, H. I. B. (1999). Já se mete a colher em briga de marido e mulher. São Paulo em Perspectiva, 13 (4), 82-91. Seidl de Moura, M. L., & Ferreira, M. C. (2005). Projetos de Pesquisa: Elaboração, redação e apresentação. Rio de Janeiro, RJ: EDUERJ. Soares, B. M. (2005). Enfrentando a violência contra a mulher: Orientações práticas para profissionais e voluntários(as). Brasília: SPM. Teixeira, A. B. (2009). Nunca você sem mim: Homicidas-suicidas nas relações afetivo-conjugais. São Paulo: Annablume. Walker, L. E. A. (1999). The battered woman syndrome. (2º ed.). Nova York: Springer Publishing Company. Waiselfisz, J. J. (2012). Mapa da Violência 2012. Os novos padrões da violência homicida no Brasil – Caderno Complementar 1: Homicídios de Mulheres no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari. Watzlawick, P., Beavin, J.H., & Jackson, D. D. (1995). P ragmática da comunicação humana. São Paulo: Cutrix. (Original publicado em 1967) Recebido em 19.03. Primeira decisão editorial em 21.01. Versão final em 20.02. Aceito em 23.03.2016 n