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Marxismo e democracia: Crítica à razão liberal - Análise ética e histórica, Notas de estudo de Cultura

Juarez rocha guimarães discute a relação entre marxismo e democracia, revisando as críticas liberais sobre a incompatibilidade entre as duas. O autor propõe uma perspectiva ética e histórica para entender as energias emancipatórias do marxismo e as formas diretas de autogoverno e controle social. O livro 'democracia e marxismo: crítica à razão liberal' é utilizado como base para o exame.

O que você vai aprender

  • Quais são as formas diretas de autogoverno e controle social defendidas pelo autor?
  • Quais são as críticas liberais sobre a incompatibilidade entre marxismo e democracia?
  • Qual é a perspectiva ética e histórica proposta pelo autor para entender a relação entre marxismo e democracia?
  • Como o autor utiliza o livro 'Democracia e marxismo: crítica à razão liberal' para conduzir seu exame?
  • O que é a visão crítica do autor sobre as interpretações deterministas da obra de Marx?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

VictorCosta
VictorCosta 🇧🇷

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Marxismo e democracia : crítica à razão liberal
Juarez Rocha Guimarães
Pensar a relação entre marxismo e democracia é certamente um
empreendimento intelectual que se faz em um campo analítico sustentado pelo quase dogma
liberal de que existe uma incompatibilidade de fundamentos entre as linhas mestras da obra
de Marx e a cultura da democracia .
Um empreendimento intelectual deste alcance e pretensão, até mesmo para se
estabelecer com credibilidade, deve partir de algumas opções éticas fundamentais .
A primeira opção é a de dignificar a cultura do marxismo, não aceitar a
interdição de um certo pensamento que se pretende único. Reconhecer que as energias
emancipatórias que pulsam na cultura do marxismo, as inteligências criadoras que a
construíram, as problemáticas e soluções aí delineadas constituem um patrimônio da cultura
ocidental para além da mera adesão a sua racionalidade e valores.
A segunda opção é a de valorizar o diálogo crítico com a grande tradição liberal.
A interlocução com a inteligência liberal pode elevar a qualidade, a universalidade e o
espírito de rigor da tradição marxista. A auto-referência, a construção de uma lógica
auto-centrada, fechada ao diálogo com o diferente, o contraditório ou antagônico nunca foi
um caminho para a boa teoria .
A terceira opção ética é a de realizar um exame rigorosamente crítico da cultura
do marxismo. Ninguém pode negar a um marxista o direito à esperança. Mas este não pode
mais reivindicar o direito à inocência, depois de tantos descaminhos e até crimes cometidos
em nome dos ideais mais caros de emancipação.
É com base nestas opções éticas que formulamos quatro teses encadeadas para
se pensar a relação entre marxismo e democracia .Elas correspondem ao exame sistemático
da cultura do marxismo, a partir da crítica liberal, conduzido no nosso livro "Democracia e
marxismo: crítica à razão liberal " (São Paulo, Xamã,1998).
A grande crítica liberal, que buscava demonstrar a incompatibilidade de
fundamentos entre marxismo e democracia, a partir de diferentes caminhos argumentativos,
identificava o determinismo histórico como a raiz e a origem desta incompatibilidade.
Uma visão crítica e panorâmica da formação e desenvolvimento da cultura do
marxismo, a partir das diferentes concepções de história que nela compareceram, chegaria à
conclusão do predomínio das correntes deterministas na cultura do marxismo, o que
aparentemente dava razão à crítica liberal.
Submetendo o conjunto da obra de Marx a uma análise rigorosa a partir das
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Marxismo e democracia : crítica à razão liberal

Juarez Rocha Guimarães Pensar a relação entre marxismo e democracia é certamente um empreendimento intelectual que se faz em um campo analítico sustentado pelo quase dogma liberal de que existe uma incompatibilidade de fundamentos entre as linhas mestras da obra de Marx e a cultura da democracia. Um empreendimento intelectual deste alcance e pretensão, até mesmo para se estabelecer com credibilidade, deve partir de algumas opções éticas fundamentais. A primeira opção é a de dignificar a cultura do marxismo, não aceitar a interdição de um certo pensamento que se pretende único. Reconhecer que as energias emancipatórias que pulsam na cultura do marxismo, as inteligências criadoras que a construíram, as problemáticas e soluções aí delineadas constituem um patrimônio da cultura ocidental para além da mera adesão a sua racionalidade e valores. A segunda opção é a de valorizar o diálogo crítico com a grande tradição liberal. A interlocução com a inteligência liberal só pode elevar a qualidade, a universalidade e o espírito de rigor da tradição marxista. A auto-referência, a construção de uma lógica auto-centrada, fechada ao diálogo com o diferente, o contraditório ou antagônico nunca foi um caminho para a boa teoria. A terceira opção ética é a de realizar um exame rigorosamente crítico da cultura do marxismo. Ninguém pode negar a um marxista o direito à esperança. Mas este não pode mais reivindicar o direito à inocência, depois de tantos descaminhos e até crimes cometidos em nome dos ideais mais caros de emancipação. É com base nestas opções éticas que formulamos quatro teses encadeadas para se pensar a relação entre marxismo e democracia .Elas correspondem ao exame sistemático da cultura do marxismo, a partir da crítica liberal, conduzido no nosso livro "Democracia e marxismo: crítica à razão liberal " (São Paulo, Xamã,1998). A grande crítica liberal, que buscava demonstrar a incompatibilidade de fundamentos entre marxismo e democracia, a partir de diferentes caminhos argumentativos, identificava o determinismo histórico como a raiz e a origem desta incompatibilidade. Uma visão crítica e panorâmica da formação e desenvolvimento da cultura do marxismo, a partir das diferentes concepções de história que nela compareceram, chegaria à conclusão do predomínio das correntes deterministas na cultura do marxismo, o que aparentemente dava razão à crítica liberal. Submetendo o conjunto da obra de Marx a uma análise rigorosa a partir das

concepções de história que nela comparecem, revelou-se de um simplismo insustentável a atribuição à obra de Marx de uma concepção unitária e coerentemente determinista, seja a partir de uma filosofia da história ou de uma ciência da história. De um lado, as noções deterministas que comparecem na reflexão de Marx estão sob permanente tensão crítica a partir das profundas rupturas operadas na cultura científica da época (então, basicamente determinista). De outro, estas noções deterministas têm fontes diversas e variam ao longo do caminho intelectual de Marx. Por fim, e mais importante, elaboram-se na obra de Marx os primeiros fundamentos de uma concepção praxiológica de história que, sem encontrarem um desenvolvimento teórico adequado, bloqueiam a lógica de uma interpretação consistentemente determinista de seu pensamento. Do nosso ponto de vista , as diversas interpretações do marxismo como determinismo fracassaram em última instância em apresentar uma visão lógica globalmente coerente de seu campo teórico. Pelo contrário, as interpretações deterministas dominantes foram sempre, ao nível teórico, o principal fator de cisão, crise e dispersão do marxismo. Em particular, o materialismo histórico - em suas versões epistemológica (como inversão pura e simples do idealismo), ontológico (assentando as bases de um monismo com base na prioridade causal da matéria), economicista (enfatizando a prioridade explicativa das forças produtivas na definição do curso da história), estruturalista ou funcional - não conseguiu, apesar do monumental esforço de inteligência e erudição nele aplicado, estabilizar um campo teórico básico.Além disso, as várias tentativas de reconstrução do marxismo falharam exatamente por relativizar, mediatizar e não romper integralmente com os fundamentos do determinismo histórico. Enfim, analisando a síntese de Gramsci elaborada nos “Cadernos do Cárcere”, abrimos uma terceira linha de contestação à crítica liberal. Pois há na obra de Gramsci uma nova síntese do marxismo que, rompendo radicalmente com os fundamentos do determinismo, elabora os conceitos macros necessários a uma concepção praxiológica da história. Assim, apesar do seu isolamento político e da ausência de uma continuidade orgânica de seu pensamento no que diz respeito a esta ruptura de fundamentos com o determinismo, o marxismo encontra em Gramsci, setenta anos após a publicação do primeiro tomo de “O Capital”, a reconstrução de seu campo conceitual que o imuniza perante a crítica de raiz do liberalismo. Resta-nos, agora, trançar estas três vertentes de contestação à crítica liberal em teses consistentes sobre a relação entre o marxismo e a democracia. Primeira tese : É incorreto estabelecer uma linha de continuidade direta entre as vertentes autoritárias que vicejaram na cultura marxista deste século e a obra original de Marx que, como analisamos, não pode ser enquadrada de forma rigorosa em uma concepção determinista da história. O máximo que se pode dizer é que as interpretações deterministas da obra de Marx, forçando e ampliando unilateralmente tendências existentes em sua reflexão, alimentaram desdobramentos autoritários na cultura do marxismo.

referências explícitas aos problemas da transição ao socialismo, a simplificar as complexas mediações políticas necessárias em prol das componentes socio-econômicas do processo e a superestimar as dimensões espontâneas e classistas de uma transformação que exige intensa elaboração político-cultural hegemônica. E, sobretudo, estas tensões deterministas forneceram as bases para as interpretações unilaterais da obra de Marx como dotada de uma concepção coerentemente determinista da história. Estas interpretações constituiram-se na via principal de transmutação do caráter humanista e libertário, anti-estatal e anti-burocrático da teoria original de Marx, estrada através da qual penetrou e foi se desenvolvendo uma lógica autoritária de poder. Veremos como isto ocorreu no ítem seguinte. Por enquanto, fiquemos com esta conclusão: foram os impasses e os silêncios da obra de Marx - e não o sentido nuclear e substantivo da sua teoria da emancipação - a origem de possíveis desdobramentos autoritários e burocrático-estatais na cultura do marxismo. Segunda tese: Existe incompatibilidade fundamentos entre democracia e marxismo apenas se este for pensado a partir de uma concepção determinista da história. Podemos formular a demonstração desta conclusão a partir de três impasses. O primeiro é o impasse da antinomia: a própria noção de emancipação humana supõe a pluralidade de caminhos históricos e a possibilidade de escolha; esvazia-se substantivamente a noção de democracia se as opções fundamentais estão de antemão definidas. Mesmo se concebe, a priori, um projeto plenamente emancipatório de convivência humana, de superação completa da coerção e da desigualdade, a essência emancipatória deste projeto fica relativizada ou mesmo esvaziada se ele é imposto ou concebido como a única opção. Quando a concepção determinista da história na cultura do marxismo foi formulada a partir de uma filosofia da história, as consciências e as opções políticas ficaram retidas na polaridade falsa/verdadeira, a primeira designando todas aquelas consciências e opções que não se adequam ao caminho “real” da história. Como ao proletariado é atribuída uma consciência revolucionária imanente, a consciência histórica “real” é paradigmaticamente atribuída a ele não na sua empiricidade mas em seu destino. A obra do jovem Lukács, “ História e consciência de classe”, tipifica bem esta antinomia. Se a concepção determinista da história se incorpora ao marxismo através da “cientificidade materialista”, as consciências e opiniões políticas catalogam-se no par certo ou científico / errado ou desviante. Aqui, a noção de ciência, ganhando um sentido totalizante, absorve todo o complexo de subjetividade e de conflito na política. Como a obra de Marx tendeu freqüentemente a se tornar na cultura do marxismo, através do dogma, a referência absoluta de cientificidade, a disputa de opiniões e de projetos muitas

vezes adequou-se aos conflitos de pura interpretação do texto de Marx. O Diamat, codificado na esteira do estreitamento autoritário da revolução russa, tipifica com perfeição esta antinomia. É evidente que as complexas ramificações e desenvolvimentos da cultura marxista neste século cruzaram e combinaram, em graus e proporções variadas, estas duas formas típicas de antinomia. É a esta antinomia - projeto emancipatório versus determinismo histórico - que devemos atribuir, em última instância no plano das idéias, a defesa do uso instrumental da liberdade, a perda de uma referência dialética libertária entre meios e fins. Se o projeto futuro de emancipação está já no fundamental definido e é visto como destino, então pode valer a pena, no curto prazo, o sacrifício de princípios emancipatórios em nome do objetivo final. O segundo impasse é o do carecimento. Ao formular a problemática da transição ao socialismo no plano referencial de uma filosofia da história ou no plano referencial de um desenvolvimento imanente da economia capitalista (contradição entre força e relações de produção), a política enquanto esfera de mediação e enquanto cenário no qual os vários projetos de classe travam a luta hegemônica fica evidentemente desvalorizada. É expressivo o fato de que o Estado tenha sido tratado, na maior parte do tempo na cultura marxista, como momento subordinado encaixado na “superestrutura” e quando, na segunda metade do século XX, adensaram-se os estudos analíticos sobre o Estado a partir de uma perspectiva marxista, isto tenha se dado sob a problemática da “autonomia relativa “ ou dependência estrutural do Estado frente às determinações econômicas de classe. São raros os estudos crítico-analíticos sobre a cultura política do liberalismo construídos a partir da inspiração marxista e, mais raros ainda, os estudos sobre a problemática jurídico-institucional do Estado. E, no entanto, não cessou de aumentar a longo do século XX quantitativa e qualitativamente o papel do Estado como provedor, regulador, estabilizador do funcionamento do sistema capitalista. Esta carência analítica teve decerto um peso depressivo sobre a capacidade da cultura marxista em projetar alternativas que superem os marcos da democracia liberal. Neste campo - no âmbito projetual - a literatura marxista, em grande medida, ou se limitou a defesa de propostas organicistas e simplistas de democracia direta ou teve dificuldade em escapar dos paradigmas basilares da democracia representativa liberal. Em particular, observou-se um subdesenvolvimento teórico ao que diz respeito à formulação de alternativas democráticas aos mecanismos de mercado. A desvalorização da política veio quase sempre acompanhada na cultura do marxismo de um carecimento ético-cultural. Este é um debate antigo na cultura do marxismo que vem, como vimos, desde a polêmica em torno dos marxistas - kantianos. Na ambição de conceber o socialismo como pura derivação de uma visão científica de mundo, a sua dimensão ético-moral tendeu a ser subsumida muitas vezes na análise científica da “exploração” e de suas resultantes opressivas. Por outro lado, vivificou em algumas áreas do marxismo um “socialismo ético”, quase sempre vinculado a perspectivas reformistas e moralizantes, incapaz de formular analítica e programaticamente os pressupostos político-materiais de sua realização. Decerto, este carecimento ético-moral do marxismo contribuiu para que o

institucionalização havia sido o grande veio de integração do partido mais poderoso da II Internacional à ordem imperialista alemã. 4 A ortodoxia da II Internacional, representada emblematicamente por Karl Kautsky, indicava a estratégia da conquista de uma maioria parlamentar e, a partir do controle do Estado, a estatização dos meios de produção como método de transição ao socialismo. O Kautsky de l922, em um registro bem mais moderado mas ainda prisioneiro de uma cultura estatista, teoriza que a passagem da “época do Estado meramente burguês e a do Estado democrático regido com uma base meramente proletária se dará sob a forma de um governo de coalizão.” 5 O informe de Rudolf Hilferding ao Congresso de Kiel, em 1927, sintetiza a idéia de “transição” ao socialismo da social-democracia weimariana. Para Hilferding, as premissas do socialismo já se encontrariam nos elementos de organização existentes no desenvolvimento moderno do capitalismo. “ A nossa geração”, propõe Hilferding, “ se impõe a atarefa de transformar, com auxílio do Estado, ou seja, com o auxílio de uma regulação social consciente, esta economia organizada e dirigida pelos capitalistas numa economia dirigida pelo Estado democrático.” Giacomo Marramao lembra oportunamente : “ aqui, o Estado apresenta-se como reedição da “alavanca do socialismo” de Lassalle - instrumento e instâncias funcionais para a realização histórica do objetivo da “sociedade regulada”. O estatismo na cultura da III Internacional alicerçou-se, por sua vez, no processo objetivo de burocratização do poder gerado pela revolução russa. Na cultura nascente da III Internacional, o Estado revolucionário passou a se fundir cada vez mais à idéia do agente propulsor, catalisador e garantidor da transição ao socialismo, cada vez mais entendido como estatização dos meios de produção e como planificação centralizada. O estalinismo transformou o que era uma cultura fortemente impregnada de estatismo em uma estatolatria, em um culto ao estado forte, com todas as conseqüências para a teoria dos partidos e a relação Estado / sociedade civil daí advindas. Ao invés de uma progressiva absorção do Estado em uma sociedade civil autogestionária e auto-regulada, como concebiam os fundadores do marxismo a transição ao socialismo, a lógica dominante passou a ter exatamente o sentido inverso. Paralelamente ao estatismo e, em alguma medida imbricado com ele, as concepções deterministas na cultura do marxismo, entendendo-o como consciência histórica real do processo de transformação ou como “ciência da revolução proletária “, impulsionaram logicamente um anti-pluralismo político. Se a racionalidade do devir histórico pode ser filosófica ou cientificamente configurada, então a doutrina ou partido político que expressa esta racionalidade teria legitimado para si o monopólio da representação ou do poder. Este anti-pluralismo alcançou uma expressão plena no corpo doutrinário do estalinismo mas não deixou de exercer uma influência mais ampla na cultura do marxismo. O tema do pluralismo político na democracia socialista em toda a sua dimensão - reconhecimento do direito da existência de partidos liberais ou anti-socialistas que cumpram os requisitos procedimentais da legalidade constituída, proteção aos direitos das minorias, plena liberdade do exercício da crítica e do debate públicos, possibilidade de alternância no governo - só ganhou audiência na cultura marxista na esteira do declínio dos dogmas estalinistas. O anti-pluralismo, como se sabe, acabou por impactar não apenas o estatuto

democrático da relação do marxismo com partidos e forças antagonistas, mas a própria concepção da democracia nas classes trabalhadoras, com o tema do “ partido único”, que representava os interesses históricos da classe. A idéia de que a classe trabalhadora deveria ter uma única representação partidária, por concepção e por pragmatismo eleitoral, já era corrente na cultura da II Internacional. 6 E tornar-se-ia um dogma central na cultura do estalinismo. Estes três impasses - da antinomia, do carecimento, da inversão - mostram como a lógica do determinismo histórico, se dominante na interpretação do marxismo, acaba por travar a sua projeção democrática e incentiva uma série de desdobramentos autoritários e opressivos, que se revelaram de forma mais cristalina nos países onde movimentos inspirados no marxismo chegaram ao poder. Mas um marxismo que supere as concepções deterministas pode potencialmente iluminar um projeto democrático para além do liberalismo. É o que veremos a seguir. Terceira tese: Apesar do predomínio das concepções deterministas, a cultura do marxismo forneceu contribuições históricas extremamente relevantes à concepção e à prática da democracia. O reconhecimento desta contribuição, empiricamente comprovável, apenas equilibra o diagnóstico da relação visceralmente ambígua da cultura marxista deste século como o ideal da democracia. Seria incorreto e historicamente não comprovável estabelecer, ao modo liberal, uma relação univocamente negativa entre marxismo e democracia. Mas como equacionar esta afirmação com a conclusão anterior que procurava deslindar os desdobramentos autoritários do determinismo histórico que prevaleceu na cultura marxista deste século? Não seria correto supor, a partir do predomínio das concepções deterministas da história, o predomínio das vertentes anti-democráticas na cultura do marxismo? O aparente paradoxo se desfaz quando se tem em conta o papel decisivo cumprido pela cultura do marxismo em projetar o tema da igualdade social antagonicamente ao elitismo liberal e às realidades excludentes do capitalismo. É certo que correntes humanitaristas, inclusive cristãs, e toda sorte de trabalhismos não diretamente inspirados no marxismo cumpriram um papel importante para manter um certo patamar histórico de legitimidade e de conquistas dos anseios de justiça social. Um historiador isento certamente reconheceria, no entanto, o papel decisivo cumprido aí pela cultura do marxismo. Em primeiro lugar, a vocação anti-capitalista do marxismo levou a que correntes nele inspiradas protagonizassem a liderança, em uma série de conjunturas e contextos históricos, da luta contra a opressão. A começar contra os primeiros regimes liberais ou semi-liberais que negavam o direito de voto e os mínimos direitos sociais à esmagadora maioria dos seus povos, passando pela luta decisiva contra o nazismo e o fascismo,

uma concepção praxiológica da história, permite superar o impasse de fundamentos entre marxismo e democracia. Um marxismo assim crítico e renovado permitira repensar com fundamentos econômicos e político-culturais coerentes, um projeto democrático crítico e alternativo à democracia liberal. A superação do impasse existente entre marxismo e democracia certamente não é apenas um problema teórico. Passa por experiências históricas de largo espectro e de implicações duradouras, pela rearticulação de movimentos sociais e de trabalhadores em torno a novos projetos emancipatórios em choque com as estruturas de dominação capitalista. Supõe decisivas batalhas no campo político-cultural e a emergência de uma nova hegemonia de valores civilizatórios. Tem necessariamente que se inscrever nos grandes dilemas e contradições do mundo contemporâneo, da globalização e dos novos paradigmas tecnológicos. E, sobretudo, teria que ser concebido desde o início como um movimento crítico e de resistência à hegemonia liberal prevalecente. No entanto, uma cultura marxista sem credibilidade perante a opinião pública democrática é, por uma questão de raiz, incapaz de travar a luta política hegemônica com o liberalismo. O autoritarismo prevalecente nos países em que partidos ou movimentos inspirados no marxismo chegaram ao poder e a ambigüidade diagnosticada na relação da cultura marxista com a democracia foram, no plano das idéias e do senso comum, elementos chaves para seu isolamento pela crítica liberal. No contexto das democracias liberais dos países capitalistas centrais, o impasse programático da cultura marxista em elaborar um projeto democrático alternativo ao liberalismo levou as correntes que nele se inspiravam a um impasse estratégico insolúvel. 7 Ou se adequavam às regras da disputa parlamentar, com todas as conseqüências previsíveis de institucionalização, ou então se recolhiam a uma estratégia da “grande recusa”, conformando-se à mera reiteração doutrinária das fórmulas obreiristas da democracia direta, perdendo assim capacidade hegemônica. Além disso, a ausência de uma alternativa à democracia liberal que desfrutasse de credibilidade alimentou a condição paradigmática desta, elevação à condição de modelo reconhecidamente limitado mas único e universalmente factível para a democracia. Nesta última conclusão teceremos algumas indicações, ao nível de fundamentos e princípios, de como um campo teórico do marxismo coerentemente construído a partir de uma concepção praxiológica da história poderia desatar os nós do impasse diagnosticado na relação do marxismo/democracia e alimentar um projeto crítico e alternativo ao liberalismo. Faremos estas indicações a partir do campo teórico sistematizado por Gramsci nos “Cadernos do Cárcere” e interpretado no capítulo 8. Em primeiro lugar, um campo teórico centrado no conceito de hegemonia permitira superar o impasse da antinomia entre marxismo e democracia. Isto é, como critério de interpretação histórica, o conceito de hegemonia fornece um antídoto radical ao determinismo apoiado seja em uma filosofia da história seja em um cientificismo materialista. Pois ele permite compreender, sem mecanicismos, os processos de construção, conservação

e superação da ordem. A história é vista tanto como cenário da afirmação da hegemonia como da sua crise, é sempre a resultante individuada e irrepetível do choque entre diferentes vontades coletivas, entre direção e coerção. Não há caminho único, não há inevitabilidade, não há linearidade evolucionista e muito menos automatismo de consciência das classes trabalhadoras se pensamos a história rigorosamente a partir do conceito de hegemonia. O importante aqui é compreender que Gramsci dá uma forma contemporânea e plenamente democrática à noção original de Marx de auto-emancipação das classes trabalhadoras. Há em Gramsci o conceito de vanguarda reelaborado sob a metáfora do “Moderno Príncipe “. Mas, ao contrário da cultura do leninismo, esta noção não está tensionada para o substituísmo e sim para a socialização da política, para a superação da distância entre governantes e governados, entre dirigentes e dirigidos. A hegemonia é concebida como elaboração orgânica: ela nem vem “ de fora” nem “de dentro”. Quanto mais ampla e coletiva for a síntese, mais o projeto hegemônico será denso e historicamente operativo. A ampliação do conceito de intelectual e de filósofo no sentido de sua máxima mundanização, a concepção da construção de uma nova visão de mundo a partir do diálogo crítico com o senso comum, a laicização do próprio marxismo são parte deste esforço de socialização da política que se institucionaliza, de modo perene, em um projeto democrático de ampliação radical dos espaços públicos democráticos na sociedade civil. O conceito de hegemonia pode ser visto assim como exaltação do potencial democrático das classes trabalhadoras para além de uma noção transcendente (já que seu projeto é construído no curso da história), populista (já que não se trata de uma adesão aos valores empíricos das classes trabalhadoras em sua condição de dominadas), elitista (já que a noção de hegemonia só tem sentido se concebida como orgânica às classes). Quadro XIX Concepção praxiológica e democracia: novos fundamentos 1 - Visão anti-determinista supera os impasses da "antinomia", "do carecimento", da "inversão". 2 - Conceito de hegemonia cobra desenvolvimento ético-moral, no sentido de fundamentar a partir dos conflitos de interesses no capitalismo, uma ética universalista e uma moralidade substantiva da democracia. 3 - Sociedade civil expandida em seu ethos democrático, critica a teoria elitista da representação e abre novas perspectivas de controle social e cidadania ativa. 4 - Exigência de democracia para as estruturas de poder econômico hoje dominadas pelo capital expande e enraiza o pluralismo na sociedade civil. 5 - Humanismo radical propõe um novo desenvolvimento da individualidade em um complexo civilizatório alternativo.

Pois a afirmação do conceito de hegemonia é também a identificação do desenvolvimento da sociedade civil como alternativa a uma visão estatista da política. A extensão relativa do aparato estatal em detrimento da sociedade civil e o grau de verticalização através do qual se articula com ela são critérios negativos da construção da hegemonia. A “revolução passiva”, na qual o Estado ocupa posições e exerce funções substituindo a grupos dominantes, é um conceito analítico chave para processos históricos realizados com baixo grau de direção hegemônica. O centro de um projeto hegemônico é sempre a sociedade civil e é a partir daí que Gramsci projeta a problemática moderna da transição ao socialismo. A sociedade civil hegemonizada pelos socialistas, expressando um novo bloco histórico, é pensada como o centro dinâmico de controle e regulação da economia em um sentido anti-mercantil, de socialização do poder e de uma nova cultura aberta à livre expansão das individualidades. Além disso, o conceito de hegemonia tensiona o marxismo em direção ao pluralismo político e cultural por diversas razões. Ao valorizar a interpretação da história como aberta à possibilidade de diferentes projetos protagonizarem a liderança das transformações, o conceito de hegemonia rompe pela raiz o circuito monológico auto-referido de uma doutrina que se legitima por sua pretensão a encarnar a razão ou o sentido da história. Em segundo lugar, hegemonia significa ser dirigente em meio à diversidade, ao conflito e até à própria contradição. O conceito de hegemonia tensiona ao máximo e concretiza o sentido universalizante da política socialista, não apenas como ponto de chegada (a sociedade sem classes e sem dominação política) mas como processo desde o início de construção de universais em contraposição aos particularismos da ordem capitalista. A política classista como defesa de interesses corporativos é vista como um momento de construção da identidade dos trabalhadores, mas é criticada porque não é vista como um momento plenamente autônomo da política socialista, da construção de um projeto hegemônico. Na fase corporativa, as classes trabalhadoras ainda se expressam em uma língua economicista, “estrangeira”, do outro; apenas na fase hegemônica, há a “recriação do verbo”, de uma língua não objetivada mas que se projeta para além das realidades da dominação. Quanto mais constituída estiver a autonomia de um projeto hegemônico mais ampla poderá ser a política de alianças; quanto mais poderoso o projeto hegemônico, mais ele poderá acolher dentro de si a diversidade sem perder um núcleo básico de coerência. A política e a cultura na construção hegemônica são mais do que a soma de representações de interesses materiais: elas introduzem “arcos subjetivos” que são inintelegíveis para um pensamento estritamente materialista e objetivado. O bloco hegemônico constituído a partir das classes trabalhadoras não pressupõe necessariamente uma complementariedade ou convergência automática de interesses. A aliança das classes trabalhadoras com outros agrupamentos sociais não deveria ser vista como instrumental, isto é, apenas como resposta às exigências pragmáticas da luta pelo poder : são antes momentos de ampliação da visão de mundo das classes trabalhadoras, de universalização de suas propostas através da incorporação de tradições, valores e interesses de outras classes

ou frações de classe. Através do conceito de hegemonia, enfim, é possível expandir a noção de pluralismo para além do circuito pensado pela tradição liberal, já que o projeto socialista se propõe a enraizar o pluralismo político na própria superação das realidades da dominação do capital e na democratização radical da sociedade civil (e não apenas na garantia do pluralismo na relação entre Estado e sociedade civil). Em quarto lugar, contrariamente à “cultura do coletivismo”, o conceito de hegemonia incorpora centralmente o tema da autonomia, da individualidade no interior de um projeto coletivo de emancipação. A elaboração de uma nova vontade coletiva hegemônica implica na superação do “homem-massa”, na conquista da identidade através da oposição, distinção, elevação com respeito a uma existência fragmentada e destituída do sentido. O próprio marxismo é assim definido por Gramsci como humanismo radical. Trata-se de pensar o processo da personalidade como o enriquecimento da esfera das necessidades humanas a partir da sociabilidade. Para Gramsci, a qualidade deveria ser atribuída aos homens e não às coisas: a qualidade humana se eleva e se refina na medida em que o homem satisfaça um maior número de necessidades e se torna assim independente (Quadernil del Carcere, caderno 22, & 8, pag. 2159). A própria elevação quantitativa e qualitativa da linguagem é vista como expressão de uma ampliação e aprofundamento da concepção de mundo e da história. Neste sentido, o projeto hegemônico mais avançado é aquele que incorpora as condições de autonomia em suas formas de reprodutividade. Tem exatamente este sentido a idéia de uma progressiva absorção do Estado pela sociedade civil: o igualitarismo da norma cede lugar de forma crescente às diversas possibilidades de individuação em um mesmo campo ético-moral. Por fim, a partir de uma visão praxiológica da história fecha-se o espaço lógico para uma relação instrumental da revolução com a democracia. O conceito de hegemonia solda o sentido democratizante do processo com o próprio objetivo emancipatório. Em Gramsci, há a exigência máxima de uma maturação subjetiva para a revolução. É necessário não apenas que os de cima não consigam mais governar e que os de baixo não queiram mais ser governados: é preciso que os de baixo saibam também governar. Isto é, além das novas instituições estatais e econômicas, o processo de transição para o socialismo tem que ser capaz de construir uma cultura qualitativamente mais democrática. Não há no texto de Gramsci, é importante dizer, nada que autorize a idéia de que nesta visão processual da revolução, o momento catártico do salto qualidade, de ruptura, esteja negado. Um grande número número de intérpretes do pensamento gramsciano, fazendo a identificação / contraposição hegemonia = “guerra de posição” / = “revolução permanente” = “guerra de movimento” procura construir esta interpretação. Há indicações mais que claras, no entanto, que o campo teórico de Gramsci combina “guerra de posição” e “guerra de movimento”, esta última assumindo uma função mais tática na sociedade moderna”. 8 Assim, em Gramsci a concepção de revolução em sua dimensão de violência está radicalmente subordinada a sua dimensão diretiva, expansiva, criativa, o que está de pleno

como todas as revoluções anteriores consolidaram “ o poder centralizado do Estado, com seus órgãos ubíquos do exército, política, burocracia, clero e magistratura.” A Comuna, ao contrário, havia “ restaurado para o corpo social todas as forças antes absorvidas pelo Estado parasita, alimentando-se do e obstruindo o livre movimento da sociedade.” Marx também enfatiza o caráter popular, democrático e igualitário e o modo através do qual “ não apenas a administração municipal mas toda a iniciativa até então exercida pelo Estado foi deixada nas mãos da Comuna “. Nas notas para a redação da “ Guerra civil na França “, Marx ainda frisa: “ Esta (a Comuna) foi uma revolução não contra este ou aquele, legitimista, constitucional, republicano ou imperialista forma de poder estatal. Foi uma revolução contra o Estado em si, este aborto supernaturalista da sociedade, uma reassunção pelo povo para o povo da sua própria vida social.” Na “ Crítica ao Programa de Gotha “, critica a noção de Estado livre “ como contraditória em termos, perguntando-se: ”Quais transformações vai o Estado sofrer na sociedade comunista? Em outras palavras, quais funções sociais vão permanecer existindo que são análogas às atuais funções do Estado ?”Afirma, em seguida: “ A liberdade consiste em converter o Estado de um órgão supra imposto à sociedade em algo completamente subordinado a ela...” Todas as citações foram extraídas do ensaio de Milliband, opus cit; pags.18, 19 e 21. 3 - Este impasse ético do liberalismo é bem diagnosticado no livro “ Liberalismo e sociedade moderna “, de Richard Bellamy, já citado. Bellamy após analisar vários autores clássicos do liberalismo, de John Stuart Mill até o debate mais recente chega à conclusão de que o liberalismo democrático contemporâneo deve recusar a pretensão de formular uma teoria moral abrangente e apenas indicar as instituições e procedimentos através dos quais os vários indivíduos e grupos possam conviver pacificamente, preservando-se a liberdade individual e grupal por meio da distribuição de poder 4 - Ver análise detalhada do processo de integração à ordem da social-democracia na nossa tese “Claro Enigma: O PT e a tradição socialista”, especialmente o capítulo II. 5 - Conf. K.Kautsky, Die Proletarische Revolution und uhr Programm (Berlim, 1992), pags. 105, 106, citado em Marramao, Giacomo. O político e as transformações. Crítica ao capitalismo e ideologias da crise entre os anos vinte e trinta. Belo Horizonte, Editora Oficina das Letras, 1990. 6 - O Congresso da II Internacional de 1904, realizado em Amsterdan, refletindo interesses pragmático e eleitorais mas também uma concepção, aprovou a seguinte resolução que visava fundamentalmente pressionar no sentido da unificação das correntes socialistas francesas: “ a classe operária é única e deve ter apenas um partido.” 7 - Este impasse está no centro do debate de Norberto Bobbio com intelectuais do PCI em torno às estratégias deste último. Bobbio cobra do PCI a adesão pública e sem subterfúgios às regras da disputa parlamentar. O debate é reproduzido nos livros “ O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo “ de N. Bobbio (Rio de Janeiro, Paz e Terra,1986) e o “ Marxismo e o Estado”, vários autores (Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979). 8 - “Com isto não se quer dizer que a tática de assalto e a guerra de movimento devam ser consideradas como já agora desaparecidas do estudo da arte militar: seria um grave erro. Mas esta, na guerra entre os Estados mais avançados industrialmente deve considerar-se reduzida mais a uma função tática do que estratégica, assim como era a guerra de assédio no período precedente da história militar. A mesma redução deveria haver na arte e na ciência da política, ao menos no que diz respeito aos Estados mais avançados, onde a “sociedade civil” tornou-se uma estrutura muito complexa e resistente às irrupções catastróficas do elemento econômico imediato (crise, depressões etc): “a superestrutura da sociedade civil é como o sistema de trincheiras na guerra moderna.” (Quaderni del Carcere, Caderno 7, pags.859-860). 9 - Jacques Texier ( “Gramsci frente ao americanismo: exame do Caderno 22” in Gramsci y la Izquierda europea) enumera uma série de críticas para afirmar que “ a modernidade de Gramsci é de conteúdo fordista. “Daí resultaria necessariamente que hoje em dia necessitaríamos de outro projeto de emancipação para cumprir a promessa de modernidade.” A nosso ver, Texier confunde o horizonte cultural de Gramsci, que não poderia deixar de estar vinculado às experiências de fronteira de seu tempo, com o método de Gramsci. Ao contrário de Texier, é possível demonstrar a riqueza potencial da obra de Gramsci para superar uma visão unidimensional e produtivista da personalidade humana.